segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Susan Sontag - Vida e Obra - Uma pessoa séria




Do livro Sontag - Vida e Obra. O texto de Benjamin Moser é fantástico e as histórias fabulosas.

34. Uma pessoa séria

Quando caiu o Muro de Berlim, até mesmo o cínico mais empedernido deve ter visto o arco do universo moral pendendo para o lado da justiça. As eletrizantes cenas televisionadas de multidões derrubando muros e rechaçando tiranos pareciam corroborar a antiga crença americana — ingênua ou esperançosa, ou ambas as coisas — de que a liberdade era o destino de todos os povos, e de que a história poderia se confundir com o progresso. O comunismo desmoronava, levando à emergência de governos democráticos numa porção enorme do planeta; também naqueles anos, muitas das ditaduras latino-americanas ruíram; o Acordo de Oslo de 1993 prometia paz entre israelenses e palestinos; e a libertação de Nelson Mandela anunciava o fim do apartheid sul-africano.

Essas mudanças eram tão dramáticas que a paz e a democracia começaram a parecer dadas de antemão. Era fácil ridicularizar essa noção, e Sontag muitas vezes o fez. Em “Projeto para uma viagem à China”, ela citou um senador dos Estados Unidos na virada do século que anunciou que “com a ajuda de Deus, vamos elevar Xangai tão alto, tão alto, que chegará ao nível de Kansas City”.1 Mas, por uns poucos e breves anos, o progresso foi real o bastante para que até mesmo os reveses mais pavorosos, como o massacre na praça Tiananmen, parecessem percalços temporários. Em 1992, Francis Fukuyama publicou um livro cujo título ficou famoso por sintetizar de modo tão perfeito a época: O fim da história e o último homem. A história, que raramente dera alguma razão para otimismo, havia encontrado seu melhor eu.

A ensolarada Iugoslávia encabeçava a lista de lugares credenciados a se beneficiar com essas revoluções. Aquela terra de ilhas, montanhas e florestas sofrera menos com o comunismo do que qualquer outro país da Europa comunista. Em vívido contraste com outros cidadãos comunistas, que só conseguiam viajar ao estrangeiro com dificuldade, os iugoslavos podiam ir e vir livremente. O país era uma ditadura, mas Tito nunca se aproximou da megalomania escancarada de Stálin ou Ceauşescu; e, apesar de a economia ser disfuncional, nunca chegou perto do colapso em larga escala de países como a Rússia ou a Romênia. Com o fim do comunismo, a Iugoslávia, com suas indústrias promissoras e seu povo altamente instruído, sua boa infraestrutura e seu bom vinho, parecia pronta para ser integrada sem traumas ao Ocidente.

Para o mundo exterior, a Iugoslávia era uma nação e os iugoslavos eram um povo. Esse mundo exterior, que só dedicara àquele lugar uma atenção muito ocasional e distraída, estava pouco preparado para as complexidades “raciais”, religiosas e culturais que o caracterizavam. O grupo étnico mais extenso eram os sérvios, por exemplo, que frequentemente coexistiam — mas não se confundiam — com os cidadãos da Sérvia, os quais não são todos sérvios: podiam ser albaneses, húngaros, judeus ou mesmo chineses. Os sérvios, em contraste, são um grupo étnico da Igreja cristã ortodoxa do Oriente, que podem ser encontrados em toda parte, de Moscou a Miami; e havia além disso sérvios-bósnios, sérvios de Kosovo, sérvios da Croácia — que não podem de modo algum ser confundidos com os croatas cidadãos da Sérvia —, todos os quais tinham suas próprias histórias, embora falassem todos a mesma língua, que era conhecida genericamente como servo-croata, mas que era também, dependendo do lugar, chamada de sérvio, de croata, de bósnio, de montenegrino, ou apenas, com um dar de ombros, de “nossa língua”.

Quando o país começou a se despedaçar, essa complexidade tornou fácil descrever a Iugoslávia como um mistério medieval, fervilhando de ódios insondáveis; essa descrição era útil para políticos estrangeiros em busca de desculpas para ficar de braços cruzados. Mas havia outros meios de descrever a Iugoslávia, a mais óbvia das quais era como uma nação europeia moderna. Era verdade que ela contava com uma população multiétnica, o que também acontecia com todas as nações baseadas na cidadania, e não na filiação étnica. Os iugoslavos eram pessoas “para quem a propriedade de chalés à beira-mar, dois carros e formação universitária havia se tornado corriqueira”, conforme escreveu David Rieff.2 Eles eram “tão dependentes de elevadores, encanamento de gás, supermercados e eletricidade quanto qualquer outra população de um país moderno, desenvolvido”.

Derrotada sua ditadura, talvez a Iugoslávia pudesse ter se tornado uma federação nos moldes suíços ou belgas. Ou talvez, como a Tchecoslováquia, seus componentes pudessem ter seguido pacificamente caminhos separados. O fato de não ter feito nem uma coisa nem outra — e de seu nome ter se tornado um sinônimo de horror — deveu-se em grande parte a um homem, Slobodan Milošević, um burocrata que ascendeu nos anos 1980 ao denunciar os abusos aos quais a maioria sérvia estava supostamente sendo submetida. Os sérvios estavam sendo oprimidos pelos albaneses de Kosovo, pelos croatas, pelos muçulmanos bósnios, declarou ele — e agiu, como presidente da Sérvia, para centralizar o poder em Belgrado. Isso provocou uma reação. A Eslovênia e a Croácia se separaram no início de 1991. A independência da Eslovênia foi logo consolidada; mas os combates eram ferozes na Croácia, que fazia fronteira com a Sérvia e onde viviam muitos sérvios. O bombardeio de Dubrovnik, a joia da Riviera croata, pelo Exército iugoslavo deu uma prévia do que viria pela frente.

No ano seguinte foi a vez da Bósnia-Herzegovina, a mais mesclada das repúblicas. Sua população, “dividida” entre sérvios, croatas e muçulmanos, estava de tal modo misturada que muitos bósnios acreditavam que o tipo de violência irrompida tão brutalmente na Croácia era impossível na Bósnia: dividir as pessoas por sua formação étnica ou religiosa significaria destruir cidades, bairros, famílias. E foi exatamente o que aconteceu depois que um referendo sobre a independência da Bósnia foi boicotado pelos sérvios do país. A guerra estourou em 6 de abril, dia em que a Bósnia recebeu reconhecimento internacional. Em 2 de maio, o que restava do Exército iugoslavo isolou a capital da Bósnia.

A palavra “capital” é um pouco excessiva para Sarajevo, que, nas palavras exageradas de um bósnio, não passa de uma rua. Essa rua, paralela ao rio Miljacka, se bifurca em outras, que, a poucas quadras do rio, elevam-se de modo íngreme para dentro de morros verdejantes, oferecendo vistas de jardins e minaretes que dão à cidade uma reputação de romance islâmico. Era também um lugar de modernidade europeia: mais ou menos equidistante de Milão e Istambul, Viena e Atenas, Sarajevo tinha uma cultura cosmopolita que lhe conferia uma ambiência muito mais sofisticada do que poderia fazer crer seu tamanho. Com mesquitas e sinagogas muito próximas, e igrejas católicas e ortodoxas lado a lado, Sarajevo representava o ideal pluralista do qual cidades como Nova York foram herdeiras. Existiram muitas dessas cidades na Europa Central; mas a maioria tinha sido destruída no século XX pelo irredentismo que agora ameaçava Sarajevo.

Como duas mãos unidas em forma de concha, o vale que envolve Sarajevo é profundo e se estreita em ambas as extremidades. No ponto em que os pulsos se tocam, o vale se espreme numa passagem apertada; onde os dedos se encontram, no alto do vale, o terreno é plano e largo apenas o bastante para dar espaço à pista do aeroporto. A topografia da cidade tinha sido uma bênção para o turismo que a Bósnia, a exemplo da Croácia, queria atrair. Com estação de esqui com teleférico a poucos minutos do centro da cidade, Sarajevo sediou as Olimpíadas de Inverno em 1984. Na época, poucos seriam capazes de prever os usos mais malignos a que aquela geografia viria a servir.

Oito anos depois, Sarajevo estava sitiada. Ela seria sufocada durante 1425 dias, o mais longo cerco da história moderna, quase o dobro do recorde anterior, o do cerco nazista a Leningrado. Aqueles que poderiam tê-lo encerrado — a Marinha dos Estados Unidos avaliou que isso demandaria no máximo 48 horas3 — refugiaram-se em clichês sobre a insondável barafunda e os rancores irreparáveis das tribos iugoslavas. As complexidades históricas eram reais, mas uma vez que Sarajevo estava sitiada, a obrigação moral era inequívoca.

Milošević e seu Estado-Maior colocaram o miscigenado Exército iugoslavo a serviço de um projeto de estabelecimento de uma etnocracia em áreas altamente povoadas por sérvios ou que tivessem alguma significação histórica para esse grupo, não importa quão fantasiosa. O Exército e seus incontáveis subsidiários assassinaram, estupraram e expulsaram muçulmanos e croatas de comunidade atrás de comunidade, diante de um mundo que concordava com pouca coisa além do princípio que, depois de Hitler, separava a civilização da barbárie. Esse princípio era uma rejeição da “limpeza étnica”, uma expressão que a matança iugoslava deu como contribuição ao léxico mundial. Todos concordavam que o fenômeno do terror racial deveria ter ficado no passado; mas, sem intervenção externa, tal concordância era vazia. Nações supostamente civilizadas se mantiveram quietas e seguiram em frente enquanto campos de concentração eram instalados e civis bombardeados ou obrigados a passar fome a menos de uma hora de Veneza.

“Era espantoso”, diz Atka Kafedzić Reid, uma jovem bósnia, “como a gente podia passar, num dia, de assistir à MTV a uma existência completamente medieval.”4 A cidade olímpica se converteu num lugar onde ofertar uma cebola era uma prova generosa de altruísmo; onde pássaros, aterrorizados pelo bombardeio constante, abandonavam a cidade; onde as pessoas carregavam as próprias fezes em sacos de papel à procura de algum lugar para se livrar delas; e onde cidadãos não davam mais atenção aos cadáveres por cima dos quais eles passavam nas ruas. “Uma cidade europeia estava sendo reduzida a nada”, escreveu David Rieff. “Cartago em câmera lenta, mas dessa vez com plateia e um registro em vídeo.”

David foi para a Bósnia em setembro de 1992, no final do primeiro verão do cerco. Assim como ocorreu com tantos jornalistas que estiveram em Sarajevo, a viagem foi um divisor de águas. “Numa vida anterior, a vida antes da Bósnia, eu costumava me vangloriar de que a indignação era uma emoção à qual eu era praticamente imune”, escreveu ele.6 Como tantos jornalistas que fizeram a expedição a Sarajevo, ele o fez porque acreditava, ainda que implicitamente, na existência de um mundo civilizado e no dever de informá-lo. “Se as notícias sobre a Bósnia pudessem ser levadas às pessoas no meu país”, pensava, “não se permitiria que a carnificina continuasse.”

Ao final dessa primeira visita, ele falou com Miro Purivatra, que posteriormente fundou o Festival de Cinema de Sarajevo, e lhe perguntou se havia alguma coisa, ou alguém, que ele poderia trazer na próxima vez. “Uma pessoa que seria perfeita para vir aqui e entender o que está acontecendo seria certamente Susan Sontag”, respondeu ele. Sem mencionar sua conexão — “evidentemente”, disse Miro, “eu não sabia que ele era filho dela” —, David disse que faria o possível. Bateu à porta de Miro algumas semanas depois. “Nos abraçamos e ele me disse: ‘O.k., você me pediu uma coisa e eu trouxe sua convidada’. Logo atrás da porta estava ela. Susan Sontag. Fiquei paralisado.” Demoraria ainda pelo menos um mês para ele se dar conta do parentesco entre os dois: “Eles nunca me contaram”.8 Isso foi em abril de 1993, na primeira das onze visitas que Susan acabaria fazendo a um lugar que se tornou tão marcante em sua vida que uma praça importante no centro da cidade foi batizada com seu nome — tão relevante que David chegou a cogitar a ideia de enterrá-la lá.

Como Sarajevo está situada na intersecção entre o islã e o cristianismo, entre o catolicismo e a Igreja ortodoxa, era o lugar em que confluíam os interesses que Sontag perseguira ao longo da vida. O papel político e o dever social da artista; a tentativa de unir o estético e o político, e seu entendimento de que o estético era o político; o elo entre mente e corpo; a experiência do poder e da impotência; os modos como a dor é infligida, encarada e representada; os modos como imagens, linguagem e metáfora criam — e distorcem — o que as pessoas chamam de realidade: essas questões foram refratadas, e depois literalmente dramatizadas, durante os quase três anos que ela passou indo e vindo do pior lugar do mundo.

“Eu não vim antes não porque tinha medo, ou porque não tinha interesse”, disse Susan naquela sua primeira visita. “Eu não vim antes porque não sabia qual é a utilidade disso.

Mas, logo que partiu, não conseguiu mais tirar a cidade da cabeça. O contraste entre o que ela havia visto e a fria indiferença do mundo exterior era violento demais.

"Deixar Sarajevo e, uma hora depois, estar numa cidade “normal” (Zagreb). Entrar num táxi (um táxi!) no aeroporto… estar no trânsito regido por semáforos, em ruas margeadas por prédios com telhados intactos, paredes sem marcas de obuses, com vidros nas janelas… acender a luz no interruptor do seu quarto de hotel… usar a privada e dar a descarga… abrir a torneira para o banho (quando há várias semanas você não toma banho) e ter água no encanamento, água quente… dar um passeio e ver as lojas, as pessoas que caminham, como você, num ritmo normal… comprar alguma coisa numa pequena mercearia, com as prateleiras abarrotadas de mercadorias… entrar num restaurante e receber o cardápio…"

A salvo em Berlim, ela se viu “totalmente obcecada”, escrevendo a um amigo que “ir a Sarajevo agora é um pouco como deve ter sido visitar o gueto de Varsóvia no final de 1942”. A comparação com o Holocausto não era feita de maneira frívola — e quando os massacres, os campos de concentração e a “limpeza étnica” vieram à luz, acabou se tornando lugar-comum. Mas Susan foi a primeira a fazê-la, depois daquela primeira visita, numa entrevista à televisão alemã. “Ela foi a primeira personalidade internacional que disse publicamente que o que estava ocorrendo na Bósnia em 1993 era um genocídio”, diz Haris Pašović, um jovem diretor de teatro. “A primeira. Ela compreendeu profundamente isso. Estava 100% dedicada a isso porque julgava que era importante para a Bósnia e importante também para o mundo.”

O que estava em jogo em Sarajevo não era apenas o destino de um povo e de um país. Sarajevo era uma cidade europeia — e europeu, escreveu David, “tinha se tornado uma categoria tanto moral quanto geográfica”.13 Essa categoria era a ideia liberal da sociedade livre: da civilização em si. Os bósnios sabiam disso e ficavam espantados com a indiferença com que seus apelos eram recebidos.

"Fazemos parte da Europa. Somos o povo que, na antiga Iugoslávia, representa os valores europeus — secularismo, tolerância religiosa e multietnicidade. Como pode o resto da Europa permitir que isso aconteça conosco? Quando eu respondia que a Europa é e sempre foi um local tanto de barbárie quanto de civilização, eles não queriam me dar ouvidos. Agora, ninguém refutaria essa afirmação."

Essa ideia de Europa emergiu do Holocausto, depois do qual um critério básico de mensuração da civilização passou a ser a disposição para resistir aos tipos de horror que se desenvolviam na Bósnia. Depois de Auschwitz, o governo civilizado era definido por sua resistência a tais crimes; mas os governos não eram os únicos convocados: o cidadão livre também tinha obrigação de resistir. Mas como poderia uma pessoa sozinha se colocar no caminho de um Exército genocida? A questão de como se opor a uma injustiça havia ocupado Susan desde a infância: desde que leu Les misérables, desde que viu as primeiras imagens do Holocausto na livraria em Santa Monica.

“Sou muito atraída pela ideia de uma conduta nobre”, disse ela em 1979. “Palavras como nobreza soam muito estranhas para nós hoje, soam esnobes, para dizer o mínimo.” Mas nobreza era o cerne do que ela descrevia, desde antes, como “seriedade”. “Ser sério”, escreveu ela em anotações para “A estética do silêncio”,

"significa estar “presente”. Sentir o “peso” das coisas. Das próprias declarações ou atos de nós mesmos […]. Quando [Kierkegaard] disse que não havia cristãos hoje, queria dizer que não há cristãos sérios, não há cristãos que levem o cristianismo a sério.
não o levam “a sério” — isto é, não estão preparados para agir com base nele. Colocar o corpo na linha de tiro, estar à altura das próprias palavra"

Sarajevo propiciava a ela uma chance de colocar seu corpo na linha de tiro pelas ideias que haviam dado dignidade a sua vida. Era algo que ela não tinha sido capaz de fazer em relação à aids — mas fazia agora, e Pašović viu até que ponto ela estava disposta a ir.

"Susan entendia de fato, muito profundamente, que aquele era um momento de definição na história da Europa, e talvez do mundo. Ela sabia disso. E estava disposta a morrer por isso. Porque ela estava dizendo… Estou tentando não chorar. Fazia muito tempo que eu não falava assim sobre Susan. É que ela não dizia isso, mas ouso dizer que ela não queria viver no mundo em que essas coisas são possíveis."

Susan Sontag era um indivíduo, mas sua carreira a transformara em algo mais. Era um símbolo da cultura cosmopolita, “europeia”, que estava sob ataque. E ela levava sua obrigação para com aquela cultura a sério o bastante para colocar na linha de fogo ambas as existências — de Susan, a pessoa, e de Sontag, a metáfora.

Ela sempre refletira sobre o dever público do escritor. Admirava aqueles predecessores que, em situações igualmente perigosas, arriscaram suas vidas. E ficava chocada com o fato de que outras pessoas em sua posição não estivessem arriscando as suas. “O espantoso em relação a Susan, antes que a gente a conhecesse direito, era o próprio fato de ela estar lá”, diz John Burns, correspondente do New York Times nos Bálcãs. “Sarajevo era famosa pelas pessoas que não apareceram. Em face de casos evidentes de genocídio, onde estava a intelligentsia da época?”

Ao retornar, depois da primeira visita, a uma Alemanha impassível, ela ficou “desalentada ao descobrir que todo intelectual e escritor alemão com quem eu falava — Günter Grass, [Hans] Magnus [Enzensberger] etc. — parecia completamente indiferente ao genocídio, ou pior. Pela primeira vez ouvi Magnus falar como um alemão, não como um europeu”. Em Sarajevo, ela foi indagada sobre a ausência de muitos escritores norte-americanos famosos:

"Há uma enorme despolitização da intelligentsia ocidental, dos escritores ocidentais, dos escritores da Europa Ocidental e da América do Norte. Você menciona Kurt Vonnegut […]. Todas essas pessoas estão lá sentadas em seus apartamentos enormes, ricos, e saindo no fim de semana para o campo, vivendo suas vidas particulares."

O contraste com outro conflito era mencionado com frequência, como numa entrevista que Sontag concedeu a Burns em agosto:

"Sarajevo é a Guerra Civil Espanhola de nossa época, mas a diferença das reações é espantosa. Em 1937, gente como Ernest Hemingway, André Malraux, George Orwell e Simone Weil correu para a Espanha, embora fosse incrivelmente perigoso. Simone Weil teve queimaduras terríveis e George Orwell foi baleado, mas eles não viam o perigo como um motivo para não ir. Eles foram num ato de solidariedade, e desse ato surgiu uma parte da melhor literatura de seu tempo."

Mas a que levava esse namoro com a morte? A estimular o impulso literário quando estivesse de volta a Londres ou Paris? Em Contra a interpretação, Sontag escrevera sobre A idade viril, de Michel Leiris, um livro de memórias cujo inesquecível prefácio, “Da literatura como tauromaquia”, sugeria que a literatura moderna era exangue, cautelosa, inofensiva. “Ser um escritor, um homem de letras, não é suficiente. É tedioso, raso. Carece de perigo.” O habitante burguês de uma nação pacificada precisava buscar suas emoções em algum lugar estrangeiro mais escuro, seja artístico ou geográfico.

"Leiris precisa sentir, quando escreve, o equivalente da consciência do toureiro de que corre o risco de ser perfurado. Só então escrever vale a pena. Mas como pode o escritor alcançar essa revigorante sensação de perigo mortal? A resposta de Leiris é: mediante a autoexposição, mediante a não defesa de si próprio; não fabricando obras de arte, objetificações de si mesmo, mas colocando a si mesmo — a sua própria pessoa — na linha de fogo. Mas nós, os leitores, os espectadores desse ato sangrento, sabemos que quando é bem efetuado (pense em como a tourada é discutida como um ato eminentemente estético, cerimonial), não importa que renegue a literatura, ele se torna — literatura."

A demanda de Leiris era a mesma de Adrienne Rich, a mesma dos ativistas gays: colocar-se na linha de fogo. Esse imperativo podia ser interpretado, conforme fez Sontag, como uma exigência estética ou política; mas podia também ser interpretado no outro sentido sugerido por Leiris: um simples apelo para arriscar a própria vida. Esse apelo era assustadoramente fácil de satisfazer colocando os pés em Sarajevo. Durante o cerco, foram mortas em média dez pessoas por dia, 11 541 no total.

Não havia algo de grotesco no uso do sofrimento de outras pessoas para “alcançar essa revigorante sensação de perigo mortal”? Será que o dever — social, político, moral, estético — não significava mais do que correr o risco de sofrer queimaduras terríveis, ou de tomar um tiro no pescoço, ou de ser perfurado? E seria suficiente se entregar voluntariamente ao risco — ou a morte era o único meio de provar o comprometimento da pessoa?

Mesmo aqueles que fizeram a corajosa viagem a Sarajevo descobriram como era difícil responder a essas perguntas. Alguns, cujas intenções eram impecáveis, deixaram os sarajevianos injuriados. Em meio à carestia generalizada, Joan Baez disse a Atka Kafedzić que ela estava “magra demais”; Bernard-Henri Lévy, conhecido na França como BHL, ficou conhecido na Bósnia como DHS: “Deux heures à Sarajevo”, duas horas em Sarajevo.

Os locais tiveram fartas oportunidades de avaliar seus visitantes. “Éramos muito cínicos quanto a todo o aspecto circense desse tipo de safári de guerra”, diz Una Sekerez, que emitia vistos em nome da ONU e emitiu um para Susan:

"Havia outras pessoas assim, tipo: O que elas estão fazendo aqui? Eu simplesmente presumi que ela tinha vindo para dar uma rápida olhada em como viviam aquelas pessoas na reserva — e que logo iria embora. Mas aí ela ficou. Isso era muito, muito incomum."

Naquela primeira visita, a poeta Ferida Duraković traduziu perguntas de um jornalista.

"Sua primeira pergunta foi: Como a senhora se sente vindo a Sarajevo para um safári? Eu traduzi e Susan disse: entendi a pergunta. Por favor, seja cuidadosa ao traduzir isto. Olhou para mim e disse: “Meu rapaz, não faça perguntas estúpidas. Eu sou uma pessoa séria”."

“O ato de testemunhar requer a criação de testemunhas estelares”, escreveu Sontag em Diante da dor dos outros, o último livro que publicou em vida.24 Como tantas de suas obras, o livro era uma meditação sobre os modos de ver e representar; mas se sua referência às estrelas soava sardônica, ela não era — ou não era só isso. Como todas as formas de ver e representar, o testemunho era, com frequência, pateticamente ineficaz. Como é que a observação de alguma coisa acontecendo, mesmo que se arriscasse a vida escrevendo a respeito ou tirando fotos, poderia mudar o mundo dos exércitos e dos políticos?

No entanto, John Burns enxergava a importância de testemunhar. Pouco depois do início do cerco, três jornalistas foram mortos; e os repórteres remanescentes, liderados pela BBC, decidiram que todos deveriam ir embora: “Foi um debate intenso e infame”. Eles foram evacuados em segurança para o subúrbio de Ilidža, que ficava depois do aeroporto, para o mesmo hotel onde o arquiduque Francisco Ferdinando dormiu antes de sua própria visita apocalíptica. Ali, Burns tomou a decisão de voltar para Sarajevo. “Tão logo partimos, os sérvios começaram a bombardear a cidade”, diz ele. “Dez mil bombas naquele dia. Sentiram-se livres porque os jornalistas tinham partido.”

Os olhos faziam diferença, ainda que limitada. Em Sobre fotografia, Susan discutiu os limites da representação de uma calamidade. “Uma foto que traz notícias de uma insuspeitada região de miséria não pode deixar marca na opinião pública, a menos que exista um contexto apropriado de sentimento e de atitude.” Isso permitia a uma testemunha — um escritor, um jornalista, um fotógrafo — criar esse contexto; mas esse processo podia ser angustiantemente lento, e não era tão fácil saber se estava fazendo alguma diferença. “Um escritor não pode mais achar que sua tarefa imperiosa é levar as notícias ao mundo”, escreveu ela. “As notícias já são levadas.”

Foi isso que David descobriu. Todo mundo, em toda parte, sabia o que estava acontecendo na Bósnia, ainda que poucos fossem além de expressões retóricas de solidariedade. Os políticos contavam com o cansaço da compaixão, exatamente como Susan alertara em Sobre fotografia — fotos de guerra se tornariam nada mais que “uma reprise insuportável de uma exibição de atrocidades já familiar”.27 E as vítimas, enraivecidas pela evidente indiferença do mundo, zombavam dos impotentes portadores de notícias, fossem eles celebridades ou jornalistas.

"Em Sarajevo, nos anos do cerco, não era incomum ouvir, no meio de um bombardeio ou de uma rajada de tiros de snipers, um morador gritar com os fotojornalistas, facilmente reconhecíveis pelo equipamento pendurado no pescoço: “Estão esperando uma bomba explodir para poder fotografar alguns cadáveres?”."

Os repórteres que estavam arriscando a vida pelo bem de Sarajevo eram julgados. E eles, por sua vez, julgavam aqueles que suspeitavam estar fazendo turismo. Mas tanto os sarajevianos como os jornalistas respeitavam Susan Sontag. Uma dessas jornalistas, a americana Janine di Giovanni, ficou impressionada com sua pura capacidade de resistência.

"Era incrivelmente duro para mim, uma garota de vinte e poucos anos. E ela era uma mulher na faixa dos sessenta. Aquilo me espantou de verdade. Para uma intelectual de Nova York, era um lugar estranho para estar. Vinham muitas celebridades, e os repórteres eram sarcásticos. Lembro que fiquei sabendo que ela viria e não me impressionei muito. Mas ela não se queixava. Sentava-se com todas as outras pessoas, comia qualquer porcaria, vivia nos mesmos quartos destruídos por bombas em que nós vivíamos."

O ator Izudin Bajrović diz:

"Ela representava para nós a parte do mundo que compreendia o que estava acontecendo e estava disposta a fazer alguma coisa a respeito. Não o mundo. Mas para nós ela ter vindo significava mais do que se viesse algum primeiro-ministro. Não acreditávamos de fato em primeiro-ministro nenhum. Nunca duvidamos da boa vontade dela. Duvidávamos da de todos os outros."

Se o aplauso e a prosperidade traziam à tona o pior dela, a opressão e a privação revelavam o melhor. Se podia ser arrogante em Nova York, em Sarajevo ela era gentil. Ali, ela colocou o corpo na linha de fogo, e testemunhou e conquistou respeito universal; mas nada disso respondia à difícil pergunta que ela fazia: o que, como indivíduo ou como símbolo, ela podia concretamente fazer para ajudar. “Eu não queria ser uma turista aqui”, disse ela, “só observar enquanto todo mundo sofria… Eu queria dar alguma coisa, contribuir.”31 Talvez, escreveu ela mais tarde, a resposta mais apropriada tivesse sido o silêncio:

"O melhor é não dizer nada, e essa era a minha intenção original. Falar do que estamos fazendo parece — e talvez se torne mesmo, a despeito de nossas intenções — uma forma de autopromoção."

Essa era a resposta — o silêncio — oferecida por muitos artistas modernos. Foi a resposta que Elisabet, em Persona de Bergman, escolheu quando confrontada com outros horrores exemplares: um monge vietnamita ateando fogo em si mesmo; uma criança aterrorizada no gueto de Varsóvia. Elisabet, escreveu Susan quase trinta anos antes, “quer ser sincera, não desempenhar um papel, não mentir; fazer o interior e o exterior se unirem, [e] tendo rejeitado o suicídio como solução, decidiu ficar muda”. Mas essa era uma resposta espiritual, não política. Os bósnios tinham necessidades reais, e Susan tinha a esperança de ser de alguma ajuda real.

"Eu teria ficado contente simplesmente em ajudar alguns pacientes a se acomodarem numa cadeira de rodas. Assumi um compromisso colocando em risco minha vida, sob uma situação de extremo desconforto e perigo mortal. Caíam bombas, balas passavam voando pela minha cabeça… Não havia comida, nem eletricidade, nem água corrente, nem correio, nem telefone, dia após dia, semana após semana, mês após mês. Isso não é “simbólico”. Isso é real."

Em sua primeira visita, ela pediu a Ferida Duraković que organizasse um encontro com intelectuais. Duraković convidou algumas pessoas que trouxeram previsíveis pedidos de assistência material — que, a seu tempo, Susan providenciaria. “Mas o que vocês querem que eu faça”, perguntou ela, “além de trazer comida, dinheiro, água ou cigarros? O que vocês querem de mim?”

Por fim, com Pašović, diretor do Festival Internacional de Teatro, ela discutiu a montagem de uma peça. Isso de forma alguma libertaria a cidade. Mas tinha, sim, alguma utilidade prática. Daria emprego a atores, proporcionaria atividade cultural e mostraria ao mundo que os clãs supostamente bárbaros da Iugoslávia eram tão modernos quanto as pessoas que talvez lessem sobre o espetáculo em seus jornais. Ela pensou em Ubu rei, a peça de Alfred Jarry que é frequentemente vista como avó do teatro moderno.34 E ela mencionou Dias felizes, a peça de Beckett sobre uma mulher que trai o marido, lembrando dias mais felizes, enquanto é enterrada viva. A terra chega a seu pescoço no final da peça.

“Ela veio com Beckett”, recorda Pašović. “E eu disse: Mas Susan, aqui — em Sarajevo — nós estamos esperando.


 

domingo, 2 de outubro de 2022

Susan Sontag - Vidas póstumas: O caso de Machado de Assis


Vidas póstumas: o caso de Machado de Assis

Imaginem um escritor que, no curso de uma vida moderadamente longa, durante a qual nunca viajou mais que 120 quilômetros além da capital onde nasceu, criou uma obra vasta... um escritor do século xix, me interromperão vocês; e estarão certos: autor de uma profusão de romances, novelas, contos, peças, ensaios, poemas, resenhas, crônicas políticas, bem como repórter, editor de revista, burocrata do governo, candidato a um cargo público, fundador e presidente da Academia de Letras do seu país; um prodígio de realizações, de superação da doença social e física era mulato, filho de uma escrava num país onde a escravidão só foi abolida quando ele tinha quase cinqüenta anos; era epiléptico); que, durante essa carreira intensamente prolífica, exuberantemente nacional, conseguiu escrever um número considerável de romances e contos, dignos de um lugar permanente na literatura mundial, e cujas obras-primas, fora do seu país natal, que o honra como seu maior escritor, são pouco conhecidas, raras vezes mencionadas.

Imaginem um escritor assim, que existiu, e seus livros originalíssimos, que continuam a ser descobertos, mais de oitenta anos após sua morte. Normalmente, o filtro do tempo é justo, deixa de lado os apenas celebrados ou bem-sucedidos, resgata os esquecidos, promove os subestimados. É na vida póstuma de um grande escritor que as questões misteriosas do valor e da permanência são resolvidas. Talvez venha a calhar que esse escritor, cuja vida póstuma não trouxe para a sua obra o reconhecimento de seus méritos, tenha sido dotado de um sentido do póstumo tão agudo, tão irônico, tão cativante.

O que é verdadeiro para uma reputação é verdadeiro — deveria ser verdadeiro — para uma vida.

Uma vez que só uma vida completa revela a sua forma e o sentido que uma vida pode ter, uma biografia que se pretende definitiva deve esperar até a morte do seu tema. Infelizmente, as autobiografias não podem ser compostas nessas circunstâncias especiais. E quase todas as autobiografias ficcionais dignas de nota respeitaram a limitação das autobiografias reais, ao mesmo tempo que evocavam mentalmente o melhor similar possível das iluminações concedidas pela morte.

As autobiografias ficcionais, de modo até mais freqüente que as autobiografias reais, tendem a ser ocupações do outono da vida: um narrador idoso (ou pelo menos amadurecido prematuramente), depois de afastar-se da vida, escreve. Porém, por mais próximo do ponto ideal de observação a que a idade avançada possa levar o autobiógrafo fictício, ele ou ela ainda estará escrevendo no lado errado da fronteira, além da qual uma vida, uma história de vida, enfim faz sentido.

Só conheço um exemplo desse gênero fascinante, a autobiografia imaginária, que assegura ao projeto de autobiografia o seu cumprimento ideal — que, no fim, se revela cômico —, e que vem a ser a obra-prima intitulada Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), apresentada em inglês sob o título despropositado e interferente de Epitaph of a small winner [Epitáfio de um pequeno vencedor]. No primeiro parágrafo do capítulo 1, “Óbito do autor”, Brás Cubas declara, jocoso: “não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”. Eis a primeira e constitutiva piada do romance, e ela trata da liberdade do escritor. O leitor é convidado a participar do jogo que consiste em considerar o livro em suas mãos como um feito literário sem precedentes. Reminiscências póstumas escritas em primeira pessoa.

É claro, nem mesmo um dia e muito menos uma vida podem ser recontados em seu todo. Uma vida não é um enredo. E a uma narrativa construída na primeira pessoa se aplicam noções de decoro bem diferentes das que se aplicam a uma narrativa em terceira pessoa. Desacelerar, avançar ligeiro, saltar períodos inteiros; comentar demoradamente, refrear os comentários — tudo isso feito por um “eu” tem um peso diferente, uma outra sensação, do que quando dito a respeito de uma outra pessoa ou em seu nome. Muito do que é comovente, ou perdoável, ou intolerável na primeira pessoa pareceria o oposto se pronunciado na terceira pessoa, e vice-versa: uma observação que se confirma facilmente pela leitura em voz alta de qualquer página do livro de Machado de Assis, primeiro tal como está e, depois, com “ele” em lugar de “eu”. (Para uma amostra da incisiva diferença que existe no interior dos códigos que regem a terceira pessoa, tente depois substituir “ele” por “ela”.) Há registros de sentimento, como a ansiedade, que só se acomodam a uma voz em primeira pessoa. E também certos aspectos de desempenho narrativo: a digressão, por exemplo, parece natural em um texto escrito na primeira pessoa, mas dá impressão de amadorismo numa voz impessoal, em terceira pessoa. Assim, qualquer obra literária que apresente uma consciência de seus próprios meios e métodos deveria ser compreendida como em primeira pessoa, seja “eu” ou não o pronome principal.

Escrever sobre si mesmo — a verdade, ou seja, a história particular — era visto antigamente como algo presunçoso, que carecia de justificação. 

Os Ensaios de Montaigne, as Confissões de Rousseau, Walden, de Thoreau, e a maioria dos clássicos da autobiografia espiritualmente ambiciosos têm um prólogo em que o autor dirige a palavra direto ao leitor, reconhece a temeridade da sua empreitada, evoca escrúpulos ou inibições (recato, ansiedade) que tiveram de ser superados, reivindica uma simplicidade ou uma sinceridade exemplares, dá como pretexto o proveito que essa concentração em si mesmo trará para os outros. E, como nas autobiografias reais, a maioria das autobiografias ficcionais de algum requinte de estilo ou de alguma profundidade também começam com uma explicação, defensiva ou desafiadora, da decisão de escrever o livro que o leitor acabou de abrir — ou, pelo menos, um floreio autodepreciativo, que sugere uma atraente suscetibilidade à acusação de egotismo. Não se trata do mero pigarrear que antecede um discurso, nem de frases polidas destinadas a dar tempo para que o leitor se acomode em seu assento. É o disparo inaugural numa campanha de sedução em que o autobiógrafo tacitamente concorda haver algo de impróprio, de descarado, em se oferecer para escrever sobre si mesmo de modo extenso — expor-se a pessoas desconhecidas sem contar com nenhum interesse flagrante (uma carreira de destaque, um crime importante), ou sem um estratagema documental, como simular que o livro apenas transcreve documentos privados existentes, como diários ou cartas, indiscrições originalmente destinadas a um círculo de leitores reduzidíssimo e íntimo. Em se tratando de uma história de vida oferecida de forma direta, na primeira pessoa, para o maior número possível de leitores (um “público”), parece apenas um mínimo de prudência, bem como uma cortesia, que o autobiógrafo busque permissão para prosseguir. O esplêndido achado do romance, serem memórias escritas por um morto, acrescenta um efeito adicional a esses cuidados reguladores com aquilo que o leitor pensa. O autobiógrafo pode também declarar que não se importa com isso.

Porém, escrever de além-túmulo não livrou esse narrador da necessidade de mostrar uma dose ostentosa de preocupação com a recepção da sua obra. Sua ansiedade debochada está corporificada na própria forma, na distintiva velocidade do livro. Está na maneira como a narrativa é cortada e armada, seus ritmos intermitentes: 160 capítulos, vários tão curtos que têm apenas duas frases, poucos mais longos do que duas páginas. Está nas orientações galhofeiras, em geral no início ou no fim dos capítulos, para o melhor aproveitamento do texto. (“Convém intercalar este capítulo entre a primeira oração e a segunda do capítulo cxxix.” “Mas este capítulo não é sério.” “Os fenômenos da consciência são de difícil análise; por outro lado, se contasse um, teria de contar todos os que a ele se prendessem e acabava fazendo um capítulo de psicologia.” Etc.) 

Está no ímpeto de atenção irônica dirigida aos meios e aos métodos do livro, na repetida negação de grandes pretensões no que se refere às emoções do leitor (“gosto dos capítulos alegres”). Pedir ao leitor que tenha paciência com a tendência do narrador para a frivolidade é também uma manobra de sedução, tal como prometer ao leitor emoções fortes e conhecimentos novos. A atenção exagerada e cordial que o autobiógrafo dedica à acuidade dos seus procedimentos narrativos parodia a intensidade da sua concentração em si mesmo.

A digressão é a técnica principal para controlar o fluxo emocional do livro. O narrador, cuja cabeça está cheia de literatura, mostra-se um perito em descrições precisas — do tipo lisonjeado com o nome de realismo — de como os sentimentos acerbos persistem, mudam, evoluem, se transferem. Mostra também, compreensivelmente, que ele mesmo está além de tudo isso, pelas dimensões do contar: o corte em episódios curtos, os resumos irônicos e didáticos. Essa voz estranhamente ferina, confessadamente desencantada (mas o que mais se esperaria de um narrador morto?), nunca relata um acontecimento sem extrair dele alguma lição. O capítulo cxxxiii abre assim:

“e aqui emendo eu o princípio de Helvetius — ou, por outra, explico-o”. Ao pedir a tolerância do leitor, ao preocupar-se com a atenção do leitor (O leitor entendeu? O leitor está se divertindo? O leitor está se chateando?), o autobiógrafo faz contínuas interrupções em sua história a fim de invocar uma teoria que ela ilustra, formular uma opinião a respeito — como se tais movimentos fossem necessários para tornar a história mais interessante. A existência socialmente privilegiada e vaidosa de Brás Cubas é, como são muitas vezes essas vidas, destituída por completo de acontecimentos; os acontecimentos principais são os que não aconteceram ou que foram julgados frustrantes. A farta produção de opiniões espirituosas põe a nu a pobreza emocional da vida, ao fazer com que o narrador pareça esquivar-se das conclusões que deveria extrair. O método digressivo também engendra boa parte do humor do livro, a começar pela própria disparidade entre a vida (modesta em acontecimentos, sutilmente articulados) e a teoria (portentosa, incisiva) que ele evoca.

Vida e opiniões de Tristam Shandy é, está claro, o modelo principal desses procedimentos saborosos de testar a atenção do leitor. O método de capítulos curtos e de algumas piruetas tipográficas, como no capítulo IV (“O velho diálogo de Adão e Eva”) e no capítulo CXXXIX (“De como não fui ministro d’Estado”), recorda os ritmos narrativos extravagantes e as tiradas pictográficas de Tristam Shandy. O fato de Brás Cubas começar sua história após a própria morte, assim como Tristam Shandy inicia, de modo célebre, a história da sua consciência antes do próprio nascimento (no instante de sua concepção) —, também isso parece uma homenagem de Machado de Assis a Sterne. A ascendência de Tristam Shandy, publicado em fascículos entre 1759 e 1767, sobre um escritor nascido no Brasil no século XIX não deveria causar-nos surpresa. Enquanto na Inglaterra os livros de Sterne, tão celebrados em vida do autor e um pouco depois, eram reavaliados como excessivamente peculiares, por vezes indecentes e afinal maçantes, no Continente continuavam a gozar de enorme admiração. No mundo anglofônico, onde no século XX ele passou de novo a ser visto com grande consideração, Sterne ainda figura como um gênio ultra-excêntrico e marginal (como Blake), que se faz notar sobretudo por ter sido bizarra e prematuramente “moderno”. Quando visto na perspectiva da literatura mundial, porém, talvez seja ele o escritor de língua inglesa que exerceu uma influência mais vasta, após Shakespeare e Dickens; pois Nietzsche ter dito que seu romance predileto era Tristam Shandy não constitui um juízo de todo original, como pode parecer. Sterne foi uma presença especialmente poderosa nas literaturas de língua eslava, como se reflete no papel central do exemplo de Tristam Shandy nas teorias de Viktor Chklóvski e de outros formalistas russos a partir da década de 1920. Talvez a razão de tanta literatura influente em prosa ter provindo, durante décadas, da Europa central e oriental, bem como da América Latina, não esteja na circunstância de os escritores dessas regiões terem padecido sob tiranias monstruosas e por isso terem recebido a dádiva da importância, da seriedade, dos temas e da ironia relevante (como concluíram, invejosamente, muitos escritores da Europa ocidental e dos Estados Unidos), mas sim no fato de serem partes do mundo onde, durante mais de um século, o autor de Tristam Shandy foi admiradíssimo.

O romance de Machado de Assis pertence a essa tradição de bufonaria narrativa — a voz loquaz em primeira pessoa que tenta ganhar as boas graças dos leitores —, que procede de Sterne até alcançar, no século XX, Eu sou um gato, de Natsume Soseki, a ficção breve de Robert Walser, Confissões de Zeno e Senilidade, de Italo Svevo, Uma solidão barulhenta demais, de Hrabal, e boa parte da obra de Beckett. Vezes seguidas, encontramos sob disfarces diferentes o narrador persuasivo, tortuoso, compulsivamente especulativo, excêntrico; recluso (por opção ou por vocação); propenso a obsessões fúteis, a teorias fantasiosas e a esforços de vontade destinados a um resultado cômico; não raro, um autodidata; nada ranzinza; incapaz de casar, embora às vezes se veja impelido pela volúpia e, ao menos numa ocasião, pelo amor; em geral, idoso; invariavelmente, homem. (É bem possível que nenhuma mulher conseguisse sequer a solidariedade condicional que esses narradores ferrenhamente autocentrados nos solicitam, em razão da expectativa de que a mulher deve ser mais solidária, e mais compassiva, do que os homens; uma mulher com o mesmo grau de acuidade mental e de alheamento emocional seria vista simplesmente como um monstro.) O hipocondríaco Brás Cubas de Machado de Assis é bem menos exuberante que o desmiolado e efusivamente tagarela Tristam Shandy. Há uma distância bem curta entre a mordacidade do narrador de Machado, com a sua pesarosa superioridade em relação à história da própria vida, e o mal-estar do enredo que caracteriza a maior parte da ficção recente em forma de autobiografia. Mas a ausência de história pode ser intrínseca ao gênero — o romance como monólogo autobiográfico —, assim como o isolamento da voz narradora. Quanto a isso, um anti-herói pós-sterniano como Brás Cubas parodia os protagonistas das grandes autobiografias espirituais, sempre profundamente solteiros, e não devido às circunstâncias. Isto é quase uma medida da ambição de uma narrativa autobiográfica: o narrador deve ser sozinho, ou estar remodelado como tal, viver certamente sem esposa, mesmo quando existir uma esposa; a vida deve estar despovoada no centro.(Assim, recentes proezas no campo da autobiografia espiritual disfarçada de romance, como Noites insones, de Elizabeth Hardwick, e O enigma da chegada, de V. S. Naipaul, deixam de fora os cônjuges, que na verdade estavam presentes.) Assim como a solidão de Brás Cubas é uma paródia de uma solidão escolhida ou emblemática, seu consolo por via da autocompreensão é, a despeito de toda autoconfiança e humor, uma paródia desse tipo de façanha.

As seduções de uma narrativa desse tipo são complexas. O narrador professa estar preocupado com o leitor — quer ter certeza de que ele está entendendo o livro. Enquanto isso, o leitor pode estar se perguntando acerca do narrador — se o narrador entende todas as implicações daquilo que está sendo contado. Uma exibição de agilidade mental e de inventividade que se destina a entreter o leitor e que reflete, de forma simulada, a vivacidade da mente do narrador dá sobretudo a medida do isolamento emocional e do desamparo do narrador. Aparentemente, esse é o livro de uma vida.

Porém, apesar do talento do narrador para o retrato social e psicológico, o livro permanece como uma viagem pelo interior da cabeça de alguém. Outro modelo de Machado foi o maravilhoso livro de Xavier de Maistre, um aristocrata francês expatriado (viveu sobretudo na Rússia) que inventou a microviagem literária com o seu Viagem à roda do meu quarto, escrito em 1794, quando estava na prisão por causa de um duelo, em que reconta suas visitas, em diagonal e em ziguezague, a locais tão divertidos como a poltrona, a escrivaninha e a cama. Um confinamento, mental ou físico, que não é reconhecido como tal, pode resultar numa história muito engraçada, além de rica em páthos.

No início, num floreio de auto-reconhecimento autoral que inclui gentilmente o leitor, Machado de Assis faz o autobiógrafo citar os modelos literários do século XVIII da sua narrativa com a seguinte advertência soturna: Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.

Conquanto modulado pelo humor extravagante, um veio de autêntica misantropia percorre o livro inteiro. Se Brás Cubas não é só mais um desses narradores solteiros, reprimidos, secos, absurdamente atentos a si mesmos, que só existem para serem postos a nu pelo leitor repleto de vitalidade, isso acontece por causa da sua raiva — que, no fim do livro, se revela por inteiro, dolorosa, amarga, perturbadora.

O ânimo brincalhão de Sterne é leve. É uma forma cômica, ainda que extremamente nervosa, de benevolência com o leitor. No século XIX, esse ânimo digressivo, loquaz, esse amor à pequena teoria, esse deslocamento em piruetas de um modo narrativo para outro adquirem um matiz mais sombrio.

Passam a ser identificados com a hipocondria, com a desilusão erótica, com as insatisfações do eu (o patologicamente volúvel Homem Subterrâneo de Dostoiévski), com uma aguda aflição mental (o narrador histérico, transtornado pela injustiça, de Max Havelaar, de Multatuli). Tagarelar de modo obsessivo, repetitivo, foi um recurso constante da comédia. (Pensemos nos resmungões plebeus de Shakespeare, como o porteiro em Macbeth; pensemos em Pickwick, entre outras invenções de Dickens.) Esse uso cômico da tagarelice não desaparece. Joyce usou a tagarelice num espírito rabelaisiano, como veículo de hipérbole cômica, e Gertrude Stein, campeã da escrita palavrosa, transformou os tiques do egotismo e do espírito sentencioso em uma afável voz cômica de grande originalidade. Mas a maior parte dos narradores palavrosos em primeira pessoa na literatura ambiciosa do século XX foi radicalmente misantrópica. A tagarelice é identificada com o funesto e aflito impulso repetitivo da idade senil (os monólogos em prosa de Beckett, denominados de romances) e com a paranóia e a raiva implacável (os romances e as peças de Thomas Bernhard).

Quem não percebe o desespero por trás das meditações loquazes, vivazes, de Robert Walser e das vozes eruditas e debochadas nos contos de Donald Barthelme?

Os narradores de Beckett tentam em geral, não de todo com sucesso, imaginar-se como mortos.

Brás Cubas não tem esse problema. Mas Machado de Assis tentava ser, e é, engraçado. Nada há de mórbido na consciência do seu narrador póstumo; ao contrário, a perspectiva da consciência máxima — algo que, com finura, um narrador póstumo pode perfeitamente reivindicar — é em si mesma uma perspectiva cômica. O lugar de onde Brás Cubas escreve não é uma vida póstuma autêntica (não tem nenhuma geografia), mas apenas mais uma experiência com a noção de distanciamento autoral. As estripulias de narrativa neo-sterniana dessas memórias de um homem desiludido não emanam da exuberância sterniana, nem mesmo do nervosismo sterniano. São um tipo de antídoto, uma contraforça para a desesperança do narrador: um modo consideravelmente mais especializado de subjugar o desalento do que o “medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”, que o narrador imagina inventar. A vida ministra suas duras lições. Mas uma pessoa pode escrever como lhe aprouver — uma forma de privilégio.

Joaquim Maria Machado de Assis tinha apenas 41 anos quando publicou essas reminiscências de um homem que morreu — somos informados na abertura do livro — aos 64 anos. (Machado nasceu em 1839; faz a sua criatura Brás Cubas, o autobiógrafo póstumo, nascer em 1805 e antecedê-lo em mais de uma geração.) O romance como exercício de antevisão da velhice é uma aventura que continua a atrair escritores de temperamento melancólico. Eu tinha quase trinta anos quando escrevi meu primeiro romance, que se faz passar pelas reminiscências de um homem de sessenta e poucos anos, um homem que vive de rendas, um diletante e fantasista, que declara no início do livro ter alcançado um estágio de serenidade de onde, encerrada toda experiência, podia recapitular sua vida.

As poucas referências literárias conscientes em minha mente eram na maioria francesas — sobretudo Candide e as Meditations de Descartes; pensei estar escrevendo uma sátira contra o otimismo e contra certas idéias caras (a mim) sobre a vida interior e sobre uma interiorização religiosamente alimentada. (O que se passava de forma inconsciente, do modo como o encaro hoje, era uma outra história.) Quando tive a boa sorte de ver O benfeitor aceito pela primeira editora a que o apresentei, a Farrar Straus, tive a felicidade adicional de indicarem como meu editor Cecil Hemley, o qual em 1952, na sua encarnação anterior como diretor da Noonday Press (pouco antes adquirida pela minha nova editora), havia publicado a tradução do romance de Machado que de fato impulsionou a carreira do livro em língua inglesa. (E com aquele título!) Em nosso primeiro encontro, Hemley me disse: “Vejo que você foi influenciada por Epitaph of a small winner”. Epitáfio do quê? “Você sabe, de Machado de Assis.” Quem? Ele me emprestou um exemplar e, dias depois, confessei-me retrospectivamente influenciada.

Embora, a partir de então, eu tenha lido muita coisa de Machado em tradução, Memórias póstumas de Brás Cubas — o primeiro dos cinco últimos romances (ele viveu 28 anos depois de escrevê-lo) tidos, em geral, como o auge do seu gênio — permanece o meu favorito. Fui informada de ser o livro que não-brasileiros preferem, na maioria das vezes, embora os críticos em geral destaquem Dom Casmurro (1899). Fico espantada de que um escritor de tamanha grandeza ainda não ocupe o lugar que merece. Em certa medida, o relativo descaso com Machado fora do Brasil talvez não seja mais misterioso do que o descaso com outro fecundo escritor de gênio marginalizado por força de noções eurocêntricas a respeito da literatura mundial: Natsume Soseki. Sem dúvida, Machado seria mais conhecido se não fosse brasileiro e se não tivesse passado toda sua vida no Rio de Janeiro — se, digamos, fosse italiano ou russo, ou mesmo português. Mas o embargo não reside apenas no fato de Machado não ter sido um escritor europeu. Mais notável do que sua ausência no palco da literatura mundial é ter sido ele muito pouco conhecido e lido no resto da América Latina — como se ainda fosse difícil digerir o fato de que o maior romancista produzido pela América Latina tenha escrito em português e não em espanhol. 

O Brasil pode ser o maior país do continente (e o Rio, a sua maior cidade no século XIX), mas sempre foi um país posto à margem — visto, pelo resto da América do Sul, a América do Sul hispanófona, com uma boa dose de desdém e não raro em termos racistas. É muito mais provável que um escritor desses países conheça qualquer das literaturas européias ou literatura em inglês do que a literatura do Brasil, embora os escritores brasileiros tenham uma consciência apurada da literatura hispano-americana. Borges, o outro escritor da mais alta grandeza produzido pelo continente, parece nunca ter lido Machado de Assis. De fato, Machado é ainda menos conhecido entre leitores de língua espanhola do que entre os leitores de língua inglesa. Memórias póstumas de Brás Cubas só foi traduzido para o espanhol na década de 1960, oitenta anos depois de ter sido escrito e uma década depois de ter sido traduzido (duas vezes) para o inglês.

Com tempo bastante, vida póstuma bastante, um grande livro termina por encontrar o seu lugar de justiça. E talvez alguns livros precisem ser redescobertos seguidas vezes. Memórias póstumas de Brás Cubas é pelo visto um desses livros arrebatadoramente originais, radicalmente céticos, que sempre impressionarão os leitores com a força de uma descoberta particular. É pouco provável que soe como um grande elogio dizer que esse romance, escrito mais de um século atrás, parece, bem... moderno. Acaso não estamos prontos a reconhecer toda obra que nos fale com originalidade e lucidez como uma das obras que desejamos alistar no que compreendemos como modernidade?

Nossos critérios de modernidade são um sistema de ilusões lisonjeadoras, que nos permitem colonizar seletivamente o passado, assim como nossas idéias do que é provinciano permitem que certas partes do mundo desdenhem de todo o resto. Estar morto pode representar um ponto de vista que não pode ser acusado de ser provinciano. Sem dúvida, Memórias póstumas de Brás Cubas é um dos livros mais divertidamente não provincianos já escritos. E amar esse livro é tornar a si mesmo um pouco menos provinciano a respeito da literatura, a respeito das possibilidades da literatura.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Susan Sontag - Uma carta para Borges

 




Uma carta para Borges
13 de junho de 1996
Nova York
Caro Borges,
Como a sua literatura sempre se situou sob o signo da eternidade, ela não parece velha demais para que eu lhe envie uma carta.(Borges, são dez anos!) Se existiu algum contemporâneo destinado à imortalidade literária, foi você. Você foi um perfeito produto de sua época, de sua cultura, e contudo soube como transcender sua época, sua cultura, de um modo que parece inteiramente mágico.
Isso tinha algo a ver com a abertura e com a generosidade da sua atenção. Você foi o menos egocêntrico, o mais transparente dos escritores, bem como o mais engenhoso. Tinha também algo a ver com a natural pureza do espírito. Embora tenha vivido entre nós por um tempo bastante longo, você aperfeiçoou maneiras de perspicácia e de isenção que o tornaram um especialista em viagens mentais para outras eras, também. Você tinha um sentido de tempo diferente do das demais pessoas. As noções comuns de passado, presente e futuro pareciam banais sob o seu olhar. Você gostava de dizer que todo momento do tempo contém o passado e o futuro, citando (se bem me lembro) o poeta Browning, que escreveu algo como “o presente é o instante em que o futuro se desfaz para dentro do passado”. Isso, está claro, fazia parte da sua modéstia: o seu gosto por encontrar suas idéias nas idéias dos outros escritores.
Sua modéstia era parte da certeza da sua presença. Você era um descobridor de prazeres novos.
Um pessimismo tão profundo, tão sereno como o seu não precisava mostrar-se indignado. Precisava, antes, ser inventivo — e você foi, acima de tudo, inventivo. A serenidade e a transcendência do eu que você encontrou são, para mim, exemplares. Você mostrou que não é necessário ser infeliz, mesmo quando se é clarividente e sem ilusões sobre como tudo é terrível. Em algum ponto, você disse que um escritor — por delicadeza, acrescentou: todas as pessoas — deve pensar que o que lhe acontece é uma riqueza. (Você se referia à sua cegueira.)
Você foi uma grande riqueza, para os outros escritores. Em 1982 — ou seja, quatro anos antes de você morrer — eu disse numa entrevista: “Não existe hoje um escritor vivo mais importante para os outros escritores do que Borges. Muitos diriam que ele é o maior escritor vivo, hoje [...] Muito poucos escritores de hoje não aprenderam algo com ele ou não o imitaram”. Isso ainda é verdade.
Ainda aprendemos com você. Ainda o imitamos. Você deu às pessoas maneiras novas de imaginar, ao mesmo tempo que proclamava sem cessar nossa dívida com o passado, acima de tudo, com a literatura. Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e o que fomos. Se os livros desaparecerem, a história desaparecerá, e os seres humanos também. Tenho certeza de que você tem razão. Livros não são apenas a suma arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória. Eles nos dão também o modelo da autotranscendência. Algumas pessoas pensam na leitura apenas como um tipo de fuga: uma fuga do mundo cotidiano “real” para um mundo imaginário, o mundo dos livros. Livros são muito mais.
São um modo de ser plenamente humano.
Lamento ter de dizer a você que os livros, hoje, são tidos como uma espécie ameaçada. Por livros, refiro-me também às condições de leitura que tornam possível a literatura e seus efeitos na alma.
Em breve, nos dizem, invocaremos em “telas-livro” quaisquer “textos” que quisermos e poderemos alterar seu aspecto, fazer perguntas a eles, “interagir”. Quando os livros se tornarem “textos” com que “interagiremos” segundo o critério da utilidade, a palavra escrita terá se transformado simplesmente em mais um aspecto da nossa realidade televisual regida pela publicidade. Esse é o glorioso futuro que está sendo criado e prometido para nós, como algo mais “democrático”. É claro, isso significa nada menos que a morte da interioridade — e do livro.
Para essa transição, não haverá nenhuma necessidade de uma grande conflagração. Os bárbaros não precisam queimar os livros. O tigre está na biblioteca. Caro Borges, por favor compreenda que não me dá nenhum prazer queixar-me. Mas a quem melhor que você poderiam ser endereçadas tais queixas sobre o destino dos livros — da própria leitura? (Borges, faz dez anos!) Tudo o que quero dizer é que sentimos sua falta. Eu sinto sua falta. Você continua a ser importante. A era em que estamos entrando agora, este século xxi, porá a alma à prova de maneiras novas. Mas, esteja certo, alguns de nós não abandonaremos a Grande Biblioteca. E você continuará a ser o nosso patrono e o nosso herói.
Susan

Susan Sontag - Entrevista completa para a revista Rolling Stone




Em 2020, fui apresentado ao livro "Sobre Fotografia" de Sontag, mas estava muito absorto em aprender mais a fundo técnicas fotográficas (pois também me dediquei a cursos de fotografia no período) e não dei muita atenção ao conteúdo de pensamento do livro.
Mas ontem, baixei o "Susan Sontag - Entrevista completa para a revista Rolling Stone" e não consegui parar de ler. Varei a noite até acabá-lo. Livro e pensamentos fascinantes dessa monumental mulher. Sim, ela observou, agudamente, o aspecto cultural das décadas de 60, 70 e 80 de nossa era. Comecei a sublinhar passagens, mas desisti, pois já estava sublinhando todo o livro.
Porque coloquei isso aqui? Só para sugerir que leiam os livros dela. E que comecem pela biografia dela por Mose, pois começa a lhe dar um apanhado geral de suas obras. E aproveite e veja a maneira de escrever de Mose, que deve ser um cara também bem inteligente.
Um excerto do livro para degustação e observe como não é fácil escolher uma frase aqui e outra lá para sublinhar. Tudo é um pensamento contínuo.
Grifo meu "O fragmento pressupõe bastante conhecimento e experiência, e é decadente nesse sentido porque precisa ter como apoio todo esse conteúdo de modo que faça alusões e comentários sobre as coisas sem ter de esclarecer todas elas."
P - No livro você diz que “o mundo fotográfico mantém com o mundo real a mesma relação essencialmente imprecisa que os fotogramas mantêm com os filmes. A vida não são detalhes significativos, iluminados num lampejo, fixados para sempre. As fotografias são.” Uma vez li que os maias tinham uma palavra para designar sabedoria que significava “pequeno lampejo”, e os místicos costumam falar de um lampejo de inspiração ou iluminação. O crítico George Steiner uma vez escreveu sobre o lampejo de inspiração transmitido pelo fragmento literário conforme usado por escritores como Nietzsche e Wittgenstein, e atribuiu aos dois uma “lampejante certeza do imediatismo e a necessária incompletude desse imediatismo”, salientando sua importância para o processo de insight criativo.
R - Antes de mais nada, são níveis bem diferentes do que acontece. Existem lampejos que não considero fragmentos. Uma epifania não é um fragmento. Um orgasmo não é um fragmento. É claro, existem coisas limitadas no tempo que são muito intensas e parecem nos levar para outro nível de consciência ou nos dar acesso a algo que não acessávamos antes. O acesso pode ser, usando a imagem do Novo Testamento, um portão estreito, um lugar bem apertado – você o atravessa e tem um tipo de lampejo, por assim dizer, e depois já é outra coisa. Então o fato ser algo pequeno ou breve não significa necessariamente que é um lampejo. A questão dos fragmentos é outra história.
Parece que o fragmento é a forma artística da nossa época, e todos que já refletiram sobre a arte e o pensamento precisaram tratar desse problema. Recentemente ouvi Roland Barthes dizer que todo seu esforço atual é ir além do fragmento. Mas a questão é: consegue-se? Há uma razão para o fragmento, a começar com os românticos, ter se tornado uma forma artística preeminente que permite que as coisas sejam mais verdadeiras, mais autênticas, mais intensas. Há momentos privilegiados de prazer e insights, e algumas coisas podem ser mais intensas do que outras porque, na vida e na consciência, habitamos lugares muito diferentes. Mas o fato de podermos distinguir determinado momento como privilegiado – e não só por ser memorável, mas porque nos mudou – não significa que é um fragmento.
Talvez seja a culminação de tudo que já passou. O fato de podermos localizar e separar as coisas não indica seu caráter fragmentário.
P - No ensaio esclarecedor sobre o filme Viver a vida, de Godard, você usa uma estrutura fragmentada, e com isso sugere a radiância e a plenitude de um filme que se desdobra numa série de fragmentos.
R - Bom, acho que existe algo bem respeitável na forma do fragmento que aponta para lacunas, espaços e silêncios entre as coisas. Por outro lado, a gente poderia dizer que o fragmento é literalmente decadente – e não no sentido moral –, pois é o estilo do fim de uma era, e com isso quero dizer o fim de uma civilização, de uma tradição de pensamento ou de uma sensibilidade. O fragmento pressupõe bastante conhecimento e experiência, e é decadente nesse sentido porque precisa ter como apoio todo esse conteúdo de modo que faça alusões e comentários sobre as coisas sem ter de esclarecer todas elas. Não se trata de uma forma artística ou de uma forma de pensar típicas de culturas jovens que precisam fazer coisas bem específicas. Nós temos muito conhecimento e temos ciência de que existe uma multiplicidade de perspectivas, e o fragmento é uma maneira de reconhecer isso.
Não tenho paciência para ensaios que usam um argumento linear. Sinto que tenho de tornar as coisas mais sequenciais do que realmente são porque minha mente salta, e um argumento, para mim, se parece muito mais com os raios de uma roda do que com os elos de uma corrente. Contudo, a natureza da leitura na forma de página é que você começa do lado esquerdo, desce pela página, passa para o topo do lado direito, desce de novo e depois vira a folha. Não consigo pensar numa maneira melhor de leitura e não estou sugerindo que se deva abandonar a sequência das páginas, mas é uma maneira de obter algo parecido com o que Joseph Frank chamou há muitos anos de “forma espacial”. A questão dos fragmentos é muito complicada.
P - Pense nos antigos fragmentos gregos de Arquíloco e Safo, que na verdade são o que restaram de um todo original, mas cujas reverberações ainda nos afetam profundamente.
R - É por isso que somos sensíveis à forma fragmentada. Há fragmentos criados pelas mutilações da história, e temos de assumir que as palavras não foram escritas como fragmentos - elas se tornaram fragmentos porque o material se perdeu. Sinto que a Vênus de Milo nunca teria se tornado tão famosa se tivesse braços. Começou no século XVIII, quando as pessoas viram a beleza das ruínas. Suponho que o amor pelos fragmentos tem primeiro a ver com certo sentido do páthos da história e com as devastações do tempo porque o que aparecia para as pessoas na forma de fragmentos eram obras, cujas partes despencaram, foram perdidas ou destruídas. E agora, é claro, é possível e muito convincente que as pessoas criem obras na forma de fragmentos. Os fragmentos no mundo do pensamento ou da arte parecem ruínas, como aquelas artificiais que os ricos colocavam em suas propriedades no século XVIII.
P- Em certo sentido, também as fotografias.
R - Sim, acho que a fotografia surge na forma de fragmentos. A natureza da fotografia é ter o estado mental de um fragmento. É claro, ela é uma coisa completa em si mesma. Mas em relação à passagem do tempo, ela se torna aquele pedaço marcante do que nos restou do passado: "olha, éramos tão felizes nessa época, estávamos todos ali, você estava tão bonita, eu estava vestindo isso ou aquilo, olha como éramos jovens....", esse tipo de coisa. Quer dizer, as pessoas não tiram uma foto nesse espírito, mas o tempo muda o que está nas fotografias.


 

Susan Sontag - Prefácio do livro Entrevista completa para a revista Rolling Stones

“A única metáfora possível que se pode conceber para a vida do espírito”, escreveu a cientista política Hannah Arendt, “é a sensação de estar vivo. Sem o sopro da vida, o corpo humano é um cadáver; sem pensamento, o espírito humano está morto”. Susan Sontag concordava. No segundo volume de seus diários (As Consciousness Is Harnessed to Flesh), declarou ela: “Ser inteligente, para mim, não é como fazer algo ‘melhor’. É minha única forma de existir. [...] Eu sei que tenho medo da passividade (e da dependência). Alguma coisa faz eu me sentir ativa (autônoma) quando uso a mente. Isso é bom.”
Ensaísta, romancista, dramaturga, cineasta e ativista política, Sontag, que nasceu em 1933 e faleceu em 2004, foi uma testemunha exemplar do fato de que viver uma vida pensante e pensar sobre a própria vida podem ser atividades complementares e enriquecedoras. Desde a publicação de Contra a interpretação em 1966 – sua primeira coletânea de ensaios em que tratava, de maneira alegre e nada condescendente, de assuntos que variavam de The Supremes a Simone Weil, e de filmes como O incrível homem que encolheu a Muriel – Sontag nunca vacilou em sua lealdade à cultura “popular”, bem como à “alta” cultura. Como afirmou no prefácio à edição comemorativa de trinta anos do livro, “Se eu tivesse de escolher entre The Doors e Dostoiévski, é claro que escolheria Dostoiévski. Mas por que tenho de escolher?”
Como proponente de uma “erótica da arte”, tinha em comum com o escritor francês Roland Barthes não só o que ele chamava de “o prazer do texto”, mas também o que ela descrevia como sua “visão da vida do espírito como uma vida de desejo, do pleno intelecto e prazer”. Nesse aspecto, ela seguiu os passos de William Wordsworth, que, em seu “Prefácio às Baladas Líricas”, definiu o papel do poeta como o de “dar prazer imediato ao ser humano” – iniciativa que ele considerava ser “um reconhecimento da beleza do universo” e “uma homenagem prestada à dignidade nativa e nua do homem” – e afirmou que transformar esse princípio em realidade foi “tarefa fácil e leve para ele, que olha para o mundo no espírito do amor”.
“O que me faz sentir forte?”, pergunta-se Sontag em uma entrada de seu diário, dando em seguida a resposta: “Estar apaixonada e trabalhar”, além de assegurar sua fidelidade “às calorosas exaltações do espírito”. Claramente, para Sontag, amar, desejar e pensar eram, em sua raiz, atividades de essência comparável. Em seu fascinante livro Eros the Bittersweet, a poeta e classicista Anne Carson – escritora bastante admirada por Sontag – propôs que “parece haver uma semelhança entre o modo de Eros agir no espírito de um amante e o modo de o conhecimento agir no espírito de um amante”, e acrescenta: “Quando o espírito expande-se ao conhecer, abre-se o espaço do desejo” – opinião repetida por Sontag em seu ensaio sobre Roland Barthes, quando observa que “escrever é um abraço, é ser abraçado; cada ideia é uma ideia que se expande”.
Em 1987, num simpósio patrocinado pelo PEN American Center e dedicado à obra de Henry James, Sontag ampliou a noção da conexão indissolúvel entre desejar e conhecer proposta por Anne Carson. Rejeitando as críticas geralmente feitas ao vocabulário árido e abstrato de James, Sontag contra-argumenta: “Na verdade, seu vocabulário é o da prodigalidade, da plenitude, do desejo, do júbilo, do êxtase. No mundo de James há sempre mais – mais texto, mais consciência, mais espaço, mais complexidade no espaço, mais alimento para a consciência consumir. Ele investe no romance um princípio de desejo que me parece novo. É um desejo epistemológico, o desejo de saber, que é como o desejo carnal, e muitas vezes mimetiza ou duplica o desejo carnal”. Em seus diários, Sontag descreve a vida do espírito, ou do intelecto, com as seguintes palavras: “avidez, apetite, aspiração, anseio, apetência, insaciabilidade, arrebatamento, inclinação”; e não é difícil imaginar que Sontag talvez tenha sentido que Anne Carson na verdade falava para as duas quando confessou que “apaixonar-se e conhecer fazem-me sentir genuinamente viva”.
Em todos os seus esforços, Sontag tentava desafiar e subverter categorias estereotípicas como masculino/feminino e juventude/velhice, que induzem as pessoas a ter a vida limitada e sem riscos. Além disso, ela examinava e testava o tempo todo sua ideia de que supostas polaridades como pensar e sentir, forma e conteúdo, ética e estética, consciência e sensualidade, na verdade podiam simplesmente ser vistas como aspectos uma da outra – como uma superfície de veludo que, ao revertermos o sentido do toque, fornece duas texturas e dois modos de sentir, duas tonalidades e dois modos de percepção.
Em seu ensaio “Sobre o estilo”, de 1965, por exemplo, Sontag escreveu: “Chamar Triunfo da vontade e Olympia, de Leni Riefenstahl, de obrasprimas, não é o mesmo que encobrir a propaganda nazista com leniência estética. A propaganda nazista está lá. Mas também está algo mais [...], os movimentos complexos da inteligência, da graciosidade, da sensualidade”.
Uma década depois, em seu ensaio “Fascinante fascismo”, ela reverte a superfície aveludada, comentando que Triunfo da vontade foi “o filme mais puramente propagandista já realizado, cuja própria concepção nega a possibilidade de o autor do filme ter uma concepção estética ou visual independente da propaganda”. Sontag explicaria depois que, no primeiro ensaio, ela estava interessada nas “implicações formais do conteúdo”, e no segundo quis investigar “o conteúdo implícito em certas ideias da forma”.
Descrevendo-se como uma “esteta inebriada” e uma “moralista obsessiva”, Sontag bem que poderia ter concordado com a ideia de Wordsworth de que “não temos simpatia além do que é propagado pelo prazer” e que “sempre que nos simpatizarmos com a dor será descoberto que a simpatia é gerada e mantida por combinações sutis com o prazer”. Não surpreende, portanto, que, embora Sontag tenha abraçado totalmente os prazeres do que chamou de “cultura pluralista e polimorfa”, ela nunca deixou de se colocar “diante da dor dos outros” – título dado ao último livro que escreveu antes de morrer –, tampouco deixou de tentar aliviá-la.
Em 1968, a convite do governo do Vietnã do Norte, Sontag viajou para Hanói como parte de uma delegação de ativistas norte-americanos contrários à guerra, uma experiência que, conforme escreveu em seu diário, “me fez reavaliar minha identidade, as formas da minha consciência, as formas psíquicas da minha cultura, o significado de ‘sinceridade’, linguagem, decisão moral, expressividade psicológica”. Duas décadas depois, no início dos anos 1990, ela visitou em nove ocasiões diferentes a bombardeada cidade de Sarajevo, testemunhando o sofrimento de 380 mil habitantes que, na época, viviam sob cerco constante. Na sua segunda visita, em julho de 1993, conheceu um produtor de teatro nascido em Sarajevo que a convidou para dirigir uma adaptação de Esperando Godot, de Samuel Beckett, realizada com alguns dos atores profissionais mais gabaritados da cidade; o som dos atiradores de elite e da explosão de granadas serviu de fundo tanto para os ensaios quanto para as apresentações, cuja plateia contava com representantes do governo, médicos do principal hospital da cidade e soldados do front, bem como muitos cidadãos angustiados e mutilados pela guerra. “Aqueles que perenemente se surpreendem com a existência da depravação”, escreveu ela em Diante da dor dos outros, “que ainda se sentem desiludidos (até incrédulos) quando se deparam com provas do que os seres humanos são capazes de infligir a outros seres humanos, no que diz respeito a crueldades reais e grotescas, ainda não atingiram a maturidade moral ou psicológica”. E, como declarou uma vez: “Não há possibilidade de uma cultura verdadeira sem altruísmo”.
Conheci Susan Sontag no início da década de 1960 na Columbia University – ela lecionava, e eu era aluno. Durante três anos, fui um dos colaboradores e editores do suplemento literário do Columbia Spectator – jornal diário da Columbia College – para o qual Sontag, em 1961, escrevera um ensaio sobre Vida contra a morte, de Norman O. Brown, incluído posteriormente em Contra a interpretação. Depois de ler o ensaio, decidi, com certa audácia, passar uma tarde na sala dela para falar do quanto eu tinha gostado do ensaio. Depois disso, tomamos café juntos em diversas ocasiões.
Depois de me formar, em 1964, mudei-me para Berkeley para estudar literatura inglesa na University of California e logo me vi no meio de um grande despertar social, cultural e político nos Estados Unidos. “Felicidade foi estar vivo naquele alvorecer”, escreveu William Wordsworth dois séculos antes, no início da Revolução Francesa. Agora, mais uma vez, as pessoas passavam por uma verdadeira dramatização da vida, e em qualquer lugar era como se houvesse “música nas cafeterias à noite e revolução no ar”, como cantou Bob Dylan em “Tangled Up in Blue”. Cerca de trinta anos depois, ao refletir sobre essa época no prefácio à reedição de Contra a interpretação, Sontag escreveu: “Como tudo isso parece maravilhoso em retrospectiva.
Como se deseja que algo de sua coragem, seu otimismo, seu desdém pelo comércio tivesse sobrevivido. Os dois polos do sentimento distintamente moderno são a nostalgia e a utopia. Talvez a característica mais interessante do que hoje chamamos de anos sessenta seja a parca existência da nostalgia.
Nesse sentido, aquele foi de fato um momento utópico”.
Uma tarde, em 1966, deparei-me por acaso com Susan no campus de Berkeley. Ela me disse ter sido convidada pela universidade para dar uma palestra, e eu lhe contei que estava iniciando a produção e a apresentação de um programa noturno e livre na rádio KPFA; mencionei que eu e meu amigo Tom Luddy – que depois se tornaria curador do Pacific Film Archive – entrevistaríamos o cineasta Kenneth Anger sobre seu filme Scorpio Rising ainda naquela noite; e perguntei se ela queria participar da conversa, convite que aceitou. (Em seus diários, Susan cita Inauguration of the Pleasure Dome, de Anger, numa lista de “Melhores Filmes”.)
Em 1967 me mudei para Londres e me tornei o primeiro editor europeu da revista Rolling Stone, e continuei trabalhando e escrevendo para a revista quando voltei para Nova York em 1970. Eu e Susan tínhamos diversos amigos em comum, e nos anos seguintes, tanto em Nova York como na Europa, acabamos nos encontrando por acaso em jantares, lançamentos de filmes, shows de rock e concertos de música clássica, além de eventos relacionados a direitos humanos. Sempre quis entrevistá-la para a Rolling Stone, mas evitava tocar no assunto com ela. Em fevereiro de 1978, no entanto, achei que era o momento certo. Seu aclamado livro Sobre fotografia havia sido publicado no ano anterior, e dois outros livros estavam prestes a ser lançados: I, etcetera – coletânea de oito contos descritos por ela como “uma série de aventuras em primeira pessoa” – e A doença como metáfora.
Susan foi submetida a um tratamento contra câncer de mama entre 1974 e 1977, e suas experiências como paciente dessa doença estimularam-na a escrever o livro. Então, quando finalmente resolvi perguntar se ela gostaria de me conceder uma entrevista e sugeri que usássemos esses três livros como ponto de partida da conversa, ela aceitou sem hesitar.
Alguns escritores sentem que dar entrevistas é uma experiência não muito diferente de “queimar a língua antes do almoço”, como observou o poeta Kenneth Rexroth depois de participar de um coquetel particularmente detestável. Italo Calvino era um desses. No conto “Thoughts Before an Interview”, ele se queixa: “Toda manhã eu digo para mim mesmo: hoje tem de ser produtivo, então algo acontece e me impede de escrever. Hoje... O que tenho mesmo para fazer hoje? Ah, sim, parece que virão me entrevistar... Deus me ajude!” De longe mais resistente que Calvino, no entanto, foi J. M. Coetzee, laureado com o Prêmio Nobel, que, no meio de uma entrevista com David Attwell, anunciou: “Se eu tivesse alguma presciência, não teria nenhuma relação com jornalistas desde o princípio. Nove de dez entrevistas não passam de uma conversa com um completo estranho, mas um estranho que, pelas convenções do gênero, tem permissão para ultrapassar os limites do que é apropriado numa conversa entre estranhos. [...] Para mim, por outro lado, a verdade está relacionada ao silêncio, à reflexão, à prática da escrita. A fala não é um manancial da verdade, mas uma versão pálida e provisória da escrita. E o espadim da surpresa empunhado pelo magistrado ou entrevistador não é um instrumento da verdade, ao contrário, é uma arma, um signo da natureza inerentemente confrontadora dessa transação”.
A visão de Susan Sontag era diferente. “Gosto de entrevistas”, disse-me uma vez, “e gosto delas porque gosto de conversar, gosto do diálogo, e sei que boa parte das minhas ideias é produto da conversação. De certa forma, o mais difícil de escrever é estar sozinha e ter que estabelecer uma conversa consigo, o que é uma atividade antinatural em essência. Eu gosto de conversar com as pessoas – é o que me faz não ser uma reclusa –, e conversar me dá a chance de saber o que penso. Não quero saber sobre o público porque é uma abstração, mas com certeza quero saber o que pensa o indivíduo, e isso requer um encontro cara a cara”.
Em uma anotação dos diários escrita em 1965, Susan confessou: “Não darei nenhuma entrevista até soar tão clara + confiável + direta quanto Lillian Hellman na Paris Review”. Treze anos depois, numa tarde ensolarada em meados de junho, cheguei ao apartamento de Susan em Paris no 16º arrondissement. Sentamo-nos em dois sofás na sala; entre nós havia uma mesinha, sobre a qual coloquei o gravador; enquanto escutava suas respostas claras, confiáveis e diretas, não tive dúvida de que ela alcançara o objetivo que estabelecera para si anos atrás em relação às entrevistas.
Ao contrário de quase todas as outras pessoas que já entrevistei – sendo a única exceção o pianista Glenn Gould –, Susan não dizia frases, mas parágrafos extensos e bem cuidados. E o que me chamou mais atenção foi a exatidão “e o ajuste moral e linguístico” – como ela descreveu uma vez o estilo de escrita de Henry James – com que ela enquadrava e elaborava os pensamentos, ajustando com precisão os significados pretendidos com observações incidentais e termos qualificadores (“às vezes”, “de vez em quando”, “usualmente”, “na maioria das vezes”, “em quase todos os casos”), a prodigalidade e a fluência de sua conversa manifestando o que os franceses chamam de ivresse du discours – uma embriaguez com a palavra falada.
“Sinto-me fisgada pela conversa como diálogo criativo”, observou ela em seus diários, e acrescentou: “Para mim, é meu principal meio de salvação”.
Mas depois de falar durante três horas, Susan me disse que precisava descansar antes de sair para um jantar naquela noite. Percebi que já tinha gravado o suficiente para a entrevista da Rolling Stone. Para minha surpresa, no entanto, ela me disse que logo se mudaria de novo para o apartamento de Nova York, onde ficaria seis meses; e como ainda havia diversos assuntos sobre os quais ela queria conversar, perguntou se poderíamos continuar e terminar nossa conversa em Nova York.
Cinco meses depois, numa tarde fria de novembro, cheguei à espaçosa cobertura na Riverside Drive com 106th Street, de frente para o Rio Hudson, onde ela morava cercada por uma biblioteca de oito mil livros à qual ela se referia como “meu próprio sistema de informação” e “meu arquivo de desejo”. Nesse lugar abençoado, conversamos até tarde da noite.
Em outubro de 1979, a revista Rolling Stone publicou um terço da minha conversa com Susan Sontag. Agora, pela primeira vez, apresento a entrevista completa que tive o privilégio de realizar há trinta e cinco anos, em Paris e Nova York, com uma pessoa notável e inspiradora, cuja crença intelectual – como sempre pensei – parece-me ter sido expressada da maneira mais comovente num conto que ela escreveu em 1996 chamado “Uma carta para Borges”: Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e fomos. Se os livros desaparecerem, desaparecerá a história e também os seres humanos. Tenho certeza de que você está certo. Os livros não são apenas a soma arbitrária de nossos sonhos e memórias. Eles também nos dão o modelo da autotranscendência. Alguns pensam que a leitura é apenas uma forma de escapismo: uma fuga do mundo “real” cotidiano para um mundo imaginário, o mundo dos livros. Mas os livros são muito mais. São um modo de sermos plenamente humanos.

Jonathan Cott