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O COLÓQUIO WALTER LIPPMANN OU A REINVENÇÃO DO LIBERALISMO
Se é verdade que a crise do liberalismo teve como sintoma um reformismo social cada vez mais pronunciado a partir do fim do século XIX, o neoliberalismo é uma resposta a esse sintoma, ou ainda, uma tentativa de entravar essa orientação às políticas redistributivas, assistenciais, planificadoras, reguladoras e protecionistas que se desenvolveram desde o fim do século XIX, uma orientação vista como uma degradação que conduzia diretamente ao coletivismo.
A criação da Sociedade Mont-Pèlerin, em 1947, é citada com frequência, e erroneamente, como o registro de nascimento do neoliberalismo[1]. Na realidade, o momento fundador do neoliberalismo situa-se antes, no Colóquio Walter Lippmann, realizado durante cinco dias em Paris, a partir de 26 de agosto de 1938, no âmbito do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (antecessor da Unesco), na rue Montpensier, no centro de Paris[2]. A reunião de Paris distingue-se pela qualidade de seus participantes, que, na maioria, marcarão a história do pensamento e da política liberal dos países ocidentais após a guerra, quer se trate de Friedrich Hayek, Jacques Rueff, Raymond Aron, Wilhelm Röpke, quer se trate de Alexander von Rüstow.
Escolher uma dessas duas datas como momento fundador não é indiferente, como veremos adiante. A análise que se faz do neoliberalismo depende essa escolha.
Esses dois acontecimentos, aliás, estão correlacionados. O Colóquio Walter Lippmann encerrou-se com a declaração de criação de um Centro Internacional de Estudos para a Renovação do Liberalismo, cuja sede acabou sendo o Museu Social, na rue Las Cases, em Paris, instituição que foi concebida na época como uma sociedade intelectual internacional que deveria realizar sessões regulares sempre em países diferentes. Os acontecimentos na Europa decidiram o contrário. Sob esse ângulo, a Sociedade Mont-Pèlerin aparece como um prolongamento da iniciativa de 1938. Um de seus pontos em comum, que não foi de pouca importância para a difusão do neoliberalismo, é seu cosmopolitismo. O Colóquio Walter Lippmann é a primeira tentativa de criação de uma “internacional” neoliberal que se prolongou em outros organismos, entre os quais, nas últimas décadas, a Comissão Trilateral e o Fórum Econômico Mundial de Davos. Outro ponto em comum é a importância que se dá ao trabalho intelectual de refundação da doutrina para melhor assegurar sua vitória contra os princípios adversários. A reconstrução da doutrina liberal vai beneficiar meios acadêmicos bem financiados e de prestígio, começando nos anos 1930 pelo Institut Universitaire des Hautes Études Internationales [Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais], fundado em 1927, em Genebra, pela London School of Economics e pela Universidade de Chicago, para mencionarmos apenas os mais famosos, e destilando-se em seguida em algumas centenas de think tanks que difundirão a doutrina ao redor do mundo.
O neoliberalismo vai desenvolver-se segundo várias linhas de força, submetendo-se a tensões das quais devemos reconhecer a importância. O colóquio de 1938 revelou discordâncias que, desde o princípio, dividiram os intelectuais que reivindicavam para si o neoliberalismo. Aliás, ele mostra bem as divergências que, após a Segunda Guerra Mundial, continuarão a agir de forma cada vez mais patente. Essas divergências são de vários tipos e não devem ser confundidas. O Colóquio Walter Lippmann mostra, em primeiro lugar, que a exigência comum de reconstrução do liberalismo ainda não permite, em 1938, distinguir completamente as tendências do “novo liberalismo” e as do “neoliberalismo”. Como mostrou Serge Audier, alguns participantes franceses são tipicamente da primeira corrente quando se referem a um “liberalismo social”, como Louis Marlio, ou a um “socialismo liberal”, como Bernard Lavergne.
Todavia, o “novo liberalismo” não é o principal eixo do colóquio, que é muito mais o momento em que é decantado um modo diferente de reconstrução, que terá em comum com o “novo liberalismo” a aceitação da intervenção, mas tentará dar a ela uma nova definição e, por conseguinte, novos limites. Isso, porém, é simplificar as coisas. Outras divergências dizem respeito ao próprio sentido desse “neoliberalismo” que se deseja construir: trata-se de transformar o liberalismo, dando-lhe um novo fundamento, ou ressuscitar o liberalismo clássico, isto é, operar um “retorno ao verdadeiro liberalismo” contra os desvios e as heresias que o perverteram? Em face dos inimigos comuns (o coletivismo em suas formas comunista e fascista, mas também as tendências intelectuais e as correntes políticas reformistas que supostamente levavam a ele nos países ocidentais, a começar pelo keynesianismo), essas divergências vão parecer secundárias, sobretudo quando vistas de fora. Durante a travessia do deserto político e intelectual dos neoliberais, o que importa, na verdade, é opor um front unido ao “intervencionismo de Estado” e à “escalada do coletivismo”. Foi essa oposição que a Sociedade Mont-Pèlerin conseguiu encarnar, reunindo as diferentes correntes do neoliberalismo, a corrente norte-americana (fortemente influenciada pelos “neoaustríacos” Friedrich Hayek e Ludwig von Mises) e a corrente alemã e permitindo, desse modo, que se apagassem as linhas divergentes tais como haviam se firmado antes da guerra. Sobretudo, essa junção dos neoliberais ocultou um dos aspectos principais da virada que se deu na história do liberalismo moderno: a teorização de um intervencionismo propriamente liberal. Era precisamente isso que trazia à luz o Colóquio Walter Lippmann. Nesse sentido, este último não é somente um registro de nascimento, mas um elemento revelador.
Contra o naturalismo liberal
O colóquio realizou-se de 26 a 30 de agosto de 1938. O organizador dessa reunião internacional com 26 economistas, filósofos e funcionários do alto escalão de vários países foi Louis Rougier, filósofo hoje esquecido. Na época, ele era professor de filosofia em Besançon, adepto do positivismo lógico, membro do Círculo de Viena e já havia escrito várias obras e artigos que pregavam um “retorno do liberalismo” sobre novas bases. Essa reunião foi uma dupla ocasião para o lançamento da tradução francesa do livro de Walter Lippmann, An Inquiry into the Principles of the Good Society [Uma investigação sobre os princípios da Grande Sociedade], com o título de La cité libre[3], e para a presença do autor em Paris. O livro é apresentado pelo organizador do colóquio como um manifesto de reconstrução do liberalismo, em torno do qual podem reunir-se espíritos diferentes trabalhando na mesma direção. A ideia que anima Rougier é bastante simples: não haverá “retorno do liberalismo” se não houver uma refundação teórica da doutrina liberal e se dela não se deduzir uma política liberal ativa, que evite os efeitos negativos da crença metafísica no laissez-faire. A linha que Rougier deseja estabelecer no colóquio é um prolongamento da convicção que Lippmann afirma firmemente em sua obra quando define a “agenda” do liberalismo a ser reinventado:
"A agenda prova que o liberalismo não é a apologética estéril em que se transformou durante sua sujeição ao dogma do laissez-faire e à incompreensão dos economistas clássicos. Ela demonstra, acredito eu, que o liberalismo é não uma justificação do status quo, mas uma lógica de reajustamento social que se tornou necessária pela Revolução Industrial.[4]"
Rougier, no discurso que abriu os trabalhos do colóquio, assinala que esse esforço de refundação ainda não tem um nome oficial: deve-se falar em “liberalismo construtor”, “neocapitalismo” ou “neoliberalismo”, termo que, segundo ele, parece prevalecer no uso corrente[5]? Refundar o iberalismo para melhor combater a grande ascensão dos totalitarismos é a meta que Rougier pretendia dar à reunião da qual fora o promotor, sublinhando que a ambição do colóquio era condensar um movimento intelectual difuso[6]. Ao mesmo tempo, esse colóquio é para ele o ato inaugural de uma organização internacional destinada a construir e difundir uma doutrina liberal de novo gênero: o Centro Internacional de estudos para a Renovação do Liberalismo, o qual mencionamos anteriormente. Esse centro ainda organizará algumas reuniões temáticas, mas desaparecerá em consequência da dispersão de seus membros causada pela guerra e pela ocupação.
Em seu discurso de abertura, Rougier lembra também a importância da tese de Lippmann, segundo a qual o liberalismo não se identifica com o laissez-faire. De fato, essa assimilação demonstrou todas as suas consequências negativas, já que, diante da evidência dos males do laissez-faire, a opinião pública logo conclui que apenas o socialismo pode salvar do fascismo ou, inversamente, apenas o fascismo pode salvar do socialismo, embora um e outro sejam variedades de uma mesma espécie. Ele enfatiza igualmente a crítica de Lippmann ao naturalismo da doutrina “manchesteriana”. La cité libre possuía o grande mérito, em sua opinião, de lembrar que o regime liberal é resultado de uma ordem legal que pressupõe um intervencionismo jurídico do Estado. Ele resume da seguinte maneira a tese central da obra:
"A vida econômica ocorre dentro de um quadro jurídico que estabelece o regime da propriedade, dos contratos, das patentes, da falência, o estatuto das associações profissionais e das sociedades comerciais, o dinheiro e os bancos, todas as coisas que não são dadas pela natureza, como as leis do equilíbrio econômico, mas são criações contingentes do legislador.[7]"
Essa é a expressão da linha dominante do colóquio, que será objeto de ressalva, ou até mesmo de contestação, por parte de alguns convidados, em particular dos “neoaustríacos” Von Mises e, decerto, Hayek, que, embora não se manifeste durante as discussões, concorda com aquele que considera seu mestre. Mas todos os participantes compartilham incontestavelmente da rejeição dos “neoaustríacos” ao coletivismo, ao planismo e o totalitarismo, em suas formas comunista e fascista. Há também uma rejeição amplamente compartilhada às reformas de esquerda que visam à redistribuição de renda e à proteção social, como aquelas adotadas pela Frente Popular na França[8]. Mas o que fazer para combater essas tendências? Reatualizar o liberalismo dentro de um novo contexto ou revisá-lo profundamente? Essa alternativa está estreitamente ligada ao diagnóstico da “grande crise” e suas causas.
As divergências manifestadas então têm relação com uma diferença importante de interpretação dos fenômenos econômicos, políticos e sociais do entreguerras, que alguns autores de diferentes horizontes políticos e doutrinais pensam como uma “crise do capitalismo”. Resta pouca dúvida, como vimos anteriormente, que a situação mudou profundamente com relação à “belle époque do liberalismo”, tão bem descrita por Karl Polanyi.
Duas interpretações radicalmente opostas do “caos” do capitalismo conflitam durante esses dias. Aliás, elas dividem mais amplamente os meios liberais na Europa nessa época. Para uns, a doutrina do laissez-faire deve ser renovada, sem dúvida, mas deve sobretudo ser defendida daqueles que pregam a ingerência do Estado. Destes últimos, Lionel Robbins na Inglaterra e Jacques Rueff na França, juntamente com os “austríacos” Von Mises e Hayek, estão entre os autores mais conservadores em matéria doutrinal[9]. Para outros, o liberalismo deve ser integralmente refundado e favorecer o que já é chamado de “intervencionismo liberal”, segundo o termo utilizado por Von Rüstow e Henri Truchy[10]. As divergências sobre as análises da grande crise são particularmente significativas dessas duas opções possíveis. Para os primeiros, os fatores principais do caos devem ser buscados na traição progressiva dos princípios do liberalismo clássico (Robbins, Rueff, Hayek, Von Mises); para os segundos, as causas da crise são encontradas no próprio liberalismo clássico (Rougier, Lippmann e os teóricos alemães do ordoliberalismo[11]).
Em La Grande Dépression, 1929-1934, Robbins explica também que a crise é consequência das intervenções políticas que desregularam o mecanismo autocorretivo dos preços. Como sublinha Rueff no prefácio que fez ao livro, foram as boas intenções dos reformistas sociais que levaram ao desastre. A reação de Robbins e Rueff revela uma nostalgia de um mercado espontaneamente autorregulado que teria funcionado em uma era dourada das sociedades ocidentais. É o que Rueff traduz muito bem no opúsculo La crise du capitalisme, quando opõe o quase equilíbrio do período anterior à Primeira Guerra Mundial ao caos da grande crise[12]. Antes, escreve ele:
"Os homens agiam independentemente uns dos outros, sem nunca se preocupar com as repercussões de seus atos sobre o estado geral dos mercados. E, no entanto, do caos das trajetórias individuais nasce essa ordem coletiva traduzida pelo quase equilíbrio que os fatos revelavam.[13]"
Mas, depois, as intervenções públicas, todas as formas de dirigismo, as taxações, as planificações e as regulamentações “possibilitaram a alegre queda da prosperidade” [14]. O postulado desses autores, que encontramos também em Von Mises ou Hayek, é que a intervenção política é um processo cumulativo. Uma vez iniciada, leva necessariamente à coletivização total da economia e ao regime policial totalitário, já que é preciso adaptar os comportamentos individuais aos mandamentos absolutos do programa de gestão autoritária da economia. A conclusão é clara: não se pode falar de falência do liberalismo, porque foi a política intervencionista que gerou a crise. O mecanismo dos preços, quando funciona livremente, resolve todos os problemas de coordenação das decisões dos agentes econômicos.
Rueff, por exemplo, na sessão de domingo, 28 de agosto, dedicada às relações entre o liberalismo e a questão social, sustenta da maneira mais ortodoxa que a insegurança social sofrida pelos trabalhadores deve-se aos desequilíbrios econômicos periódicos contra os quais nada se pode fazer, e que eles não são tão graves quanto parecem, na medida em que há automaticamente um retorno ao equilíbrio quando o mecanismo dos preços não é desregulado. Por outro lado, o Estado, se intervém, emperra a máquina automática:
"O sistema liberal tende a assegurar às classes mais necessitadas o máximo de bem-estar. Todas as intervenções do Estado no plano econômico tiveram o efeito de empobrecer os trabalhadores. Todas as intervenções dos governos pareceram melhorar as condições da maioria, mas para isso não há outro meio senão aumentar a massa dos produtos que devem ser partilhados.[15]"
Ao questionamento cético de Lippmann sobre os benefícios sociais da liberdade de mercado (“é possível aliviar o sofrimento que a mobilidade de um sistema de mercados privados comporta? Se o equilíbrio deve ser deixado sempre por conta própria, isso comporta grandes sofrimentos”[16]), Rueff responde pouco depois com a sentença definitiva: “O sistema liberal dá ao sistema econômico uma flexibilidade que permite lutar contra a insegurança”[17]. Von Mises ainda lembrará, a propósito do seguro-desemprego, que:
"o desemprego, enquanto fenômeno maciço e duradouro, é consequência de uma política que visa a manter os salários em um nível mais elevado do que aquele que resultaria do estado do mercado. O abandono dessa política redundaria muito rapidamente numa diminuição considerável do número de desempregados.[18]"
Na véspera, a pergunta “o declínio do liberalismo é devido a causas endógenas?” também mostrava a tensão. Para o pensador ordoliberal Röpke, a concentração industrial que destrói a concorrência deve-se a causas técnicas (peso do capital fixo), ao passo que Von Mises sustenta que os cartéis são produto do protecionismo, que fragmenta o espaço econômico mundial, freia a concorrência entre países e, portanto, favorece os acordos em nível nacional. Segundo ele, seria absurdo, portanto, pregar a intervenção do Estado em relação à concentração, porque é precisamente essa intervenção a causa do mal: “Não foi o livre jogo das forças econômicas, mas a política antiliberal dos governos que criou as condições favoráveis ao estabelecimento dos monopólios. Foi a legislação, foi a política que criou a tendência ao monopólio”[19].
Essa linha de não intervenção absoluta que se expressa no colóquio revela nesse plano a persistência de uma ortodoxia aparentemente intocada. Mas o que Foucault acertadamente chamará de “fobia do Estado” não resume o mais inovador propósito do colóquio.
A originalidade do neoliberalismo
Através do discurso dos numerosos participantes, impõe-se uma redefinição do liberalismo que deixa os ortodoxos particularmente desarmados. Essa linha de força do colóquio une a perspectiva de Rougier, de ordem essencialmente epistemológica, a de Lippmann, que lembra a importância da construção jurídica no funcionamento da economia de mercado, e, por fim, aquela, muito próxima, dos “sociólogos liberais” alemães Röpke e Von Rüstow, que enfatizam a sustentação social do mercado, que por si só não é capaz de assegurar a integração de todos.
Aparentemente, os participantes do colóquio tinham plena consciência das clivagens que os dividiam. Assim, Von Rüstow afirma:
"É inegável que aqui, em nosso círculo, estão representados dois pontos de vista diferentes. Uns não veem nada de essencial para criticar ou mudar no liberalismo tradicional [...]. Outros, como nós, procuram a responsabilidade pelo declínio do liberalismo no próprio liberalismo; e, consequentemente, procuram a saída numa renovação fundamental do liberalismo.[20]"
São sobretudo Rougier e Lippmann que definem durante o colóquio o que se deve entender, segundo eles, por “neoliberalismo” e quais tarefas lhe competem. Ambos os autores haviam desenvolvido antes, em suas respectivas obras, ideias bastante semelhantes e, sobretudo, a mesma vontade de reinventar o liberalismo. Para compreender melhor a natureza dessa reconstrução, convém examinarmos um pouco mais de perto os escritos de Rougier e, principalmente, de Lippmann.
O “retorno ao liberalismo” pregado por Rougier é, na verdade, uma refundação das bases teóricas do liberalismo e a definição de uma nova política. Rougier parece guiado sobretudo por sua rejeição à metafísica naturalista. O importante para ele é afirmar de saída a distinção entre um naturalismo liberal de estilo antigo e um liberalismo ativo, que visa à criação consciente de uma ordem legal no interior da qual a iniciativa privada, submetida à concorrência, possa desenvolver-se com toda a liberdade. Esse intervencionismo jurídico do Estado contrapõe-se a um intervencionismo administrativo, que estorva ou impede a liberdade de ação das empresas. O quadro legal, ao contrário da gestão autoritária da economia, deve deixar que o consumidor arbitre no mercado entre os produtores concorrentes.
A grande diferença entre esse neoliberalismo e o liberalismo antigo, segundo Rougier, é a concepção que eles têm da vida econômica e social. Os liberais tendiam a ver a ordem estabelecida como uma ordem natural, o que os levava a sistematicamente tomar posições conservadoras, tendendo a manter os privilégios existentes. Não intervir era, em resumo, respeitar a natureza. Para Rougier,
"ser liberal não é em absoluto ser conservador, no sentido da manutenção dos privilégios de fato resultante da legislação anterior. É, ao contrário, ser essencialmente “progressista”, no sentido de uma contínua adaptação da ordem legal às descobertas científicas, aos progressos da organização e da técnica econômica, às mudanças de estrutura da sociedade, às exigências da consciência contemporânea. Ser liberal não é, como o “manchesteriano”, deixar os automóveis circularem em todos os sentidos, seguindo seus caprichos, donde resultariam incessantes engarrafamentos e acidentes; não é, como o “planista”, estabelecer para cada automóvel uma hora de saída e um itinerário; é impor um código de trânsito, admitindo ao mesmo tempo que ele não é na época dos transportes rápidos o mesmo que era na época das diligências.[21]"
Essa metáfora com o código de trânsito é uma das imagens mais usadas pelo neoliberalismo, é quase uma assinatura oficial. Ela é longamente desenvolvida por Lippmann[22], mas também consta no famoso livro que Hayek publicará após a guerra, O caminho da servidão[a].
A ideia decisiva do colóquio é que o liberalismo clássico é o principal responsável pela crise por que ele passava. Os erros de governo aos quais ele conduziu favoreceram o planismo e o dirigismo. De que natureza eram esses erros? Consistiam essencialmente em confundir as regras de funcionamento de um sistema social com leis naturais intangíveis. Rougier, por exemplo, vê na fisiocracia francesa a expressão mais clara desse tipo de confusão[23]. O que chama de “mística liberal”, ou crença numa natureza imutável, que ele pretende distinguir cuidadosamente da ciência econômica verdadeira, deriva da passagem da observação das características científicas de uma ordem regida pela livre concorrência para a ideia de que essa ordem é intocável e perfeita, uma vez que é obra de Deus[24]. O segundo erro metodológico, que está ligado a essa confusão, é a crença na “primazia do econômico sobre o político”. Esse duplo erro pode ser resumido, segundo Rougier, na seguinte sentença: “O melhor legislador é aquele que sempre se abstém de intervir no jogo das forças econômicas e subordina a elas todos os problemas morais, sociais e políticos”. Essa submissão a uma ordem supostamente natural, que está no princípio do laissez-faire, é uma ilusão baseada na ideia de que a economia é um domínio à parte, que não seria regido pelo direito. Essa independência da economia com relação às instituições sociais e políticas é o erro básico da mística liberal que leva ao não reconhecimento do caráter construído do funcionamento do mercado.
Lippmann, em La cité libre, fez uma análise muito semelhante dos erros dos “últimos liberais”, como os denomina. O “laissez-faire”, do qual ele recorda a origem em Gournay, era uma teoria negativa, destruidora, revolucionária, que por sua própria natureza não poderia guiar a política dos Estados. Tratava-se não de um programa, mas de uma palavra de ordem, que “não passava de uma objeção histórica a leis caducas”[25]. Essas ideias inicialmente revolucionárias, que permitiram derrubar os vestígios do regime social e político antigo e instaurar uma ordem de mercado, “transformaram-se em um dogma obscurantista e pedantesco”[26]. O naturalismo que impregnava as teorias jurídico-políticas dos primeiros liberais estava destinado a essa mutação dogmática e conservadora. Se em certa época os direitos naturais foram ficções liberais que permitiram garantir a propriedade e, portanto, favorecer os comportamentos acumuladores, esses mitos se fixaram em dogmas inalteráveis que impediram qualquer reflexão sobre a utilidade das leis, explica ele. Vetando a reflexão sobre o alcance das leis, esse respeito absoluto à “natureza” fortalecia a situação adquirida pelos privilegiados.
Essa análise não deixa de ter certo parentesco com a posição dos fundadores franceses da sociologia do século XIX. O grande defeito do liberalismo econômico, como Auguste Comte mostrou em sua época, derivava da impossibilidade de se construir uma ordem social viável a partir de uma teoria essencialmente negativa. A novidade do neoliberalismo “reinventado” reside no fato de se poder pensar a ordem de mercado como uma ordem construída, portanto, ter condições de estabelecer um verdadeiro programa político (uma “agenda”) visando a seu estabelecimento e sua conservação permanente.
A ideia mais equivocada dos “últimos liberais”, como John Stuart Mill ou Herbert Spencer[27], consiste em afirmar que existem domínios em que há uma lei e outros em que não há lei nenhuma. Foi essa crença na existência de esferas de ação “naturais”, regiões sociais de não direito, como seria, na opinião deles, a economia de mercado, que deturpou a inteligência do curso histórico e impediu o prosseguimento das políticas necessárias. Como ainda observa Lippmann, no século XIX a dogmática liberal descolou-se pouco a pouco das práticas reais dos governos. Enquanto os liberais discutiam sentenciosamente a extensão do laissez-faire e a lista dos direitos naturais, a realidade política era a da invenção de leis, instituições e normas de todos os tipos, indispensáveis para a vida econômica moderna:
"Todas essas transações dependiam de uma lei qualquer, da disposição do Estado de fazer valer certos direitos e proteger certas garantias. Consequentemente, significava não ter nenhum senso de realidade perguntar-se onde se situavam os limites do domínio do Estado.[28]"
Os direitos de propriedade, os contratos mais variados, os estatutos jurídicos das empresas, enfim, todo o enorme edifício do direito comercial e do direito do trabalho era um desmentido em ato da apologética do laissez-faire dos “últimos liberais”, que se tornaram incapazes de refletir acerca da prática efetiva dos governantes e do significado da obra legisladora. O equívoco é até mais profundo. Esses liberais foram incapazes de compreender a dimensão institucional da organização social:
"Apenas reconhecendo que os direitos legais são proclamados e aplicados pelo Estado é que se pode submeter a um exame racional o valor de um direito particular. Os últimos liberais não se deram conta disso. Cometeram o grave erro de não ver que a propriedade, os contratos, as sociedades, assim como os governos, os parlamentos e os tribunais, são criaturas da lei e existem apenas enquanto uma pilha de direitos e deveres cuja aplicação pode ser exigida. [29]"
Vemos por essas sentenças como a crítica neoliberal de Lippmann resgata o solo da governamentalidade tal como foi pensada por Bentham, aquém das fórmulas naturalistas que haviam invadido a literatura apologética do mercado. Sem estabelecer completamente o elo entre a crítica que faz à ilusão jusnaturalista e a maneira como Bentham pensava as relações entre a liberdade de ação e a ordem jurídica, Lippmann analisa a evolução doutrinal como uma degradação que ocorreu entre o fim do século XVIII e o fim do XIX, entre Bentham e Spencer.
A ignorância demonstrada pelos liberais tardios com relação ao trabalho dos juristas para definir, enquadrar, melhorar o regime dos direitos e obrigações referentes à propriedade, às trocas e ao trabalho tem razões que Lippmann pretende explicar. Esse não reconhecimento do fato de que “todo o regime da propriedade privada e dos contratos, da empresa individual, da associação e da sociedade anônima faz parte de um conjunto jurídico do qual ele é inseparável” é explicado pelo modo de fabrico do direito em questão. Segundo ele, é porque esse direito é mais o produto da jurisprudência que sanciona os usos do que uma codificação feita conforme as regras que eles puderam vê-lo erroneamente como expressão de uma “espécie de direito natural fundado na natureza das coisas e com um valor, por assim dizer, supra-humano”. Essa ilusão naturalista levou-os a ver em cada disposição jurídica que não lhes agradava uma ingerência intolerável do Estado, uma violação inadmissível do estado de natureza[30]. Não reconhecer o trabalho da criação jurídica é o erro inaugural que se encontra no princípio da retórica de denúncia da intervenção do Estado:
"O título de propriedade é uma criação da lei. Os contratos são instrumentos jurídicos. As sociedades são criaturas do direito. Consequentemente, comete-se um erro quando se considera que elas possuem existência fora da lei e depois se pergunta se é lícito “intervir” nelas [...]. Toda propriedade, todo contrato e toda sociedade existem somente porque existem direitos e garantias cuja aplicação pode ser assegurada, quando são sancionados pela lei, apelando para o poder de coerção do Estado. Quando se fala em não mexer em nada, fala-se para não dizer nada.[31]"
Uma fonte adicional de erro consistiu em ver as simplificações necessárias da ciência econômica como um modelo social a ser aplicado. Para Lippmann, assim como para Rougier, é normal que o trabalho científico elimine os resíduos e as hibridações da realidade das sociedades para deduzir por abstração relações e regularidades. Mas os liberais viram essas leis como criações naturais, uma imagem exata da realidade, e aquilo que escapava ao modelo simplificado e depurado era tido por eles apenas como imperfeições ou aberrações[32]. A conjunção dessa interpretação epistemológica equivocada com essa ilusão naturalista explica a força duradoura do dogmatismo liberal até o início do século XIX.
O liberalismo que continha o ideal de emancipação humana no século XVIII transformou-se progressivamente num conservadorismo estreito, contrário a qualquer avanço das sociedades em nome do respeito absoluto à ordem natural:
"As consequências desse erro foram catastróficas. Porque, imaginando esse domínio da liberdade inteiramente hipotético e ilusório, em que os homens supostamente trabalham, compram e vendem, fazem contratos e possuem bens, os liberais renunciaram a qualquer crítica e tornaram-se defensores do direito que reinava nesse domínio. Tornaram-se, assim, apologistas reconhecidos de todos os abusos e de todas as misérias que ele continha. Tendo admitido que não existiam leis, mas uma ordem natural vinda de Deus, só podiam ensinar a alegre adesão ou a resignação estoica. Na realidade, defendiam um sistema composto de vestígios jurídicos do passado e inovações interesseiras, introduzidas pelas classes mais afortunadas e poderosas da sociedade. Além do mais, tendo presumido a não existência de uma lei humana regendo os direitos de propriedade, os contratos e as sociedades, naturalmente não puderam interessar-se em saber se essa lei era boa ou ruim nem se podia ser reformada ou melhorada. Foi com toda razão que se ridicularizou o conformismo desses liberais. Eles tinham provavelmente tanta sensibilidade quanto os outros, mas o cérebro deles parara de funcionar. Afirmando em bloco que a economia de troca era “livre”, isto é, situada fora da alçada da jurisdição do Estado, meteram-se num impasse. [...] É por isso que perderam o domínio intelectual das grandes nações, e o movimento progressista virou as costas para o liberalismo.[33]"
Não somente liberalismo e progressismo separaram-se, como se viu, sobretudo, o surgimento de uma contestação cada vez mais forte do capitalismo liberal e das desigualdades que ele engendrava. O socialismo desenvolveu-se aproveitando o empedernimento conservador da doutrina liberal, a serviço dos interesses econômicos dos grupos dominantes. O questionamento da propriedade é, para Lippmann, particularmente sintomático desse desvio: “Se a propriedade privada está tão gravemente comprometida no mundo moderno, é porque as classes favorecidas, resistindo a qualquer mudança em seus direitos, provocaram um movimento revolucionário que tende a aboli-las”[34].
A agenda do liberalismo reinventado
Os “últimos liberais” não entenderam que, “longe de ser abstencionista, a economia liberal pressupõe uma ordem jurídica ativa e progressista” que visa à adaptação permanente do homem a condições sempre cambiantes. É necessário um “intervencionismo liberal”, um “liberalismo construtor”, um dirigismo do Estado que convém distinguir de um intervencionismo coletivista e planista. Apoiado na evidência dos benefícios da competição, esse intervencionismo abandona a fobia spenceriana do Estado e combina a herança do concorrencialismo social e a promoção da ação do Estado. Seu objetivo é restabelecer incessantemente as condições da livre concorrência ameaçada por lógicas sociais que tendem a reprimi-la para garantir a “vitória dos mais aptos”.
"O dirigismo do Estado liberal implica que ele seja exercido de maneira que a liberdade seja protegida, não subjugada; de maneira que a conquista do benefício seja o resultado da vitória dos mais aptos numa competição leal, não o privilégio dos mais protegidos ou dos mais ricos, em consequência do apoio hipócrita do Estado.[35]"
Esse liberalismo “mais bem compreendido”, esse “liberalismo verdadeiro”, depende da reabilitação do Estado como fonte de autoridade imparcial sobre os particulares.
"Quem quiser retornar ao liberalismo terá de dar autoridade suficiente aos governos para que resistam à ascensão dos interesses privados sindicalizados, e essa autoridade lhes será dada por meio de reformas constitucionais apenas na medida em que o espírito público for reerguido através da denúncia dos malefícios do intervencionismo, do dirigismo e do planismo, que em geral são apenas a arte de desregular sistematicamente o equilíbrio econômico em detrimento da grande massa dos cidadãos-consumidores para o benefício momentâneo de um pequeno número de privilegiados, como se vê com extrema abundância na experiência russa.[36]"
Sem dúvida, não é simples distinguir a intervenção que mata a concorrência daquela que a fortalece. Em todo caso, quando se constata que existem forças políticas e sociais que induzem à desregulação da máquina, deve-se aceitar que uma força contrária visa a devolver-lhe o devido lugar e poder por “gosto do risco e da responsabilidade”[37]. Rougier tem duas posições diferentes, na verdade. Na primeira, o intervencionismo do Estado deve ser essencialmente jurídico. Trata-se de impor regras universais a todos os agentes econômicos e resistir a todas as intervenções que deturpam a concorrência, dando vantagens ou concedendo privilégios e proteções a determinadas categorias. O perigo é que o Estado fique na mão de grupos coligados, seja dos mais ricos, seja das massas pobres.
Para Rougier, existem forças na sociedade que induzem ao desvirtuamento do jogo da concorrência em proveito próprio, a começar pelas forças políticas, que para conquistar o voto dos eleitores não hesitam em praticar políticas demagógicas. A Frente Popular francesa é em si mesma um exemplo perfeito. Existem também lógicas sociais que induzem a essas deturpações, que não são levadas em conta por um pensamento econômico limitado: “[...] nós não somos moléculas de gás, mas seres pensantes e sociais; nós coligamos nossos interesses, somos submetidos a práticas gregárias, sofremos pressões externas de grupos organizados (sindicatos, organizações políticas, Estados estrangeiros etc.)”[38]. Um Estado forte, protegido das chantagens e pressões, é necessário para garantir igualdade de tratamento diante da lei.
Ele também sustenta outro argumento. O Estado não deve proibir-se de intervir para fazer as engrenagens da economia funcionarem melhor. O liberalismo construtor significa
"lubrificar a máquina econômica, desengripar os fatores autorreguladores do equilíbrio; permitir que preços, taxas de juros, disparidades ajustem a produção às necessidades reais do consumo, tornadas solventes; a poupança, às necessidades de investimento dali em diante justificadas pela demanda; o comércio exterior, à divisão natural do trabalho internacional; os salários, às possibilidades técnicas e à rentabilidade das empresas.[39]"
Essa ingerência adaptadora chega ao ponto de induzir certos comportamentos desejáveis nos agentes a fim de restabelecer equilíbrios que, embora “naturais”, não se constituiriam por si sós.
"O intervencionismo liberal deve preocupar-se, em períodos de superoferta, em estimular o consumo, que é a única coisa que permite valorizar a produção, pois, se o volume da produção é função do preço de custo, apenas a demanda solvente determina seu valor comercial e social; e isso não pelos procedimentos esterilizantes da venda a crédito, mas distribuindo a maior parte dos benefícios de uma empresa na forma de dividendos para os acionistas e salários para os operários. Com isso, o Estado não terá como objetivo criar equilíbrios artificiais, mas restabelecer os equilíbrios naturais entre a poupança e os investimentos, a produção e o consumo, as exportações e as importações.[40]"
O capitalismo concorrencial não é um produto da natureza: ele é uma máquina que exige vigilância e regulação constantes. Percebe-se, no entanto, a falta de clareza em torno do “intervencionismo liberal” na versão dada por Rougier, que só poderia inquietar os liberais mais próximos da ortodoxia. Rougier mistura três dimensões diferentes na legitimação da política pública: o estabelecimento de um Estado de direito, uma política de adaptação às condições cambiantes e uma política que auxilia a realização dos “equilíbrios naturais”. Elas não são da mesma ordem. Uma coisa é romper com a “fobia do Estado”, tal como esta se manifestava exemplarmente em Spencer, outra é estabelecer o limite que separará a intervenção legítima da ilegítima. Como evitar cair nos vícios dos “políticos demagogos” e dos “doutrinários iluminados”? O critério absoluto é o respeito aos princípios da concorrência. Ao contrário de todos aqueles que explicam que “a concorrência mata a concorrência”, Rougier sustenta – como todos os liberais, aliás – que as distorções da concorrência são consequência sobretudo das ingerências do Estado, não de um processo endógeno. Desde o protecionismo alfandegário até a instauração de um monopólio, é sempre o Estado que, exclusivamente ou não, está na origem da limitação ou da supressão do regime concorrencial, em detrimento dos interesses do maior número de indivíduos. O que, todavia, introduz uma diferença entre essas posições é que, para Rougier, a concorrência só pode ser estabelecida pela ingerência do Estado. Esse é também o principal eixo do neoliberalismo alemão, como indica Von Rüstow durante o colóquio:
"Não é a concorrência que mata a concorrência. É antes a fraqueza intelectual e moral do Estado, que primeiro ignora e negligencia seus deveres de policial do mercado e deixa a concorrência degenerar e depois deixa cavaleiros rapinadores abusarem dos direitos dessa concorrência degenerada para lhe dar o golpe de misericórdia.[41]"
Para Rougier, o “retorno ao liberalismo” somente tem sentido pelo valor que se dá à “vida liberal”, que não é a selva dos egoísmos, mas o jogo regulado da realização de si mesmo. Por isso ele prega o “gosto da vida que resulta do fato de ela comportar um risco, mas dentro do quadro ordenado de um jogo cujas regras são conhecidas e respeitadas”[42].
Neoliberalismo e revolução capitalista
Lippmann, por sua vez, vai desenvolver uma argumentação muito diferente e, sem dúvida, mais consistente para justificar o neoliberalismo e explicar seu significado histórico. A seu ver, o coletivismo é uma “contrarrevolução”, uma “reação” à revolução verdadeira, surgida nas sociedades ocidentais. Porque, para ele, a verdadeira revolução é a da economia capitalista e comercial estendida a todo o planeta, a do capitalismo que altera continuamente os modos de vida, transformando o mercado no “regulador soberano dos especialistas numa economia baseada numa divisão do trabalho muito especializada”[43].
É o que os últimos liberais esqueceram e que torna obrigatória uma “redescoberta do liberalismo”. O liberalismo, na verdade, não é uma ideologia semelhante às outras, e menos ainda esse “enfeite descorado” do conservadorismo social no qual se transformou pouco a pouco. Ele é, para Lippmann, a única filosofia que pode conduzir a adaptação da sociedade e dos homens que a compõem à mutação industrial e comercial baseada na divisão do trabalho e na diferenciação dos interesses. É a única doutrina que, bem compreendida, pode construir a “Grande Sociedade” e fazê-la funcionar com harmonia: “O liberalismo não é, como o coletivismo, uma reação à Revolução Industrial; ele é a própria filosofia dessa Revolução Industrial”[44]. O caráter necessário do liberalismo, sua inserção no movimento das sociedades, acaba aparecendo como o correspondente da tese marxiana que faz do socialismo outra necessidade da história.
A economia baseada na divisão do trabalho e regulada pelos mercados é um sistema de produção que não pode ser fundamentalmente modificado. Trata-se de um dado da história, uma base histórica, da mesma forma que o sistema econômico dos caçadores-coletores. Mais ainda, trata-se de uma revolução muito semelhante àquela por que passou a humanidade no período Neolítico. O erro dos coletivistas é acreditar que se pode anular essa revolução social pelo domínio total dos processos econômicos; o erro dos manchesterianos é pensar que esse é um estado natural que não exige intervenções políticas.
A palavra mais importante na reflexão de Lippmann é adaptação. A agenda do neoliberalismo é guiada pela necessidade de uma adaptação permanente dos homens e das instituições a uma ordem econômica intrinsecamente variável, baseada numa concorrência generalizada e sem trégua. A política neoliberal é requerida para favorecer esse funcionamento, combatendo os privilégios, os monopólios e os rentistas. Ela visa a criar e preservar as condições de funcionamento do sistema concorrencial.
À revolução permanente dos métodos e das estruturas de produção deve corresponder igualmente a adaptação permanente dos modos de vida e das mentalidades. O que torna obrigatória uma intervenção permanente da força pública. Foi o que entenderam claramente os primeiros liberais, inspirados pela necessidade de reformas sociais e políticas, mas foi também o que esqueceram os “últimos liberais”, mais preocupados com a manutenção do que com a adaptação. A bem da verdade, os adeptos do laissez-faire supunham que esses problemas de adaptação se resolviam por magia ou, melhor, que nem existiam.
O neoliberalismo repousa sobre a dupla constatação de que o capitalismo inaugurou um período de revolução permanente na ordem econômica, mas que os homens não se adaptam espontaneamente a essa ordem de mercado cambiante, porque se formaram num mundo diferente. Essa é a justificação de uma política que deve visar à vida individual e social como um todo, como dirão os ordoliberais alemães depois de Lippmann. Essa política de adaptação da ordem social à divisão do trabalho é uma tarefa imensa, diz ele, que consiste em “dar à humanidade um novo tipo de vida”[45]. Lippmann é particularmente explícito acerca do caráter sistemático e completo da transformação social que se deve operar:
"A má adaptação se deve ao fato de que houve uma revolução no modo de produção. Como essa revolução se deu entre homens que herdaram um tipo de vida radicalmente diferente, o reajuste necessário deve estender-se a toda a ordem social. Provavelmente, ele deve prosseguir enquanto durar a própria Revolução Industrial. Não pode haver um momento nele em que a “nova ordem” esteja realizada. Pela natureza das coisas, uma economia dinâmica deve necessariamente estar alojada numa ordem social progressista.[46]"
É precisamente ao Estado e à legislação produzida ou garantida por ele que cabe inserir as atividades produtoras e comerciais em relações evolutivas, enquadrá-las em normas harmônicas com a especialização produtiva e a extensão das trocas comerciais. Longe de negar a necessidade de um quadro social, moral e político para melhor deixar funcionarem os mecanismos supostamente naturais da economia de mercado, o neoliberalismo deve ajudar a redefinir um novo quadro que seja compatível com a nova estrutura econômica.
Mais ainda, a política neoliberal deve mudar o próprio homem. Numa economia em constante movimento, a adaptação é uma tarefa sempre atual para que se possa recriar uma harmonia entre a maneira como ele vive e pensa e as condicionantes econômicas às quais deve se submeter. Nascido num estado antigo, herdeiro de hábitos, modos de consciência e condicionamentos inscritos no passado, o homem é um inadaptado crônico que deve ser objeto de políticas específicas de readaptação e modernização. E essas políticas devem chegar ao ponto de mudar a própria maneira como o homem concebe sua vida e seu destino a fim de evitar os sofrimentos morais e os conflitos inter ou intraindividuais:
"Os verdadeiros problemas das sociedades modernas colocam-se em qualquer lugar onde a ordem social não seja compatível com as necessidades da divisão do trabalho. Um exame dos problemas atuais não seria mais do que um catálogo dessas incompatibilidades. O catálogo começaria pela hereditariedade, enumeraria todos os costumes, as leis, as instituições e as políticas e somente terminaria após tratar da noção que o homem tem de seu destino sobre a Terra, de suas ideias sobre sua alma e a de todos os outros homens. Pois todo conflito entre a herança social e a forma como os homens devem ganhar a vida acarreta necessariamente uma desordem em seus negócios e uma divisão em seus espíritos. Quando a herança social e a economia não formam um todo homogêneo, há necessariamente revolta contra o mundo ou renúncia ao mundo. Por isso, em épocas como a nossa, em que a sociedade se encontra em conflito com as condições de sua existência, o descontentamento leva alguns à violência, e outros ao ascetismo e ao culto do além. Quando os tempos são conturbados, uns erguem barricadas e outros entram para o convento.[47]"
Para evitar essas crises de adaptação, convém pôr em prática um conjunto de reformas sociais, que são uma verdadeira política da condição humana nas sociedades ocidentais. Lippmann aponta dois aspectos propriamente humanos dessa política global de adaptação à competição: a eugenia e a educação. A adaptação exige novos homens, dotados de qualidades não apenas diferentes, mas também superiores das que dispunham os antigos homens:
"A economia necessita não apenas que a qualidade da espécie humana, que o equipamento dos homens diante da vida, seja mantida num grau mínimo de qualidade, mas também que essa qualidade seja progressivamente melhorada. Para viver com sucesso num mundo de interdependência crescente do trabalho especializado, é preciso um crescimento contínuo das faculdades de adaptação, da inteligência e da compreensão esclarecida dos direitos e dos deveres recíprocos, dos benefícios e das possibilidades desse tipo de vida.[48]"
É preciso, em particular, uma grande política de educação das massas que prepare os homens para as funções econômicas especializadas que os aguardam e para o espírito do capitalismo a que devem aderir para viver “em paz numa Grande Sociedade de membros interdependentes”[49]:
"Educar grandes massas, equipar os homens para uma vida em que devem especializar-se, mas ao mesmo tempo ainda ser capazes de mudar de especialidade, eis o imenso problema ainda não resolvido. A economia da divisão do trabalho exige que esses problemas de eugenia e educação sejam efetivamente tratados, e a economia clássica supõe que eles o sejam.[50]"
O que torna necessária essa grande política de educação praticada em benefício das massas, e não mais apenas de uma pequena elite cultivada, é que os homens terão de mudar de cargo e empresa, adaptar-se às novas técnicas, enfrentar a concorrência generalizada. A educação, em Lippmann, não é da ordem da argumentação republicana tradicional, mas da ordem da lógica adaptativa, que é a única coisa que justifica o custo escolar: “É para tornar os homens aptos ao novo tipo de vida que o liberalismo pretende consagrar parte considerável do orçamento público à educação”[51].
A política que Lippmann promove tem outros aspectos que a aproximam, como veremos adiante, dos temas da sociologia ordoliberal de Röpke e Von Rüstow: proteção do contexto de vida, da natureza, dos bairros e das cidades. Os homens devem ter mobilidade econômica, mas não devem viver como nômades sem raízes, sem passado. A questão da integração social nas comunidades locais, muito presente na cultura norte-americana, faz parte dos contrapesos necessários ao desenvolvimento da economia mercantil: “Não há dúvida de que a Revolução Industrial descivilizou grandes massas de homens, tirando-os de seus lares ancestrais e juntando-os em grandes subúrbios sombrios e anônimos, repletos de casebres superpovoados”[52]. Assim como os ordoliberais alemães do pós-guerra, Lippmann não vê contradição entre o tipo de economia que deseja ver perdurar, na medida em que a considera um dado histórico insuperável, e as consequências sociais que ela pode gerar. A seu ver, a defesa de uma sociedade integrada e estabilizada é da alçada da política social, exatamente da mesma maneira como a luta contra o coletivismo das grandes holdings é necessária para manter a concorrência. Sob certos aspectos, esse neoliberalismo, que se pretende uma política de adaptação, leva a certa hostilidade em relação às formas adquiridas pelo capitalismo das grandes unidades. É desse modo que podemos compreender a vontade de lutar contra a manipulação dos monopólios e o desejo de ver ampliada a vigilância sobre as transações comerciais e financeiras: “Numa sociedade liberal, o aprimoramento dos mercados deve ser objeto de estudo incessante. Trata-se de um vasto domínio de reformas necessárias”[53].
Não devemos nos esquecer, porém, que essa reinvenção do liberalismo não se deixa iludir sobre as necessidades políticas ligadas ao funcionamento dos mercados, em particular no plano da mobilização, da formação da força de trabalho e de sua reprodução em estruturas sociais e institucionais estáveis e eficazes. Essa é, sem dúvida, a principal preocupação de La cité libre, como indica a justificação do imposto progressivo destinado, entre outras coisas, à educação dos produtores, mas também a sua indenização, em caso de demissão, a fim de ajudá-los a reciclar-se e reposicionar-se: “Não há nenhuma razão para que um Estado liberal não assegure e não indenize os homens contra os riscos do progresso dele próprio. Ao contrário, ele tem todas as razões em fazê-lo”[54].
O império da lei
Dissemos anteriormente como a crítica neoliberal de Lippmann ao naturalismo ia ao encontro da concepção benthamiana do papel criador da lei, em particular no campo da ação econômica. A ideia de que a propriedade não está inscrita na natureza, mas é produto de um entroncamento de direitos complicado, variável, diferenciado, é incontestavelmente comum a ambos. Encontramos a mesma preocupação com a mudança do arcabouço legal em função das evoluções sociais e econômicas, contra as concepções conservadoras do jusnaturalismo. Num sistema econômico em permanente evolução, a lei deve ser modificada quando necessário. Mas Lippmann demonstra muito mais simpatia que Bentham pela prática jurisprudencial da Common Law e muito mais desconfiança acerca da criação parlamentar da lei. Mostra, muito antes de Hayek, que há uma afinidade de espírito entre o modo de criação da lei na prática anglo-saxã e as necessidades de coordenação dos indivíduos nas sociedades modernas.
A questão da arte do governo é central. Os adeptos do coletivismo e os do laissez-faire equivocam-se por razões contrárias sobre a ordem política correspondente a um sistema de divisão do trabalho e troca. Uns querem administrar todas as relações dos homens entre eles, e os outros gostariam de acreditar que essas relações são livres por natureza. A democracia é o império da lei para todos, é o governo pela lei comum feita pelos homens: “Numa sociedade livre, o Estado não administra os negócios dos homens. Ele administra a justiça entre os homens, que conduzem eles mesmos seus próprios negócios”[55]. É verdade que não se chegou facilmente a essa concepção, como atestam os debates desde o fim do século XVIII.
Como organizar o Estado numa época em que o povo é o detentor legítimo do poder para fazê-lo servir aos interesses das massas? Esse é o grande problema da constituição que os founding fathers impuseram a si mesmos – e é igualmente o dos republicanos franceses e dos democratas radicais ingleses. Segundo Lippmann, o modo de governo liberal não tem relação com a ideologia, mas com a necessidade de estrutura, como dissemos anteriormente. Ele resulta da própria natureza dos laços sociais dentro da sociedade mercantil.
A divisão do trabalho impõe certo tipo de política liberal e veda a arbitrariedade de um poder ditatorial que dispõe dos indivíduos como bem entende. No plano político, uma sociedade civil composta de agentes econômicos é impossível de ser dirigida por ordens e decretos, como se se tratasse de uma organização hierarquizada. O que se pode fazer é conciliar interesses diferenciados, determinando uma lei comum. “O sistema liberal se esforça para definir o que um homem pode esperar dos outros, inclusive dos funcionários do Estado, e assegurar a realização dessa expectativa.”[56] Essa concepção das relações sociais define o único modo de governo possível de uma cidade livre que limita a arbitrariedade e não pretende dirigir os indivíduos.
Uma lei é uma regra geral das relações entre indivíduos privados, ela expressa apenas as relações gerais dos homens entre si. Não é nem emanação de uma potência transcendente nem propriedade natural do indivíduo. É um modo de organização dos direitos e dos deveres recíprocos dos indivíduos em relação uns aos outros, objetos de mudanças contínuas em função da evolução social. O governo liberal pela lei comum, explica Lippmann, “é o controle social exercido não por uma autoridade superior que dá ordens, mas por uma lei comum que define os direitos e os deveres recíprocos das pessoas e as convida a fazer cumprir a lei, submetendo seus casos específicos a um tribunal”[57]. Essa concepção da lei estende o campo dos direitos privados ao conjunto do direito como instituição das obrigações relativas dos indivíduos em relação uns aos outros.
Lippmann retoma a concepção relacional da lei, que era a dos primeiros liberais. Explica que não somos pequenas soberanias independentes, como Robinsons Crusoés numa ilha; somos ligados a um conjunto denso de obrigações e direitos, que estabelecem certa reciprocidade em nossas relações.
Esses direitos não são copiados da natureza, tampouco deduzidos de um dogma proclamado de uma vez por todas, e menos ainda uma produção de um legislador onisciente. Eles são produto de uma evolução, de uma experiência coletiva das necessidades de regulamentação surgidas da multiplicação e da modificação das transações interindividuais. Muito antes de Hayek, Lippmann, herdeiro dos escoceses Hume e Ferguson, apresenta a formação da sociedade civil como resultado de um processo de descoberta da regra geral que deve governar as relações recíprocas dos homens e, por isso mesmo, contribui para civilizá-los, no sentido de que a aplicação do direito civil obedece ao princípio geral e simples da rejeição da arbitrariedade em suas relações. Esse princípio de civilização assegura a cada um uma esfera de liberdade, fruto de restrições no exercício do poder arbitrário do homem sobre o homem. O desenvolvimento da lei, que é a negação da possibilidade de agressão do outro, é o que permite liberar as faculdades produtoras e as energias criadoras.
Para Lippmann, a nova governamentalidade é essencialmente judiciária: mais do que curvar-se à forma de administração da justiça em toda a sua extensão e todos os seus procedimentos, ela cumpre uma operação integralmente judiciária em seu conteúdo e seu alcance. A oposição simplista entre intervenção e não intervenção do Estado, tão pregnante na tradição liberal, impediu a compreensão do papel efetivo do Estado na criação jurídica e inibiu as possibilidades de adaptação. O conjunto de normas produzidas pelos costumes, pela interpretação dos juízes e pela legislação, com a garantia do Estado, evolui por um trabalho constante de adaptação, por uma reforma permanente que faz da política liberal uma função essencialmente judiciária. Não há diferença de natureza nas operações dos poderes Executivo, Legislativo ou propriamente Judiciário: todos devem julgar, em cenários diferentes e de acordo com procedimentos distintos, reivindicações muitas vezes contraditórias de grupos e indivíduos com interesses diferentes. A lei como regra geral visa a assegurar obrigações equitativas entre indivíduos com interesses particulares. Todas as instituições liberais exercem um julgamento sobre os interesses. Adotar uma lei é decidir entre interesses em conflito. O legislador não é uma autoridade que ordena e impõe, mas um juiz que decide entre interesses. O modelo mais puro é, pois, o da Common Law, em oposição ao direito romano, do qual provém a teoria moderna da soberania.
A administração da justiça, essencialmente comutativa, tem um lugar vital num universo social em que os conflitos de interesse são inevitáveis. Porque os interesses particulares se diferenciaram na “Grande Sociedade”, uma imagem cara aos primeiros liberais, é que o modo de governo deve mudar, passando do “método autoritário” para o “método recíproco” do controle social. Os arranjos normativos servem para tornar compatíveis as reivindicações individuais pela definição e pelo respeito das obrigações recíprocas, de acordo com uma lógica essencialmente horizontal. O soberano não governa por decreto, não é a expressão de um fim coletivo nem mesmo o da “maior felicidade para o maior número de pessoas”. A regra liberal do governo consiste em confiar na ação privada dos indivíduos e não apelar para a autoridade pública para determinar o que é melhor fazer ou pensar. Esse é o princípio do limite da coerção do Estado. O que, como veremos adiante, pressupõe uma desconfiança com relação ao poder do povo pelo povo.
O ponto essencial em Lippmann é, sem dúvida, que não se podem pensar independentemente a economia e o sistema normativo. A implicação recíproca entre eles parte da consideração da interdependência generalizada dos interesses na sociedade civil. A descoberta progressiva dos princípios do direito é simultaneamente produto e fator dessa “Grande Sociedade”, na qual cada um é ligado aos outros para a satisfação de seu próprio interesse:
"Os homens tornados dependentes uns dos outros pela troca de trabalho especializado em mercados cada vez mais estendidos deram-se como arcabouço jurídico um método de controle social que consiste em definir, julgar e corrigir direitos e obrigações recíprocos, e não mandar por decreto.[58]"
O exercício desse novo modo de governo acabou aumentando o campo de interdependência, fazendo entrar cada vez mais indivíduos e povos na rede de transações e competições, a ponto de ser possível imaginar uma “Grande Sociedade” em escala planetária, resultado lógico da divisão mundial do trabalho. Longe de constituir um governo mundial ou um império, a nova sociedade civil estabelecerá relações pacíficas entre povos independentes, graças ao fortalecimento da divisão mundial do trabalho, ela própria ligada à “aceitação crescente no mundo inteiro dos princípios essenciais de uma lei comum que todos os parlamentos representantes das diferentes coletividades humanas respeitam e adaptam à diversidade de suas condições”[59].
Um governo das elites
O que distingue o coletivismo do Estado forte liberal? Os coletivistas se iludem a respeito de sua capacidade de dominar o conjunto das relações econômicas numa sociedade tão diferenciada como a sociedade moderna. A experiência da Primeira Guerra Mundial e da Revolução de 1917 levou à crença na possibilidade de uma gestão direta e total das relações econômicas. No entanto, os homens não podem dirigir a ordem social, dadas a complexidade e a sobreposição dos interesses: “Quanto mais complexos os interesses que se devem dirigir, menos possível é dirigi-los mediante a coerção exercida por uma autoridade superior”[60].
Mas não nos enganemos. Não se trata de diminuir a força dessa autoridade. Trata-se de mudar o tipo de autoridade, seu campo de exercício. Ela terá de se satisfazer em ser fiadora de uma lei comum que governará indiretamente os interesses. Apenas um Estado forte terá condições de fazer respeitar essa lei comum. Como sublinha Lippmann em todas as suas publicações, é preciso voltar atrás na ilusão de um poder governamental fraco, tal como esta se difundiu durante o século XIX. Essa grande crença liberal no Estado discreto, supérfluo, não é mais admissível desde 1914 e 1917:
"Enquanto a paz parecia assegurada, o bem público residia no agregado de transações privadas. Não havia necessidade de um poder que excedesse os interesses particulares e os mantivesse numa ordem dada, dirigindo-os. Isso, como sabemos agora, era apenas um sonho de um dia excepcionalmente ensolarado. O sonho acabou quando estourou a Primeira Guerra Mundial.[61]"
A tese do Estado forte leva os neoliberais a reconsiderar o que se entende por democracia e, mais particularmente, por “soberania do povo”. O Estado forte somente pode ser governado por uma elite competente, cujas qualidades são o exato oposto da mentalidade mágica e impaciente das massas:
"É preciso que as democracias se reformulem constitucionalmente de maneira que aqueles aos quais elas confiam as responsabilidades do poder considerem-se não os representantes dos interesses econômicos e dos apetites populares, mas os garantidores do interesse geral contra os interesses particulares; não instigadores de promessas eleitorais, mas moderadores das reivindicações sindicais; atribuindo-se como tarefa fazer todos respeitarem as regras comuns da competição individual e das expectativas coletivas; impedindo que minorias ativas ou maiorias iluminadas desvirtuem a seu favor a lealdade do combate que deve assegurar, para o benefício de todos, a seleção das elites. É preciso que elas inculquem nas massas, pela voz dos novos professores, o respeito das competências, a honra de colaborar numa obra comum.[62]"
Esse é um traço comum entre as teses políticas de Rougier, que as desenvolveu em La mystique démocratique[63], e as posições de Lippmann a favor de um governo das elites[64]. Encontraremos essa redefinição da democracia na concepção hayekiana de “demarquia”[65]. Muito antes de La cité libre, em textos sobre a opinião pública e os problemas de governo nas democracias, Lippmann examinou longamente a impossibilidade de conciliar um sistema imparcial de regras do jogo e o princípio efetivo da soberania popular segundo o qual as massas poderiam ditar seus desejos aos governantes.
A opinião pública, objeto de duas obras importantes de Lippmann nos anos 1920, impede os governantes de tomar as medidas que se impõem, especialmente com relação à guerra ou à paz. O fato de que os povos têm influência demais por intermédio da opinião pública e do sufrágio universal constitui a fraqueza congênita das democracias. Esse dogma democrático considera que os governantes devem seguir a opinião majoritária, os interesses do maior número de indivíduos, o que é ir no sentido do que é mais agradável e menos penoso. É preciso, ao contrário, deixar os governantes governarem e limitar o poder do povo à nomeação dos governantes, segundo uma linha “jeffersoniana”. O essencial é proteger o governo executivo das interferências caprichosas da população, que é a causa do enfraquecimento e da instabilidade dos regimes democráticos. O povo deve nomear quem o dirigirá, e não dizer a cada instante o que deve ser feito. Essa é a condição para evitar que o Estado seja conduzido a uma intervenção generalizada e ilimitada. Daí a necessidade de uma tecnologia política que o impeça de ser submetido aos interesses particulares, como é o caso do parlamentarismo. Lippmann, do qual já se disse que em política era “platônico”, em todo caso tem o mérito da coerência[66].
O quadro geral do neoliberalismo foi esboçado nos anos 1930, antes de Friedrich Hayek tomar a frente do movimento na esteira de O caminho da servidão. As relações entre essa fase inaugural e a evolução do neoliberalismo após 1947 e a criação da Sociedade Mont-Pèlerin não podem ser compreendidas apenas em termos de “radicalização” ou “retorno ao liberalismo clássico” em oposição aos desvios intervencionistas surgidos em 1938[67]. O desenvolvimento do pensamento de Hayek, em particular, não pode ser entendido simplesmente como uma “reafirmação” dos princípios antigos, já que integrará de forma singular a crítica do velho laissez-faire e a necessidade de um “código de trânsito” firme e rigoroso. Esse pensamento, que pode ser visto como uma resposta original aos problemas postos pela redefinição do liberalismo, tenta articular as posições da maioria e da minoria do Colóquio Walter Lippmann, permitindo ao menos por um tempo que ordoliberais alemães e austro-americanos se mantenham na mesma corrente.
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[1] A respeito da história da Sociedade Mont-Pèlerin, ver Ronald Max Hartwell, A History of the Mont Pelerin Society (Indianápolis, Liberty Fund, 1995).
[2] Para mais detalhes, ver François Denord, “Aux origines du néolibéralisme en France: Louis Rougier et le Colloque Walter Lippmann de 1938”, Le Mouvement Social, n. 195, 2001, p. 9-34, e, mais recente, o livro abundantemente documentado de Serge Audier, Le Colloque Lippmann: aux origines du néolibéralisme (Latresne, Le Bord de l’Eau, 2008).
[3] Walter Lippmann, La cité libre (trad. Georges Blumberg, Paris, Librairie de Médicis, 1938). Lippmann, jornalista e editorialista norte-americano, famoso pelas análises de opinião pública e política estrangeira norte-americana, esteve entre as duas guerras no cruzamento do “novo liberalismo” com o neoliberalismo. Em Drift and Mastery (1913), ele se pronuncia a favor de um controle científico da economia e da sociedade. Mais tarde, seus escritos sobre a Grande Depressão e o New Deal darão continuidade a sua tese de que não existem liberdades sem intervenção governamental. Em The New Imperative (1935), salienta que o “novo imperativo” político, que foi posto em prática com as políticas de resposta à crise, consiste em o Estado “assumir a responsabilidade pela condição de vida dos cidadãos”. Em sua opinião, essas políticas, adotadas tanto por Hoover como por Roosevelt, inauguraram um “New Deal permanente” em ruptura com a ideologia do laissez-faire anterior a 1929, dando ao governo uma nova função, que consiste em “usar de todos os seus poderes para regular o ciclo dos negócios”. Se o governo da economia moderna é indispensável, resta determinar a melhor política possível. Todos os seus esforços visarão a repensar um modo de governo liberal. Ver Ronald Steel, Walter Lippmann and the American Century (Boston, Little Brown, 1980).
[4] Walter Lippmann, La cité libre, cit., p. 272.
[5] A expressão já havia sido utilizada antes do colóquio, em particular por Gaëtan Pirou.
[6] Louis Rougier vê as discussões do colóquio como a continuação de uma série de trabalhos já publicados que se identificavam com o liberalismo e cujo tema em comum era a “crise do capitalismo”. Ele menciona as obras de Jacques Rueff, La crise du capitalisme (1935), Louis Marlio, Le sort du capitalisme (1938), e Bernard Lavergne, Grandeur et déclin du capitalisme (1938).
[7] Travaux du Centre International d’Études pour la Rénovation du Libéralisme, Le Colloque Lippmann (Paris, Librairie de Médicis, 1939), p. 15. A ata do colóquio foi publicada recentemente por Serge Audier, Le Colloque Lippmann, cit.
[8] O consenso em torno desse ponto não é geral. Prova da “complexidade do neoliberalismo francês”, segundo Serge Audier, é que alguns participantes do Colóquio Walter Lippmann são partidários dos “progressos sociais” e do “liberalismo social”. É o caso já citado de Louis Marlio e Bernard Lavergne. Serge Audier, Le Colloque Lippmann, cit., p. 140-57 e 172-80.
[9] Veremos mais adiante o quanto autores como Von Mises e, sobretudo, Hayek desenvolveram reflexões originais que não podem ser simplesmente assimiladas ao velho laissez-faire.
[10] Henri Truchy, “Libéralisme économique et économie dirigée”, L’Année Politique Française et Étrangère, dez. 1934, p. 366, citado em François Denord, “Aux origines du néolibéralisme en France”, cit.
[11] Fazemos uma apresentação destes últimos no capítulo 3.
[12] Jacques Rueff, La crise du capitalisme (Paris, Éditions de la Revue Bleue, 1936).
[13] Ibidem, p. 5.
[14] Ibidem, p. 6.
[15] Serge Audier, Le Colloque Lippmann, cit., p. 69.
[16] Idem.
[17] Ibidem, p. 71.
[18] Ibidem, p. 74.
[19] Ibidem, p. 37.
[20] François Denord comenta essas palavras da seguinte maneira: “Em público, Rüstow respeita as regras do decoro universitário, mas, em particular, confessa a Wilhelm Röpke a péssima opinião que tem de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises: o lugar deles é no museu, conservados em formol. São pessoas desse tipo que são responsáveis pela grande crise do século XX”. François Denord, “Aux origines du néolibéralisme en France”, cit., p. 88.
[21] Serge Audier, Le Colloque Lippmann, cit., p. 15-6.
[22] Lippmann explica em La cité libre (cit., p. 335-6) que os funcionários públicos existem para fazer o código de trânsito ser respeitado, não para dizer aonde devemos ir.
[a] Trad. Anna Maria Capovilla, José Italo Stelle e Liane de Morais Ribeiro, 5. ed., Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1994. (N. E.)
[23] Ver Louis Rougier, Les mystiques économiques: comment l’on passe des démocraties libérales aux États totalitaires (Paris, Librairie de Médicis, 1938).
[24] Segundo Rougier, a crença naturalista é um misticismo, porém menos grosseiro que a doutrina coletivista, que é pura crença mágica nos poderes absolutos da razão humana sobre os processos sociais e políticos. Logo, existem graus no misticismo.
[25] Walter Lippmann, La cité libre, cit., p. 221 e seg.
[26] Ibidem, p. 228.
[27] Lippmann não faz distinção entre esses dois autores porque não leva em conta as dúvidas e nem as inflexões de Mill.
[28] Walter Lippmann, La cité libre, cit., p. 230.
[29] Ibidem, p. 293.
[30] Ver ibidem, p. 252.
[31] Ibidem, p. 320-1.
[32] Ibidem, p. 244.
[33] Ibidem, p. 234-5.
[34] Ibidem, p. 329.
[35] Louis Rougier, Les mystiques économiques, cit., p. 84.
[36] Ibidem, p. 10.
[37] Ibidem, p. 192.
[38] Idem.
[39] Ibidem, p. 194.
[40] Ibidem, p. 85.
[41] Serge Audier, Le Colloque Lippmann, cit., p. 41.
[42] Louis Rougier, Les mystiques économiques, cit., p. 4.
[43] Walter Lippmann, La cité libre, cit., p. 209.
[44] Ibidem, p. 285.
[45] Ibidem, p. 272.
[46] Ibidem, p. 256.
[47] Ibidem, p. 256-7.
[48] Ibidem, p. 258.
[49] Ibidem, p. 285.
[50] Ibidem, p. 258.
[51] Ibidem, p. 285.
[52] Ibidem, p. 260.
[53] Ibidem, p. 268.
[54] Ibidem, p. 270.
[55] Ibidem, p. 318.
[56] Ibidem, p. 343.
[57] Ibidem, p. 316.
[58] Ibidem, p. 385.
[59] Ibidem, p. 383.
[60] Ibidem, p. 57.
[61] Walter Lippmann, Crépuscule des démocraties? (trad. Maria Luz, Paris, Fasquelle, 1956), p. 18.
[62] Louis Rougier, Les mystiques économiques, cit., p. 18-9.
[63] Idem, La mystique démocratique (ses origines, ses illusions) [1929] (Paris, Albatros, 1983).
[64] Ver Francis Urbain Clave, “Walter Lippmann et le néolibéralisme de La cité libre”, Cahiers d’Économie Politique, v. 48, 2005, p. 79-110.
[65] Ver capítulo 4 deste volume.
[66] Sua admiração e amizade por Charles de Gaulle baseavam-se nessa encarnação do Estado acima dos interesses particulares. Notaremos, aliás, que muitos outros liberais, em especial na França, consideravam De Gaulle um modelo político tipicamente neoliberal, de Jacques Rueff a Raymond Barre, passando por Raymond Aron. Ver Francis Urbain Clave, “Walter Lippmann et le néolibéralisme de La cité libre”, cit., p. 91.
[67] Essa é a interpretação equivocada de Alain Laurent em Le libéralisme américain:
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