terça-feira, 22 de novembro de 2022

Os Engenheiros do Caos - Cap 5 - Um Estranho Casal em Budapeste

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Um Estranho Casal em Budapeste

Onze de janeiro de 2015 é um dia especial. Uma cidade, Paris – e com ela a França inteira –, desperta após o horror do atentado à redação do Charlie Hebdo. O presidente François Hollande convida chefes de Estado e de governo do mundo inteiro a unir-se a ele para aquela que será a maior manifestação vista nas ruas de Paris desde a Libertação, em 1944. Dois milhões de pessoas desfilam ao longo do boulevard que leva o nome do autor do Tratado sobre a tolerância, Voltaire. O primeiro-ministro inglês, a chanceler alemã, o presidente do conselho italiano, unidos, abraçam emocionados seu colega francês. Já percebem, talvez, que foram lançados, pela segunda vez desde o 11 de Setembro de 2001, numa época imprevisível, violenta, que vai, em breve, atingi-los. Mas escolheram, por ora, entrar juntos na tempestade e brandir com força os valores de liberdade e de abertura que marcaram a construção europeia em seus melhores momentos.

Só um homem, entre todos os líderes europeus, mantém certa distância. E não é por timidez. Muito pelo contrário, Viktor Orban revelou-se ao mundo numa manifestação na primavera de 1989. Na época com 26 anos, ele gritou, de um palanque instalado na Praça dos Heróis em Budapeste, palavras de ordem exigindo a liberdade de seu povo e a retirada imediata das tropas soviéticas do território húngaro.

Mas naquele dia, em Paris, Orban se recusa a jogar o jogo. “O espírito de 11 de janeiro” é muito pouco para ele. Orban deseja, mesmo, é marcar sua diferença. “A imigração econômica”, declara, à margem da manifestação, “é uma coisa ruim para a Europa. Nós não deveríamos reconhecer nela nenhum mérito, porque só traz desordem e perigo aos povos europeus [...] Enquanto eu for o primeiro-ministro e meu governo estiver constituído, não permitiremos que a Hungria se torne o destino de imigrantes nas bases pensadas por Bruxelas. Não queremos entre nós nenhuma minoria com patrimônio cultural diferente do nosso. Nós queremos que a Hungria continue a ser dos húngaros.”

Quando Orban pronuncia essas palavras em Paris, a imigração ainda está bem distante das preocupações dos húngaros. As pesquisas dizem que apenas 3% dos eleitores consideram o tema prioritário. Mas, bruxo político visionário, o primeiro-ministro sabe que se encontra, aí, um filão de ouro. Basta explorá-lo, e ele sabe como – e, sobretudo, com quem – fazê-lo.

À primeira vista, Arthur Finkelstein é a antítese de Viktor Orban. Se um é barulhento e falastrão, outro é reservado e obcecado pela discrição. A CNN chegou a compará-lo a Keyser Söze, o vilão do filme Os suspeitos que ninguém jamais encontrou pessoalmente: “Digno de Hollywood, um personagem capaz de abater o adversário mais forte, mas tão secreto que pouquíssimos tiveram a chance de vê-lo realmente”. Assim, depois de quarenta anos de carreira passados nas altas esferas do poder, existem raras fotos e entrevistas de Finkelstein para comprová-lo. Quando ele vai a um hotel, registra-se sob uma identidade que não é a sua, e a sociedade da qual é dono não leva seu nome. Se Viktor reivindica origens provincianas, com seu estilo rude e viril de ex-jogador de futebol que a vida endureceu à base de golpes nas tíbias, Arthur é um judeu homossexual de Nova York apaixonado por ópera e literatura russa.

E, no entanto, mesmo que tudo os separe, os dois foram feitos um para o outro. Como Orban, Finkelstein é uma criança prodígio que milita, desde muito jovem, na ala dura do Partido Republicano. Sem ter completado vinte anos já trabalha para Barry Goldwater, o candidato ultraconservador à Casa Branca, depois para Richard Nixon. Em 1976, tem um papel decisivo na campanha para as primárias que projeta, pela primeira vez, o governador da Califórnia Ronald Reagan na cena nacional. Quatro anos mais tarde, ele irá se tornar um dos seus conselheiros políticos mais próximos na Casa Branca, desenvolvendo uma atividade de comitê que o fará eleger dezenas de membros do Congresso e de governadores de vários estados americanos.

Já nessa época, seu método é o microtargeting. Ou seja, análises demográficas sofisticadas e sondagens de boca de urna entre os eleitores das primárias, que vão permitir identificar os diversos grupos para os quais devem ser enviadas mensagens segmentadas. O Facebook ainda está longe, mas Finkelstein utiliza maciçamente as cartas em papel e o telemarketing para mapear os partidários em potencial de seus clientes. A uns ele envia mensagens mais moderadas; com outros, pesa nas tintas e acentua certos aspectos do programa ou da personalidade dos candidatos que eles apoiam.

Mas o verdadeiro talento de Finkelstein consiste, desde o começo, não tanto em promover seu candidato, mas em destruir seu adversário. Nas suas mãos, as negative campaigns, que se lançam ao ataque jogando os holofotes sobre os defeitos dos oponentes, viram uma forma de arte. Quando, por exemplo, é o caso de eleger Al D’Amato, um republicano sem nenhum carisma, numa circunscrição de forte tendência democrata, Finkelstein explica: “Eu não tinha muito material para trabalhar. Se você conhece D’Amato, você sabe do que estou falando. Eu não podia, portanto, pôr suas qualidades em evidência. Então, decidi mostrá-lo o menos possível. Eu jamais o levei aos estúdios de televisão. Nem uma única vez”. Por outro lado, demolir seus adversários não foi difícil. Primeiro, elimina-se o senador em fim de mandato, um membro da classe A de certa idade descrito por Finkelstein como uma espécie de cadáver ambulante. Depois, ataca-se o rival democrata de D’Amato, o procurador-geral do Estado. “Um liberal sem qualquer esperança”, nas palavras de Finkelstein – o que, na sua linguagem, significa um elitista hipócrita, alheio à realidade e ocupado em ditar leis com o dedo mindinho levantado, enquanto a verdadeira América fundamenta desde sempre sua grandeza na iniciativa pessoal, livre de regras e de burocracia.

Para insistir nesse ponto, Finkelstein grava um anúncio na TV. Mas ele não o faz com D’Amato, sempre cuidadosamente mantido longe das câmeras, mas com a mãe do candidato, municiada de sacolas de supermercado. Ela encarna, assim, as dificuldades da vida cotidiana da gente simples ignorada pela esquerda caviar. No decorrer dessa campanha, como em dezenas de outras, Finkelstein transforma o adjetivo “liberal” em insulto. Ao fazê-lo, ele contribui para a vitória de um batalhão de candidatos ultraconservadores e para a derrota de verdadeiros ícones do Partido Democrata, como Frank Church, George McGovern e Mario Cuomo – “liberal demais e durante muito tempo” é o slogan vencedor que Finkelstein murmura no ouvido de seu adversário desconhecido, George Pataki.

Em poucas décadas, Finkelstein vira uma lenda nos primeiros círculos do poder republicano e forma uma geração inteira de spin doctors, que terão em seguida um papel central nas vitórias sucessivas de George W. Bush e Donald Trump. Os dois principais assessores indiciados no inquérito sobre a interferência russa em favor de Trump, Paul Manafort e Roger Stone, foram, ambos, formados na escola de Finkelstein.

Em meados dos anos 1990, Finkelstein começa também a exportar seus dons para além das fronteiras dos Estados Unidos. Em 1996 ele desembarca em Israel, onde encontra uma situação ainda mais explosiva que de hábito. O primeiro-ministro, Yitzhak Rabin, acaba de ser assassinado por um judeu fanático que se opõe aos acordos de paz que ele concluiu com os palestinos. Seu ministro das Relações Exteriores, o prêmio Nobel da Paz Shimon Peres, o sucede. Peres é uma figura moderada, mundialmente reconhecida, para quem todos preveem uma vitória com folga nas próximas eleições, marcadas para a primavera. Mas Finkelstein não se deixa abater. Seu candidato, Benjamin – vulgo “Bibi” – Netanyahu é considerado um extremista inexperiente e pouco confiável. Num primeiro momento, Arthur o obriga a manter os cabelos grisalhos, para lhe dar uma aparência mais respeitável. “O aspecto físico é importante”, ele diz. “O candidato mais alto ganha as eleições em 75% dos casos”. Em seguida, inicia o trabalho habitual de demolição do adversário. “Peres quer dividir Jerusalém” e dar a metade da cidade aos palestinos: eis sua linha de ataque.

Com uma campanha violentíssima, totalmente inédita em Israel, Finkelstein pinta Shimon Peres como um traidor da pátria, impregnado das habituais ilusões piedosas que caracterizam os liberais do mundo inteiro. No lado oposto, o slogan criado para o candidato conservador é simples e eficaz: “Netanyahu é bom para os judeus”. Em suma, só ele é um verdadeiro patriota, e só aqueles que estão com ele podem ser considerados como judeus de verdade. Os outros nada mais são que liberais, frágeis, ou, pior, cúmplices dos árabes. Pouco importa se 20% dos israelenses são, eles próprios, árabes. Se ainda assim é possível cimentar o bloco do verdadeiro povo israelense por trás de seu candidato, Finkelstein renuncia sem problemas, e com o coração leve, aos seus votos. Espantosamente, a manobra funciona: Netanyahu conquista a maioria graças a um punhado de votos de diferença e é eleito primeiro-ministro.

Nos anos seguintes, Bibi continuará a fortalecer sua hegemonia política utilizando a simples linha divisória estabelecida por Finkelstein: nós contra eles, eles contra nós, o povo de um lado, seus inimigos do outro. Quem não está com Netanyahu não é um judeu de verdade.

Durante esse período, a lenda de Arthur Finkelstein, o Keyser Söze da direita nacionalista, continua a crescer até atingir as fronteiras do Leste Europeu e do extinto império soviético. O spin doctor corre de um lado para o outro, da República Tcheca à Ucrânia, da Áustria ao Azerbaijão, e onde quer que vá exibe seus talentos em campanhas difamatórias. Às vezes com leveza, como na Albânia, onde produz uma peça publicitária que põe lado a lado um lutador de sumô, um canguru e o adversário de Finkelstein. “O que estes personagens têm em comum?”, pergunta a voz em off. “Nenhum deles sabe nada sobre a Albânia”. Ao recordar a campanha, Finkelstein ri até hoje. “O candidato se irritou”, conta. “Convocou uma entrevista coletiva para dizer que nós o havíamos comparado a um animal, a um canguru! Depois disso é que todo mundo queria mesmo ver o anúncio.” Em outros contextos, uma abordagem mais dura se impõe. Em 2009, Finkelstein chega à Hungria, onde o aguarda aquele que será seu principal cliente e, talvez, o espírito político mais próximo do seu na cena internacional.

Como Finkelstein, Orban é um discípulo de Carl Schmitt – a política consiste, antes de tudo, em identificar o inimigo. É sobre essa ação fundamental que se constroem um percurso e uma comunidade de pessoas unidas numa mesma luta.

Em 2009, o inimigo é identificado com clareza. É a Europa, que não poupou a Hungria da humilhação de uma crise financeira da qual ela só consegue sair com a ajuda do FMI, que impõe medidas de austeridade que sacrificam as classes médias. No comando do país está Gordon Bajnai, um tecnocrata empurrado por Bruxelas e pelos mercados, que começa a reduzir salários do funcionalismo e aposentadorias.

Orban, que já governou a Hungria durante quatro anos com uma plataforma nitidamente pró-europeia, entendeu que é chegado o momento de virar o leme. Com a ajuda de Finkelstein, ele constrói uma campanha intensiva contra os liberais que traíram o povo e conduziram o país à bancarrota por causa de sua corrupção e da submissão aos interesses estrangeiros. A Hungria não é uma colônia, entoa Orban vigorosamente. Depois de ter suportado a ocupação dos turcos, dos habsburgos e dos soviéticos, ela não aceitará ser escrava de Bruxelas. E Bajnai, o tecnocrata sustentado pela esquerda, é uma presa fácil para a campanha negativa orquestrada por Finkelstein.

Na primavera de 2010, Orban ganha olimpicamente as eleições, conquistando 57,2% dos votos. No clima superaquecido de uma campanha negativa e raivosa, 17% dos votos vão, por sua vez, para o partido xenófobo Jobbik. Concretamente, três quartos do eleitorado escolhem, naquele ano, um partido de direita ou de extrema-direita. Os velhos partidos de centro-direita e de centro-esquerda que dominaram a cena desde 1989 foram mandados de volta para casa, e os socialistas despencam de 46% para 19% dos votos. Assim, na Hungria se materializa, anos mais cedo, o cenário que irá se impor em seguida em outros países europeus.

Desde o início, Orban apresenta a vitória não como uma simples alternância, mas como o prelúdio da revolução que permitiu ao povo finalmente tomar o poder. Um Manifesto pela Cooperação Nacional, no qual “o trabalho, o lar, a família, a saúde e a ordem” são indicados como pilares do “novo sistema nascido da vontade popular”, é votado pela maioria parlamentar e exibido nos prédios públicos. A Constituição é reescrita para acelerar os procedimentos (a partir de então, uma lei poderá ser aprovada em poucas horas) e para centralizar o poder (as cortes de Justiça passam a se submeter ao controle do Executivo).

Orban se apoia com firmeza no espírito de revanche de uma nação que, no dia seguinte à Primeira Guerra Mundial, foi amputada em dois terços de seu território e dois quintos de sua população. Após o Tratado de Trianon (1920), mais de três milhões de húngaros se encontram em países estrangeiros: Romênia, Tchecoslováquia e Iugoslávia. Desde sua entrada em vigor, o governo do povo de Orban confere cidadania a todos os húngaros que vivem no exterior e proclama o 4 de junho, data de assinatura do Tratado de Trianon, como “Dia da solidariedade nacional”. A partir daí, os cidadãos húngaros dos países vizinhos passam a ser os componentes principais e mais sólidos do eleitorado de Orban: nas eleições de 2014, 95% deles votarão no Fidesz, partido do primeiro-ministro.

Mas é a cidadania como um todo que é mobilizada permanentemente pela “luta em prol da libertação nacional”, posta em cena por Orban e seus conselheiros. Taxas especiais são impostas à atividade das multinacionais estrangeiras. Comprar terrenos agrícolas passa a ser, para os que vêm de fora, quase impossível. As mídias, privadas ou públicas, são postas sob controle do poder executivo. Tudo isso em flagrante violação das regras mais elementares do Mercado Comum europeu.

Cada vez que as instituições europeias tentam, timidamente, fazer ouvir sua voz, Orban aproveita para despertar as memórias mais dolorosas da história da pátria. “Nós conhecemos bem a natureza dessa ajuda não solicitada oferecida pelos camaradas, e nós a percebemos mesmo quando ela não se apresenta em uniformes com ombreiras, mas em ternos bem cortados”, declara, por exemplo, durante a festa nacional de 2012.

Surfando na onda da luta pela libertação popular, Orban ganha de novo as eleições em 2014 e, graças à nova lei eleitoral, seus 45% de votos se transformam em 90% das cadeiras no parlamento (96 em 106). Mas, a partir desse momento, algo se quebra. Nada mais funciona: uma série de escândalos de corrupção atingem personalidades próximas do primeiro-ministro; nas eleições parciais, o Jobbik conquista cadeiras em detrimento do partido do governo; as ruas de Budapeste passam a ser palco de imensas manifestações de jovens que catalisam e tornam visível o descontentamento acumulado com o “governo do povo”. Em alguns meses, o Fidesz despenca nas pesquisas até atingir o piso de 20%.

“Devemos mudar o esquema”, repete Finkelstein, mesmo que Orban já tenha entendido. Num primeiro instante, ele tenta desviar o debate na direção da pena de morte. Por que não a restabelecer, para tornar ainda mais forte a retomada da revolução nacional?

Mas o público reage friamente e o debate não decola.

 Estranhamente, o tema não excita os espíritos. Orban e Finkelstein sabem muito bem que precisam é de um novo inimigo, e os atentados vêm como uma solução sob medida para os anseios da “causa”.

Graças a um passe de mágica, o Islã, encarnado pelas fisionomias soturnas dos imigrantes chegados da África e do Oriente-Médio, passam a ser o novo inimigo número 1. O único senão é que na Hungria o problema não existe, ou é invisível. Os estrangeiros não representam mais que 1,4% da população húngara e, entre eles, a quantidade de muçulmanos é ínfima.

Pouco importa: Finkelstein jamais se deixou abater pela realidade. “A coisa mais importante”, ele diz numa entrevista concedida em Praga, “é que ninguém sabe nada. Em política, o que você percebe como verdade é que é a verdade. Se eu digo a vocês que é um prazer estar aqui, porque deixei Boston, onde estava nevando e agora estou em Praga, onde o sol brilha, vocês vão acreditar. Porque vocês sabem que hoje, aqui, está fazendo um dia bonito. Se, ao contrário, eu digo que estou triste de estar aqui porque deixei Boston sob sol forte e em Praga está nevando, vocês não vão acreditar, porque basta olhar pela janela e acreditar que está nevando em Boston porque eu menti a vocês sobre Praga. É isto: um bom político é um sujeito que vai dizer uma série de coisas verdadeiras antes de começar a dizer uma série de coisas falsas, porque assim vocês vão acreditar em tudo o que ele diz, verdades ou mentiras”.

Assim que Orban volta de Paris, a máquina de propaganda dá a partida. Com seus colaboradores locais, Finkelstein concebe um questionário que será enviado a todos os eleitores, dentro de uma “consulta nacional sobre o terrorismo e a imigração”. Oito milhões de cidadãos recebem em sua caixa de correio um formulário oficial com questões do tipo: “Alguns dizem que existe uma ligação entre a má gestão da imigração por parte de Bruxelas e a escalada do terrorismo. Você partilha dessa opinião?”.

Ao mesmo tempo, Finkelstein organiza uma gigantesca campanha publicitária com mensagens teoricamente endereçadas aos imigrantes, mas escritas em húngaro e rigorosamente pensadas para influenciar os eleitores. As paredes do país inteiro são cobertas de dizeres em letras maiúsculas: “Se você vem para a Hungria, você não pode roubar o trabalho dos húngaros”. “Se você vem para a Hungria, você tem o dever de respeitar nossa cultura!”

Diferentemente de outros dirigentes europeus tomados de surpresa pela crise migratória de 2015, Orban e Finkelstein estão prontos. Seguindo o princípio de Maquiavel que aconselha a jamais deixar passar uma crise, eles criam as condições perfeitas para transformar os fluxos de refugiados sírios numa máquina de gerar adesões. E, a crer que a sorte sorri aos audaciosos, a invasão realmente acontece. Nesse ano, as entradas irregulares no país vão se multiplicar por oito, passando de 50.000 no ano anterior a mais de 400.000.

Na verdade, a grande maioria dos que chegam não tem qualquer intenção de permanecer na Hungria. Desejam apenas atravessar o país para se dirigir à Alemanha e outros países do Norte da Europa. Mas Orban precisa de um pavio para acender sua explosiva mensagem de tolerância zero com a imigração. Não se contenta em fazer aprovar pelo parlamento, em tempo recorde de duas horas, uma lei para construir uma barreira de 175 quilômetros ao longo da fronteira: impõe, além disso, o fechamento da estação ferroviária de Budapeste. Consequentemente, os imigrantes que queriam só atravessar o país continuarão bloqueados na capital húngara, e obrigados a empreender uma longa marcha para chegar à fronteira austríaca.

Em termos políticos, a linha intransigente de Orban, que chega no momento ideal ao coração do clima de paranoia gerado pelas campanhas de Finkelstein, funciona perfeitamente. A popularidade do primeiro-ministro dispara nas pesquisas, enquanto a extrema-direita de Jobbik entra em curto-circuito sob efeito de um governo que recuperou suas principais linhas-mestras.

Os spin doctors dão instruções precisas à televisão estatal sobre a maneira como a crise deve ser coberta. As crianças não devem nunca ser filmadas – oficialmente, para protegê-las, mas na realidade para não provocar empatia demais com os recém-chegados. O termo “refugiados” não deve jamais ser utilizado, e mesmo o termo “bevandorlo”, que designa desde sempre os imigrantes, é abolido e substituído por “migrantes”, palavra de origem latina que soa enfaticamente estrangeira no idioma húngaro.

Nada é deixado ao acaso, para que a urgência se transforme numa onda de popularidade a favor do primeiro-ministro. No entanto, em março de 2016, sob o impulso da Alemanha, a União Europeia assina um acordo controverso com a Turquia para bloquear o fluxo de imigrantes sobre a rota dos Bálcãs. Teoricamente, a crise estaria resolvida. Mas depois de ter encontrado o bom filão, Orban não tem nenhuma intenção de renunciar a ela tão facilmente.

Por sorte, a União Europeia anuncia um plano de distribuição dos refugiados que continuam a chegar à Itália e à Grécia, segundo o qual a Hungria deveria acolher 1.294 pessoas. O número é irrisório, mas para Orban é a ocasião sonhada para insistir em sua guerra de civilizações.

Assim que o plano de Bruxelas é lançado, Orban marca, para 2 de outubro, a realização de um referendo para aprová-lo ou rejeitá-lo. Ao mesmo tempo, a campanha dos cartazes recomeça – ela ocupará metade de todos os espaços publicitários do país, com slogans do tipo “Os ataques em Paris foram cometidos por imigrantes” ou “Desde a crise da imigração, as agressões contra as mulheres dispararam”. A força dessas mensagens reside no fato de que elas estão em todos os lugares, basta um passo em qualquer direção para se deparar com um cartaz gritante. Durante o verão, as transmissões ao vivo do Campeonato Europeu de Futebol e dos Jogos Olímpicos – com grandes audiências – são interrompidas de hora em hora por boletins informativos dedicados aos imigrantes e a seus alegados delitos. Paralelamente, a televisão estatal entrevista atores e esportistas que, unânimes, explicam por que votarão “Não” no Referendo.

Sem nenhuma surpresa, o “Não” ganha com 98% dos votos, mesmo que menos da metade dos eleitores tenha ido às urnas. Em pouco menos de dois anos, Orban conseguiu transformar seu país numa espécie de bunker e engajar outros países da região, que assinaram, no vilarejo húngaro de Visegrado, um pacto histórico opondo-se a qualquer forma de redistribuição de refugiados. Orban também tem seus convertidos na Europa ocidental, onde começa a ser percebido como o porta-estandarte de um modelo alternativo abertamente oposto à tecnocracia de Bruxelas.

Os contornos do modelo são claros. O primeiro-ministro húngaro os delimitou, em 2014, num discurso que entrou para os anais: “A nação húngara não é um simples aglomerado de indivíduos, mas uma comunidade real, que deve ser organizada, reforçada e, na prática, construída. Nesse sentido, o novo Estado que estamos em vias de erguer na Hungria é um Estado ‘iliberal’, não um Estado liberal. Ele não nega os valores fundamentais do liberalismo, como a liberdade, mas, por outro lado, não faz dessa ideologia o elemento central da organização estatal”.

Na prática, para Orban, o Estado deve estar a serviço do povo, entendido como a maioria dos húngaros. E ninguém, seja um juiz, um jornal ou uma ONG, pode se opor ao exercício da vontade em nome da defesa de qualquer minoria ou de qualquer princípio constitucional. Segundo ele, “hoje o liberalismo na Europa não se concentra na liberdade, mas no ‘politicamente correto’, que se tornou uma ideologia esclerosada, dogmática. Os liberais são os inimigos da liberdade”. Os contrapoderes são “uma invenção americana que a Europa adotou por mediocridade intelectual”.

As palavras de Orban têm o mérito de serem claras. Mesmo que continue um pouco difícil ouvi-las saindo da boca de um ex-estudante rebelde de 1989 chegado às pressas de Oxford, onde, à época, estudava graças a uma bolsa da fundação Soros, oferecida para controlar jovens liberais, anticomunistas e pró-europeus de Budapeste.

Como Trump e como o Movimento 5 Estrelas, Orban é antes de tudo um político oportunista, guiado por um algoritmo e com sede de poder. Se o liberalismo e a tolerância lhe tivessem garantido esse poder, sua bússola interna o levaria, sem dúvida, a respeitar escrupulosamente os princípios da liberal-democracia.

Mas no caso de Orban talvez haja um fator a mais. Para entender do que se trata, convém deixar-se guiar por Ivan Krastev, um dos observadores mais perspicazes da cena política pós-soviética. Após a queda do Muro de Berlim, segundo Krastev, as elites do Leste Europeu se lançaram num processo de imitação do Ocidente, esperançosas de recuperar o atraso acumulado em meio século de comunismo. Infelizmente, fora os transtornos materiais que causou na vida dos cidadãos dos ex-satélites soviéticos, esse processo teve um custo psicológico brutal. O que faz dessa imitação algo tão doloroso, de acordo com Krastev, não é só o pressuposto segundo o qual o imitador é inferior ao modelo, mas também o fato de dar ao Ocidente o direito de julgar o sucesso, ou o fiasco, dos países do Leste a partir de seus padrões ocidentais. Sob esse ângulo, a imitação se traduz em uma perda de soberania.

Seria, portanto, natural que em certo momento a frustração acumulada pelos imitadores produzisse consequências negativas. Mais ainda se considerarmos que a admiração das elites da Europa Oriental se baseava, ao menos em parte, num mal-entendido. Aos olhos dos conservadores húngaros, tchecos e poloneses, a Europa Ocidental representava um ideal porque, ao contrário do comunismo, garantia o respeito às tradições e à religião. Não é de estranhar que eles tenham se sentido enganados quando perceberam que a norma, no Ocidente, era o multiculturalismo e os casamentos homossexuais. As crises dos últimos anos, o terrorismo islâmico e a urgência migratória só fizeram reforçar a desilusão. Até provocar uma inversão radical.

Sob a influência dos novos líderes soberanistas, as democracias não liberais do Leste se apresentam como o novo modelo para todos os que têm como sagrados os valores seculares da “Velha Europa”: Deus, a pátria e a família. Esses regimes constituem, hoje em dia, as muralhas contra a ditadura do politicamente correto e dos direitos das minorias, que varrem as tradições e põem mais uma vez em discussão a real importância da família. Eles se opõem também à imigração em massa, que ameaça a homogeneidade e a identidade cultural dos povos europeus.

Até um tempo atrás, os governantes dos países do Leste adotavam, em Bruxelas e em outras instâncias, a postura um pouco humilhante do novato que, sempre exposto ao risco de uma crítica ou uma condenação, aguarda o momento de ser julgado. Agora, ao contrário, sua missão é preservar a chama dos valores que o Ocidente perdeu.

“Há vinte e sete anos”, disse Orban num discurso em 2017, “aqui, na Europa Central, nós pensávamos que a Europa era nosso futuro; agora, sentimos que nós representamos o futuro da Europa”.

Difícil não lhe dar razão, ao menos em parte, se considerarmos como as coisas evoluíram nos últimos anos. Em muitos países europeus, Orban virou o modelo de inspiração dos movimentos soberanistas que ganham eleições e conseguem, às vezes, tomar efetivamente o poder.

A questão migratória permite alimentar o urso Waldo em todos os contextos. Na Itália, a Casaleggio Associati elaborou, a partir de 2014, um manual de conduta para os eleitos do Movimento 5 Estrelas que participam de programas de TV. Quanto ao tema dos imigrantes, o texto sugere adotar a seguinte atitude:

“O assunto imigração suscita muitas emoções, entre as quais, primeiro, o medo e a cólera. Assim, na televisão, começar a argumentar, explicar os tratados ou mesmo propor soluções mais ou menos realistas é inútil. As pessoas estão tomadas por suas emoções e se sentem ameaçadas, assim como suas famílias. Não se pode pretender que elas acompanhem um discurso puramente racional.” O vade mecum do M5S conclui sugerindo a estratégia do “decalque – ou transferência – emocional”: “Nós somos uma saída para a raiva e o medo”.

Durante a campanha para as eleições municipais de 2017, Grillo levará o “decalque” ao extremo de usar, contra uma minoria étnica como os ciganos – na maioria, cidadãos italianos –, o termo alemão “raus!”: “fora!”. Empossado ministro do Interior, o chefe da Liga, Matteo Salvini, irá se ocupar de transformar essas ideias em projetos de lei concretos, com total apoio do Movimento 5 Estrelas.

A mesma coisa se produziu um pouco em todos os lugares, sob formas ligeiramente diferentes. Em todos os países industrializados, os engenheiros do caos se apropriaram do tema das relações com o “Estrangeiro”, fosse este um refugiado, um imigrante, ou mesmo um compatriota de origem étnica ou religião diferentes, para transformá-lo em combustível principal do Waldo populista.

Do ponto de vista deles, a vantagem da questão migratória não é apenas que ela reforça a divisão de Schmitt entre Nós e Eles, mas sobretudo o fato de ela implodir as barreiras tradicionais entre direita e esquerda.

O estrategista do Brexit, Dominic Cummings, conta, a respeito, um episódio bastante esclarecedor. “Eu estava coordenando um grupo de discussão com eleitores do Partido Conservador. Conversei com eles sobre imigração durante cerca de vinte minutos. Depois, passamos a falar de economia. Ao fim de alguns minutos, um pouco surpreso por suas palavras, perguntei: mas em quem vocês votaram? No Labour, responderam todos. Por um erro de planejamento, eu estava falando com militantes do Partido Trabalhista, e não com conservadores. Mas, no assunto imigração, era quase impossível distinguir entre esses eleitores de camadas populares e os tories ou os soberanistas do UKIP.”

A ênfase na imigração permite desarticular as formações habituais, liberando um imenso espaço político para o Waldo populista, que pode, assim, exibir-se como não sendo nem de direita, nem de esquerda.

Cummings prossegue: “As mídias tentaram classificar a campanha do Leave como sendo ‘de direita’, mas aos olhos do público nós não éramos nem direitistas nem esquerdistas. O mesmo se repetiu, depois, com Trump. Ele cometeu muitos erros, mas havia em sua mensagem nacional alguma coisa atraente que ia além das categorias direita/esquerda. Ali também as mídias não entenderam, e etiquetaram, como no caso do Brexit, de ‘direita populista’, com o carimbo de alguns charlatães universitários. Mas a razão pela qual ele teve tamanho sucesso está, precisamente, em levar uma mensagem que é mais do que simplesmente de direita”.

A questão migratória é o tema sobre o qual a direita populista pode selar sua união com a esquerda populista, a exemplo do que ocorreu na Grã-Bretanha no momento do Brexit, e na Itália por ocasião do fechamento dos portos decretado por Matteo Salvini. No fundo, trata-se, apenas, de fazer evoluir a oferta política para que esta se alie à demanda. Eis por que, nos países onde a fusão ainda não ocorreu, muitos protagonistas, tanto à extrema-direita quanto à extrema- esquerda, trabalham para ser os primeiros a dinamitar a antiga divisão ideológica.

Na Alemanha, uma campanha agressiva, focada quase exclusivamente no tema da imigração, permitiu ao movimento de extrema-direita AFD (“Alternativa para a Alemanha”) desviar as intenções de voto na esquerda. Segundo as análises das transferências de votos entre partidos nas eleições de 2017, o movimento conquistou praticamente tantos votos nas fileiras do Partido Social-Democrata e da esquerda radical Die Linke quanto da direita tradicional CDU-CSU. Por isso, após as eleições, muitos ex-líderes de extrema-esquerda criaram o movimento Aufstehen (“De pé”), para, de acordo com uma de suas fundadoras, “acabar com a boa consciência da esquerda sobre a cultura do acolhimento”.

*

Na França, está posta na mesa a questão de saber se o movimento dos Coletes Amarelos pode constituir o detonador de uma convergência entre populistas de direita e de esquerda. Apesar dos esforços consideráveis para ir nessa direção, feitos por Marine Le Pen, de um lado, e Jean-Luc Mélenchon, do outro, o que falta ainda no caso francês é um tipo de “Macron ao contrário” – um líder que tivesse a capacidade de transcender o abismo direita/esquerda para reunir os nacional-populistas das duas margens. Mas a própria experiência do locatário do Eliseu prova que uma figura desse tipo pode emergir com extrema rapidez quando as circunstâncias lhe são favoráveis.

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