terça-feira, 22 de novembro de 2022

Os Engenheiros do Caos - Cap 1 - O Vale do Silício do Populismo

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O Vale do Silício do Populismo

Os americanos têm sempre um ar inofensivo. Principalmente quando estão imersos no calor cínico e indolente de uma cidade como Roma. Isso deve, com certeza, estar ligado à expressão de seus rostos, ou talvez à maneira como se vestem. O americano sentado à minha frente não é uma exceção à regra. Aliás, ainda nem tive tempo de me sentar no sofá da suíte de seu hotel e ele já está me oferecendo um muffin. No entanto, seria, pelo que dizem por aí, o diabo em pessoa. Ou o “Grande Manipulador”, segundo a Time Magazine. O “personagem político mais perigoso dos Estados Unidos”, em citação da Bloomberg News. E tudo isso antes mesmo de ter contribuído decisivamente para a eleição de Donald Trump à Casa Branca, em 8 de novembro de 2016.

Os amigos de Steve Bannon dizem que se você ouve alguma explosão, não importa onde, significa que ele deve estar na área, brincando com uma caixa de fósforos. É por isso que, já há algum tempo, Bannon vem com frequência a Roma – pelo menos uma vez por mês. Na Cidade Eterna, todos sabem, o risco de terminar como o marciano do conto de Ennio Flaiano (Um marciano em Roma” (1960), conto de Ennio Flaiano (1910-1972), escritor, crítico e dramaturgo italiano que escreveu os roteiros de nove filmes de Federico Fellini. [N.T.]) não é remoto: você desembarca pela primeira vez e é recebido como um santo, o mundo para e as pessoas o carregam em triunfo. Mas, passados alguns instantes, os romanos se habituam à sua presença, do mesmo modo como acabaram se habituando a tudo, e a qualquer coisa, nos últimos dez mil anos. No final, você é interpelado por crianças nas ruas: “Ei, marciano!...”.

Mas, por enquanto, Bannon ainda está em estado de graça. Ele dá entrevistas, participa de encontros, troca ideias intermináveis com Matteo Salvini e Luigi Di Maio, por quem manifesta uma admiração sem limites. Nos intervalos dos compromissos, faz as refeições no Hôtel de Russie. No fundo, esse endereço lendário, onde dormiram princesas e conselheiros do Czar, é perfeito para ele. Não por motivos relacionados aos tempos atuais, em que reinam os oligarcas e o sistema de manipulação eleitoral. Mas sobretudo porque Bannon é, de certo modo, o Trotsky da revolução populista, misto de ideólogo e homem de ação que ambiciona, com seu “Movimento”, levar as massas europeias à revolta contra o que ele chama de “o partido de Davos”. Se lhe perguntamos qual é seu papel nesse movimento, Bannon faz beicinho: “Sou só um estudante global do movimento populista. Estou aqui para aprender”. Mas a resposta oculta e verdadeira é mais audaciosa.

Sempre vestido com camisas de botão superpostas, Steve Bannon é um produto da classe trabalhadora americana que, graças a seu talento e sua avidez, passou por todos os locais simbólicos do poder americano – o exército, Virginia Tech, Georgetown, Harvard Business School, Goldman Sachs, Hollywood e, enfim, Washington – sem jamais abrir mão de sua raiva original. Ao contrário, Bannon acumulou, por onde passasse, munição nova para incendiar e sangrar o mundo dessas elites que ele considera como uma casta blindada formada pelos traidores do povo.

Seguindo os passos de seu mestre Andrew Breitbart, fundador do site homônimo de contrainformação, Bannon foi um dos primeiros entre os novos populistas a entender que “politics is downstream from culture ” – “a política deriva da cultura”. Desde o começo, ele luta para arrancar da intelligentsia liberal o espectro de hegemonia cultural. Assim, em Hollywood, dedica-se à produção de documentários superkitsch, recheados de citações filosóficas e melodias wagnerianas. Esses filmes versam sobre o espírito americano, o choque de civilizações e a alternância de gerações que, assim, modelam a História e determinam o curso dos acontecimentos. Pelo mesmo motivo, a morte de seu fundador transformou o Breitbart News em ponto de convergência para a direita alternativa americana – uma tropa heterogênea de nacionalistas, conspiracionistas, militaristas ou, simplesmente, indivíduos raivosos – todos decididos a impor um ponto de vista diferente sobre as principais questões no centro do debate: a imigração, o livre-comércio, o papel das minorias e os direitos civis. Abrindo uma redação no Texas para seguir de perto o fenômeno da imigração clandestina, Bannon financiou think tanks, grupos de pesquisa destinados a estudar os malefícios do establishment em geral e da família Clinton em particular. Mobilizou blogueiros e trolls para dominar o debate nas redes sociais, participando do lançamento de uma sociedade de Big Data aplicada à política – a Cambridge Analytica, que mais adiante estará no centro de um escândalo global. Assim Bannon converteu-se em “banda de um homem só” do populismo americano. Portanto, quando o furacão Trump devastou as primárias republicanas em 2016, ele estava lá, a poucos passos de virar o inspirador oculto, depois o estrategista oficial, da campanha mais transgressora da história política dos Estados Unidos.

Claro, após as eleições, Steve perdeu um pouco a cabeça. Instalado no gabinete do conselheiro político do presidente, não resistiu à tentação de exibir-se à luz dos holofotes. É sempre uma péssima jogada, para um estrategista, sair revelando suas próprias ideias aos principais jornais em vez de sussurrá-las nos ouvidos do príncipe, ainda mais quando se trabalha para o símbolo vivo da Era do Narcisismo. Não à toa, ao fim de um ano Bannon foi expulso da Casa Branca, enquanto o chefe do mundo livre tuitava este tipo de mensagem: “Steve, o babão, chorou e me suplicou por seu emprego quando eu o demiti. Desde então, praticamente todo mundo o abandonou como um cão. Que pena!” (Tweet presidencial de 6/1/2018).

Mas, entre os frequentadores do circuito dos populistas soberanistas, poucos têm o cérebro, a experiência e as relações de Bannon. Assim, no espaço de alguns meses, uma perspectiva ainda mais ambiciosa se apresentou: “O que eu quero”, declarou em março ao correspondente romano do New York Times , “é construir uma infraestrutura global para o movimento populista mundial. Eu entendi isso quando Marine Le Pen me convidou para o congresso de seu partido em Lille. ‘O que você quer que eu diga?’, perguntei a ela. ‘Diga que nós não estamos sozinhos’, ela respondeu”. Naquele momento, Bannon compreendeu que há espaço para os oximoros: a Internacional dos Nacionalistas, plataforma criada para compartilhar as experiências, as ideias e os recursos de diferentes movimentos ativos na Europa e na América. “Nós estamos do lado certo da História. Até George Soros disse, tempos atrás, que vivemos tempos revolucionários…”

Soros, o bilionário húngaro que financiou movimentos democratas no mundo inteiro com sua Open Society, é, ao mesmo tempo, a besta do Apocalipse e o sonho proibido dos novos populistas globais. “Ele é brilhante”, admite Bannon. “Maléfico mas brilhante.” Seu amigo Orban o declarou fora da lei na Hungria, mas Bannon queria criar uma fundação inspirada no modelo de Soros, com o mesmo impacto, mas a serviço de uma agenda completamente diferente: fechar as fronteiras, interromper o processo de globalização e de integração europeia e voltar aos estados-nações de outrora.

“As ideias mais revolucionárias de nosso tempo começam sempre com a frase ‘Era uma vez’”, ensina o politólogo Mark Lilla. E, de acordo com Bannon, o epicentro dessa revolução é, hoje, a Itália.

Por isso ele está aqui, sentado à minha frente na suíte do Hôtel de Russie, enquanto, em seu entorno, agita-se sua guarda real – o ex-braço direito de Nigel Farage (Político britânico conservador e eurocético, um dos estrategistas do Brexit. [N.T.]), Raheem Kassam, fundador do Instituto Dignitatis Humanae Benjamin Harnwell, o sobrinho em trajes esportivos, Sean Bannon, e um curioso ariano que parece ser fruto de uma experiência eugenista sueca dos anos 1930. Todos ocupados, como uns desvairados, em produzir um clima saturado de testosterona que caracteriza os QGs de todas as revoluções, em particular as nacionais-populistas.

“Roma é, de novo, o centro do universo político”, prossegue Bannon. “Aqui se produz um evento único. Aqui, os populistas de direita, e os de esquerda, aceitaram deixar de lado suas diferenças e se uniram para devolver aos italianos o poder usurpado pelo partido de Davos. É como se Bernie Sanders e Donald Trump entrassem num acordo. Nos Estados Unidos nós não conseguimos, mas vocês, vocês realizaram isso. O que está em jogo na Itália é a própria natureza da soberania: do resultado dessa experiência depende o destino da revolta dos povos que querem recuperar o poder das mãos das elites globais que o roubaram. Se dá certo na Itália, pode dar certo em qualquer lugar. É por isso que vocês representam o futuro da política mundial.”

O discurso de Bannon é lisonjeiro, mas na realidade não é a primeira vez que um observador anglo-saxônico enxerga as invenções políticas da península como um modelo a seguir. “Seu movimento prestou um grande serviço ao mundo”, proclamava Winston Churchill, dirigindo-se aos fascistas italianos no fim dos anos 1920. “A Itália demonstrou que existe uma maneira de combater as forças subversivas. Essa maneira consiste em chamar as massas a cooperar para defender a honra e a estabilidade da sociedade civilizada. Ela produziu o antídoto necessário contra o veneno soviético. A partir de agora, nenhuma nação estará desprovida dos meios para se proteger desse câncer, e cada líder responsável em cada país sente que seus pés estão plantados mais firmemente na resistência face às doutrinas do nivelamento e do cinismo.”

No decorrer de todo o século XX, a Itália foi o laboratório onde foram conduzidas experiências políticas vertiginosas, frequentemente destinadas a serem reproduzidas, sob diversos formatos, em outras partes do mundo. O fascismo foi a primeira e a que trouxe consequências mais pesadas, mas após a queda do movimento, a Itália também deu à luz o maior partido comunista da Europa Ocidental, tornando-se, assim, o teatro privilegiado de todas as manobras e tensões da Guerra Fria. E quando o Muro de Berlim caiu, a península se transformou no Vale do Silício do populismo, antecipando em mais de vinte anos a grande revolta contra o establishment que hoje agita como um todo o hemisfério Norte.

Se Heinrich Mann dizia que Napoleão era uma bala de canhão lançada pela Revolução Francesa, seria possível dizer, guardadas as proporções, que Grillo e Salvini são as balas de canhão lançadas por Tangentopoli – a revolução judiciária que decapitou a classe política italiana no início dos anos 1990, inaugurando a interminável era da rejeição às elites e da fuga da política. Entre 1992 e 1994, a classe política do país foi eliminada: metade dos membros do parlamento que pertenciam a partidos do governo foi posta sob investigações, alguns líderes foram presos, outros fugiram para o exterior. Os dois partidos que governavam a república desde sempre, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, desapareceram no espaço de algumas semanas. A operação “Mãos Limpas” já representava, em sua essência, uma abordagem populista: os pequenos juízes contra as elites corruptas. “Quando as pessoas aplaudem, elas aplaudem a si mesmas”, declarava à época o procurador geral de Milão, Francesco Saverio Borrelli. E não é por acaso que diferentes magistrados que protagonizavam as devassas anticorrupção tenham em seguida entrado na política, fundando partidos, fazendo-se eleger no parlamento e tornando-se ministros ou prefeitos de grandes cidades.

A partir desse momento, bastou aos italianos sair em busca de elites alternativas para governar o país no lugar dos políticos profissionais, desacreditados, corruptos e incompetentes. Foi a esquerda que começou, sustentando com vigor as ações dos magistrados da operação “Mãos Limpas”, para, em seguida, dar vida, na primavera de 1993, ao primeiro governo “técnico” da história republicana: um Executivo presidido pelo ex-governante do Banco da Itália, Carlo Azeglio Ciampi, e composto exclusivamente de ministros não políticos, pinçados das fileiras do mundo acadêmico e da administração pública. Durante esse período, começou a florescer, entre os progressistas, o mito de uma “sociedade civil” virtuosa e não corrompida da qual teria emergido a nova classe dirigente do país. Mas, imediatamente depois, Berlusconi chegou para explicar que o poder devia ser gerido pelos empresários e os managers, ou gestores, verdadeiros produtores da riqueza do país, contrariamente a uma classe política formada por inúteis. Com ele, chegaram ao governo os regionalistas da Liga e os ex-fascistas da Aliança Nacional, um bloco heterogêneo unido pela rejeição à “Roma ladrona ” – “Roma ladra”.

Nos anos que se seguiram, o Cavaliere, como era chamado Berlusconi, continuou a dominar a política italiana quase até o fim de 2011, quando foi obrigado a renunciar por causa de escândalos ligados à sua vida pessoal. A partir de então, sucederam-se a tentativa de Mario Monti de instaurar um “governo de competentes” e a empreitada da centro-esquerda para recuperar o fôlego da política tradicional com a liderança inovadora de Matteo Renzi.

As eleições de 4 de março de 2018, que levaram ao triunfo o Movimento 5 Estrelas e a Liga, marcaram a falência definitiva desses esforços, dando lugar à transformação da Itália em terra prometida do populismo real. Realizou-se também, pela primeira vez num grande país ocidental, a convergência entre populismo de direita e de esquerda que tanto inflamou a imaginação – e a ambição – de Steve Bannon. Para ele, o que se está vivendo nada mais é que um choque de civilizações.

“Se há algo que eu admiro em Merkel e Macron”, diz Bannon, “é que eles não escondem seus programas. É importante que as pessoas compreendam: não há nenhum complô! Tudo é dito abertamente à luz do dia. Há um ano, Macron fez um discurso no qual apresentou, de forma detalhada e coerente, as consequências lógicas do projeto europeu, a partir da visão de Jean Monnet (Político francês (1888-1979) de tendência internacionalista, considerado um dos principais arquitetos do pensamento de unificação europeia. [N.T.]). É um projeto que prevê uma integração comercial suplementar e uma integração de mercados de capital suplementar. Na prática, são os Estados Unidos da Europa, onde a Itália faz o papel de Carolina do Sul, enquanto a França é a Carolina do Norte, Ok? Então, se você crê nesse projeto, se ele agrada você, isso quer dizer que você acredita no projeto de Macron. Salvini, Orban, Marine Le Pen e as outras vozes do movimento populista, por sua vez, dizem ‘não’. A oposição reside, aqui, entre aqueles que, na Europa, pensam que os estados nacionais são um obstáculo a superar e outros que consideram que os estados nacionais são uma joia a ser preservada.”

Desde nosso encontro, o projeto de Steve Bannon sofreu várias derrotas: a maioria dos partidos que deveriam estar sob o comando da organização do ideólogo americano faltaram com suas promessas. O estado italiano chegou mesmo a expulsá-lo do mosteiro do século XIII que Bannon tinha a intenção de transformar em uma escola de formação para seus “gladiadores do povo”. Mas sua ideia paradoxal de uma Internacional Nacionalista não parou de progredir mundo afora. A ponto de, como notou a cientista política espanhola Astrid Barrio-Lopez, a única verdadeira campanha comum para as eleições europeias de maio de 2019 ter sido conduzida pelos partidos antieuropeístas, que se reuniram no átrio do Duomo, em Milão.

As trocas e colaborações entre nacionalistas se multiplicam em todos os níveis. Graças ao apoio financeiro da Secure America Now Foundation, a agência de comunicação digital Harris Media pôde criar vídeos antimuçulmanos e contra a imigração que atingiram uma dimensão viral dos dois lados do Atlântico. Essa mesma agência teve um papel determinante na propaganda da AFD na Alemanha, difundindo na rede campanhas publicitárias dirigidas a diferentes públicos: mensagens sobre a segurança para as mães de família; mensagens sobre o desemprego para os operários, e assim por diante. Na Espanha, o poder crescente do partido de extrema-direita Vox contou com a ajuda de uma cadeia internacional de doadores que vai dos bilionários ultraconservadores americanos aos oligarcas russos, passando pela princesa Von Thurn und Taxis, todos reunidos no seio da fundação madrilenha Citizen Go, organização que ganhou visibilidade com cartazes afixados em ônibus que circulavam por todas as cidades espanholas mostrando Adolf Hitler maquiado com batom e acompanhado da hashtag #feminazis.

Se, no passado, os movimentos nacionalistas europeus eram divididos por suas origens e seus programas, que os punham automaticamente em conflito uns com os outros, hoje os pontos em comum tendem cada vez mais a ganhar a dianteira. Basta pensar na questão do Tirol do Sul, anexado à Itália, que por muito tempo dividiu os nacionalistas italianos e austríacos. Nos dias atuais, como escreve Anne Applebaum, “a aversão aos casamentos gays e aos motoristas de táxi africanos é um sentimento que mesmo os austríacos e os italianos, que vivem em desacordo sobre a localização de sua fronteira, podem partilhar”. Quando era ministro do Interior, Matteo Salvini, a propósito, inspirou-se em grande medida no seu homólogo austríaco, o ideólogo ultranacionalista Herbert Kickl, que propagava as injúrias anti-imigração e anti-islã utilizando a máquina do Estado e, em especial, a polícia, para reforçar sua propaganda identitária.

A internacional dos nacionalistas se desenvolve bem além das fronteiras da velha Europa. Em primeiro de janeiro de 2019, em Brasília, a cerimônia de posse do novo presidente Jair Bolsonaro foi celebrada com entusiasmo por seus dois principais aliados ideológicos na Europa e no Oriente Médio, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban e o israelense Benjamin Netanyahu, que estiveram presentes à capital brasileira. Mesmo ausente, Donald Trump fez questão de participar da festa expressando sua alegria no Twitter: “Os Estados Unidos estão com você!”. Resposta de Bolsonaro: “Juntos, sob a proteção de Deus, nós traremos prosperidade e progresso a nossos povos!”. Alguns dias depois, por ocasião da primeira visita oficial de Bolsonaro à Casa Branca, Steve Bannon organizou a projeção de um documentário sobre o ideólogo do presidente brasileiro, o filósofo/astrólogo Olavo de Carvalho, com quem ele partilha várias ideias e a quem considera, em suas próprias palavras, “um pensador seminal”. O terceiro filho de Bolsonaro, Eduardo, encarregado das relações internacionais de seu pai, compareceu à projeção – que ocorreu, evidentemente, no hotel Trump Internacional – exibindo um boné com as palavras “Make Brazil Great Again”.

Bem longe de se resumir ao aspecto anedótico, essa colaboração tem consequências consideráveis no plano geopolítico, e já modificou os contornos do ciberespaço, pelo desenvolvimento de uma cadeia global de pessoas capazes de conduzir operações de desinformação de um canto a outro do planeta. Além do mais, gera relações e trocas de experiências que permitem aos nacional-populistas replicar, por diversos países, os modelos de campanhas mais eficazes.

Nesse contexto, a Itália continua no papel de laboratório mais avançado da inovação política, um Vale do Silício do populismo para onde os engenheiros do caos – e não apenas Bannon – afluem em peregrinações destinadas a detectar as últimas invenções dos netos de Maquiavel. O Guardian contou, numa longa reportagem, a maneira pela qual Nigel Farage e Arron Banks conseguiram criar, em apenas dois meses, um partido político, o Brexit Party, que ganhou as eleições europeias de 2019 com 32% dos votos na Grã-Bretanha, adotando o modelo do Movimento 5 Estrelas italiano. “O Brexit Party é a cópia fiel do M5E”, diz Banks. “O que o 5 Estrelas fez, e que nós estamos fazendo como Brexit Party, é ter uma estrutura central hipercontrolada, quase uma ditadura ao centro, o que impede os lunáticos de tomarem as rédeas”. Antes de Banks, Nigel Farage já se havia explicado numa entrevista, em 2015: “Se eu fosse criar o UKIP (UK Independence Party) hoje, será que passaria 20 anos organizando reuniões nas cidades, ou fundaria um partido sob o modelo Grillo? Sei exatamente o que eu faria”.

O exemplo de Banks e Farage é importante porque ilustra o ponto essencial do caso italiano, ignorado no âmbito dos alarmes sobre a ascensão da direita e o retorno do fascismo que se espalharam nos últimos tempos. O que está em jogo na Itália não é a reedição dos anos 1920 ou 1930 do século passado, mas a emergência de uma nova forma política moldada pela internet e pelas novas tecnologias.

Desse ponto de vista, se Matteo Salvini representa sem dúvida a personalidade mais marcante da temporada política atual, o fenômeno mais intrigante é, na verdade, o do Movimento 5 Estrelas. Foi esse último que fez Salvini entrar no jogo, ao permitir que uma força extremista minoritária como a Liga chegasse ao governo com 17% dos votos, aumentando seu apoio e instaurando, assim, uma verdadeira hegemonia cultural no país.

E é esse mesmo Movimento que, depois, o privou do poder ao aliar-se à esquerda na base de um programa pró-europeu, completamente oposto àquele sobre o qual se baseava sua aliança com a Liga.

Partidos xenófobos de direita existem mais ou menos em toda a Europa, com taxas de adesão similares ou até superiores às da Liga antes da primavera de 2018. Mas eles não atingem a maioria, e em geral não encontram aliados dispostos a governar a seu lado. A verdadeira especificidade italiana é o algoritmo pós-ideológico do Movimento 5 Estrelas, que colheu um terço dos votos dos italianos nas eleições graças a uma plataforma sem nenhum conteúdo político e, portanto, pronta a ser utilizada por qualquer um para chegar ao poder – seja Salvini ou seus adversários pró-europeus do Partido Democrata.

O que faz da Itália, mais uma vez, o Vale do Silício do populismo é que lá, pela primeira vez, o poder foi conquistado por uma forma nova de tecnopopulismo pós-ideológico, fundado não em ideias, mas em algoritmos disponibilizados pelos engenheiros do caos. Não se trata, como em outros países, de homens políticos que empregam técnicos, mas de técnicos que tomam diretamente as rédeas do movimento, fundam partidos e escolhem os candidatos mais aptos a encarnar sua visão, até assumir o controle do governo de toda a nação.

Essa história é pouco conhecida fora da Itália, mas merece ser contada para que se possa começar a delimitar as fronteiras da terra incognita na qual nossas democracias começaram a afundar.

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