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ESTADO FORTE, GUARDIÃO DO DIREITO PRIVADO
Friedrich Hayek tende com frequência a subestimar retrospectivamente o papel determinante do Colóquio Walter Lippmann na “renovação” do liberalismo. Essa tendência revela-se de maneira particularmente clara numa nota acrescentada posteriormente a um artigo de 1951, intitulado “A transmissão dos ideais de liberdade econômica”. No momento de apresentar o “grupo alemão” dos ordoliberais (Walter Eucken, Wilhelm Röpke), Hayek escreve o seguinte:
"Na versão original deste artigo, imperdoavelmente, esqueci-me de citar um princípio promissor desse renascimento liberal que, se bem que interrompido pelo estouro da guerra em 1939, permitiu muitos contatos pessoais que formaram a base de um esforço renovado, em escala internacional, após a guerra. Em 1937, Walter Lippmann arrebatou e encorajou os liberais com a publicação de sua brilhante reafirmação dos ideais fundamentais do liberalismo clássico em The Good Society.[1]"
Vimos anteriormente o que foi essa suposta “reafirmação”, que pretendia ser, na realidade, uma verdadeira “revisão”[2]. A confissão contida nessa nota diz muito sobre a vontade de negar qualquer descontinuidade entre liberalismo e neoliberalismo. Contudo, seria um equívoco concluir disso que Hayek teria pura e simplesmente ignorado a contribuição do Colóquio Lippmann. Na realidade, ele sempre demonstrará preocupação em desvincular-se do velho liberalismo manchesteriano, diretamente alinhado com a crítica esboçada em agosto de 1938[3].
Por conseguinte, o liberalismo “renovado”, longe de condenar por princípio a intervenção do Estado como tal, teve a originalidade de substituir a alternativa da “intervenção ou não intervenção” pela questão sobre qual deve ser a natureza de suas intervenções. Mais precisamente ainda, a questão é diferenciar as intervenções legítimas das ilegítimas. É o que diz de maneira absolutamente explícita O caminho da servidão: “O Estado deve ou não ‘agir’ ou ‘intervir’? – apresentar a alternativa dessa forma é desviar a questão. O termo laissez-faire é extremamente ambíguo e serve apenas para deformar os princípios sobre os quais repousa a política liberal”[4]. Em resumo, “o que importa é mais o caráter da atividade do governo do que seu volume”[5]. A repetição dessas formulações permite verificar que certa crítica das insuficiências do “velho liberalismo”, esboçada pelo Colóquio Lippmann, foi ampla e duradouramente compartilhada por aquele que veio a ser o principal artífice do “renascimento liberal” após a guerra.
Nem laissez-faire... nem “fins sociais”
Todavia, não devemos nos deixar enganar por essa proximidade entre as críticas. Com efeito, ela não implica em absoluto uma plena comunhão de visões sobre a natureza das intervenções que o Estado deve levar a cabo e o critério de legitimidade destas últimas. O melhor indício de que há um desacordo persistente nessas críticas é dado por algo que, à primeira vista, parece ligado a uma discordância puramente terminológica. O que está em questão é o sentido de uma palavrinha: “social”. Um ensaio de Hayek, “Social? O que quer dizer isso?” [6], publicado em 1957, evidencia a que ponto esse termo consegue materializar uma divergência irredutível com o ordoliberalismo alemão. Para Hayek, o erro dessa corrente é alimentar uma confusão conceitual entre as condições da ordem de mercado e as exigências “morais” da justiça. Na realidade, os promotores da “economia social de mercado” sempre tiveram certa preocupação com a “justiça social”[7] – pudemos constatar que tal pretensão satura a palavra “social” de todos os equívocos[8].
Por isso, Hayek continuará a bater na mesma tecla. Além do ensaio de 1957, dois outros textos vão exatamente na mesma direção. Em primeiro lugar, a conferência intitulada “Tipos de racionalismo” (1964), que retoma a mesma crítica básica contra “uma das palavras mais enganadoras e mais daninhas de nosso tempo”, na medida em que:
"a palavra “social” priva de qualquer conteúdo preciso os termos com os quais é combinada (como nas expressões alemãs “soziale Marktwirtschaft” ou “sozialer Rechtsstaat”) [...]. Em consequência, senti-me obrigado a tomar posição contra a palavra “social” e demonstrar, em particular, que o conceito de justiça social não possuía o menor significado e criava uma ilusão enganadora que pessoas de ideias claras devem evitar.[9]"
Em segundo lugar, um desenvolvimento dedicado ao sentido da palavra “social” no segundo volume de Direito, legislação e liberdade (1973):
"Fala-se não apenas de “justiça social”, mas também de “democracia social”, “economia social de mercado” e “Estado de direito social” (ou soberania social da lei – em alemão, sozialer Rechtsstaat); e, embora justiça, democracia, economia de mercado e Estado de direito sejam expressões de sentido absolutamente claro, a adição do adjetivo “social” as torna susceptíveis de designar quase qualquer coisa que se queira.[10]"
Compreende-se melhor, a partir daí, que a posição de Hayek sobre a espinhosa questão da legitimidade da intervenção governamental deva ser situada no quadro que acabamos de delimitar de forma inteiramente negativa: de um lado, uma crítica das insuficiências do liberalismo manchesteriano, cuja função é justificar certo tipo de intervenção, a qual tudo leva a entender que se tornou indispensável por causa do papel fundamental do “arcabouço jurídico” para o bom funcionamento do mercado; de outro lado, uma rejeição de princípio a qualquer forma de atribuição ao governo de objetivos “sociais”, pelo motivo fundamental de que tais objetivos implicam uma concepção artificialista da sociedade segundo a qual esta poderia ser conscientemente dirigida para fins coletivos susceptíveis de ser positivamente definidos[11].
Em última análise, a questão é como legitimar certo tipo de intervenção governamental (contra a doutrina do laissez-faire), sem admitir que a ordem de mercado que cria, segundo Hayek, a coesão da sociedade é uma ordem artificial (em particular contra os neoliberais alemães, visto que essa é uma de suas teses principais). Responder a essa questão implica esclarecer o status do próprio arcabouço jurídico (pertence ele à ordem do artifício ou, ao contrário, a certa forma de “naturalidade”?) e, mais amplamente, examinar a concepção alternativa de sociedade que Hayek contrapõe a qualquer concepção artificialista.
A “ordem espontânea do mercado” ou “catalaxia”
Num artigo muito pouco conhecido que marca uma virada na elaboração de seu pensamento, significativamente intitulado “O resultado da ação humana, mas não de um desígnio humano”[12], Hayek complica a oposição clássica entre “natural” e “convencional”, elaborando uma divisão tripartite entre três tipos de fenômenos. Na verdade, o principal inconveniente da oposição clássica que herdamos dos sofistas gregos entre o que é phusei e o que é thesei ou nomô é que ela pode significar tanto a diferença entre o que resulta da ação humana e o que independe dela como a diferença entre o que resulta de uma vontade humana e o que independe dela. Hayek defende que isso é fonte de confusão: o que independe da vontade humana não é necessariamente independente da ação humana; alguns resultados da ação humana podem não ter sido desejados por si mesmos e, ainda assim, fazer surgir uma forma de ordem ou regularidade.
Assim, convém introduzir entre o artificial (o que procede diretamente de uma vontade humana) e o natural (o que é independente da ação humana) uma “categoria intermediária”: a de uma classe de fenômenos correspondente a todas as estruturas que são independentes de qualquer intenção e, ainda assim, são resultantes da ação humana. Na sistematização que posteriormente se deu a essa divisão tripartite, temos: taxis, termo grego que designa uma ordem construída pelo homem, segundo um desígnio claramente estabelecido, na maioria das vezes por meio de um plano (essa ordem será denominada “ordem fabricada” ou “artificial”, o que Hayek designará com frequência pelo termo “organização” – pode ser uma habitação, uma instituição ou um código de regras); kosmos, termo grego que designa uma ordem independente da vontade humana, na medida em que encontra em si mesma seu próprio princípio motor (essa ordem será denominada “ordem natural” ou “ordem amadurecida” – um organismo, por exemplo, é uma ordem natural); por último, o terceiro tipo de ordem, que Hayek denominará “ordem espontânea” (spontaneous order) e que escapa da alternativa entre o artificial e o natural na medida em que agrupa todos os fenômenos que resultam da ação humana, mas nem por isso são resultado de um desígnio (design) humano. O ganho conceitual obtido com essa tripartição é decisivo porque permite pensar a ordem específica que constitui o mercado: a ordem de mercado é, na realidade, uma ordem espontânea, de forma alguma uma ordem artificial.
Essa tese, que ocupa um lugar central no pensamento de Hayek, comporta vários aspectos. O primeiro é que não se deve confundir a ordem do mercado com uma “economia”. No sentido estrito do termo, uma “economia” (por exemplo, um lar, uma fazenda, uma empresa) é uma “organização” ou um “arranjo” deliberado de alguns recursos a serviço de um mesmo fim ou “ordem unitária de fins”, que, como tal, pertence à esfera da taxis[13]. Ao contrário de uma economia, a ordem do mercado é independente de qualquer objetivo em particular, por isso “pode ser utilizada para perseguir inúmeros objetivos individuais divergentes e até opostos”. Em resumo, repousa não sobre objetivos comuns, “mas sobre a reciprocidade, isto é, sobre a conciliação de diferentes objetivos, em benefício mútuo dos participantes”[14].
O segundo aspecto é que a coesão da ordem de mercado é possibilitada por regras formais que valem precisamente em razão de sua generalidade: toda regra que derive de determinado fim seria nociva, porque, ao prescrever uma conduta (a que corresponde a determinado fim e a nenhum outro), apenas perturbaria o funcionamento de uma ordem que é, por princípio, independente de qualquer fim particular. Tais regras, portanto, não podem estabelecer o que as pessoas devem fazer, mas somente o que não devem fazer: consistem “unicamente em interdições de invasão do domínio protegido do outro”[15]. Hayek chama essas regras de leis para distingui-las das prescrições positivas particulares (também conhecidos como mandamentos[16]), de modo que a ordem de mercado pode ser caracterizada como nomocracia (regida pela lei), não como teleocracia (regida por um fim ou fins)[17].
O terceiro aspecto é que a própria sociedade deve ser compreendida como uma ordem espontânea. Obviamente, a sociedade não é redutível à ordem do mercado, ainda que se encontrem nela tanto ordens espontâneas (o mercado, a moeda) como organizações ou ordens construídas (as famílias, as empresas, as instituições públicas, entre as quais o próprio governo). Não obstante, nessa ordem de conjunto que constitui uma sociedade, a ordem do mercado ocupa um lugar fundamental. Em primeiro lugar, na medida em que a extensão dessa ordem do mercado no decorrer da história teve como resultado a ampliação da sociedade para além das organizações estreitas da horda, do clã e da tribo, até fazer surgir o que Hayek chama de “Grande Sociedade” ou “Sociedade Aberta”[18]. Em segundo lugar, porque “os laços que mantêm o conjunto de uma Grande Sociedade são puramente econômicos”: ainda que na estrutura de conjunto dessa sociedade existam, indubitavelmente, relações que não sejam econômicas, “é a ordem de mercado que possibilita a conciliação de projetos divergentes” – mesmo quando esses projetos perseguem fins não econômicos[19]. Esse aspecto da posição de Hayek não é suficientemente ressaltado: a ordem de mercado não é uma “economia”, mas é constituída de “relações econômicas” (nas quais a competição entre projetos divergentes opera a distribuição de todos os meios disponíveis), e essas relações econômicas se encontram na base do vínculo social[20].
Tal concepção da ordem do mercado como ordem espontânea é solidária de outra tese, igualmente central no pensamento de Hayek: a da “divisão do conhecimento”. Essa noção, elaborada muito cedo[21], é construída por analogia com a noção smithiana de “divisão do trabalho”. Os indivíduos possuem conhecimentos limitados e fragmentários (constituídos mais de informações práticas e savoir-faire do que de conhecimentos racionais), por isso ninguém pode afirmar que detém, em dado momento, o conjunto dos conhecimentos dispersos entre os milhões de indivíduos que compõem a sociedade. No entanto, graças ao mecanismo do mercado, a combinação desses fragmentos espalhados gera resultados em toda a sociedade que não poderiam ser gerados de forma deliberada pela via de uma direção consciente. Isso somente é possível na medida em que, numa ordem de mercado, os preços desempenham o papel de vetores de transmissão da informação[22].
No nível da doutrina econômica, tal visão opõe-se irredutivelmente à teoria do equilíbrio geral (Léon Walras): enquanto esta última pressupõe agentes perfeitamente informados de todos os dados capazes de fundamentar suas decisões, a concepção hayekiana dá ênfase à situação de incerteza em que o mercado põe os agentes econômicos[23]. Mais uma vez, Hayek retoma de maneira original uma das ideias-forças do liberalismo smithiano, já que a metáfora da “mão invisível” significa em essência a impossibilidade de uma totalização do processo econômico, portanto, uma espécie de incognoscibilidade benéfica[24].
O termo com que Hayek pretende condensar sua concepção da ordem de mercado é “catalaxia”:
"Proponho denominarmos essa ordem espontânea do mercado catalaxia, por analogia com o termo “catalaxia”, que foi proposto para substituir o de “ciências econômicas”. Catalaxia vem do verbo grego antigo katalatein, que, significativamente, quer dizer não só “trocar” e “intercambiar”, como também “admitir na comunidade” e “fazer de um inimigo um amigo”.[25]"
Devemos prestar atenção, acima de tudo, ao duplo sentido do verbo grego, que dá a entender que a troca está na base do vínculo social, na medida em que cria uma ordem por ajuste mútuo das ações dos diferentes indivíduos.
Hayek vincula essa noção de ordem espontânea à grande filosofia escocesa do século XVIII, aquela mesma ilustrada por nomes como Ferguson, Smith e Hume. No artigo “Tipos de racionalismo” (1965), ele contrapõe dois racionalismos: um “racionalismo ingênuo” e um “racionalismo crítico”. O primeiro (de Bacon, Descartes e Hobbes) afirma que todas as instituições humanas são “criações deliberadas da razão consciente”: convém a esse primeiro racionalismo, que ignora os limites dos poderes da razão, a denominação “construtivismo”[26]. O segundo, ao contrário, define-se pela consciência desses limites, e é precisamente essa consciência que lhe permite arranjar lugar para ordens que não procedem de uma deliberação consciente.
A “esfera garantida de liberdade” e o direito dos indivíduos
Vimos que a ordem espontânea deve ser caracterizada como “nomocrática”, não como “teleocrática”. Para compreender o lugar que Hayek reserva ao direito, convém voltarmos brevemente à noção de “lei” (nomos). De fato, esse termo deveria designar, stricto sensu, apenas as regras impessoais e abstratas que se impõem a todo indivíduo, tanto independentemente da busca de um fim particular como independentemente de qualquer circunstância particular[27]. Essas regras formais de conduta constituem o arcabouço do direito privado e do direito penal. A mais danosa das confusões seria identificá-las com as regras do direito público. Estas últimas não são regras de conduta, mas regras de organização, que têm como função definir a organização do Estado e dão a uma autoridade o poder de agir de determinada maneira, “à luz de objetivos específicos”. Hayek observa que a progressiva insinuação do direito público no direito privado no decorrer do século anterior fez com que o termo “lei”, que originalmente designava apenas as regras de conduta aplicáveis a todos, viesse a designar “toda regra de organização ou mesmo toda ordem particular aprovada pela legislatura constitucionalmente instituída”[28].
O liberalismo só podia opor-se a essa evolução: a ordem que ele pretende promover pode ser definida como uma “sociedade de direito privado” (Privatrechtsgesellschaft), segundo expressão do ordoliberal alemão Franz Böhm que Hayek toma para si[29]. Precisamente porque toda regra de organização é ordenada para um objetivo, e é característico de uma regra de conduta ser independente de todo objetivo, é que se deve tomar o cuidado de distingui-las nominalmente. Lembramos que os gregos distinguiam judiciosamente nomos e thesis: apenas o direito privado é nomos, o direito público é thesis, o que significa que o direito público é “ditado” ou “construído” e, nesse sentido, constitui uma ordem “fabricada” ou “artificial”, ao passo que o direito privado é essencialmente uma ordem “espontânea”. As regras de conduta que possibilitam a formação de uma ordem espontânea do mercado são oriundas, portanto, não da vontade arbitrária de uns poucos homens, mas de um processo espontâneo de seleção que age em longo prazo.
É nesse ponto que o pensamento de Hayek se inspira diretamente na teoria darwiniana de evolução, e não é à toa que se pôde falar dela como “evolucionismo cultural”. Do modo como Hayek a compreende, a noção de evolução designa um “processo de adaptação contínua a acontecimentos imprevisíveis, a circunstâncias aleatórias que não poderiam ser previstas”[30]. É essa ideia que permite a analogia entre a evolução biológica e a evolução das regras do direito na escala das sociedades humanas. Assim como o mecanismo da seleção natural assegura a sobrevivência das espécies mais adaptadas a seu ambiente e a extinção das outras, a seleção inconsciente de regras de “conduta justa” (ou regras de direito privado) favorece a adaptação das sociedades a um ambiente com frequência hostil. Com o tempo, esse processo de seleção das regras “por tentativa e erro” permitiu a ampla difusão das regras mais eficazes, segundo uma lógica de “evolução convergente”; portanto, sem que fosse necessário postular uma imitação consciente de certas sociedades por outras[31].
Seja qual for a pertinência dessa referência a Darwin, o que está em questão é a ideia de que a seleção das regras de conduta justa está na base do progresso das sociedades. De fato, foi por meio dela que a humanidade conseguiu sair das primeiras sociedades tribais e libertar-se de uma ordem baseada no instinto, na proximidade e na cooperação direta, até formar os laços da “Grande Sociedade”. O ponto fundamental é que esse progresso não se deve a uma criação consciente por parte de legisladores particularmente inventivos: essas regras de direito privado (em particular as do direito comercial) foram incorporadas às tradições e aos costumes muito antes de serem codificadas pelos juízes, os quais, no fim das contas, apenas as descobriram, nunca tiveram de fazê-las. Aliás, é isso que justifica que essas regras sejam distinguidas das regras “postas” (thesis). Como Hayek observa explicitamente:
"o emprego do adjetivo “positivo” aplicado à lei deriva do latim, que traduzia por positus (que é posto) ou positivus a expressão grega thesei, que designava algo criado deliberadamente por uma vontade humana, em oposição ao que não foi inventado, mas produzido physei, pela natureza.[32]"
É nesse ponto que Hayek se opõe diretamente a toda tradição do positivismo jurídico. Ele visa a dois autores em particular. Em primeiro lugar, Hobbes: fazendo suas as palavras do ditado latino “non veritas sed auctoritas facit legem”[33], Hobbes definiu a lei como “o mandamento daquele que detém o poder Legislativo”[34]. Não se poderia exprimir melhor a confusão entre lei e mandamento criticada por Hayek, tanto mais que, para Hobbes, o soberano – e apenas ele – é o legislador. Em segundo lugar, Bentham: se o direito inglês é dividido em dois ramos, apenas a lei feita pelo legislador merece ser designada como direito real (statute law), “todos os arranjos que supostamente são feitos pelo outro ramo [...] deveriam ser distinguidos pelas denominações de direito irreal, não realmente existente, imaginário, factício, ilegítimo, direito feito pelo juiz”[35]. Esse direito “feito” pelo juiz é a common law, ou lei não escrita, que Bentham se dedica a desacreditar, na medida em que não é “a vontade de mandamento de um legislador”, que é propriamente a lei[36]. Na opinião de Hayek, John Austin e Hans Kelsen apenas prolongam essa tradição intelectual que reduz o direito à vontade de um legislador, em oposição à tradição liberal, que afirma a anterioridade do direito sobre a legislação.
Contudo, o reconhecimento dessa anterioridade da justiça sobre qualquer legislação e sobre qualquer Estado organizado não significa adesão à doutrina do direito natural. Hayek evita a alternativa entre positivismo e naturalismo: as regras da justiça não são deduzidas abstratamente pela razão “natural” (jusnaturalismo) nem são fruto de um desígnio deliberado (positivismo), mas são um “produto da experiência prática da espécie humana”[37], isto é, o “resultado imprevisto de um processo de crescimento”[38]. Para Hayek, portanto, está fora de cogitação invocar, como Locke, uma “lei natural” inscrita por Deus na criatura sob a forma de um mandamento da razão[39]. Se ainda se insiste em falar de “lei da natureza”, é no sentido de Hume que devemos compreendê-la: as regras de justiça não são conclusões da razão, que é absolutamente impotente para formá-las; podemos dizer que são “artificiais” (no sentido em que não são inatas), mas não “arbitrárias”, na medida em que foram elaboradas progressivamente, assim como os idiomas e o dinheiro, a partir da experiência repetida dos inconvenientes causados por sua transgressão[40]. Todas essas regras se resumem a três leis fundamentais: “A da estabilidade das posses, a da transferência destas mediante consentimento e a do cumprimento das promessas”[41]: ou seja, o conteúdo essencial de todos os sistemas de direito privado: “a liberdade de contrato, a inviolabilidade da propriedade e o dever de compensar o outro pelos danos que lhe são causados”[42].
Essa identificação do núcleo fundamental das regras de conduta justa acarreta uma reelaboração da questão da liberdade e dos direitos individuais, tal como fora estabelecida pelas principais correntes do liberalismo clássico. De fato, são essas regras que, tomando corpo progressivamente, possibilitam, em paralelo à formação da ordem espontânea do mercado, uma extensão do “domínio” da liberdade individual. Esse domínio coincide com a “esfera de decisão privada” da qual o indivíduo dispõe quando situa sua ação no quadro formal das regras. Isso mostra a que ponto a liberdade, longe de ser um dado natural ou uma invenção da razão, é resultado de uma longa evolução cultural: “Ainda que a liberdade não seja um estado de natureza, mas um bem fabricado pela civilização, ela não nasceu de um desígnio”[43]. Mais uma vez, nem naturalismo nem voluntarismo têm razão. A liberdade não é o “poder de fazer o que se quer”; ela é indissociável da existência de regras morais transmitidas pelo costume e pela tradição que, em razão de sua generalidade, proíbem a todo indivíduo o exercício de uma coação qualquer sobre outrem. Consequentemente, a única definição de liberdade aceitável para Hayek é “negativa”: liberdade é a “ausência desse obstáculo muito preciso que é a coerção exercida por outrem”[44]. Qualquer outra definição de liberdade é enganosa, seja a “liberdade política” compreendida como participação dos homens na escolha do governo ou na elaboração da legislação, seja até a “liberdade interior” tão exaltada pelos filósofos (o controle de si mesmo em oposição à escravidão das paixões)[45]. Da coerção como o contrário da liberdade, Hayek dá a seguinte definição:
"Por coerção entendemos o fato de que uma pessoa seja dependente de um ambiente e de circunstâncias tão controlados por outra pessoa que, para evitar um dano maior, é obrigada a agir não em conformidade com seu próprio plano, mas a serviço dos objetivos dessa outra pessoa.[46]"
Essa definição da coerção como imposição a um indivíduo dos objetivos de um ou vários outros indivíduos parece situar Hayek na linha de um John Stuart Mill. Em todo caso, a distinção entre as ações que afetam apenas seu autor e as que afetam os interesses de outro (e sabemos a importância que Mill dava a essa distinção) parece pouco operante em si mesma ao autor de Os fundamentos da liberdade[47]. Aliás, Hayek considera excessivo o violento ataque de Mill ao “despotismo do costume” no capítulo 3 de Sobre a liberdade: em sua crítica à “coerção moral”, “levou provavelmente longe demais a defesa da liberdade”, na medida em que a pressão da opinião pública não poderia ser identificada com uma “coerção”[48]. Apenas uma definição estrita da coerção, que implica uma instrumentalização da pessoa a serviço dos objetivos de outrem, parece capaz de “traçar os limites da esfera protegida”. Na medida em que as “regras-leis” têm a função de proteger o indivíduo da coerção exercida por outro, ficará estabelecido que, num regime de liberdade, “a esfera livre do indivíduo compreende toda ação que não é explicitamente restringida por uma lei geral”[49]. Somente depois de feita essa delimitação é que se pode ter esperança de fundamentar os direitos individuais. A originalidade de Hayek é vincular esses direitos não a uma lei da natureza prescrita por Deus (Locke) ou à lei geral da vida (Spencer), mas às regras de conduta justa: “Há um sentido da palavra ‘direito’ segundo o qual toda regra de conduta justa cria um direito correspondente dos indivíduos”, de modo que, na medida em que essas regras “delimitam domínios pessoais”, “o indivíduo terá direito a esse domínio”[50].
Podemos ver aqui que tudo depende do prévio reconhecimento de uma “esfera privada”, ou “reservada”, garantida pelas regras gerais: “O caráter ‘legítimo’ das expectativas de alguém, ou os ‘direitos’ do indivíduo, é resultado do reconhecimento da esfera privada considerada”[51]. Assim, a definição da coerção como “violação dos direitos individuais” somente é lícita se esse reconhecimento foi consentido, já que o reconhecimento efetivo da esfera privada equivale ao reconhecimento dos direitos concedidos pelas regras que delimitam essa esfera. Portanto, as regras gerais são, em primeiro lugar e acima tudo, regras de composição das esferas protegidas e, como tais, garantem a cada indivíduo direitos cuja extensão é estritamente proporcional à de sua esfera própria. O erro seria restringir essa extensão à dos bens materiais que pertencem a um indivíduo:
"Não devemos imaginar essa esfera como constituída exclusivamente, nem mesmo principalmente, de bens materiais. É claro que o principal objetivo das regras de composição das esferas é repartir as coisas que nos cercam entre o que é meu e o que não é, mas essas regras também nos garantem vários outros “direitos”, como a segurança em certos usos dos objetos ou simplesmente a proteção contra as intromissões em nossas atividades.[52]"
Mais amplamente, a noção de “propriedade” ganhará um sentido ampliado, que recobre o que Locke já dera ao termo genérico de “propriedade” no Segundo tratado do governo:
"Desde a época de John Locke, é costume denominar esse domínio protegido “propriedade” (o que o próprio Locke definiu como “a vida, a liberdade e as posses de um homem”). No entanto, esse termo sugere uma concepção demasiado estreita e puramente material do domínio protegido, que inclui não apenas os bens materiais, mas também os recursos diversos contra os outros, assim como certas expectativas. Se, todavia, o conceito de propriedade é interpretado (como em Locke) em sentido ampliado, é verdade que a lei, no sentido de regras de justiça, e a instituição da propriedade são inseparáveis.[53]"
Contudo, devemos ver que, se Hayek recupera o conceito lockeano de “propriedade”, é deduzindo-o de sua própria ideia da lei como regra geral derivada de um “crescimento inconsciente”, portanto, desvinculando-a de seu fundamento jusnaturalista.
O “domínio legítimo das atividades governamentais” e a regra do Estado de direito
Os contornos da esfera protegida parecem estabelecer por si mesmos os limites da intervenção do Estado: toda intromissão deste último nessa esfera constituirá um atentado arbitrário aos direitos do indivíduo, de modo que se teria aqui o critério que permite discriminar as intervenções legítimas das ilegítimas. De fato, devemos insistir neste ponto: a questão principal para Hayek é a da legitimidade, não a da eficácia. O argumento da ineficácia prática ou dos efeitos nocivos da intervenção governamental parece-lhe propenso a obscurecer a “distinção fundamental entre medidas compatíveis e medidas incompatíveis com um sistema de liberdade”[54].
Basta lembrar a maneira como Mill tenta determinar os limites da ação governamental no capítulo 5 de Sobre a liberdade para mensurar a distância que separa sua tentativa da de Hayek. Mill não deriva a doutrina do livre-câmbio do princípio da liberdade individual: as restrições impostas ao comércio são coerções, sem dúvida, mas, “se são condenáveis, é unicamente porque não produzem os resultados esperados”, não é em absoluto porque a sociedade não tem o direito de coerção[55]. Hayek tem consciência da insuficiência do ponto de vista de Mill sobre essa questão. Na nota 2 do capítulo 15 de Os fundamentos da liberdade, ele sublinha que, como os economistas têm o hábito de considerar tudo sob o ângulo da oportunidade, “não admira que tenham perdido de vista os critérios mais gerais”. Segue-se imediatamente uma referência a Mill: “John Stuart Mill, admitindo (On Liberty, 1946, p. 8) que ‘não há de fato nenhum princípio que permita julgar de maneira geral a legitimidade da intervenção do poder’, já dera a impressão de que tudo era questão de oportunidade”[56]. O que Hayek pretende enunciar é justamente esse princípio geral de legitimidade.
Para chegar a esse princípio, primeiro é preciso compreender que a constituição da esfera de ação reservada ao indivíduo procede inteira e exclusivamente da existência das regras gerais de conduta justa. Consequentemente, tudo que ponha em causa essas regras só pode ser uma ameaça à própria liberdade individual. Por isso, é necessário que se estabeleça em princípio que nenhuma intervenção do Estado, por mais bem-intencionada que seja, deve eximir-se do respeito devido às regras gerais. Em outras palavras, o Estado deve aplicar a si mesmo as regras que valem para toda pessoa privada. Podemos ver agora como se deve entender a proposição de que a ordem liberal forma uma “sociedade de direito privado”, segundo a expressão de Böhm adotada por Hayek: as regras do direito privado devem prevalecer universalmente, inclusive para as “organizações” que dependem não da ordem espontânea do mercado, mas do Estado. Temos aqui, em certo sentido, a consequência jurídica da ideia de que a sociedade inteira (“the whole of Society”)[57] repousa sobre “relações econômicas” (uma vez que estas são estruturadas pelo direito privado). Para Hayek, foi esse princípio da autoaplicação pelo Estado das regras gerais do direito privado que recebeu historicamente na Alemanha a denominação de “Estado de direito” (Rechtsstaat). Daí a tese segundo a qual “o Estado de direito é o critério que nos permite fazer a distinção entre as medidas que são compatíveis com um sistema de liberdade e as que não o são”[58].
De onde vem essa “tradição alemã do Rechtsstaat”, cuja importância decisiva para todo o movimento liberal posterior é ressaltada em Os fundamentos da liberdade? Se acreditarmos em Hayek, essa tradição deve o essencial de sua inspiração teórica à influência da filosofia do direito de Kant. Invertendo a ordem dedutiva em que o próprio Kant articulou moralidade e direito, Hayek interpreta livremente o famoso “imperativo categórico”[59] como uma extensão ao domínio da ética da ideia base da supremacia do direito[60]. Em 1963, essa inversão ganha uma formulação mais clara no texto da conferência dedicada à “A filosofia do direito e a filosofia política de David Hume”:
"Diz-se às vezes que Kant desenvolveu sua teoria do Estado de direito aplicando aos assuntos públicos seu conceito moral de imperativo categórico. O que aconteceu foi provavelmente o inverso, isto é, Kant desenvolveu sua teoria do imperativo categórico aplicando à moral o conceito de Estado de direito (Rule of Law), que ele encontrou pronto para usar.[61]"
A equivalência postulada aqui entre a expressão alemã “Estado de direito” e a expressão inglesa “império da lei” permite a Hayek ir ainda mais longe: ele afirma no mesmo texto que “o que Kant tinha a dizer a esse respeito parece derivar diretamente de Hume”[62].
Para precisar a implicação teórica e política dessa questão, devemos lembrar, seguindo Foucault[63], que a norma do Estado de direito constituiu-se na Alemanha a partir de uma dupla oposição: ao despotismo, de um lado, e ao Estado de polícia (Polizeistaat), de outro. Essas duas noções não são coincidentes. O despotismo torna a vontade do soberano o princípio da obrigação de todos de obedecer às injunções da potência pública. O Estado de polícia, por sua vez, caracteriza-se pela ausência de diferença entre as prescrições gerais e permanentes da potência pública (o que se convencionou denominar “leis”) e os atos particulares e conjunturais desse mesmo poder público (que estão diretamente ligados à esfera dos “regulamentos”). Segue-se disso uma dupla definição do Estado de direito: em primeiro lugar, ele enquadra os atos da potência pública por meio de leis que os limitam de antemão, de modo que não é a vontade do soberano, mas a forma da lei que constitui o princípio da obrigação; em segundo lugar, o Estado de direito faz uma distinção de princípio entre as leis, que valem por sua validade universal, e as decisões específicas ou medidas administrativas [64]. Um pouco mais tarde, na segunda metade do século XIX, a elaboração dessa noção de Estado de direito foi aprofundada em um sentido que fez o problema dos “tribunais administrativos” aparecer como um problema central. Com efeito, seguindo essa elaboração, o Estado de direito não tem apenas como característica restringir sua ação ao quadro geral da lei; ele é um Estado que oferece a cada cidadão vias de recursos jurídicos contra a potência pública. Disponibilizar tais vias implica a existência de instâncias judiciais responsáveis por arbitrar as relações entre os cidadãos e a potência pública. É precisamente sobre o status desses tribunais que as controvérsias vão se cristalizar na Alemanha no decorrer do século XIX[65].
Retendo a ideia de que o Estado tem de poder ser levado diante de um tribunal por qualquer cidadão, bem como por qualquer pessoa privada, na medida em que está sujeito às mesmas regras de direito que toda pessoa privada, Hayek dá a essa noção de Estado de direito uma amplidão inédita, fazendo-a desempenhar o papel de regra para toda legislação. Uma passagem de Os fundamentos da liberdade diz isso de maneira muito explícita:
"Sendo o Estado de direito uma limitação de toda legislação, segue-se que ele não pode ser uma lei no mesmo sentido das leis feitas pelo legislador [...]. O Estado de direito, por conseguinte, não é uma regra estabelecida pela lei, mas uma regra que diz respeito ao que deveria ser a lei, uma regra metalegal ou um ideal político.[66]"
Obtêm-se desse modo três níveis distintos que só teriam a ganhar se fossem sempre cuidadosamente hierarquizados: primeiro, o nível metalegal, que é o da regra do Estado de direito; segundo, o nível propriamente legal, que é o da legislação entendida no sentido da determinação de novas regras gerais de conduta; terceiro e último, o nível governamental, que é o da promulgação dos decretos e regulamentos específicos. Vemos que, nessa hierarquização, a regra do Estado de direito é a que deve presidir à elaboração de todas as regras gerais ou leis. O que importa é compreender o verdadeiro alcance desse princípio: constituir “uma limitação dos poderes de todo governo, inclusive os poderes do legislador”[67]. Essa função impede que ele seja resumido a uma simples exigência de legalidade; a conformidade das ações do governo às leis existentes não garante por si só que o poder de agir do governo seja limitado (uma lei poderia dar ao governo o poder de agir como bem entende); o que é exigido pela regra do Estado de direito é que todas as leis existentes “se conformem a certos princípios”[68].
Isso conduzirá, por consequência, à distinção de “Estado de direito formal” (formeller Rechtsstaat) e “Estado de direito material” (materieller Rechtsstaat): o Estado de direito, tal como Hayek o entende, corresponde ao “Estado de direito material”, que exige que a ação coercitiva do Estado seja estritamente limitada à aplicação de regras uniformes de conduta justa, ao passo que o “Estado de direito formal” requer apenas a legalidade, isto é, “exige simplesmente que cada ação do Estado seja autorizada pela legislação, quer essa lei consista numa regra geral de conduta justa, quer não”[69]. Dessa forma, a crítica à concepção integralmente artificialista da legislação de um Bentham adquire todo o seu sentido. Estabelecer que tudo, até os direitos reconhecidos do indivíduo, procede da “fábrica” do legislador é consagrar teoricamente a “onipotência do poder Legislativo”[70]. Inversamente, reconhecer que a extensão dos direitos individuais caminha de mãos dadas com a elaboração das regras do direito privado é fazer dessas regras o modelo ao qual o próprio poder Legislativo deve conformar-se em sua atividade, portanto, impor-lhe de antemão limites intransponíveis.
Então, quais são, mais precisamente, as condições que toda lei deve satisfazer para conformar-se à regra metalegal do Estado de direito? Hayek enumera três “atributos da lei verdadeira”, isto é, da lei no sentido “substancial” ou “material” que acabamos de especificar. O primeiro atributo dessas regras é, obviamente, sua generalidade: não devem fazer referência “a nenhuma pessoa, nenhum espaço ou nenhum objeto em particular”, “devem sempre visar ao futuro e jamais ter efeito retroativo”[71]. O que implica que a lei autêntica se abstém de visar a um fim particular, por mais desejável que pareça à primeira vista. O segundo atributo é que essas regras “devem ser conhecidas e indubitáveis”[72]. Se Hayek enfatiza particularmente essa condição, é porque a certeza da lei, assim como a previsibilidade de suas decisões, garantem ao indivíduo – que está fadado a agir num contexto de incerteza em virtude da ordem espontânea do mercado – esse mínimo de estabilidade sem o qual ele teria uma enorme dificuldade para levar a cabo seus próprios projetos: “A questão é saber se o indivíduo pode prever a ação do Estado, e se esse conhecimento lhe fornece pontos de referência para adequar seus próprios projetos”[73]. Enfim, o terceiro atributo de uma lei verdadeira não é outro senão a igualdade, o que significa que “toda lei deve ser aplicada igualmente a todos”[74]. Essa última exigência é “incompatível com o favorecimento ou o desfavorecimento previsível de determinadas pessoas”[75]. Consequentemente, implica que o Estado “se conforme à mesma lei que todos e, desse modo, encontre-se limitado em seus atos, da mesma forma que qualquer pessoa natural”[76].
Desses três atributos da lei (generalidade, certeza, igualdade), o terceiro é inegavelmente o que evidencia melhor que, no pensamento de Hayek, o ideal do Estado de direito confunde-se com o ideal de uma sociedade de direito privado. É nesse ponto que o pensamento do neoliberalismo vai muito além do princípio do controle da autoridade política enunciado por toda uma corrente do liberalismo clássico. Hume faz das leis “gerais e iguais” às quais os órgãos do governo devem conformar-se o princípio de uma limitação que impede que a autoridade se torne absoluta[77], mas não afirma em momento algum que as leis decretadas pela autoridade legislativa devem conformar-se ao modelo das regras do direito privado, tampouco confunde tais leis com as regras de justiça que são as “leis de natureza” (estabilidade das posses, transferência consentida da propriedade, obrigação das promessas). A mesma observação vale para Locke. Direito, legislação e liberdade faz uma referência elogiosa ao Segundo tratado do governo, citando em nota[78] o início do parágrafo 142: o poder Legislativo, explica Locke, “deve governar segundo leis estáveis e promulgadas (promulgated established Laws), que não devem variar ao sabor dos casos particulares; deve ter apenas uma regra para o rico e para o pobre, para o favorito na Corte e para o camponês no arado”[79]. Mais uma vez, devemos observar que a argumentação de Locke se insere numa problemática da limitação do poder Legislativo que não equivale a traçar o ideal de uma “sociedade de direito privado”. Uma coisa é obrigar o poder a fazer as leis segundo a regra formal da estabilidade e da igualdade, outra coisa é exigir dessas leis que se alinhem em sua “substância” às regras do direito privado, como sustenta Hayek. Isso é suficientemente mostrado pelo fato de que, em Locke, trata-se de imperativo de igualdade somente na medida em que este concerne à aplicação da lei a indivíduos definidos por sua situação social (rico e pobre, cortesão e camponês), não da autoaplicação por parte do Estado de uma regra de direito privado.
Que consequências devemos tirar dessa extensão do direito privado à “pessoa” do Estado? A primeira, e sem dúvida a mais importante do ponto de vista de Hayek, é que, num Estado de direito, “o poder político somente pode intervir na esfera privada e protegida de uma pessoa para punir uma infração cometida contra uma regra promulgada”[80]. Isso significa que não compete ao Executivo dar “ordens” ou “mandamentos” ao indivíduo (isto é, prescrições particulares relativas a um fim determinado, como devemos lembrar); ele deve apenas velar pelo respeito às regras de conduta justa que são igualmente válidas para todos, e é justamente esse dever de proteção da esfera privada de todos os indivíduos que, em caso de violação das regras por parte de um indivíduo, autoriza o Executivo a intervir na esfera privada desse indivíduo a fim de lhe aplicar uma sanção penal. Afora tais situações, deve-se esclarecer amplamente que “as autoridades governamentais não devem ter nenhum poder discricionário que permita esse gênero de invasão” na esfera privada de um cidadão[81]. O contrário equivaleria a considerar a pessoa privada e sua propriedade como um simples meio à disposição do governo. Por isso, sempre se deve dar a essa pessoa a possibilidade de recorrer a tribunais independentes, habilitados a decidir se o governo se conformou em sua ação ao estrito quadro das regras gerais ou se o excedeu arbitrariamente (donde se retorna à questão do lugar dos “tribunais administrativos”). Mais uma vez, o ponto fundamental “é que toda ação coercitiva do poder político deve ser definida sem ambiguidade dentro de um quadro jurídico permanente, que permita ao indivíduo gerir com confiança seus projetos e reduza tanto quanto possível as incertezas inerentes à existência humana”[82].
O que está em jogo aqui é exatamente a preservação da eficiência da ordem do mercado, já que o elemento decisivo da confiança reside no fato de que o indivíduo possa contar com a aptidão do Estado para fazer com que as regras gerais sejam respeitadas e, ao mesmo tempo, com o respeito das regras gerais pelo próprio Estado. Em resumo, a certeza proporcionada pelo quadro jurídico deve compensar a incerteza inerente à situação do indivíduo dentro de uma ordem espontânea tal como a ordem do mercado. Isso mostra a importância da ação coercitiva do Estado quando se trata de cuidar da punição das infrações cometidas contra as regras de conduta: garantir a segurança dos agentes econômicos é a verdadeira justificação do monopólio do uso da coerção que se encontra nas mãos do Estado. O que implica “que ele não tenha outro monopólio além desse e que, de todos os outros pontos de vista, opere nas mesmas condições que todo mundo”[83] (condição de igualdade reinterpretada por Hayek).
A segunda consequência da necessária subordinação do poder governamental ao princípio do Estado de direito é de ordem positiva dessa vez: na medida em que esse princípio constitui uma limitação apenas para as ações coercitivas do governo, um campo inteiro de atividades é deixado para o Estado, o das atividades não coercitivas. O liberalismo, tal como o compreende Hayek:
"pede uma distinção clara entre os poderes de coerção do Estado, em cujo exercício suas ações são limitadas à aplicação de regras de conduta justa, das quais se exclui qualquer arbitrariedade, e a prestação de serviços pelo Estado, no decorrer da qual ele pode empregar os recursos postos a sua disposição para esse fim, para a qual não possui nem poder de coerção nem de monopólio, mas pode usar largamente seus recursos sob seu arbítrio.[84]"
O problema é que o financiamento das atividades de “puro serviço” implica a intervenção de certa coerção na forma de impostos[85]. Esse aspecto coercitivo das atividades de serviço somente se justifica se o Estado não se arroga o direito exclusivo de fornecer certos serviços, o que equivaleria ipso facto à constituição de um monopólio (o qual significaria a violação da condição de igualdade lembrada anteriormente). “O que é contestável não é a empresa de Estado, mas o monopólio de Estado.”[86] De todas as atividades de serviço que podem concernir legitimamente ao Estado, as mais importantes são as que “dependem de seu esforço para criar um quadro favorável às decisões individuais”: instauração e manutenção de um sistema monetário eficaz, definição de pesos e medidas, disponibilização de informações para o estabelecimento de estatísticas, organização da educação sob uma ou outra forma etc.[87]. Convém acrescentar a essas atividades “todos os serviços que são nitidamente desejáveis, porém não são fornecidos pela empresa concorrencial porque seria impossível ou difícil fazer os beneficiários pagarem”, serviços entre os quais se encontram “o grosso dos serviços sanitários e de saúde pública, a construção e a manutenção das estradas e a maioria dos equipamentos urbanos criados pelos municípios para os seus habitantes”[88].
Em contrapartida, há medidas que a regra do Estado de direito exclui por princípio. Trata-se de todas aquelas cuja execução implica uma discriminação arbitrária entre as pessoas, porque visam à obtenção de resultados particulares para pessoas particulares, em vez de se ater à aplicação das regras gerais válidas indistinta e uniformemente para todas as pessoas. Aqui, são particularmente visadas as “medidas que têm por objetivo regular o acesso aos diversos negócios e profissões, os termos das transações e as quantidades produzidas ou comercializadas”[89]. Todo controle de preços e quantidades de produção deve, portanto, ser abolido, na medida em que é necessariamente “arbitrário e discricionário” e impede o mercado de funcionar corretamente (não deixando que os preços cumpram seu papel de transmitir a informação). Pelas mesmas razões de fundo, exclui-se qualquer intervenção do governo para reduzir as inevitáveis diferenças de situação material que resultam do jogo de catalaxia. Portanto, a busca de objetivos relacionados a uma distribuição justa de renda (o que é designado em geral pelos termos “justiça social” ou “justiça distributiva”) está em contradição formal com a regra do Estado de direito. Com efeito, uma remuneração e uma distribuição “justas” somente têm sentido num sistema de “fins comuns” (“teleocracia”), ao passo que na ordem espontânea do mercado nenhum fim desse tipo poderia prevalecer, consequentemente, nela, a “distribuição” de renda não é nem “justa” nem “injusta”[90]. Em última análise, “todas as tentativas para garantir uma distribuição ‘justa’ devem ser orientadas para a conversão da ordem espontânea do mercado em uma organização ou, em outros termos, em ordem totalitária”[91]. Assim, o que é condenado por princípio é a ideia de que a justiça distributiva faz parte das atribuições do Estado: “Se ele repousa sobre a justiça comutativa, o Estado de direito exclui a busca de uma justiça distributiva”[92]. Por outro lado, o fato de o governo se empenhar para assegurar “fora do mercado” uma proteção contra a miséria extrema de todos aqueles que são incapazes de ganhar seu sustento no mercado, “na forma de uma renda mínima garantida ou de um nível de recursos abaixo do qual ninguém deve cair”, não implica por si só “uma restrição de liberdade ou um conflito com a soberania do direito”. Problemático é que a remuneração dos serviços prestados seja fixada pela autoridade[93].
Agora podemos ver claramente que, em sua versão hayekiana, o neoliberalismo não somente não exclui, como pede a intervenção do governo. Porque a concepção da lei como “regra do jogo econômico” que prevalece nesse caso determina necessariamente o que Foucault chama de “crescimento da demanda judicial”, a ponto de falar de um “intervencionismo judiciário, que deverá ser praticado como arbitragem no quadro das regras do jogo”[94]. É preciso avaliar a extensão da transformação relativa ao lugar do Judiciário no pensamento do liberalismo clássico. No século XVIII, a ideia da primazia da lei implicava uma “redução considerável do Judiciário ou do jurisprudencial”: o Judiciário destinava-se, em princípio, à aplicação pura e simples da lei, o que em grande parte explica que o Segundo tratado não fale do poder Judiciário, ao lado dos poderes Legislativo, Executivo e Federativo. Depois, quando a lei nada mais é do que “regra de jogo para um jogo no qual cada um é mestre, para si e de sua parte”, o Judiciário adquire “uma nova autonomia e uma nova importância”[95]. Porque, nesse “jogo de catalaxia”, o verdadeiro sujeito econômico é a empresa. Quanto mais é estimulada a jogar como bem entende no quadro das regras formais, mais ela estabelece livremente para si mesma seus objetivos, estando entendido que não existem fins comuns impostos e a própria empresa constitui uma “organização” (no sentido técnico dado a esse termo por Hayek). Assim, quanto mais numerosas as ocasiões de conflito e litígio entre os sujeitos econômicos, maior a demanda de arbitragem por parte das instâncias judiciais; em outras palavras, quanto menor a ação administrativa, maior o campo de intervenção da ação judiciária.
Essa autonomização do Judiciário não é casual: ela forma um sistema com outras diferenças importantes com relação ao liberalismo clássico. Em última análise, podemos apontar três diferenças principais. A primeira consiste em fazer das relações econômicas internas ao jogo do mercado o fundamento de “toda a sociedade”. A segunda consiste em retirar da alternativa entre direito natural e criação deliberada o arcabouço jurídico constitutivo dessa ordem: as regras jurídicas se identificam com as regras do direito privado e penal (em especial as do direito comercial), que são oriundas de um processo inconsciente de seleção. Essa segunda diferença já permite esboçar, por vias indiretas, o ideal de uma “sociedade de direito privado”, do qual nada autoriza que se diga que era o ideal do liberalismo clássico. A terceira mudança coroa as duas outras e representa o remate dessa doutrina: o Estado deve aplicar a si mesmo as regras do direito privado, o que significa que não só ele tem de se considerar igual a qualquer pessoa privada, como também deve se impor, em sua própria atividade legislativa, a promulgação das leis fiéis à lógica desse mesmo direito privado. Estamos longe, muito longe, de uma simples “reafirmação” do liberalismo clássico.
Antes Estado forte que democracia
Hayek está muito distante, por fim, da “reabilitação do laissez-faire” a que o neoliberalismo é frequentemente resumido. De resto, Hayek vê a doutrina do laissez-faire como profundamente estranha à tese dos “economistas clássicos ingleses”, a qual reivindica para si:
"Na verdade, a tese deles nunca foi orientada contra o Estado nem foi próxima do anarquismo, que é a conclusão lógica da doutrina racionalista do laissez-faire; foi uma tese que levou em consideração, ao mesmo tempo, as funções próprias do Estado e os limites de sua ação.[96]"
Isso mostra que, para ele, está fora de cogitação aceitar a concepção libertarista do “Estado mínimo” defendida por Robert Nozick (segundo a qual uma agência de segurança que conseguisse outorgar-se o monopólio da força ao cabo de um processo de concorrência faria perfeitamente o ofício de Estado), sem mencionar as posições muito mais radicais do anarcocapitalismo (David Friedman) a favor da privatização de todas as funções que o liberalismo clássico atribui ao Estado (Exército, polícia, justiça, educação).
No entanto, ao contrário da apresentação que faz de sua relação com o liberalismo clássico, Hayek não é um simples “continuador” que teria apenas revigorado as teses dessa corrente. A ênfase que dá aos direitos dos indivíduos não autoriza de modo algum que seja visto como um herdeiro de Locke, do mesmo modo que o construtivismo assumido do ordoliberalismo alemão não permite vê-lo como um herdeiro de Bentham. O que o separa de Locke na questão fundamental da função do poder político não deriva de uns poucos ajustes sem grandes consequências. Na realidade, o que está em jogo é um profundo questionamento da democracia liberal. Basta pegar três das noções-chave que permitem a Locke definir o “governo limitado” (o “bem comum”, o Legislativo como poder supremo, o consentimento da maioria do povo) para se convencer de que se trata de um rompimento. Em primeiro lugar, como vimos, Locke faz do “bem comum” ou “bem do povo”, positivamente definido, o objetivo pelo qual toda a atividade governamental deve ordenar-se. Hayek, por sua vez, esvazia a noção de “bem comum” de qualquer conteúdo positivo assinalável: por não corresponder a um “fim”, o “bem comum” reduz-se à “ordem abstrata do conjunto”, tal como é possibilitada pelas “regras de conduta justa”, o que equivale exatamente a fazer o “bem comum” consistir num simples “meio”, já que essa ordem abstrata vale apenas “como meio facilitador da busca de uma grande diversidade de intenções individuais”[97].
Em segundo lugar, como também já vimos, Locke considera o poder Legislativo o “poder supremo” do governo, o que deve ser entendido em sentido forte: cabe a ele fazer leis, o que não pode resumir-se à ratificação das variações do “costume”. Hayek, de sua parte, denuncia a confusão entre governo e legislação, entre elaboração dos decretos e das regulamentações particulares, de um lado, e ratificação das leis ou das “regras gerais de conduta”, de outro. Isso o leva a atribuir essas duas funções a duas assembleias diferentes: à assembleia governamental, o poder Executivo; à assembleia legislativa, o poder de determinar as novas regras gerais. Essa última assembleia escapa a qualquer controle democrático: os nomótetas seriam homens maduros (de 45 anos no mínimo), escolhidos por eleitores da mesma idade para um período de quinze anos. A fim de evitar a palavra “democracia”, “conspurcada por um longo abuso”, Hayek inventa o termo “demarquia”[98].
Em terceiro lugar, e aqui chegamos realmente ao fundo do problema, Locke faz do consentimento da maioria do povo a regra a que estão submetidos todos os membros do corpo político. Chega a afirmar que “sempre subsiste no povo um poder supremo de destituir ou mudar o Legislativo, quando se dá conta de que este age em contradição com a missão que lhe foi dada”[99]. Ao contrário dele, Hayek se recusa a conferir à maioria do povo o poder absoluto de obrigar todos os seus membros. O que lhe parece formar o conteúdo do conceito de “soberania popular” é que a regra majoritária não seja limitada nem limitável[100]. Ora, a função desse conceito é legitimar uma “democracia ilimitada”, sempre suscetível de degenerar numa “democracia totalitária”. O que significa que a democracia não é um fim em si, mas um meio que somente tem valor como método de seleção dos dirigentes. Assim, Hayek teve o mérito da franqueza quando declarou a um jornal chileno durante a ditadura de Pinochet, mais exatamente em 1981: “Minha preferência pende a favor de uma ditadura liberal, não a um governo democrático em que não haja nenhum liberalismo” [101]. Essa crítica à “soberania popular” e à “democracia ilimitada” está ligada a uma preocupação fundamental: trata-se, em última análise, de isentar as regras do direito privado (o da propriedade e da troca comercial) de qualquer espécie de controle exercido por uma “vontade coletiva”. Tudo isso é muito lógico, se recordarmos o que implica o ideal de uma “sociedade de direito privado”: um Estado que adota por princípio a submissão de sua ação às regras do direito privado não pode assumir o risco de uma discussão pública sobre o valor dessas normas, a fortiori não pode aceitar entregar-se à vontade do povo para decidir essa discussão.
Como avaliar a contribuição de Hayek para a elaboração do neoliberalismo? Não há dúvida de que sua influência intelectual e política foi determinante a partir da fundação da Sociedade Mont-Pèlerin (1947). Muitas das propostas políticas formuladas na terceira parte de Os fundamentos da liberdade, em particular as que visam ao combate da “coerção” praticada pelos sindicatos, inspiraram diretamente os programas de Thatcher e Reagan [102]. No entanto, se tomarmos como critério não mais a influência política direta, mas a contribuição para a instauração da racionalidade neoliberal (no sentido de Foucault), impõe-se uma reavaliação. Seguramente devemos a Hayek a amplitude inédita dada a temas que já faziam parte do fundo original (os que Rougier e Lippmann estabeleceram, sublinhando a importância das regras jurídicas e a necessidade de um “Estado forte liberal”). Devemos a ele também, e talvez sobretudo, o aprofundamento da ideia avançada por Böhm de um governo guardião do direito privado, até fazê-lo significar explicitamente a exigência de uma aplicação desse direito ao próprio governo. Por último, na ordem da teoria econômica, devemos a ele a elaboração da noção de “divisão do conhecimento”. Contudo, sobre a questão decisiva da construção da ordem do mercado, somos obrigados a reconhecer que hoje, na prática do neoliberalismo, tende a prevalecer uma atitude construtivista, muito distante do evolucionismo cultural hayekiano.
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[1] Friedrich Hayek, “La transmission des idéaux de la liberté économique”, em Essais de philosophie, de science politique et d’économie (Paris, Les Belles Lettres, 2007), p. 300, nota 3; grifo nosso.
[2] Ver capítulo 2 deste volume.
[3] Ver, em particular, Friedrich Hayek, La route de la servitude (Paris, PUF, 2002), p. 33.
[4] Ibidem, p. 64; grifo nosso.
[5] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté (Paris, Litec, 1994), p. 223 [ed. bras.: Os fundamentos da liberdade, trad. Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle, São Paulo, Visão, 1983]. No mesmo sentido, ver ibidem, p. 231, e Friedrich Hayek, Droit, législation et liberte, v. 1 (Paris, PUF, 1980), p. 73 [ed. bras.: Direito, legislação e liberdade, trad. Maria Luiza X. de A. Borges, São Paulo, Visão, 1985].
[6] Título original: “What is ‘Social’? What Does it Mean?”. Em francês, publicado em Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 353-66.
[7] Ou, em todo caso, o desejo de atribuir “objetivos sociais” ao governo (ver capítulo 3 deste volume).
[8] Ver capítulo 3 deste volume.
[9] Friedrich Hayek, “Des sortes de rationalisme”, em Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 141.
[10] Idem, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 96. A nota que acompanha a frase citada merecer ser reproduzida: “Deploro esse uso, ainda que, recorrendo a ele, certos amigos meus na Alemanha (e, mais recentemente, também na Inglaterra) aparentemente tenham conseguido tornar aceitável para círculos amplos o tipo de ordem social que defendo” (ibidem, p. 207). Se entendemos bem, a única justificação para o uso do termo “social” pelos neoliberais alemães é que ele permite aclimatar ao “espírito da época” a própria doutrina de Hayek...
[11] Dessa vez, Hayek mostra-se bastante reservado sobre a pertinência prática da distinção de Röpke entre ações conformes e ações não conformes. Ver idem.
[12] O título original, “The Results of Human Action but not of Human Design”, retoma uma frase de Adam Ferguson, An Essay on the History of Civil Society. Ver Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 159-72.
[13] Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 252 (ver também idem, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 129-30).
[14] Idem, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 251.
[15] Ibidem, p. 253 (ver também idem, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 148).
[16] Sobre a distinção de lei e mandamento, ver Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 148-9.
[17] Idem, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 251.
[18] Idem. Desse modo, Hayek acaba renovando uma das grandes ideias de Ferguson: a da “sociedade civil” como motor do progresso histórico (entendido que o conceito de “ordem do mercado” não coincide exatamente com o de “sociedade civil”). Assim, não causa muita surpresa que tenha sempre se desvinculado de qualquer forma de “conservadorismo”.
[19] Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 135.
[20] Hayek vai muito além do liberalismo clássico que, na pessoa de seus primeiros representantes (Smith, Ferguson), sempre se recusou a fundamentar o vínculo social apenas sobre o vínculo econômico. Uma nota de Droit, législation et liberté (cit., cap. 10, p. 212, nota 12) cita a favor dessa tese a afirmação de Antoine-Louis-Claude Destutt de Tracy: “Commerce is the whole of Society” [O comércio é o todo da Sociedade – N. T.].
[21] Sobre esse ponto, remetemos ao capítulo precedente.
[22] Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 141.
[23] Sobre o vínculo entre ordem espontânea de mercado e divisão do conhecimento, ver a apresentação clara e informada de Gilles Dostaler, Le libéralisme de Hayek (Paris, La Découverte, 2001), p. 31-2 e 50-1. Ver também o capítulo 4 deste volume.
[24] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard, 2004), p. 285.
[25] Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 252-3.
[26] Ibidem, p. 143.
[27] Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 42. Por “abstrata” entende-se que “a regra deve aplicar-se a um número indeterminado de instâncias futuras”.
[28] Idem, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 258-9.
[29] Ibidem, p. 258 (ver também Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 37). Para esse conceito, ver capítulo 3 deste volume.
[30] Friedrich Hayek, La présomption fatale: les erreurs du socialisme (Paris, PUF, 1993), p. 38, citado em Gilles Dostaler, Le libéralisme de Hayek, cit., p. 86.
[31] Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 48.
[32] Ibidem, p. 53 (ver também Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 169, nota 21).
[33] Thomas Hobbes, Leviatã, 1651, cap. 26, citado em Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 53: “Não é a verdade, mas, a autoridade, que faz a lei”.
[34] Thomas Hobbes, Dialogue on the Common Laws (1681), citado em Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 54.
[35] Bentham, citado em Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 54; grifo nosso.
[36] Bentham, citado em Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 197, nota 35: “The primitive sense of the word law, and the ordinary meaning of the word, is [...] the will of command of a legislator” [O sentido primitivo da palavra lei, e o significado comum dessa palavra, é (...) a vontade de mandamento de um legislador – N. E.].
[37] Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 180.
[38] Ibidem, p. 167.
[39] Ibidem, p. 162-3, nota 7.
[40] Ibidem, p. 183.
[41] David Hume, citado em Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 183 (ver também idem, La constitution de la liberté, cit., p. 157).
[42] Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 48.
[43] Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 53.
[44] Ibidem, p. 19.
[45] Ibidem, p. 13-6. Hayek denuncia a confusão de pensamento que cerca o conceito filosófico de “liberdade da vontade” (freedom of the will).
[46] Ibidem, p. 21.
[47] Ibidem, p. 145.
[48] Ibidem, p. 146.
[49] Ibidem, p. 215.
[50] Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 121; grifo nosso.
[51] Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 139.
[52] Ibidem, p. 140.
[53] Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 257.
[54] Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 222.
[55] John Stuart Mill, De la liberté (Paris, Gallimard, 2005), p. 209 [ed. bras.: Sobre a liberdade, trad. Ari Ricardo Tank Brito, São Paulo, Hedra, 2010].
[56] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 484.
[57] Ver nota 20 deste capítulo.
[58] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 223.
[59] “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”, Immanuel Kant, Fondation de la métaphysique des mœurs (Paris, Flammarion, 1994), p. 97 [ed. port.: Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, 2. ed., Lisboa, Edições 70, 2009].
[60] Obviamente, na arquitetura do sistema, a “Doutrina do direito” precede a “Doutrina da virtude”, mas ambas são precedidas pela Fundamentação da metafísica dos costumes, à qual incumbe extrair em toda a sua pureza o princípio supremo da moralidade.
[61] Friedrich Hayek, “La philosophie juridique et politique de David Hume”, em Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., cap. 7, p. 188. Se é verdade que o problema da “aplicação” da moralidade pura é, nitidamente, um problema delicado no kantismo, nada justifica a afirmação de que Kant teria “aplicado” o direito à moral para chegar ao conceito do imperativo categórico.
[62] Idem. Mais uma vez, só podemos desmentir a possibilidade de tal “derivação”: em Hume, as “leis da natureza” são fruto de uma experiência progressiva, ao passo que em Kant a “lei moral” é inteiramente a priori e, como tal, independente de qualquer experiência, o que é confirmado pelo caráter puramente formal dessa lei (por contraste com o conteúdo determinado das três regras evidenciadas por Hume: estabilidade das posses, transferência das posses mediante consentimento, cumprimento das promessas).
[63] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 173-4.
[64] Ibidem, p. 174-5. Foucault se refere à obra pioneira de Karl Theodor Welcker, Die Letzen Gründe von Recht, Staat und Strafe [Os últimos fundamentos do direito, do Estado e da punição] (1813).
[65] Sobre essas controvérsias, ver Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 201-4, bem como o comentário de Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 175-6.
[66] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 206.
[67] Ibidem, p. 205.
[68] Idem.
[69] Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 197 e 254.
[70] Idem, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 63.
[71] Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 208.
[72] Idem.
[73] Friedrich Hayek, La route de la servitude, cit., p. 64.
[74] Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 209.
[75] Ibidem, p. 210.
[76] Idem.
[77] David Hume, Essais moraux, politiques et littéraires (Paris, Vrin, 1999), p. 100 [ed. bras.: Ensaios morais, políticos e literários, trad. Luciano Trigo, Rio de Janeiro, Topbooks, 2004].
[78] Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, cit., p. 201, nota 60.
[79] John Locke, Second traité du gouvernement (Paris, PUF, 1994), p. 104 [ed. bras.: Segundo tratado do governo e outros escritos, trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa, 4. ed., Petrópolis/Bragança Paulista, Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2006.]
[80] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 206.
[81] Ibidem, p. 213.
[82] Ibidem, p. 223.
[83] Ibidem, p. 224.
[84] Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 254; grifo nosso.
[85] Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 223.
[86] Ibidem, p. 225.
[87] Ibidem, p. 224.
[88] Idem. Hayek se refere logo em seguida à famosa reflexão de Smith sobre “essas obras públicas que [...] são de uma natureza tal que o ganho jamais poderia compensar o gasto que representariam para um indivíduo ou um grupo pouco numeroso”.
[89] Ibidem, p. 227.
[90] Diferentemente dos libertários, que, lembremos, consideram essa ordem intrinsecamente justa. Devemos acrescentar que Hayek recusa até a pertinência do termo “distribuição” aplicado a uma ordem espontânea, preferindo “dispersão”, que tem a vantagem de não sugerir uma ação deliberada. Ver Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, cit., p. 261.
[91] Idem.
[92] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 232. Desde Aristóteles, a expressão “justiça comutativa” designa a justiça nas trocas.
[93] Idem, Droit, législation et liberté, cit., p. 105.
[94] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 180; grifo nosso.
[95] Idem.
[96] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 59; grifo nosso.
[97] Idem, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 6.
[98] Ibidem, p. 48. Enquanto a “democracia” pode degenerar em coerção praticada pela maioria sobre a minoria, a “demarquia” somente outorga poder de sujeição à vontade da maioria do maior número de indivíduos se a maioria se compromete a seguir a regra geral.
[99] John Locke, Second traité du gouvernement, cit., p. 108.
[100] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 104.
[101] Idem, citado em Stéphane Longuet, Hayek et l’École autrichienne (Paris, Nathan, 1998), p. 175. O texto em inglês da entrevista de abril de 1981, pelo jornal El Mercurio, tal como foi publicado pelo Instituto Hayek, diz exatamente: “As you will understand, it is possible for a dictator to govern in a liberal way. And it is also possible for a democracy to govern with a total lack of liberalism. Personally I prefer a liberal dictator to democratic government lacking liberalism” [Entenda, é possível para um ditador governar de forma liberal. E também é possível para uma democracia governar sem liberalismo nenhum. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo – N. T.].
[102] Margaret Thatcher declarou em 5 de janeiro de 1981 à Câmara dos Comuns: “Sou uma grande admiradora do professor Hayek. Seria bom que os honoráveis membros desta casa lessem alguns de seus livros, The Constitution of Liberty, os três volumes de Law, Legislation and Liberty” (citado em Gilles Dostaler, Le libéralisme de Hayek, cit., p. 24).
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