terça-feira, 22 de novembro de 2022

Os Engenheiros do Caos - Cap 4 - TROLL, o Chefe

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TROLL, o Chefe

Em 4 de novembro de 2008, a América entra numa nova era – ou, ao menos, é no que somos persuadidos a acreditar naquela noite. Pela primeira vez, os Estados Unidos elegem para a Casa Branca um presidente de origem africana. As fraturas que marcaram a história desse grande país parecem finalmente superadas, e todas as sondagens são unânimes: “O racismo não existe mais”. Mesmo nos estados mais retrógrados do Sul, não se encontra mais um só eleitor disposto a admitir que seu voto é influenciado pela cor da pele. Depois de mais de três séculos, o caldeirão racial americano parece ter finalmente encontrado seu destino natural.

No entanto, nessa mesma noite de 4 de novembro, longe dos projetores do Grand Park de Chicago, onde Barack Obama celebra sua vitória, um fenômeno bem diferente se produz. Os dados do Google, que, contrariamente às pesquisas tradicionais, revelam os pensamentos e os comportamentos reais das pessoas, nos dizem que durante aquela noitada, em alguns estados, o número de buscas por “first nigger president ” – que poderia ser traduzido como “primeiro presidente crioulo” – ultrapassa o número de buscas por “first black president ” – “primeiro presidente negro”. Na mesma noite, ainda, a rede social racista Stormfront registra o maior pico de inscrições de seu histórico. Concretamente, enquanto a história oficial anuncia o fim do ódio racial, esse último já está em vias de se reorganizar, adotando a forma nova, menos explícita e mais contemporânea, que vai permitir a esses grupos, oito anos depois, fazer um retumbante come-back. Na época, ninguém percebe. Seria preciso um feiticeiro, mais que um político tradicional, para decretar o fenômeno: desde os primeiros meses do mandato de Obama, esse bruxo, capaz de mobilizar a base oculta mais significativa dos eleitores racistas, vai assumir a fisionomia improvável de Donald Trump.

Improvável não tanto por causa de seus cabelos amarelos, seus negócios suspeitos e suas poses teatrais. Mas, principalmente, porque, no outono de 2008, o empreiteiro nova-iorquino é uma das figuras mais populares entre os afro-americanos e os latinos. O Aprendiz, o reality show que ele apresenta com grande sucesso desde 2004, e no qual interpreta seu próprio papel, agrada particularmente as minorias porque põe em cena jovens de todas as origens étnicas competindo para realizar o sonho americano sob o olhar implacável mas justo de Donald. No começo de cada episódio, um instante antes de subir no helicóptero batizado com seu nome, o magnata se volta para as câmeras: “Eu dominei a arte dos negócios e transformei o nome Trump em uma marca da mais alta qualidade. Enquanto mestre, eu desejo transmitir meu conhecimento a qualquer pessoa. Eu estou em busca... do aprendiz”.

Entre os dezesseis jovens que, em cada temporada, participam da competição para merecer os favores do Mestre, há, é claro, homens e mulheres que representam a pluralidade da sociedade americana. E não é raro que eles ganhem, como no outono de 2005, quando o show coroou Randal Pinkett, um jovem e brilhante afro-americano de 26 anos. O Aprendiz é um palco para a vitalidade da sociedade multiétnica, e as minorias gostam do programa. 

Durante esse período, Donald Trump é, portanto, mais popular entre negros e latinos do que entre o público branco.

Mas tudo isso está prestes a mudar muito rápido a partir de 2010. É quando Trump detecta uma teoria da conspiração que, até então, estava confinada às periferias mais extremas da direita alternativa – teoria segundo a qual Barack Obama não teria nascido nos Estados Unidos. Logo, não terá direito de ser eleito presidente: “Eu estou um pouco cético quanto ao nascimento de Obama”, declara Trump, “e não acho que aqueles que partilham essa opinião devem ser considerados como idiotas de forma tão precipitada”. “Lá onde ele diz ter nascido ninguém o conhecia”. “Há alguma coisa nessa certidão de nascimento que não agrada Obama”. Assim, aos pouquinhos, de pequena frase em pequena frase, Trump dá vida a uma campanha cujo objetivo é forçar Obama a apresentar sua certidão de nascimento. Quando a Casa Branca publica, finalmente, o documento, Donald aposta mais alto e oferece cinco milhões de dólares a quem for capaz de fornecer uma cópia original do pedido de inscrição de Obama na universidade. Em alguns meses, ele se impõe, assim, como o opositor mais radical, e o mais politicamente incorreto, do presidente.

Bem antes do anúncio oficial de sua candidatura, percebe-se, já nesse tom inaugural, os principais ingredientes daquilo que iria ser o trumpismo. Em primeiro lugar, o sinal de fumaça convocando a base do eleitorado tradicional, branco, impregnado de preconceitos e de racismo, que experimentou a eleição de Obama como uma aberração. Ao colocar em questão as origens do presidente, sob o véu sutil do argumento legal, Trump contesta, na realidade, a legitimidade que tem um negro para ocupar a Casa Branca. Ao mesmo tempo, dá uma piscada de olho ao eleitorado branco, rural e das periferias urbanas, marginalizado no seio do sistema político americano.

O segundo elemento da polêmica em torno da certidão de nascimento é a teoria da conspiração: por trás da eleição de Obama, estaria um grande complô reunindo poderes mais ou menos ocultos das elites globais, capazes de falsificar a realidade para realizar seus próprios objetivos contra os interesses do bom povo americano.

Por último, desde a origem, as fake news constituem o terceiro ingrediente. O suposto nascimento de Obama fora do território dos EUA é, evidentemente, uma mentira. O próprio Trump irá admitir o embuste alguns anos depois, sem nenhum constrangimento. Mas o fato de que a trajetória política de Donald se sustente, desde o início, sobre uma fake news não constitui, de forma alguma, um ponto fraco. Ao contrário, de modo espantoso, será uma das grandes forças de sua candidatura.

*

Quando Trump lança sua campanha de comunicação sobre a certidão de nascimento de Obama, ninguém imagina que uma iniciativa desse tipo pudesse servir como rampa de lançamento para ascender à Casa Branca. Estamos na América do século XXI, onde os brancos serão uma minoria a partir de 2040 e onde a cultura dominante já é, há muito tempo, a da meritocracia e do politicamente correto das grandes universidades, de Hollywood e do Vale do Silício. Num mundo como esse, The Donald é, no máximo, um homem de Cro-Magnon folclórico, espécie de sobrevivente dos dinossáuricos anos 1980.

Mas, nas margens da vida política americana, já há algum tempo, ronda um personagem que tem a sensibilidade e a experiência necessárias para farejar antes dos outros as correntes que se movem sob o aparente consenso da Nova América, particularmente no mundo digital. É verdade que um episódio a priori sem importância no currículo de Steve Bannon marcou, de forma determinante, sua maneira de ver as coisas.

Em 2005, Bannon deixa Hollywood e parte para Hong Kong. Lá, participa do lançamento de uma sociedade, Internet Gaming Entertainment, um modelo de negócios bastante curioso. Essa empresa explora a popularidade de um videogame, World of Warcraft, que tem milhões de apaixonados no mundo inteiro. O game emprega milhares de jovens chineses, que jogam da manhã à noite e acumulam troféus virtuais – armas e ouro – reservados aos craques da modalidade. Os ganhos virtuais são, em seguida, revendidos, em troca de moeda real, aos jogadores ocidentais mais preguiçosos, que desejam progredir no jogo sem ter que passar tanto tempo grudados na tela.

Um problema surge: esse modelo deixa os verdadeiros gamers furiosos. Ora, esses jogadores fizeram do videogame sua razão de viver. Para eles, comprar troféus em vez de ganhá-los é sinônimo de trapaça e um atentado aos códigos de honra que regem a vida dos guerreiros digitais. Começa, assim, uma violenta campanha virtual ao fim da qual os gamers rebelados forçam a empresa proprietária do World of Warcraft a suspender as contas de usuários que protestam contra a Internet Gaming Entertainment.

Para Bannon, esse fiasco total é a chance de descobrir uma realidade cuja existência ele sequer imaginava. Encontram-se, on-line, milhões de jovens mergulhados numa realidade paralela à qual são ferozmente afeiçoados. Em nome da defesa dessa esfera, estão prontos para mobilizar um poder de fogo enorme, capaz de derrubar empresas e fazer grandes colossos mundiais se curvarem. Claro, é um mundo anárquico, composto de comunidades difíceis de controlar e impregnado de uma cultura frequentemente misógina e hiperviolenta, ao menos na dimensão cibernética. No entanto, é para lá que se transferiu uma parte significativa da energia que faz com que os jovens sejam, historicamente, a plataforma dos tumultos e das revoluções. Muitos pensam que essa energia se dissipou e desapareceu. Na verdade, ela ainda está por aí. Basta saber interceptá-la para, depois, canalizá-la na direção da política.

A partir desse momento, Bannon começa a prestar especial atenção às comunidades digitais. Não às comunidades bem pensantes e politicamente corretas que estarão na origem do sucesso da candidatura de Obama em 2008 e aplaudidas como motor global da mudança durante a Primavera Árabe de 2011. Mas àquelas menos visíveis e menos apresentáveis, que se agitam sob os radares dos partidos e das mídias tradicionais. Plataformas como 4chan, 8chan ou os subgrupos do portal Reddit, que agregam milhões de usuários por meio de polêmicas inflamadas contra o establishment das mídias e das políticas e novos dogmas do politicamente correto. São microcosmos nos quais nenhum argumento é tabu e a única regra é o exagero – como modo de atrair a atenção e chocar os bem pensantes com declarações abusivas, misóginas, racistas ou antissemitas.

Nesse meio tempo, Bannon, vindo de sua aventura no mundo dos gamers, volta aos Estados Unidos e se alia a um dos personagens mais instigantes da nova direita americana. Andrew Breitbart é um jornalista, escritor, filho adotivo de um casal burguês judaico de Los Angeles. Criado num ambiente progressista, Breitbart teve sua revelação política em 1991, durante o escândalo ligado ao juiz negro Clarence Thomas, um conservador antiaborto pré-escolhido por George Bush para uma vaga na Suprema Corte, pego por acusações de agressão sexual à sua ex-colaboradora Anita Hill. “Eu acompanhava o inquérito parlamentar a partir de minha posição de bom liberal que desejava a queda de Clarence Thomas”, ele recorda, “porque os apresentadores vedetes de jornais televisivos diziam que Clarence Thomas era o homem mau e Anita Hill a vítima gentil. A Organização Nacional para as Mulheres pintava também Clarence Thomas como o malvado e Anita Hill como a boa moça, e eu me posicionava do mesmo lado. Eu me sentava diante da televisão e assistia às audiências no Senado, esperando pelas provas que dariam razão à acusação, porque no fundo se tratava de um processo. No fim da semana, me perguntei: quando as provas serão apresentadas? Eu acredito em Anita, muito bem. Admitamos que ela diga a verdade. E aí? Se em seis anos de carreira, passando de um trabalho a outro com aumentos constantes de salário, o pior que lhe aconteceu foi ter visto uma lata de Coca-Cola com um pelo pubiano em cima, e a única maneira que encontrou de lidar com isso foi uma audição pública no Senado, do que é que estamos falando? Essa foi minha epifania, entendi que alguma coisa não estava certa. Eu não entendia como a NAACP (Associação Nacional para a Promoção das Pessoas de Cor) podia continuar assim, de braços cruzados, enquanto os brancos privilegiados, como Ted Kennedy – Ted Kennedy, aquele Ted Kennedy! –, cuspia condenações sobre o comportamento de um homem em relação a uma mulher. Foi algo que me deixou enojado”.

Daí em diante, Breitbart passa a achar que o establishment americano está impregnado de uma cultura progressista hipócrita e elitista, que dita os termos do discurso público e persegue sem piedade todos aqueles que não se conformam com seus dogmas politicamente corretos. Em seu livro-manifesto de 2011, Righteous Indignation [Indignação justificada], Breitbart reconstrói a gênese complexa da hegemonia cultural da esquerda americana. Segundo ele, tudo começou com os teóricos da Escola de Frankfurt, exilados na América para fugir das perseguições nazistas. Esses filósofos, como Adorno, Horkheimer, Marcuse, abertamente marxistas, teriam por objetivo inicial minar as bases da sociedade de consumo americana, com sua teoria crítica destinada a lançar luz sobre a natureza alienante do capitalismo. Em pouco tempo, suas ideias foram difundidas nas universidades americanas, tornando-se a base da contestação estudantil dos anos 1960, para, em seguida, imiscuir-se, à medida que os ex-alunos seguiam suas carreiras, nas redações dos jornais, em Hollywood e nas cúpulas do poder político.

Assim nasceria aquilo que Breitbart define como Democrat Media Complex, máquina inexorável que traça as fronteiras do justo e do injusto, do dizível e do indizível, e persegue ferozmente todos os hereges e iconoclastas, sobretudo os de direita. Combater essa máquina em seu próprio terreno, através das mídias tradicionais e da indústria do entretenimento, é uma batalha perdida antes mesmo de iniciada: nesses mundos, o pensamento único progressista se enraizou a ponto de virar uma segunda natureza para aquele que está em seu centro.

A internet, ao contrário, é um território ainda livre. Uma fronteira inexplorada e selvagem, na qual a hegemonia do politicamente correto não teve tempo de se plantar. É, portanto, ali que Breitbart decide abrir as hostilidades: “Estou em guerra contra o Democrat Media Complex”, declara. “Eles sabem disso. E eu sei. É uma guerra aberta, e eu quero que desça a Estrela da Morte”.

Desde o começo, Breitbart joga o jogo em alto nível. Em 1995, ajuda Matt Drudge a lançar seu site na internet, o Drudge Report, que pouco tempo depois revelará ao mundo a relação de Bill Clinton com Monica Lewinsky. Alguns anos mais tarde, ele participa, com Arianna Huffington, do lançamento do Huffington Post. Por meio dessas experiências, Breitbart põe em funcionamento as técnicas fundamentais da guerrilha virtual: como achar as informações e captar atenção num meio altamente competitivo; como virar contra as mídias tradicionais o reflexo do que elas próprias noticiam; como multiplicar os cliques e os compartilhamentos até gerar um verdadeiro movimento de opinião.

Em 2005, Breitbart decide engajar-se individualmente na guerrilha ao fundar o Breitbart News, um site cuja ambição é ser o Huffington Post da direita. Sua força não está tanto na capacidade de pinçar informações, mas, acima de tudo, na habilidade de inseri-las dentro de uma narrativa coerente. Claro, um furo de notícia de tempos em tempos pode ser útil. Mas ele só servirá à causa se for uma faceta da guerra contra a hegemonia progressista. Recuperar a cultura é a obsessão de Breitbart. É por isso que ele dá destaque, nas atualidades que publica, a problemas de imigração, ao terrorismo, à crise dos valores tradicionais, tudo no esquema mais geral de uma única grande batalha contra o establishment, que inclui tanto democratas quanto republicanos moderados, ambos escravos da ortodoxia do pensamento único.

É durante esse período que suas relações com Bannon se tornam mais estreitas. Ambos partilham claramente a mesma visão de mundo. Assim, Bannon decide hospedar a redação de Breitbart em seus escritórios de Los Angeles e, em 2011, o apresenta a Robert Mercer, um milionário que aceita financiar a empresa, injetando nela dez milhões de dólares.

O site logo experimenta plena ascensão. Semeia escândalos – como o que revela o exibicionismo do deputado Anthony Weiner, jovem protegé dos Clinton – e se afirma rapidamente como um dos pontos de referência da direita radical americana. Mas, em 1º de março de 2012, a parceria entre Breitbart e Bannon se encerra de maneira trágica, quando o primeiro morre de parada cardíaca.

Sozinho, Bannon é forçado a tomar as rédeas do Breitbart News, o que faz com a energia habitual. “Facts get shares; opinions get shrugs” é seu slogan: algo como “Fatos ganham cliques; opiniões ganham desdém”. Bannon é um ideólogo tão convencido por suas próprias ideias que chega às vezes ao fanatismo – mas sabe muito bem que os velhos argumentos não bastam para ganhar a batalha cultural contra o establishment.

Tomemos como exemplo o casal Clinton, a dupla de poder inoxidável que, à época, reina em Washington há vinte anos e representa a besta-fera a ser abatida pela direita americana. Para fazê-lo – o que é indispensável, pois Hillary está na pole position para a sucessão a Obama – não se deve deixar cegar pelo ódio. Há duas décadas, os inimigos dos Clinton espalham as teorias mais inverossímeis, acusando-os de todos os tipos de perversidades, com o único resultado de se desacreditar, sem conseguir atingir o casal democrata. Agora, pensa Bannon, é preciso sair do gueto umbilical dos profissionais do ódio, a quem ninguém escuta mais, e conquistar a opinião pública num sentido mais abrangente. É a única maneira de juntar novos elementos à luta: construir meticulosamente um dossiê, com base em fatos reais, que desmoralize os Clinton aos olhos de seus próprios apoiadores, a começar pelas mídias do establishment.

Eis por que Bannon funda um think tank, o “Government Accountability Institute”, dirigido por Peter Schweizer. Com o apoio de Bannon, Schweizer passa meses acumulando informações sobre a “Clinton Global Initiative”, fundação de Bill que recolhe centenas de milhões de dólares por ano por meio de financiamentos vindos do mundo inteiro. Essa organização é o alicerce material do casal, mas também a plataforma de lançamento para a candidatura de Hillary às eleições presidenciais de 2016. Falando com os “gargantas profundas” do círculo clintoniano e cruzando os nós mais recônditos da Deep Web, Schweizer reconstitui certas passagens mais obscuras das atividades da CGI. Quando, por exemplo, o magnata das minas canadenses Frank Giustra doa milhões à fundação e depois, a bordo de seu jatinho, leva Bill Clinton para jantar com o ditador cazaque Nazarbayev, obtendo uma concessão para a exploração de jazidas de urânio no país. Ou na ocasião em que um outro doador financeiro da fundação obtém, em troca de seu altruísmo, a concessão da rede de dados móveis do Haiti, onde Bill coordena esforços de reconstrução depois do grande terremoto de 2010. 

Sem falar nas dezenas de bilionários com reputação duvidosa que financiam a fundação, ou dos cachês que Bill embolsa mundo afora por eventos públicos organizados em favor de algumas das piores ditaduras do planeta.

Os frutos dessa meticulosa investigação foram reunidos num livro, Clinton Cash, que iria se tornar um dos principais dossiês contra Hillary, combustível suficiente para alimentar, num primeiro momento, o desafio lançado por Bernie Sanders à esquerda, e, num segundo momento, a investida de Donald Trump.

Em vez de lançar o livro na plataforma Breitbart, o que o condenaria a ficar confinado às mídias de direita, Bannon decide dar exclusividade aos porta-vozes mais detestados do establishment: o primeiro entre eles, claro, foi o New York Times. Desde o início, as revelações contidas nos originais de Clinton Cash têm um impacto imenso sobre a opinião pública. Os clintonianos tentam desacreditar o livro, como já haviam feito em muitos outros casos, mas sem sucesso: os fatos revelados por Schweizer são muito bem documentados.

Nesse estágio, só resta às grandes mídias seguir as pistas lançadas por Bannon. E ele exulta: “Nós temos os 15 melhores repórteres investigativos dos 15 melhores jornais do país no encalço de Hillary Clinton!”. Claro, ele terá, em seguida, todo o tempo do mundo para desenvolver esse filão no “Breitbart”, transformando cada acusação contra Hillary numa grande balbúrdia destinada a gerar milhões de cliques – pois, por trás dessa fachada respeitável, Bannon utilizava nos EUA as lições de sua breve incursão no mundo dos videogames. Ele sabe que, sob a superfície da web, agitam-se correntes invisíveis mas muito poderosas, alimentadas pela frustração de milhões de indivíduos que se sentem à margem da sociedade e pela “cólera inata e surda” da América, da qual já falava Philip Roth em Pastoral americana. Ele crê ter encontrado, enfim, a isca ideal para pescar esse sentimento.

No início de 2013, a isca se materializa, de repente, na forma inesperada da pessoa de Zoe Quinn, desenvolvedora que está na origem de um videogame insólito. O jogo, “Depression Quest”, é um tipo de imersão virtual no mundo da depressão, que Quinn conhece por experiência própria. O objetivo é demonstrar que um videogame poderia ser algo mais que aventuras de soldados, ninjas e guerreiros medievais, e que as mulheres seriam capazes de trazer uma contribuição preciosa.

Os gamers, jogadores “de raiz”, não recebem bem a novidade. Para eles, puristas, videogames são aventuras violentas, reservadas essencialmente aos homens, e devem continuar assim. Quinn começa então a ser objeto de ataques na internet, que se transformam num furacão quando seu ex-namorado escreve uma mensagem sustentando que ela teria obtido comentários positivos sobre “Depression Quest” graças à sua relação com um jornalista. O “ex” assina, desse modo, a autoria do primeiro tiro do bombardeio de gamers que, às centenas de milhares, disparam insultos e ameaças de morte contra Zoe Quinn. “Da próxima vez em que você aparecer numa conferência, vamos atingir seu cérebro”, escreve um deles. “Você terá sequelas permanentes mas não graves o suficiente para impedir que continue a ter medo de nós para o resto de sua vida”. O ator Adam Baldwin chega a criar o hashtag #gamergate, no Twitter, para coordenar os ataques. Os trolls descobrem e compartilham o endereço e outras informações pessoais sobre Quinn nas redes, a ponto de ela ser obrigada a deixar sua casa. Todos os que tentam defendê-la se tornam, por sua vez, alvos de ataques violentíssimos. Entre setembro e outubro de 2014, são criados, só no Twitter, mais de dois milhões de mensagens contendo a hashtag #gamergate.

Não se trata mais de uma controvérsia. É uma guerra aberta. E o objeto de contestação vai bem além do caso específico. O verdadeiro problema é o seguinte: a quem pertence o mundo dos videogames? A todos aqueles, homens e mulheres, que querem participar, trazendo suas ideias e suas paixões? Ou ao núcleo de gamers puros e duros, alguns milhões de jovens ligados entre si por uma subcultura misógina e violenta – cultivada por anos de prática na internet e trocas nas plataformas como 4chan, 8chan e Reddit?

Essa guerra poderia se limitar ao mundo dos videogames. Mas não contava com Steve Bannon, que, fiel a seu personagem, passa por aquelas paragens com uma caixa de fósforos na mão. Para ele, o Gamergate é a chance sonhada para enfim recrutar os gamers na batalha contra o establishment político e midiático.

É assim que entra em cena Milo Yiannopoulos, de longe o personagem mais pitoresco da galeria de engenheiros do caos, apesar de essa ser um manancial de tipos. Inglês de trinta anos, homossexual, belo rapaz monstruosamente seguro de si, Milo, como chama a si próprio, é o cofundador de uma revista on-line dedicada às novas tecnologias, “The Kernel”, que ficou conhecida pelo seu approach irreverente. Seus admiradores o definem como “o cruzamento entre um pitbull e Oscar Wilde”, enquanto, aos olhos de seus adversários, ele é só um Narciso cínico, capaz de tudo para atrair atenção e impressionar seu público.

Seja o que for, Yiannopoulos compreende que o Gamergate é um imenso movimento sem rosto e decide se tornar esse rosto. Começa a espalhar que, nessa história, as verdadeiras vítimas não são Quinn e outros desenvolvedores e jornalistas, quase todos mulheres, apesar de terem sido alvos de milhares de insultos e ameaças. Não, as verdadeiras vítimas são eles mesmos, os trolls, esses guerreiros contemporâneos que se batem contra a censura progressista em nome da liberdade de expressão que, para Milo, deve ser absoluta. “Há um exército de programadoras e de ativistas feministas psicopatas”, escreve, “protegidas por blogueiros escravos do politicamente correto, que procura tomar conta da cultura dos videogames.” Nada mais normal, assim, que, diante de uma ofensiva desse gênero, os gamers procurem se defender.

Não é nenhuma surpresa que uma posição como essa seja capaz de atrair a atenção de Bannon. Aí está, finalmente, o elo que falta entre sua guerra contra o establishment e as massas desocupadas de trolls e gamers. Assim dito, assim feito: Bannon convoca Milo a seus escritórios em Washington.

“Quando eu o encontrei pela primeira vez, recorda, vi um personagem capaz de fazer conexões culturais como Andrew Breitbart. Ele tinha a coragem, o cérebro, o carisma – existe alguma coisa especial nas pessoas desse tipo. Elas têm, simplesmente, uma engrenagem extra. A diferença é que Andrew possuía um universo moral muito forte, enquanto Milo é um niilista imoral. Eu soube desde o primeiro instante que ele seria um fantástico meteorito.”

Enquanto espera o meteorito Milo cumprir sua trajetória, Bannon se empenha em captar sua energia. Milo é posto no comando de uma nova seção do site “Breitbart Tech” com uma missão bem precisa: “Você deve mobilizar esse exército. Vamos fazê-lo entrar pelo Gamergate ou outro caminho, e depois convertê-lo à política e a Trump”.

Milo não precisa ouvir duas vezes. “Nossos leitores estão cansados de serem taxados de trolls, de assediadores ou de misóginos somente porque não se conformam com as opiniões dos jornalistas”, proclama num vídeo de lançamento do “Breitbart Tech”. “Nós queremos assumir a defesa dos usuários do 4chan que desejam ficar anônimos, dos usuários do Reddit que lutam contra moderadores invasivos. Defenderemos os gamers contra todos aqueles que são estúpidos o suficiente para azucriná-los.”

Para Milo, assim como para Bannon, a batalha dos gamers integra um contexto mais amplo. As liberdades fundamentais, a começar pela liberdade de expressão, estão ameaçadas pela ortodoxia progressista. Assim, “os dissidentes anônimos de hoje” seriam como os autores dos Federalist Papers, os fundadores da democracia americana Alexander Hamilton e James Madison, que, no início, também escreveram utilizando pseudônimos.

Para evitar mal-entendidos, no dia do lançamento do Breitbart Tech, o site publica uma entrevista exclusiva com Donald Trump. “Com exceção de Hillary Clinton, graças ao escândalo de seus e-mails”, anuncia ironicamente a abertura da entrevista, “poucos candidatos à presidência se expressaram sobre temas tecnológicos durante esta campanha. Como comprova a entrevista exclusiva concedida por Donald Trump, em que fala sobre hacking, ciberguerra e inteligência artificial”.

A mensagem que o “Breitbart” faz passar aos gamers e a outros oriundos do universo digital é clara: seu mundo está em perigo, a poderosa máquina do politicamente correto e de censores democratas quer tirar tudo que você mais preza, a liberdade de expressão, o anonimato, ou seja, a essência do que vem definindo até aqui a cibercultura. O único meio de se salvar é fazer política. Unam-se a nós e a Trump para combater o establishment, as mídias e a política tradicional, para defender seus direitos e sua identidade.

Assim o soberanismo clássico se casa com a forma mais contemporânea de soberanismo digital. Ser “dono de si” não vale apenas para a fronteira com o México ou para as entradas de muçulmanos no país. Vale também para o ciberespaço, que deve continuar como é, sem interferências.

Os trolls são abertamente convidados a entrar em guerra. E, ao mesmo tempo, Milo se expande para bem além das fronteiras dos fóruns tecnológicos, transformando-se num personagem público integral.

Contas feitas, o esquema é bem simples. Yiannopoulos é um homossexual que declara jamais trabalhar com outros homossexuais porque “eles usam muitas drogas, têm relações sexuais em excesso, nunca vão trabalhar e vivem inventando desculpas. Quase piores que as mulheres”. Além disso, ele considera as lésbicas simples fanfarronas, mulheres em busca de afeto que deveriam se acalmar, pois a “homossexualidade feminina não existe geneticamente”. Yiannopoulos tem uma mãe judia e um marido afro-americano, mas flerta perigosamente com movimentos supremacistas e neonazistas americanos. Um vídeo o mostra cantando “America the Beautiful” num bar, sob aclamações de um público que faz a saudação nazista. Tecnicamente, Yiannopoulos é um imigrante, mas ele se declara inteiramente favorável à construção do muro na fronteira com o México e ao banimento dos muçulmanos. De fato, Milo tem um prazer maroto em explodir os pressupostos da esquerda identitária americana: “Eu sou um imigrante judeu e gay que só dorme com homens negros e que é verdadeiramente, verdadeiramente de direita. Isso deixa eles loucos!”

Acrescentemos que Yiannopoulos é um troll, capaz de ser expulso do Twitter por sua campanha de injúrias contra a protagonista de Os caça-fantasmas. Segundo Milo, a esquerda quer ser a polícia do humor porque não consegue controlá-lo, mas, na realidade, ela se arvora em juíza da sensibilidade das pessoas, com seu habitual complexo de superioridade. Mesmo que sejam cruéis, as palavras jamais fizeram nenhum mal às pessoas, segundo Yiannopoulos, que posa como grande defensor da liberdade de expressão. “É a única coisa realmente sagrada para mim”, diz. “Porque as fronteiras do que é considerado como discurso aceitável nos Estados Unidos se tornaram estreitas demais”. Para Milo, o trolling é “uma forma de jornalismo feito por qualquer um que não está sentado numa redação”, e os trolls são “as únicas pessoas que ainda dizem a verdade, como os bufões da Idade Média”: por trás da superfície da tela, revelam a nudez do poder.

Trump, ele próprio, é um troll. A polêmica sobre a certidão de nascimento de Obama já é uma forma de trolling, e o conjunto de sua campanha oficial segue a mesma linha. Em junho de 2015, ele irrompe na campanha eleitoral com duas manobras que teriam posto fim a qualquer candidatura tradicional. Primeiro, oficializa sua participação nas primárias republicanas com um discurso, aparentemente improvisado, contra os imigrantes mexicanos que define, entre outras coisas, como “estupradores”. Alguns dias depois, Trump se manifesta sobre o senador republicano John McCain, uma verdadeira instituição da política americana, com a auréola de respeito de todo o espectro constitucional. “Não é um herói de guerra”, diz Trump. “Porque ele foi capturado. Eu gosto das pessoas que não se deixam capturar.”

O discurso sobre os mexicanos ainda passava, mas um candidato republicano que “trola” McCain e os veteranos de guerra? Jamais se viu algo assim nas fileiras do Grand Old Party. A onda de indignação é imediata e violenta. O chefe do partido excomunga Trump em campo aberto: “Não há lugar em nosso partido ou em nosso país para comentários que ofendem aqueles que o serviram com honra”. Trump entra no índex de toda a classe política americana: indigno, miserável, repulsivo. Nas redações, os jornalistas exultam. Matt Taibbi, da Rolling Stone, relata: “Nós aguardamos agora que Donald adote a posição clássica e se submeta ao ritual expiatório das personalidades que deram um passo em falso, começando pelo Ato de Contrição Pública”.

É nesse momento que Trump, na contramão, faz algo absolutamente inédito. Não tenta de forma alguma se desculpar e afirma, sem pestanejar, que jamais disse que McCain não era um herói. “Se alguém é prisioneiro, eu o considero um herói”, ele diz. Como assim? Ele disse o contrário! O vídeo está aí! Os jornalistas se alarmam: como é possível que um candidato à Casa Branca negue a evidência?

E, no entanto, é assim. Trump supera o incidente McCain com a desenvoltura de um golden retriever e continua a conquistar apoios. Segue-se a longa série de gafes aparentes e mentiras comprovadas que o conduzirão triunfalmente às eleições de novembro de 2016. Depois do episódio dos veteranos, vêm os insultos machistas contra uma jornalista de televisão (“ela tem sangue saindo de tudo que é lugar”, diz o candidato); a imitação de um repórter com deficiência física que o criticou; os apelidos infantis com os quais ele homenageia os outros candidatos republicanos (Marco Rubio vira o “Pequeno Marco” e Ted Cruz, “Ted, o mentiroso”). Fazer campanha contra Trump significa ser arremessado num pátio de escola, onde o valentão da classe é semianalfabeto, mas também – sabe-se lá como – incrivelmente eficaz na arte de ridicularizar a professora e os intelectuais de óculos.

Os iniciados ficam desconcertados, mas o público adora (isso sem falar nos gamers ...) e recompensa seu favorito com classificações cada vez mais altas, permitindo a ele fazer campanhas com uma fração do dinheiro utilizado pelos outros para promover suas candidaturas.

O megafone de Trump é a incredulidade e a indignação das mídias tradicionais que caem em todas as suas provocações. Elas fazem publicidade para ele e, sobretudo, dão credibilidade à sua reivindicação, a priori absurda para um bilionário nova-iorquino, de ser o candidato anti- establishment.

Sem os gritos cotidianos e escandalizados dos comentaristas políticos, os insiders de Washington e os intelectuais vestidos de preto, seria difícil para Trump credenciar-se como porta-estandarte da raiva dos abandonados contra o sistema. Nessas condições, ao contrário, tudo fica mais fácil. Basta aos telespectadores da América rural observar a reação chocada das elites urbanas face à candidatura de The Donald para se convencerem de que, realmente, esse homem pode representar seu cansaço com tudo o que vem de Washington.

A campanha de Hillary emprega mais de mil pessoas. A de Trump, dez vezes menos. De fato, ele só precisa ser ele mesmo para catalisar a atenção das mídias e do público, enquanto os “estrategistas” de Hillary informam que “estão trabalhando para que ela pareça mais espontânea.”

O grande mérito de Trump é, no fundo, o de ter entendido que a campanha eleitoral era um formato televisivo de mentirinha, produzido por diletantes e pondo em cena personagens tristes e sem vida, que não teriam provavelmente passado numa pré-seleção da Roda da Fortuna, e ainda menos nas de um reality show seguido por milhões de fãs de Kim Kardashian e de Justin Bieber.

É nessa paisagem morna, dominada por diretores e atores de segunda categoria – a péssima Clinton, o péssimo Bush e algumas aparições improvisadas de personagens com o entusiasmo dos que fazem a fila no correio, pensando “mais cedo ou mais tarde, minha vez vai chegar” – que Trump surge no salão como Clint Eastwood num filme de faroeste.

“Eu trabalho no mundo da dramaturgia há dez anos”, declarou um produtor ao New York Times , “e posso dizer a vocês que Donald é exatamente o que procuramos em nossos castings. Ele não é complicado e é autêntico. Você pode entender sua personalidade ouvindo-o falar por quinze segundos. Seu emblema é a autopromoção. Seus prédios são altos e dourados, com o nome TRUMP escrito em letras maiúsculas e garrafais [...] Durante as campanhas políticas, há conflitos, mas esses são às vezes nuançados demais para o grande público. Trump resolveu o problema. Seus insultos pessoais viraram sua marca singular. Até quando ele diz se conter, como quando declara, a respeito do senador Rand Paul: ‘Eu nunca o ataquei por causa de seu físico – e, no entanto, acreditem, motivo não faltaria’”.

Na América de 2016, os critérios de avaliação dos políticos passaram a ser os mesmos utilizados para as outras celebridades: primeiro, a capacidade de atrair atenção – e nesse quesito Donald é um mestre; em segundo lugar, a capacidade de identificação – “o quanto eu me reconheço nele?”.

A autenticidade dos participantes é a obsessão de todos os reality shows. É essa mesma condição que, como que por acaso, virou a preocupação principal dos eleitores em relação àqueles que participam do reality show da política.

Sob esse perfil, a postura de Trump é calcada, obviamente, num componente de encenação, mas ela contém também um verdadeiro elemento de espontaneidade. Bem antes de ele ser candidato, um investidor estrangeiro um dia lhe perguntou o que quer dizer “white trash”, alcunha ofensiva usada por alguns esnobes para se referir aos brancos do Meio-Oeste, vistos como incultos e geralmente obesos, a maior parte do tempo inertes diante da TV. “São pessoas exatamente como eu”, respondeu Trump, “com a diferença de que são pobres”.

Por meio da brutalidade de sua linguagem e de suas provocações, através de seus discursos improvisados e de seus tweets, de suas piadas injuriosas e suas fanfarronices ingênuas, Trump exprime uma autenticidade que o distingue dos políticos profissionais, em torno dos quais o mundo parece deslizar com a costumeira e inabalável indiferença.

Donald é, com certeza, um pouco louco, mas é uma pessoa de verdade, não a montagem artificial de conselhos de assessores. Ele diz as coisas como elas são. Não tem tempo para o politicamente correto e para essa América que, afirma, se perde em tagarelices sobre os banheiros transgênero e as hortas biológicas enquanto as fábricas fecham e os empregos são transferidos para o México e o extremo-oriente. O estilo agressivo de Trump transmite um sentimento de força. De que ele, sem medo de desafiar as convenções, lutará com a mesma energia para mudar as coisas.

Não espanta que essa atitude conquiste a adesão de Milo e da vasta comunidade de gamers os mais radicais. Durante toda a campanha, Trump continuará a cimentar essa aliança, retuitando regularmente mensagens vindas dos redutos mais remotos da blogosfera. Em troca, os gamers e blogueiros da direita alternativa vão oferecer ao candidato republicano diversos serviços essenciais. Num primeiro momento, criarão slogans e campanhas virtuais. Também vão romper numerosos tabus e agir de maneira que as opiniões antes julgadas extremas impregnam o debate público. Em parte, graças à força das redes sociais, mas também aos reflexos condicionados das mídias tradicionais, que caem direitinho em todas as armadilhas ao repercutir, indignadas, qualquer tipo de provocação.

O modelo Milo coincide com o modelo Trump. Nenhum dos dois poderia funcionar sem os gritos de indignação do establishment, que, de um lado, propagam os argumentos da nova direita e, do outro, confirmam que tais ideias são, efetivamente, antissistema. Como o cardeal Mazarin, que tinha como preceito “ex inimici salus mea”, a salvação de Donald Trump vem, antes de tudo, de seus inimigos. Um bilionário poderia parecer não confiável aos olhos da gente comum, mas a hostilidade violentíssima do establishment e dos jornalistas contra ele encheu seus galões de combustível fornecido pelo eleitorado popular.

A contribuição das tropas digitais de Bannon e Milo não se limita a esse aspecto. Ao investir maciçamente em sites de informação e em redes sociais, os trolls da direita alternativa criam um clima de intimidação na internet. Assim, qualquer observador ou jornalista que ouse tomar posição contra eles é bombardeado por insultos e ameaças. É o esquadrismo on-line, praticado há muito tempo pelos trolls populistas na Itália. Contribui para influenciar o clima, a atmosfera na qual o debate é conduzido. Ou, melhor ainda, impede qualquer debate de fundo. A Liga Antidifamação calculou que 2,6 milhões de tweets antissemitas foram difundidos na internet durante a campanha, a maior parte enviados a jornalistas e personalidades que se opunham a Trump.

As hordas digitais prestam também serviços mais pontuais ao candidato republicano. No primeiro debate televisivo com Hillary, por exemplo, eles se mobilizam para alterar os resultados das sondagens on-line feitas pelos principais órgãos de imprensa. É assim que, mesmo se perdendo nas sondagens telefônicas tradicionais, Trump triunfa naquela noite em todos os resultados on-line. Time, CNBC, Fortune, The Hill e os outros veículos de imprensa com base na internet o declaram vencedor, e o próprio candidato pode, sem medo, tuitar: “Realmente, uma grande honra. As pesquisas sobre o debate dizem que o MOVIMENTO é vencedor!”.

Nos próximos capítulos, veremos que a campanha de Trump recorreu, na internet, a outras ferramentas, mais sofisticadas, para promover o candidato republicano e desencorajar os apoiadores de Hillary. E diferentes investigações em curso nos Estados Unidos estão demonstrando o papel desempenhado pela Rússia durante as eleições. Mas, na origem, o triunfo inesperado do candidato mais improvável às presidenciais de 2016 continua, antes de tudo, a ser fruto de uma operação política e cultural por muito tempo dissimulada, antes de emergir à luz do dia.

Por isso, quando, no primeiro encontro cara a cara entre os dois candidatos à Casa Branca, Hillary Clinton acusa Trump de viver em sua própria realidade, Steve Bannon não consegue evitar um sorriso. É certo que Donald tem “uma concepção narrativa da verdade”, que lhe permite adotar um comportamento bastante criativo em comparação aos fatos reais. Mas a realidade na qual ele vive, e que constrói dia após dia com seus one man shows improvisados e seu fluxo contínuo de tweets, coincide com a de milhões de eleitores, espalhados pelos quarenta estados que não dão nem para o Atlântico nem para o Pacífico. E que os habitantes privilegiados das regiões costeiras apelidam, com desprezo, de flyovers (ou “sobrevoados”). Milhões de homens americanos, brancos, trabalhadores, habituados, há gerações, a se considerarem a espinha dorsal da nação. E que, de repente, se tornaram motivo de embaraço para as “classes criativas multiétnicas que dominam a economia e as mídias enquanto bebericam capuccinos e sucos de fruta orgânicos nos cafés de Manhattan e de Palo Alto”.

Hillary e os liberais, que falam frequentemente de fake news e de bolhas informativas, não haviam compreendido ainda o problema. Claro, os filtros cognitivos existem. Mas a verdadeira bolha, aquela que impede que se apreenda corretamente a realidade no outono de 2016, não é a formada por Trump, o Breitbart e a galáxia de sites conspiracionistas da direita alternativa americana. É a bolha dos democratas, dos liberais e das mídias das costas Leste e Oeste que repetem, incansavelmente, que é impossível chegar à Casa Branca insultando minorias, mulheres, imigrantes e deficientes. Prova de uma incompetência sem precedentes.

“É um grupo de pessoas que falam entre si e que não têm a menor ideia do que se passa. Se o New York Times não existisse, CNN e MSNBC não saberiam o que fazer. O Huffington Post e todo o resto se baseiam no NYT. É um circuito fechado, do qual Hillary Clinton tira todas as suas informações – e no qual baseia sua segurança. É essa a nossa oportunidade.” Essa foi a intuição capital de Bannon: a vitória de Trump é possível porque o mainstream não consegue sequer imaginá-la. “Se eles dizem que não é possível, significa que nós podemos chegar lá.”

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