domingo, 2 de outubro de 2022

Susan Sontag - Vidas póstumas: O caso de Machado de Assis


Vidas póstumas: o caso de Machado de Assis

Imaginem um escritor que, no curso de uma vida moderadamente longa, durante a qual nunca viajou mais que 120 quilômetros além da capital onde nasceu, criou uma obra vasta... um escritor do século xix, me interromperão vocês; e estarão certos: autor de uma profusão de romances, novelas, contos, peças, ensaios, poemas, resenhas, crônicas políticas, bem como repórter, editor de revista, burocrata do governo, candidato a um cargo público, fundador e presidente da Academia de Letras do seu país; um prodígio de realizações, de superação da doença social e física era mulato, filho de uma escrava num país onde a escravidão só foi abolida quando ele tinha quase cinqüenta anos; era epiléptico); que, durante essa carreira intensamente prolífica, exuberantemente nacional, conseguiu escrever um número considerável de romances e contos, dignos de um lugar permanente na literatura mundial, e cujas obras-primas, fora do seu país natal, que o honra como seu maior escritor, são pouco conhecidas, raras vezes mencionadas.

Imaginem um escritor assim, que existiu, e seus livros originalíssimos, que continuam a ser descobertos, mais de oitenta anos após sua morte. Normalmente, o filtro do tempo é justo, deixa de lado os apenas celebrados ou bem-sucedidos, resgata os esquecidos, promove os subestimados. É na vida póstuma de um grande escritor que as questões misteriosas do valor e da permanência são resolvidas. Talvez venha a calhar que esse escritor, cuja vida póstuma não trouxe para a sua obra o reconhecimento de seus méritos, tenha sido dotado de um sentido do póstumo tão agudo, tão irônico, tão cativante.

O que é verdadeiro para uma reputação é verdadeiro — deveria ser verdadeiro — para uma vida.

Uma vez que só uma vida completa revela a sua forma e o sentido que uma vida pode ter, uma biografia que se pretende definitiva deve esperar até a morte do seu tema. Infelizmente, as autobiografias não podem ser compostas nessas circunstâncias especiais. E quase todas as autobiografias ficcionais dignas de nota respeitaram a limitação das autobiografias reais, ao mesmo tempo que evocavam mentalmente o melhor similar possível das iluminações concedidas pela morte.

As autobiografias ficcionais, de modo até mais freqüente que as autobiografias reais, tendem a ser ocupações do outono da vida: um narrador idoso (ou pelo menos amadurecido prematuramente), depois de afastar-se da vida, escreve. Porém, por mais próximo do ponto ideal de observação a que a idade avançada possa levar o autobiógrafo fictício, ele ou ela ainda estará escrevendo no lado errado da fronteira, além da qual uma vida, uma história de vida, enfim faz sentido.

Só conheço um exemplo desse gênero fascinante, a autobiografia imaginária, que assegura ao projeto de autobiografia o seu cumprimento ideal — que, no fim, se revela cômico —, e que vem a ser a obra-prima intitulada Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), apresentada em inglês sob o título despropositado e interferente de Epitaph of a small winner [Epitáfio de um pequeno vencedor]. No primeiro parágrafo do capítulo 1, “Óbito do autor”, Brás Cubas declara, jocoso: “não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”. Eis a primeira e constitutiva piada do romance, e ela trata da liberdade do escritor. O leitor é convidado a participar do jogo que consiste em considerar o livro em suas mãos como um feito literário sem precedentes. Reminiscências póstumas escritas em primeira pessoa.

É claro, nem mesmo um dia e muito menos uma vida podem ser recontados em seu todo. Uma vida não é um enredo. E a uma narrativa construída na primeira pessoa se aplicam noções de decoro bem diferentes das que se aplicam a uma narrativa em terceira pessoa. Desacelerar, avançar ligeiro, saltar períodos inteiros; comentar demoradamente, refrear os comentários — tudo isso feito por um “eu” tem um peso diferente, uma outra sensação, do que quando dito a respeito de uma outra pessoa ou em seu nome. Muito do que é comovente, ou perdoável, ou intolerável na primeira pessoa pareceria o oposto se pronunciado na terceira pessoa, e vice-versa: uma observação que se confirma facilmente pela leitura em voz alta de qualquer página do livro de Machado de Assis, primeiro tal como está e, depois, com “ele” em lugar de “eu”. (Para uma amostra da incisiva diferença que existe no interior dos códigos que regem a terceira pessoa, tente depois substituir “ele” por “ela”.) Há registros de sentimento, como a ansiedade, que só se acomodam a uma voz em primeira pessoa. E também certos aspectos de desempenho narrativo: a digressão, por exemplo, parece natural em um texto escrito na primeira pessoa, mas dá impressão de amadorismo numa voz impessoal, em terceira pessoa. Assim, qualquer obra literária que apresente uma consciência de seus próprios meios e métodos deveria ser compreendida como em primeira pessoa, seja “eu” ou não o pronome principal.

Escrever sobre si mesmo — a verdade, ou seja, a história particular — era visto antigamente como algo presunçoso, que carecia de justificação. 

Os Ensaios de Montaigne, as Confissões de Rousseau, Walden, de Thoreau, e a maioria dos clássicos da autobiografia espiritualmente ambiciosos têm um prólogo em que o autor dirige a palavra direto ao leitor, reconhece a temeridade da sua empreitada, evoca escrúpulos ou inibições (recato, ansiedade) que tiveram de ser superados, reivindica uma simplicidade ou uma sinceridade exemplares, dá como pretexto o proveito que essa concentração em si mesmo trará para os outros. E, como nas autobiografias reais, a maioria das autobiografias ficcionais de algum requinte de estilo ou de alguma profundidade também começam com uma explicação, defensiva ou desafiadora, da decisão de escrever o livro que o leitor acabou de abrir — ou, pelo menos, um floreio autodepreciativo, que sugere uma atraente suscetibilidade à acusação de egotismo. Não se trata do mero pigarrear que antecede um discurso, nem de frases polidas destinadas a dar tempo para que o leitor se acomode em seu assento. É o disparo inaugural numa campanha de sedução em que o autobiógrafo tacitamente concorda haver algo de impróprio, de descarado, em se oferecer para escrever sobre si mesmo de modo extenso — expor-se a pessoas desconhecidas sem contar com nenhum interesse flagrante (uma carreira de destaque, um crime importante), ou sem um estratagema documental, como simular que o livro apenas transcreve documentos privados existentes, como diários ou cartas, indiscrições originalmente destinadas a um círculo de leitores reduzidíssimo e íntimo. Em se tratando de uma história de vida oferecida de forma direta, na primeira pessoa, para o maior número possível de leitores (um “público”), parece apenas um mínimo de prudência, bem como uma cortesia, que o autobiógrafo busque permissão para prosseguir. O esplêndido achado do romance, serem memórias escritas por um morto, acrescenta um efeito adicional a esses cuidados reguladores com aquilo que o leitor pensa. O autobiógrafo pode também declarar que não se importa com isso.

Porém, escrever de além-túmulo não livrou esse narrador da necessidade de mostrar uma dose ostentosa de preocupação com a recepção da sua obra. Sua ansiedade debochada está corporificada na própria forma, na distintiva velocidade do livro. Está na maneira como a narrativa é cortada e armada, seus ritmos intermitentes: 160 capítulos, vários tão curtos que têm apenas duas frases, poucos mais longos do que duas páginas. Está nas orientações galhofeiras, em geral no início ou no fim dos capítulos, para o melhor aproveitamento do texto. (“Convém intercalar este capítulo entre a primeira oração e a segunda do capítulo cxxix.” “Mas este capítulo não é sério.” “Os fenômenos da consciência são de difícil análise; por outro lado, se contasse um, teria de contar todos os que a ele se prendessem e acabava fazendo um capítulo de psicologia.” Etc.) 

Está no ímpeto de atenção irônica dirigida aos meios e aos métodos do livro, na repetida negação de grandes pretensões no que se refere às emoções do leitor (“gosto dos capítulos alegres”). Pedir ao leitor que tenha paciência com a tendência do narrador para a frivolidade é também uma manobra de sedução, tal como prometer ao leitor emoções fortes e conhecimentos novos. A atenção exagerada e cordial que o autobiógrafo dedica à acuidade dos seus procedimentos narrativos parodia a intensidade da sua concentração em si mesmo.

A digressão é a técnica principal para controlar o fluxo emocional do livro. O narrador, cuja cabeça está cheia de literatura, mostra-se um perito em descrições precisas — do tipo lisonjeado com o nome de realismo — de como os sentimentos acerbos persistem, mudam, evoluem, se transferem. Mostra também, compreensivelmente, que ele mesmo está além de tudo isso, pelas dimensões do contar: o corte em episódios curtos, os resumos irônicos e didáticos. Essa voz estranhamente ferina, confessadamente desencantada (mas o que mais se esperaria de um narrador morto?), nunca relata um acontecimento sem extrair dele alguma lição. O capítulo cxxxiii abre assim:

“e aqui emendo eu o princípio de Helvetius — ou, por outra, explico-o”. Ao pedir a tolerância do leitor, ao preocupar-se com a atenção do leitor (O leitor entendeu? O leitor está se divertindo? O leitor está se chateando?), o autobiógrafo faz contínuas interrupções em sua história a fim de invocar uma teoria que ela ilustra, formular uma opinião a respeito — como se tais movimentos fossem necessários para tornar a história mais interessante. A existência socialmente privilegiada e vaidosa de Brás Cubas é, como são muitas vezes essas vidas, destituída por completo de acontecimentos; os acontecimentos principais são os que não aconteceram ou que foram julgados frustrantes. A farta produção de opiniões espirituosas põe a nu a pobreza emocional da vida, ao fazer com que o narrador pareça esquivar-se das conclusões que deveria extrair. O método digressivo também engendra boa parte do humor do livro, a começar pela própria disparidade entre a vida (modesta em acontecimentos, sutilmente articulados) e a teoria (portentosa, incisiva) que ele evoca.

Vida e opiniões de Tristam Shandy é, está claro, o modelo principal desses procedimentos saborosos de testar a atenção do leitor. O método de capítulos curtos e de algumas piruetas tipográficas, como no capítulo IV (“O velho diálogo de Adão e Eva”) e no capítulo CXXXIX (“De como não fui ministro d’Estado”), recorda os ritmos narrativos extravagantes e as tiradas pictográficas de Tristam Shandy. O fato de Brás Cubas começar sua história após a própria morte, assim como Tristam Shandy inicia, de modo célebre, a história da sua consciência antes do próprio nascimento (no instante de sua concepção) —, também isso parece uma homenagem de Machado de Assis a Sterne. A ascendência de Tristam Shandy, publicado em fascículos entre 1759 e 1767, sobre um escritor nascido no Brasil no século XIX não deveria causar-nos surpresa. Enquanto na Inglaterra os livros de Sterne, tão celebrados em vida do autor e um pouco depois, eram reavaliados como excessivamente peculiares, por vezes indecentes e afinal maçantes, no Continente continuavam a gozar de enorme admiração. No mundo anglofônico, onde no século XX ele passou de novo a ser visto com grande consideração, Sterne ainda figura como um gênio ultra-excêntrico e marginal (como Blake), que se faz notar sobretudo por ter sido bizarra e prematuramente “moderno”. Quando visto na perspectiva da literatura mundial, porém, talvez seja ele o escritor de língua inglesa que exerceu uma influência mais vasta, após Shakespeare e Dickens; pois Nietzsche ter dito que seu romance predileto era Tristam Shandy não constitui um juízo de todo original, como pode parecer. Sterne foi uma presença especialmente poderosa nas literaturas de língua eslava, como se reflete no papel central do exemplo de Tristam Shandy nas teorias de Viktor Chklóvski e de outros formalistas russos a partir da década de 1920. Talvez a razão de tanta literatura influente em prosa ter provindo, durante décadas, da Europa central e oriental, bem como da América Latina, não esteja na circunstância de os escritores dessas regiões terem padecido sob tiranias monstruosas e por isso terem recebido a dádiva da importância, da seriedade, dos temas e da ironia relevante (como concluíram, invejosamente, muitos escritores da Europa ocidental e dos Estados Unidos), mas sim no fato de serem partes do mundo onde, durante mais de um século, o autor de Tristam Shandy foi admiradíssimo.

O romance de Machado de Assis pertence a essa tradição de bufonaria narrativa — a voz loquaz em primeira pessoa que tenta ganhar as boas graças dos leitores —, que procede de Sterne até alcançar, no século XX, Eu sou um gato, de Natsume Soseki, a ficção breve de Robert Walser, Confissões de Zeno e Senilidade, de Italo Svevo, Uma solidão barulhenta demais, de Hrabal, e boa parte da obra de Beckett. Vezes seguidas, encontramos sob disfarces diferentes o narrador persuasivo, tortuoso, compulsivamente especulativo, excêntrico; recluso (por opção ou por vocação); propenso a obsessões fúteis, a teorias fantasiosas e a esforços de vontade destinados a um resultado cômico; não raro, um autodidata; nada ranzinza; incapaz de casar, embora às vezes se veja impelido pela volúpia e, ao menos numa ocasião, pelo amor; em geral, idoso; invariavelmente, homem. (É bem possível que nenhuma mulher conseguisse sequer a solidariedade condicional que esses narradores ferrenhamente autocentrados nos solicitam, em razão da expectativa de que a mulher deve ser mais solidária, e mais compassiva, do que os homens; uma mulher com o mesmo grau de acuidade mental e de alheamento emocional seria vista simplesmente como um monstro.) O hipocondríaco Brás Cubas de Machado de Assis é bem menos exuberante que o desmiolado e efusivamente tagarela Tristam Shandy. Há uma distância bem curta entre a mordacidade do narrador de Machado, com a sua pesarosa superioridade em relação à história da própria vida, e o mal-estar do enredo que caracteriza a maior parte da ficção recente em forma de autobiografia. Mas a ausência de história pode ser intrínseca ao gênero — o romance como monólogo autobiográfico —, assim como o isolamento da voz narradora. Quanto a isso, um anti-herói pós-sterniano como Brás Cubas parodia os protagonistas das grandes autobiografias espirituais, sempre profundamente solteiros, e não devido às circunstâncias. Isto é quase uma medida da ambição de uma narrativa autobiográfica: o narrador deve ser sozinho, ou estar remodelado como tal, viver certamente sem esposa, mesmo quando existir uma esposa; a vida deve estar despovoada no centro.(Assim, recentes proezas no campo da autobiografia espiritual disfarçada de romance, como Noites insones, de Elizabeth Hardwick, e O enigma da chegada, de V. S. Naipaul, deixam de fora os cônjuges, que na verdade estavam presentes.) Assim como a solidão de Brás Cubas é uma paródia de uma solidão escolhida ou emblemática, seu consolo por via da autocompreensão é, a despeito de toda autoconfiança e humor, uma paródia desse tipo de façanha.

As seduções de uma narrativa desse tipo são complexas. O narrador professa estar preocupado com o leitor — quer ter certeza de que ele está entendendo o livro. Enquanto isso, o leitor pode estar se perguntando acerca do narrador — se o narrador entende todas as implicações daquilo que está sendo contado. Uma exibição de agilidade mental e de inventividade que se destina a entreter o leitor e que reflete, de forma simulada, a vivacidade da mente do narrador dá sobretudo a medida do isolamento emocional e do desamparo do narrador. Aparentemente, esse é o livro de uma vida.

Porém, apesar do talento do narrador para o retrato social e psicológico, o livro permanece como uma viagem pelo interior da cabeça de alguém. Outro modelo de Machado foi o maravilhoso livro de Xavier de Maistre, um aristocrata francês expatriado (viveu sobretudo na Rússia) que inventou a microviagem literária com o seu Viagem à roda do meu quarto, escrito em 1794, quando estava na prisão por causa de um duelo, em que reconta suas visitas, em diagonal e em ziguezague, a locais tão divertidos como a poltrona, a escrivaninha e a cama. Um confinamento, mental ou físico, que não é reconhecido como tal, pode resultar numa história muito engraçada, além de rica em páthos.

No início, num floreio de auto-reconhecimento autoral que inclui gentilmente o leitor, Machado de Assis faz o autobiógrafo citar os modelos literários do século XVIII da sua narrativa com a seguinte advertência soturna: Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.

Conquanto modulado pelo humor extravagante, um veio de autêntica misantropia percorre o livro inteiro. Se Brás Cubas não é só mais um desses narradores solteiros, reprimidos, secos, absurdamente atentos a si mesmos, que só existem para serem postos a nu pelo leitor repleto de vitalidade, isso acontece por causa da sua raiva — que, no fim do livro, se revela por inteiro, dolorosa, amarga, perturbadora.

O ânimo brincalhão de Sterne é leve. É uma forma cômica, ainda que extremamente nervosa, de benevolência com o leitor. No século XIX, esse ânimo digressivo, loquaz, esse amor à pequena teoria, esse deslocamento em piruetas de um modo narrativo para outro adquirem um matiz mais sombrio.

Passam a ser identificados com a hipocondria, com a desilusão erótica, com as insatisfações do eu (o patologicamente volúvel Homem Subterrâneo de Dostoiévski), com uma aguda aflição mental (o narrador histérico, transtornado pela injustiça, de Max Havelaar, de Multatuli). Tagarelar de modo obsessivo, repetitivo, foi um recurso constante da comédia. (Pensemos nos resmungões plebeus de Shakespeare, como o porteiro em Macbeth; pensemos em Pickwick, entre outras invenções de Dickens.) Esse uso cômico da tagarelice não desaparece. Joyce usou a tagarelice num espírito rabelaisiano, como veículo de hipérbole cômica, e Gertrude Stein, campeã da escrita palavrosa, transformou os tiques do egotismo e do espírito sentencioso em uma afável voz cômica de grande originalidade. Mas a maior parte dos narradores palavrosos em primeira pessoa na literatura ambiciosa do século XX foi radicalmente misantrópica. A tagarelice é identificada com o funesto e aflito impulso repetitivo da idade senil (os monólogos em prosa de Beckett, denominados de romances) e com a paranóia e a raiva implacável (os romances e as peças de Thomas Bernhard).

Quem não percebe o desespero por trás das meditações loquazes, vivazes, de Robert Walser e das vozes eruditas e debochadas nos contos de Donald Barthelme?

Os narradores de Beckett tentam em geral, não de todo com sucesso, imaginar-se como mortos.

Brás Cubas não tem esse problema. Mas Machado de Assis tentava ser, e é, engraçado. Nada há de mórbido na consciência do seu narrador póstumo; ao contrário, a perspectiva da consciência máxima — algo que, com finura, um narrador póstumo pode perfeitamente reivindicar — é em si mesma uma perspectiva cômica. O lugar de onde Brás Cubas escreve não é uma vida póstuma autêntica (não tem nenhuma geografia), mas apenas mais uma experiência com a noção de distanciamento autoral. As estripulias de narrativa neo-sterniana dessas memórias de um homem desiludido não emanam da exuberância sterniana, nem mesmo do nervosismo sterniano. São um tipo de antídoto, uma contraforça para a desesperança do narrador: um modo consideravelmente mais especializado de subjugar o desalento do que o “medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”, que o narrador imagina inventar. A vida ministra suas duras lições. Mas uma pessoa pode escrever como lhe aprouver — uma forma de privilégio.

Joaquim Maria Machado de Assis tinha apenas 41 anos quando publicou essas reminiscências de um homem que morreu — somos informados na abertura do livro — aos 64 anos. (Machado nasceu em 1839; faz a sua criatura Brás Cubas, o autobiógrafo póstumo, nascer em 1805 e antecedê-lo em mais de uma geração.) O romance como exercício de antevisão da velhice é uma aventura que continua a atrair escritores de temperamento melancólico. Eu tinha quase trinta anos quando escrevi meu primeiro romance, que se faz passar pelas reminiscências de um homem de sessenta e poucos anos, um homem que vive de rendas, um diletante e fantasista, que declara no início do livro ter alcançado um estágio de serenidade de onde, encerrada toda experiência, podia recapitular sua vida.

As poucas referências literárias conscientes em minha mente eram na maioria francesas — sobretudo Candide e as Meditations de Descartes; pensei estar escrevendo uma sátira contra o otimismo e contra certas idéias caras (a mim) sobre a vida interior e sobre uma interiorização religiosamente alimentada. (O que se passava de forma inconsciente, do modo como o encaro hoje, era uma outra história.) Quando tive a boa sorte de ver O benfeitor aceito pela primeira editora a que o apresentei, a Farrar Straus, tive a felicidade adicional de indicarem como meu editor Cecil Hemley, o qual em 1952, na sua encarnação anterior como diretor da Noonday Press (pouco antes adquirida pela minha nova editora), havia publicado a tradução do romance de Machado que de fato impulsionou a carreira do livro em língua inglesa. (E com aquele título!) Em nosso primeiro encontro, Hemley me disse: “Vejo que você foi influenciada por Epitaph of a small winner”. Epitáfio do quê? “Você sabe, de Machado de Assis.” Quem? Ele me emprestou um exemplar e, dias depois, confessei-me retrospectivamente influenciada.

Embora, a partir de então, eu tenha lido muita coisa de Machado em tradução, Memórias póstumas de Brás Cubas — o primeiro dos cinco últimos romances (ele viveu 28 anos depois de escrevê-lo) tidos, em geral, como o auge do seu gênio — permanece o meu favorito. Fui informada de ser o livro que não-brasileiros preferem, na maioria das vezes, embora os críticos em geral destaquem Dom Casmurro (1899). Fico espantada de que um escritor de tamanha grandeza ainda não ocupe o lugar que merece. Em certa medida, o relativo descaso com Machado fora do Brasil talvez não seja mais misterioso do que o descaso com outro fecundo escritor de gênio marginalizado por força de noções eurocêntricas a respeito da literatura mundial: Natsume Soseki. Sem dúvida, Machado seria mais conhecido se não fosse brasileiro e se não tivesse passado toda sua vida no Rio de Janeiro — se, digamos, fosse italiano ou russo, ou mesmo português. Mas o embargo não reside apenas no fato de Machado não ter sido um escritor europeu. Mais notável do que sua ausência no palco da literatura mundial é ter sido ele muito pouco conhecido e lido no resto da América Latina — como se ainda fosse difícil digerir o fato de que o maior romancista produzido pela América Latina tenha escrito em português e não em espanhol. 

O Brasil pode ser o maior país do continente (e o Rio, a sua maior cidade no século XIX), mas sempre foi um país posto à margem — visto, pelo resto da América do Sul, a América do Sul hispanófona, com uma boa dose de desdém e não raro em termos racistas. É muito mais provável que um escritor desses países conheça qualquer das literaturas européias ou literatura em inglês do que a literatura do Brasil, embora os escritores brasileiros tenham uma consciência apurada da literatura hispano-americana. Borges, o outro escritor da mais alta grandeza produzido pelo continente, parece nunca ter lido Machado de Assis. De fato, Machado é ainda menos conhecido entre leitores de língua espanhola do que entre os leitores de língua inglesa. Memórias póstumas de Brás Cubas só foi traduzido para o espanhol na década de 1960, oitenta anos depois de ter sido escrito e uma década depois de ter sido traduzido (duas vezes) para o inglês.

Com tempo bastante, vida póstuma bastante, um grande livro termina por encontrar o seu lugar de justiça. E talvez alguns livros precisem ser redescobertos seguidas vezes. Memórias póstumas de Brás Cubas é pelo visto um desses livros arrebatadoramente originais, radicalmente céticos, que sempre impressionarão os leitores com a força de uma descoberta particular. É pouco provável que soe como um grande elogio dizer que esse romance, escrito mais de um século atrás, parece, bem... moderno. Acaso não estamos prontos a reconhecer toda obra que nos fale com originalidade e lucidez como uma das obras que desejamos alistar no que compreendemos como modernidade?

Nossos critérios de modernidade são um sistema de ilusões lisonjeadoras, que nos permitem colonizar seletivamente o passado, assim como nossas idéias do que é provinciano permitem que certas partes do mundo desdenhem de todo o resto. Estar morto pode representar um ponto de vista que não pode ser acusado de ser provinciano. Sem dúvida, Memórias póstumas de Brás Cubas é um dos livros mais divertidamente não provincianos já escritos. E amar esse livro é tornar a si mesmo um pouco menos provinciano a respeito da literatura, a respeito das possibilidades da literatura.

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