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A GRANDE VIRADA
Os anos 1980 foram marcados, no Ocidente, pelo triunfo de uma política qualificada, ao mesmo tempo, de “conservadora” e “neoliberal”. Os nomes de Ronald Reagan e Margaret Thatcher simbolizam esse rompimento com o “welfarismo” da social-democracia e a implementação de novas políticas que supostamente poderiam superar a inflação galopante, a queda dos lucros e a desaceleração do crescimento. Os slogans frequentemente simplistas dessa nova direita ocidental são conhecidos: as sociedades são sobretaxadas, super-regulamentadas e submetidas às múltiplas pressões de sindicatos, corporações egoístas e funcionários públicos. A política conservadora e neoliberal pareceu, sobretudo, constituir uma resposta política à crise econômica e social do regime “fordista” de acumulação do capital. Esses governos conservadores questionaram profundamente a regulação keynesiana macroeconômica, a propriedade pública das empresas, o sistema fiscal progressivo, a proteção social, o enquadramento do setor privado por regulamentações estritas, especialmente em matéria de direito trabalhista e representação dos assalariados. A política de demanda destinada a sustentar o crescimento e realizar o pleno emprego foi o principal alvo desses governos, para os quais a inflação se tornara o problema prioritário[1].
Mas será que basta situar as políticas neoliberais em certa conjuntura histórica para compreender sua natureza e definir suas relações com o esforço de refundação teórica do liberalismo? Como explicar a continuidade dessas políticas durante décadas? Sobretudo, como justificar que algumas dessas políticas tenham sido adotadas tanto pela “nova direita”[2] quanto pela “esquerda moderna”?
Na realidade, essas novas formas políticas exigem uma mudança muito maior do que uma simples restauração do “puro” capitalismo de antigamente e do liberalismo tradicional. Elas têm como principal característica o fato de alterar radicalmente o modo de exercício do poder governamental, assim como as referências doutrinais no contexto de uma mudança das regras de funcionamento do capitalismo. Revelam uma subordinação a certo tipo de racionalidade política e social articulada à globalização e à financeirização do capitalismo. Em uma palavra, só há “grande virada” mediante a implantação geral de uma nova lógica normativa, capaz de incorporar e reorientar duradouramente políticas e comportamentos numa nova direção. Andrew Gamble resumiu esse novo rumo na frase: “Economia livre, Estado forte”. A expressão tem o mérito de destacar o fato de que não estamos lidando com uma simples retirada de cena do Estado, mas com um reengajamento político do Estado sobre novas bases, novos métodos e novos objetivos. O que exatamente quer dizer essa frase? Naturalmente, podemos enxergar nela o que as correntes conservadoras querem que ela contenha: um papel maior da defesa nacional contra os inimigos externos, da polícia contra os inimigos internos e, de modo mais geral, dos controles sobre a população, sem esquecer o desejo de restauração da autoridade estabelecida, das instituições e dos valores tradicionais, em particular os “familiares”. Contudo, há muito mais do que essa linha de defesa da ordem instituída, classicamente conservadora.
É sobre esse ponto preciso que persistem os mal-entendidos. Alguns autores preferiram ver apenas um “retorno do mercado” nas políticas econômicas e sociais conduzidas pela nova direita e pela esquerda moderna. Lembram com razão que esse tipo de política sempre se apoiou na ideia de que, para os mercados funcionarem bem, é necessário reduzir os impostos, diminuir o gasto público (inclusive enquadrando seu crescimento em regras constitucionais), transferir as empresas públicas para o setor privado, restringir a proteção social, privilegiar “soluções individuais” diante dos riscos, controlar o crescimento da massa monetária para reduzir a inflação, possuir uma moeda forte e estável e desregulamentar os mercados, em particular o do trabalho. No fundo, se o “compromisso social-democrata” era sinônimo de intervencionismo do Estado, o “compromisso neoliberal” era sinônimo de livre mercado. O que se destacou menos foi o caráter disciplinar dessa nova política, que dá ao governo um papel de guardião das regras jurídicas, monetárias, comportamentais, atribui-lhe a função oficial de vigia das regras de concorrência no contexto de um conluio oficioso com grandes oligopólios e, talvez mais ainda, confere-lhe o objetivo de criar situações de mercado e formar indivíduos adaptados às lógicas de mercado. Em outras palavras, a atenção exclusiva que se deu à ideologia do laissez-faire nos desviou do exame das práticas e dos dispositivos encorajados pelos governos ou diretamente implantados por eles. Por consequência, a dimensão estratégica das políticas neoliberais foi paradoxalmente negligenciada pela crítica “antiliberal” padrão, na medida em que essa dimensão entra de imediato numa racionalidade global que permaneceu despercebida.
O que devemos de fato entender por “estratégia”? No sentido mais comum, o termo designa a “escolha dos meios empregados para chegar a um fim”[3]. É inegável que a virada dos anos 1970-1980 mobilizou todo um leque de meios para se alcançar no melhor prazo certos objetivos bem determinados (desmantelamento do Estado social, privatização das empresas públicas etc.). Portanto, estamos muito bem embasados para falar, nesse sentido, de uma “estratégia neoliberal”: entenda-se o conjunto de discursos, práticas, dispositivos de poder visando à instauração de novas condições políticas, a modificação das regras de funcionamento econômico e a alteração das relações sociais de modo a impor esses objetivos. Contudo, por mais legítimo que seja, esse uso do termo “estratégia” poderia levar a entender que o objetivo da concorrência generalizada entre empresas, economias e Estados foi elaborado a partir de um projeto longamente amadurecido, como se tivesse sido objeto de uma escolha tão racional e controlada quanto os meios postos a serviço dos objetivos iniciais. Daí para pensar a virada em termos de um “complô” é um passo – que alguns se apressaram em dar, em particular na esquerda. O que nos parece, ao contrário, é que o objetivo de uma nova regulação pela concorrência não existia antes da luta contra o Estado de bem-estar na qual se engajaram, alternada ou simultaneamente, círculos intelectuais, grupos profissionais, forças sociais e políticas, muitas vezes por motivos bastante heterogêneos. A virada começou por pressão de certas condições, sem que ninguém sonhasse ainda com um novo modo de regulação em escala mundial. Nossa tese é que esse objetivo tenha se constituido ao longo do próprio confronto, se imposto a forças muito diferentes em razão da própria lógica do confronto e, a partir desse momento, feito o papel de catalisador, oferecendo um ponto de encontro a forças até então relativamente dispersas.
Para tentar explicar esse surgimento do objetivo a partir das condições de um confronto já iniciado, devemos recorrer a outro sentido do termo “estratégia”, um sentido que não a faz proceder da vontade de um estrategista nem da intenção de um sujeito. Essa ideia de uma “estratégia sem sujeito” ou “sem estrategista” foi elaborada por Foucault. Tomando o exemplo do objetivo estratégico de moralização da classe operária nos anos 1830, ele defende que esse objetivo produziu a burguesia como o agente de sua instauração, e não que a classe burguesa, como sujeito pré-constituído, é que tenha concebido esse objetivo a partir de uma ideologia já elaborada[4]. O que se trata de pensar aqui é certa “lógica das práticas”: primeiro, há as práticas, frequentemente díspares, que instauram técnicas de poder (entre as quais, em primeiro lugar, as técnicas disciplinares) e são a multiplicação e a generalização de todas essas técnicas que impõem pouco a pouco uma direção global, sem que ninguém seja o instigador desse “impulso na direção de um objetivo estratégico”[5]. Não conseguiríamos expressar melhor a maneira como a concorrência se constituiu como nova norma mundial a partir de certas relações entre as forças sociais e certas condições econômicas, sem que tenha sido “escolhida” de forma premeditada por um “Estado-maior” qualquer. Fazer aparecer a dimensão estratégica das políticas neoliberais é, portanto, não apenas revelar em que elas dizem respeito à escolha de certos meios (de acordo com o primeiro sentido do termo “estratégia”), mas é também mostrar o caráter estratégico (no segundo sentido do mesmo termo) do objetivo da concorrência generalizada que permitiu dar a todos esses meios uma coerência global.
Neste capítulo, nos propomos examinar na ordem os quatro pontos seguintes. O primeiro diz respeito à relação de apoio recíproco graças à qual as políticas neoliberais e as transformações do capitalismo ampararam-se mutuamente para produzir o que denominamos “a grande virada”. Contudo, essa virada não se deve apenas à crise do capitalismo nem surgiu de repente. Ela foi precedida e acompanhada por uma luta ideológica, que foi sobretudo uma crítica sistemática e duradoura de ensaístas e políticos contra o Estado de bem-estar. Essa ofensiva alimentou diretamente a ação de certos governos e contribuiu enormemente para a legitimação da nova norma quando esta por fim surgiu. Esse é o segundo ponto. No entanto, apenas a conversão dos espíritos não teria sido suficiente – foi necessária uma mudança de comportamento. Isso foi obra, em grande parte, de técnicas e dispositivos de disciplina, isto é, de sistemas de coação, tanto econômicos como sociais, cuja função era obrigar os indivíduos a governar a si mesmos sob a pressão da competição, segundo os princípios do cálculo maximizador e uma lógica de valorização de capital. Esse é o terceiro ponto. Finalmente, a progressiva ampliação desses sistemas disciplinares, assim como sua codificação institucional, levaram à instauração de uma racionalidade geral, uma espécie de novo regime de evidências que se impôs aos governantes de todas as linhas como único quadro de inteligibilidade da conduta humana.
Uma nova regulação pela concorrência [6]
Há duas maneiras de se enganar a respeito do sentido da “grande virada”. A primeira consiste em fazê-la proceder exclusivamente de transformações econômicas internas ao sistema capitalista. Desse modo, a dimensão de reação-adaptação a uma situação de crise é artificialmente isolada. A segunda consiste em ver a “revolução neoliberal” como a aplicação deliberada e concertada de uma teoria econômica, privilegiando-se na maioria das vezes a de Milton Friedman[7]. Nesse caso, é a dimensão da revanche ideológica que é supervalorizada. Na realidade, a instauração da norma mundial da concorrência ocorreu pela conexão de um projeto político a uma dinâmica endógena, a um só tempo tecnológica, comercial e produtiva. Pretendemos, nesta seção e na seguinte, evidenciar os principais traços dessa dinâmica, reservando a análise específica da segunda dimensão às seções posteriores, dedicadas à ideologia e à disciplina.
O programa político de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, imitado por um grande número de governos e continuado pelas grandes organizações internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, apresenta-se primeiro como um conjunto de respostas a uma situação que se considera “ingerível”. Essa dimensão propriamente reativa é patente no relatório da Comissão Trilateral[8], intitulado The Crisis of Democracy, um documento-chave que mostra a consciência da “ingovernabilidade” das democracias compartilhada por muitos dos dirigentes dos países capitalistas[9]. Os especialistas convidados a formular seu diagnóstico em 1975 constataram que os governantes eram incapazes de governar em razão do excessivo envolvimento dos governados na vida política e social. Ao contrário de Tocqueville ou Mill, que lamentavam a apatia dos modernos, os três relatores da Comissão Trilateral, Michel Crozier, Samuel Huntington e Joji Watanuki, queixavam-se do “excesso de democracia” que surgiu nos anos 1960, isto é, em sua opinião, do aumento das reivindicações igualitárias e do desejo de participação política ativa das classes mais pobres e mais marginalizadas. Para eles, a democracia política somente pode funcionar normalmente com certo grau “de apatia e não participação da parte de certos indivíduos e grupos”[10]. Alinhando-se aos temas clássicos dos primeiros teóricos neoliberais, pediam que se reconhecesse que “há um limite desejável para a ampliação indefinida da democracia política”[11].
Esse apelo a que se pusessem “limites às reivindicações” traduzia à própria maneira o início da crise da antiga norma fordista. Esta conciliava os princípios do taylorismo com as regras de divisão do valor adicionado favoráveis à alta regular dos salários reais (por indexação pelos preços e pelos ganhos de produtividade). Além disso, essa articulação da produção e do consumo de massa apoiava-se no caráter relativamente autocentrado[12] desse modelo de crescimento que garantia certa “solidariedade” macroeconômica entre salário e lucro. As características da demanda (fraca diferenciação dos produtos, alta elasticidade da demanda em relação ao preço[13], progressão da renda) correspondiam à satisfação progressiva das necessidades das famílias em termos de bens de consumo e equipamento. Assim, esse crescimento sustentado da renda, assegurado pelo aumento dos ganhos de produtividade, permitia escoar a produção de massa em mercados essencialmente domésticos. Setores industriais pouco expostos à concorrência internacional tiveram um papel de motor do crescimento. A organização da atividade produtiva repousava sobre uma divisão do trabalho bastante aprofundada, uma automatização incrementada, porém rígida, um ciclo de produção/consumo longo, que possibilitava a obtenção de economias de escala sobre bases nacionais ou mesmo internacionais, já ligadas à deslocalização maciça de segmentos de montagem em países asiáticos. Entendia-se que, no plano político e social, tais condições possibilitavam arranjos que até certo ponto articulavam a valorização do capital e um aumento dos salários reais (o que foi chamado de “compromisso social-democrata”).
No entanto, no fim dos anos 1960, o modelo “virtuoso” do crescimento fordista depara com limites endógenos. As empresas sofreram uma baixa sensível em suas taxas de lucro[14]. Essa queda da “lucratividade” explica-se pela desaceleração dos ganhos de produtividade, pela relação das forças sociais e da combatividade dos assalariados (o que deu aos “anos 1968” sua característica histórica), pela alta inflação amplificada pelas duas crises do petróleo, em 1973 e 1979. A estagflação parece assinar o atestado de óbito da arte keynesiana de “pilotar a conjuntura”, que pressupunha a arbitragem entre inflação e recessão. A coexistência desses dois fenômenos – alta taxa de inflação e taxa elevada de desemprego – parecia desabonar as ferramentas da política econômica, em particular a ação benéfica do gasto público sobre o nível da demanda e o nível de atividade, logo, sobre o nível do emprego.
A desregulação do sistema internacional instaurada após a Segunda Guerra Mundial constituirá um fator suplementar de crise. A flutuação geral das moedas a partir de 1973 abre caminho para uma maior influência dos mercados sobre as políticas econômicas e, num contexto novo, a abertura crescente das economias mina as bases do circuito autocentrado de “produção-renda-demanda”.
A nova política monetarista esforça-se precisamente para responder aos dois problemas principais, que são a estagflação e o poder de pressão das organizações de assalariados. O que se fez foi interromper a indexação dos salários pelos preços e, assim, transferir a sangria causada pelas duas crises do petróleo para o poder de compra dos assalariados em benefício das empresas. Os dois eixos principais da mudança de direção da política econômica foram a luta contra a inflação galopante e a recuperação dos lucros no fim dos anos 1970. O aumento brutal das taxas de juros à custa de uma grave recessão e de um aumento do desemprego permitiu lançar rapidamente uma série de ofensivas contra o poder sindical, baixar os gastos sociais e os impostos e facilitar a desregulamentação. No início dos anos 1980, os próprios governos de esquerda se converteram a essa política monetarista, como mostra exemplarmente o caso da França[15].
Através de outro “círculo virtuoso”, a elevação das taxas de juros levaram à crise do endividamento dos países latino-americanos, em particular do México, em 1982, dando ocasião para que o FMI impusesse, em troca da negociação das condições de pagamento, planos de ajuste estrutural que pressupunham reformas profundas. O aumento das taxas de juros para o dobro nos Estados Unidos, em 1979, e suas consequências internas e externas vão devolver aos credores certo poder sobre os devedores, exigindo deles uma remuneração real mais elevada e impondo-lhes condições políticas e sociais muito desfavoráveis[16]. Essa disciplina monetária e orçamentária torna-se a nova norma das políticas anti-inflacionárias no conjunto dos países da OCDE e nos países do Sul, que dependem do crédito do Banco Mundial e do apoio do FMI.
Desse modo, progressivamente uma nova orientação tomou corpo em dispositivos e mecanismos econômicos que mudaram profundamente as “regras do jogo” entre os diferentes capitalismos nacionais, assim como entre as classes sociais em cada um dos espaços nacionais. As mais famosas das medidas adotadas foram a grande onda de privatizações de empresas públicas (na maioria das vezes vendidas a preço de banana) e o movimento geral de desregulamentação da economia. A ideia diretriz dessa orientação é que a liberdade que se dá aos atores privados – que conhecem melhor a situação dos negócios e seus próprios interesses – é sempre mais eficaz do que a intervenção direta ou a regulação pública. Se a ordem econômica keynesiana e fordista repousava sobre a ideia de que a concorrência entre empresas e entre economias capitalistas deveria ser enquadrada por regras fixas comuns no que diz respeito a taxas de câmbio, políticas comerciais e divisão de renda, a nova norma neoliberal instaurada no fim dos anos 1980 erige a concorrência em regra suprema e universal de governo.
Esse sistema de regras definiu o que poderíamos chamar de sistema disciplinar mundial. Como mostraremos adiante, a elaboração desse sistema representa o desfecho de um processo de experimentação de dispositivos disciplinares polidos desde os anos 1970 pelos governos atraídos para o dogma do monetarismo. Encontrou sua formulação mais condensada naquilo que John Williamson chamou de “Consenso de Washington”. Esse consenso se estabeleceu na comunidade financeira internacional como um conjunto de recomendações que todos os países deveriam seguir para conseguir empréstimos e auxílios[17].
As organizações internacionais tiveram um papel bastante ativo na difusão dessa norma. O FMI e o Banco Mundial viram o sentido de sua missão mudar radicalmente nos anos 1980, em consequência da adesão dos governos dos países mais poderosos à nova racionalidade governamental. As economias mais frágeis tiveram, em sua maioria, de obedecer às recomendações desses organismos para conseguir ajuda ou, ao menos, “aprovação”, a fim de melhorar sua imagem diante dos credores e dos investidores internacionais. Dani Rodrik, economista de Harvard que trabalhou muito com o Banco Mundial, não teve dúvidas em dizer que se tratou de uma “hábil estratégia de marketing”: “O ajuste estrutural foi apresentado como uma iniciativa que os países deveriam tomar para salvar suas economias da crise”[18]. Na realidade, como bem mostrou Joseph Stiglitz, os resultados dos planos de ajuste foram bastante destrutivos na maioria das vezes. As “terapias de choque” sufocaram o crescimento com taxas de juro muito elevadas, arruinaram a produção local expondo-a sem cautela à concorrência dos países mais desenvolvidos, muitas vezes agravaram a desigualdade e aumentaram a pobreza, reforçaram a instabilidade econômica e social e submeteram essas economias “abertas” à volatilidade dos movimentos de capitais. A intervenção do FMI e do Banco Mundial visava a impor o quadro político do Estado concorrencial, ou seja, do Estado cujas ações tendem a fazer da concorrência a lei da economia nacional, seja essa concorrência a dos produtores estrangeiros, seja a dos produtores nacionais.
De maneira mais geral, as políticas seguidas pelos governos tanto do Norte como do Sul consistiram em buscar no aumento de suas parcelas de mercado em nível mundial a solução para seus problemas internos. Essa corrida à exportação, à conquista de mercados estrangeiros e à captação de poupança criou um contexto de concorrência exacerbada que levou a uma “reforma” permanente dos sistemas institucionais e sociais, apresentada à população como uma necessidade vital. As políticas econômicas e sociais integraram essa “adaptação” à globalização como dimensão principal, tentando aumentar a capacidade de reação das empresas, diminuir a pressão fiscal sobre os rendimentos do capital e os grupos mais favorecidos, disciplinar a mão de obra, baixar o custo do trabalho e aumentar a produtividade.
Os Estados tornaram-se elementos-chave dessa concorrência exacerbada, procurando atrair uma parte maior dos investimentos estrangeiros pela criação de condições fiscais e sociais mais favoráveis à valorização do capital. Assim, contribuíram amplamente para a criação de uma ordem que os submete a novas restrições que, por sua vez, levam a comprimir salários e gastos públicos, reduzir “direitos adquiridos” considerados muito onerosos e enfraquecer os mecanismos de solidariedade que escapam à lógica assistencial privada. Ao mesmo tempo atores e objetos da concorrência mundial, construtores e colaboradores do capitalismo financeiro, os Estados são cada vez mais submetidos à lei férrea de uma dinâmica da globalização que lhes escapa largamente. Os dirigentes dos governos e dos organismos internacionais (financeiros e comerciais) podem sustentar, assim, que a globalização é um fatum que ao mesmo tempo trabalha continuamente para a criação dessa pretensa “fatalidade”.
O crescimento do capitalismo financeiro
Em nível mundial, a difusão da norma neoliberal encontra um veículo privilegiado na liberalização financeira e na globalização da tecnologia. Um mercado único de capitais instala-se por intermédio de uma série de reformas legislativas, das quais as mais significativas foram a liberação total do câmbio, a privatização do setor bancário, a abertura dos mercados financeiros e, em nível regional, a criação da moeda única europeia. Essa liberação política das finanças é fundamentada numa necessidade de financiamento da dívida pública, que seria paga recorrendo-se aos investidores internacionais. No plano teórico, é justificada pela superioridade da concorrência entre os atores financeiros na administração do crédito, naquilo que diz respeito ao financiamento de empresas, lares e Estados endividados[19]. Foi facilitada por uma revisão progressiva da política monetária norte-americana, que abandonou os cânones estritos do monetarismo doutrinal.
As finanças mundiais sofreram uma expansão considerável durante quase duas décadas. O volume das transações a partir dos anos 1980 mostra que o mercado financeiro se autonomizou em relação à esfera da produção e das trocas comerciais, aumentando a instabilidade já crônica da economia mundial[20]. Desde que a “globalização” começou a ser puxada pelas finanças, a maioria dos países viu-se na impossibilidade de tomar medidas que iriam de encontro aos interesses dos detentores do capital. Por isso, eles não impediram nem a formação das bolhas especulativas nem o estouro delas. Mais ainda, por uma política monetária que se afastou do monetarismo clássico, contribuíram para sua formação – como os Estados Unidos a partir de 2000. A unificação do mercado mundial do dinheiro veio acompanhada de uma homogeneização dos critérios contábeis, de uma uniformização das exigências de rentabilidade, de um mimetismo das estratégias dos oligopólios, de ondas de recompras, fusões e restruturações de atividades.
A passagem do capitalismo fordista ao capitalismo financeiro foi marcada também por uma sensível modificação das regras de controle das empresas. Com a privatização do setor público, o peso cada vez maior dos investidores institucionais e o aumento dos capitais estrangeiros na estrutura da propriedade das empresas, uma das principais mudanças do capitalismo foram os objetivos perseguidos pelas empresas sob pressão dos acionistas. De fato, o poder financeiro dos proprietários da empresa conseguiu dos gestores que estes exercessem pressão constante sobre os assalariados com o intuito de aumentar os dividendos e as cotações na bolsa. Segundo essa lógica, a “criação de valor acionário”, isto é, a produção de valor em proveito dos acionistas como determinam os mercados de ações, torna-se o principal critério de gestão dos dirigentes. O comportamento das empresas é profundamente afetado. Elas desenvolverão todos os tipos de meios para aumentar essa “criação de valor” financeiro: fusões-aquisições, recentralização no foco do negócio, terceirização de certos segmentos da produção, redução do tamanho da empresa[21]. A governança da empresa (corporate governance) está diretamente ligada à vontade dos acionistas de assumir o controle da gestão das empresas. O controle “indicial”, determinado unicamente pela variação do índice da bolsa, visa a reduzir a autonomia dos objetivos dos gestores, que supostamente têm interesses diferentes, ou até mesmo oposto aos, dos acionistas. O principal efeito que tiveram essas práticas de controle foi tornar o aumento da cotação em bolsa o objetivo comum de acionistas e dirigentes. O mercado financeiro foi constituído em agente disciplinante para todos os atores da empresa, desde o dirigente até o assalariado de base: todos devem submeter-se ao princípio de accountability, isto é, à necessidade de “prestar contas” e ser avaliado em função dos resultados obtidos.
O fortalecimento do capitalismo financeiro teve outras consequências importantes, sobretudo sociais. A concentração de renda e patrimônio acelerou-se com a financeirização da economia. A deflação salarial traduziu um poder maior dos detentores dos capitais, o que lhes permitiu atrair um acréscimo importante de valor, impondo seus critérios de rendimento financeiro à toda a esfera produtiva e fazendo as forças de trabalho competirem em escada mundial. Ela levou muitos assalariados a recorrer ao endividamento, que o ativismo monetário do Federal Reserve Bank tornou mais fácil depois do crash de 2000. O empobrecimento relativo e muitas vezes absoluto desses assalariados submeteu-os desse modo ao poder das finanças.
Em segundo lugar, a relação do sujeito com ele mesmo foi profundamente afetada. Em razão dos impostos mais atrativos e do estímulo dos poderes públicos, o patrimônio financeiro e imobiliário de muitas famílias de classe média e alta aumentou consideravelmente a partir dos anos 1990. Apesar de longe do sonho thatcheriano de populações ocidentais compostas de milhões de pequenos capitalistas, a lógica do capital financeiro teve efeitos subjetivos significativos. Cada sujeito foi levado a conceber-se e comportar-se, em todas as dimensões de sua vida, como um capital que devia valorizar-se: estudos universitários pagos, constituição de uma poupança individual para a aposentadoria, compra da casa própria e investimentos de longo prazo em títulos da bolsa são aspectos dessa “capitalização da vida individual” que, à medida que ganhava terreno na classe assalariada, erodia um pouco mais as lógicas de solidariedade[22].
O advento do capitalismo financeiro, ao contrário do que anunciaram na época alguns analistas, não nos fez passar do capitalismo organizado do século XIX para um “capitalismo desorganizado”[23]. É mais adequado dizer que o capitalismo se reorganizou sobre novas bases, cuja mola é a instauração da concorrência generalizada, inclusive na esfera da subjetividade. O que aprouve chamar de “desregulamentação”, termo ambíguo que poderia dar a entender que o capitalismo não conhece nenhum outro modo de regulação, é na realidade uma nova ordenação das atividades econômicas, das relações sociais, dos comportamentos e das subjetividades.
Nada é mais indicativo disso do que o papel dos Estados e das organizações econômicas internacionais no estabelecimento do novo regime de acumulação predominantemente financeiro. Há, de fato, uma falsa ingenuidade no fato de se lamentar a força do capital financeiro em oposição à força declinante dos Estados. O novo capitalismo está profundamente ligado à construção política de uma finança global regida pelo princípio da concorrência generalizada. Nisso, a “mercadorização”[a] (marketization) das finanças é filha da razão neoliberal. Portanto, convém não tomar o efeito pela causa, identificando sumariamente neoliberalismo com capitalismo financeiro.
É claro que nem tudo vem pela mão do Estado. Se, a princípio, um dos objetivos da liberalização dos mercados financeiros consistia em facilitar as necessidades crescentes de financiamento dos déficits públicos, a expansão das finanças globais é resultado também de múltiplas inovações em produtos financeiros, práticas e tecnologias que não haviam sido previstas inicialmente.
Em todo caso, foi o Estado que nos anos 1980, por suas reformas de liberalização e privatização, constituiu uma finança de mercado, em vez de uma gestão mais administrada dos financiamentos bancários das empresas e das famílias. Lembremos que, dos anos 1930 aos 1970, o sistema financeiro era enquadrado por regras que visavam a protegê-lo dos efeitos da concorrência. A partir dos anos 1980, ele continua a ser submetido a regras, mas estas mudam radicalmente, já que visam a regulamentar a concorrência geral entre todos os atores financeiros em escala internacional[24]. A França oferece um bom exemplo dessa transformação. Os governos franceses começaram a pôr fim à gestão administrada do crédito: supressão do limite de crédito, retirada do controle de câmbio e privatização das instituições bancárias e financeiras. Essas medidas permitiram a criação de um grande mercado único de capitais e encorajaram o desenvolvimento de conglomerados que misturavam atividades de banco, seguro e consultoria. Paralelamente, a gestão da dívida pública, em pleno crescimento no início dos anos 1990, foi profundamente modificada para que se pudesse recorrer aos investidores internacionais, de modo que, por esse meio, os Estados contribuíram ampla e diretamente para o crescimento das finanças globalizadas. Por uma espécie de “efeito reflexo” de sua própria ação, o Estado foi obrigado a “adaptar-se” às pressas à nova situação financeira internacional. Quanto maior foi a transferência de renda para os usurários, por meio de imposto, mais se teve de diminuir o número de funcionários e baixar os salários e mais foi preciso transferir para o setor privado segmentos inteiros do setor público. As privatizações, da mesma forma que o estímulo à poupança individual, acabaram por conferir um poder considerável a bancos e seguradoras.
O aumento do tamanho dos mercados, a abertura dos mercados e a criação do mercado de produtos derivados foram sistematicamente encorajados pelos poderes públicos para enfrentar a concorrência de outras praças financeiras (em particular as mais poderosas: Londres e Nova York). Nos Estados Unidos, nos anos 1990, assistiu-se ao fim da compartimentalização do setor bancário com a supressão do Glass-Steagall Act de 1933 e o surgimento paralelo de grandes conglomerados multifuncionais (one-stop shopping). A securitização de créditos, iniciada nos Estados Unidos nos anos 1970, favoreceu um quadro legal na maioria dos países (na França em 1988)[25]. Enfim, em outro campo, coube ainda ao Estado criar o elo entre o poder do capital financeiro e a gestão empresarial: ele deu um quadro legal[26] às normas da governança empresarial que consagrava os direitos dos acionistas e instaurava um sistema de remuneração dos dirigentes baseado no aumento do valor das ações (stock-options)[27].
Obviamente, o FMI e o Banco Mundial prosseguiram essa construção política das finanças de mercado pelos governos. As políticas públicas ajudaram ativa e fortemente os “investidores institucionais” a instaurar a norma do máximo valor acionário, captar fluxos de renda cada vez maiores, alimentar uma especulação desenfreada graças à extração de renda financeira. A concentração das instituições financeiras, agora situadas no centro dos novos dispositivos econômicos, permitiu atrair de modo sólido a poupança das famílias e das empresas, o que lhes deu ao mesmo tempo mais poder sobre todas as esferas econômicas e sociais. Portanto, aquilo que se denomina “liberalização” das finanças – que é mais propriamente a construção de mercados financeiros internacionais – engendrou uma “criatura” com uma força ao mesmo tempo difusa, global e incontrolável.
Paradoxalmente, esse papel ativo dos Estados favoreceu a derrapagem das instituições de crédito em meados dos anos 2000. Foi precisamente a concorrência exacerbada entre instituições de crédito “multifuncionais” que as levou a assumir riscos cada vez maiores a fim de manter a própria rentabilidade[28]. Mas elas somente poderiam assumir esses riscos se o Estado continuasse a ser o fiador supremo do sistema. O salvamento das caixas econômicas nos anos 1990 nos Estados Unidos mostrou que o Estado não poderia permanecer indiferente ao desmoronamento dos grandes bancos, segundo o princípio do “too big to fail” [“grande demais para quebrar”]. Na realidade, há muito tempo o governo neoliberal faz o papel de credor de última instância, como mostra a prática de compra de créditos de bancos e securitização nos Estados Unidos[29]. De modo que não é de admirar que os governos tenham aumentado as intervenções de “salvamento” de instituições bancárias e seguradoras desde o desencadeamento da crise em 2007: essas intervenções apenas ilustram em grande escala o princípio da “nacionalização dos riscos e da privatização dos lucros”. O governo britânico de Gordon Brown nacionalizou quase 50% de seu sistema bancário e o governo norte-americano recapitalizou os bancos de Wall Street a um custo de centenas de bilhões de dólares. Ao contrário do que afirmaram certos analistas, evidentemente não é de “socialismo” que se trata, tampouco de uma nova “Revolução de Outubro”, mas de uma extensão forçada e forçosa do papel ativo do Estado neoliberal. Construtor, vetor e parceiro do capitalismo financeiro, o Estado neoliberal deu um passo à frente, tornando-se efetivamente, graças à crise, a instituição financeira de última instância. Isso é tão verdadeiro que esse “salvamento” conseguiu transformá-lo provisoriamente numa espécie de Estado corretor, que compra títulos na baixa para tentar revendê-los na alta. A ideia de que após a “retirada do Estado” assistiríamos a um “retorno do Estado” deve ser seriamente rediscutida.
Ideologia (1): o “capitalismo livre”
O fato de essa ilusão ser tão corriqueira deve-se em grande parte a uma estratégia eficaz de conversão de mentalidades que, a partir dos anos 1960 e 1970, tomou a dupla forma de uma luta ideológica contra o Estado e as políticas públicas, de um lado, e de uma apologia despudorada do capitalismo mais desbridado, de outro. Criou-se toda uma vulgata sobre o tema da necessária “desobrigação do Estado” e a incomparável “eficiência dos mercados”. Foi assim que, na virada dos anos 1980, o mito do mercado autorregulador pareceu estar de volta, a despeito das políticas neoliberais que visavam a uma construção mais ativa dos mercados.
Essa conquista política e ideológica foi objeto de numerosos trabalhos. Alguns autores desenvolveram uma estratégia muito consciente de luta ideológica. Hayek, Von Mises, Stigler e Friedman de fato refletiram sobre a importância da propaganda e da educação, um tema que ocupa parte notável de suas obras e intervenções. Tentaram até mesmo dar uma forma popular a suas teses para que tocassem, se não a opinião pública diretamente, ao menos os formadores de opinião, e isso desde muito cedo, como mostra o sucesso mundial de O caminho da servidão, de Hayek. O que explica também a constituição dos think tanks (o mais famoso, a Sociedade Mont-Pèlerin, fundada em 1947 em Vevey, na Suíça, por Hayek e Röpke, não foi mais do que a “ponta de rede” de um vasto conjunto de associações e círculos militantes em todos os países). A historiografia descreve como os think tanks dos “evangelistas do mercado” permitiram lançar o assalto aos grandes partidos de direita, apoiando-se numa imprensa dependente dos meios empresariais, e como, pouco a pouco, as “ideias modernas” do mercado e da globalização fizeram refluir e definhar os sistemas ideológicos contrários, a começar pela social-democracia.
Evidentemente, do ponto de vista histórico, esse aspecto das coisas é fundamental. Foi precisamente pela fixação e pela repetição dos mesmos argumentos que certa vulgata acabou impondo-se por toda a parte, em particular nas mídias, na universidade e no mundo político. Nos Estados Unidos, Milton Friedman, em conjunto com seus trabalhos acadêmicos, teve um papel importante na reabilitação do capitalismo com uma produção excepcional de artigos, livros e programas de televisão. Ele foi o único economista de sua época a aparecer na capa da Time Magazine (1969). Perfeitamente consciente da importância dessa propagação das ideias pró-capitalistas, dizia que, na maioria das vezes, a legislação apenas acompanha um movimento da opinião pública que aconteceu vinte ou trinta anos atrás[30]: a virada da opinião pública contra o laissez-faire dos anos 1880 só se traduziu em políticas no início do século XX. Para Friedman, uma nova mudança a favor do capitalismo concorrencial ocorrera por volta dos anos 1960 e 1970, após o fracasso das políticas de regulação keynesiana, de luta contra a pobreza e de redistribuição de renda, e em consequência da rejeição cada vez maior ao modelo soviético. Para ele, a revolta dos contribuintes californianos em 1978, que se estendeu progressivamente a todos os Estados Unidos e a um grande número de países ocidentais, testemunhou essa nova aspiração da população à redução dos gastos públicos e dos impostos. Friedman, consciente desses ciclos e dos efeitos retardados da opinião pública sobre a política e a legislação, acerta quando anuncia em 1981 que aquela era uma grande virada que se traduziria em medidas governamentais.
No momento certo, todos os países tiveram seus best-sellers elogiando a revolução conservadora norte-americana e o retorno do mercado, e denunciando com veemência os custosos abusos da função pública e do “Estado de bem-estar”. Essa imensa onda de novas evidências fabricou um consentimento, se não da população, ao menos das “elites” que tinham o monopólio da palavra pública, e permitiu que aqueles que ainda ousavam opor-se fossem estigmatizados como “arcaicos”[31].
Não podemos esquecer, todavia, que não foi apenas a força das ideias neoliberais que garantiu sua hegemonia. Elas se impuseram a partir do enfraquecimento das doutrinas de esquerda e do desabamento de qualquer alternativa ao capitalismo. Elas se afirmaram sobretudo num contexto de crise dos antigos modos de regulação da economia capitalista, no momento em que a economia mundial era afetada pelas crises do petróleo. Isso explica por que, diferentemente dos anos 1930, a crise do capitalismo fordista resultou numa saída favorável não a menos capitalismo, mas, sim, a mais capitalismo. O principal tema dessa guerra ideológica foi a crítica do Estado como fonte de todos os desperdícios e freio à prosperidade.
O sucesso ideológico do neoliberalismo foi possível, em primeiro lugar, graças ao novo crédito que se deu a críticas antiquíssimas contra o Estado. Desde o século XIX, o Estado inspirou as mais virulentas diatribes. Frédéric Bastiat, precedendo Spencer nesse quesito, sobressaiu-se em suas Harmonies économiques. Os serviços públicos, dizia ele, alimentam a irresponsabilidade, a incompetência, a injustiça, a espoliação e o imobilismo: “Tudo que caiu no domínio do funcionalismo é quase estacionário”, por falta do incentivo indispensável da concorrência[32]. Não nos surpreende, portanto, que sejam requentados temas parcamente renovados por um novo vocabulário: o Estado é muito caro, desregula a frágil máquina da economia, “desestimula” a produção. Nos últimos trinta anos, o “custo do Estado” e o peso excessivo dos impostos foram constantemente alegados para legitimar uma primeira virada no plano fiscal. Outras críticas se juntaram a essa, ampliando a ideia do desperdício burocrático: o caráter inflacionário dos gastos do Estado, o tamanho insuportável da dívida acumulada, o efeito dissuasivo de impostos muito pesados e a fuga de empresas e capitalistas do espaço nacional, que se tornou “não competitivo” por causa do peso dos encargos sobre os rendimentos do capital. Friedman sonhava com uma sociedade pouco taxada:
"Minha definição seria a seguinte: é “liberal” uma sociedade em que os gastos públicos, todas as coletividades juntas, não ultrapassam 10% a 15% do produto nacional. Estamos muito longe disso. Existem, evidentemente, outros critérios, como o grau de proteção da propriedade privada, a presença de mercados livres, o respeito aos contratos etc. Mas tudo isso é medido pelo peso global do Estado. Dez por cento era a porcentagem na Inglaterra no apogeu do reinado da rainha Vitória, no fim do século XIX. Na era dourada das colônias, Hong Kong chegou a menos de 15%. Todos os dados empíricos e históricos mostram que 10% a 15% é o tamanho ótimo. Hoje, os governos europeus chegam em média a quatro vezes mais. Nos Estados Unidos, chegamos apenas a três vezes.[33]"
Essa argumentação recupera de certo modo o velho tema do “governo frugal”, que deve evitar retirar riquezas excessivas para não prejudicar a atividade dos agentes econômicos, privando-os de recursos e arrasando suas motivações. Von Mises e Hayek a reforçaram nos anos 1930 com suas análises a respeito da ineficácia burocrática, que, para eles, devia-se essencialmente à impossibilidade de cálculo nas economias dirigidas e à ausência de qualquer arbitragem possível entre soluções alternativas. Os argumentos elaborados por esses autores contra a “burocracia” e o “Estado onipotente”, que no momento em que foram formulados iam contra a corrente, fizeram um enorme sucesso na imprensa cinquenta anos depois, e, muito além da direita, o desmoronamento da União Soviética parecia ser a demonstração em ato do fracasso das economias centralizadas. Finalmente, o amálgama entre a burocracia de tipo stalinista e as diferentes formas de intervenção na economia – que Hayek e Von Mises não hesitaram em fazer – tornou-se comum na nova vulgata. Os fracassos da regulação keynesiana, as dificuldades encontradas pela escolarização em massa, o peso dos impostos, os diferentes déficits das caixas públicas de auxílio social, a incapacidade relativa do Estado social de eliminar a pobreza ou reduzir as desigualdades, tudo foi pretexto para reconsiderar as formas institucionais que, após a Segunda Guerra Mundial, asseguraram um compromisso entre as grandes forças sociais. Mais ainda, todas as reformas sociais desde o fim do século XIX foram postas em dúvida, em nome da liberdade absoluta dos contratos e da defesa incondicional da propriedade privada. Reprovando a tese polanyiana da “grande transformação”, os anos 1980 caracterizam-se no campo ideológico como uma época “spenceriana”.
Tudo isso foi misturado, com um conteúdo um pouco diferente, é claro, mas ainda de acordo com o método empregado por Hayek em O caminho da servidão. No fundo, o gulag e os impostos eram apenas dois elementos de um mesmo continuum totalitário. Na França, por exemplo, “novos filósofos” e “novos economistas” participaram simultaneamente da mesma denúncia do grande Leviatã. Mais ainda, houve uma reviravolta na crítica social: até os anos 1970, desemprego, desigualdades sociais, inflação e alienação eram “patologias sociais” atribuídas ao capitalismo; a partir dos anos 1980, os mesmos males foram sistematicamente atribuídos ao Estado. O capitalismo deixou de ser o problema e se tornou a solução universal. Essa era a mensagem das obras de Friedman a partir dos anos 1960[34].
Foi em nome dos “fracassos do mercado” (market failures) que a intervenção pública foi justificada nos anos 1920 e estendida após a guerra. Essa inversão da crítica foi perfeitamente resumida por Friedman em Livre para escolher:
"O governo é um dos meios pelos quais podemos tentar compensar os “defeitos do mercado” e utilizar nossos recursos de forma mais eficaz para produzir a quantidade de ar, água e terra própria que aceitamos pagar. Infelizmente, os próprios fatores que produzem o “defeito de mercado” impedem o governo de chegar a uma solução satisfatória. Via de regra, é tão difícil para o governo como é para os participantes do mercado identificar quem foi prejudicado e quem foi beneficiado e avaliar o volume exato dos prejuízos e dos benefícios. Tentar usar o governo para corrigir um “defeito de mercado” é, muitas vezes, trocar um “defeito de mercado” por um “defeito de governo”.[35]"
Ronald Reagan transformou isso em slogan: “O governo não é a solução, é o problema”[36].
Ideologia (2): o “Estado de bem-estar” e a desmoralização dos indivíduos
Um grande número de teses, relatórios, ensaios e artigos tentará avaliar a balança de custos e benefícios do Estado para terminar com um veredito inapelável: o seguro-desemprego e a renda mínima são os responsáveis pelo desemprego; os gastos com saúde agravam o déficit e provocam a inflação dos custos; a gratuidade dos estudos incentiva a vadiagem e o nomadismo dos estudantes; as políticas de redistribuição de renda não reduzem as desigualdades, mas desestimulam o esforço; as políticas urbanas não eliminaram a segregação, mas tornaram mais pesada a taxação local. Em resumo, tratava-se de fazer a respeito de tudo a pergunta decisiva acerca da utilidade da interferência do Estado na ordem do mercado e mostrar que, na maior parte dos casos, as “soluções” dadas pelo Estado causavam mais problema do que resolviam[37].
Mas a questão do custo do Estado social está longe de se circunscrever à dimensão contábil. Na realidade, é no campo moral que a ação pública pode ter os efeitos mais negativos, dependendo do número de polemistas. Mais precisamente, é pela desmoralização que se é capaz de provocar na população a opinião de que a política do “Estado de bem-estar” se tornou particularmente onerosa. O grande tema neoliberal afirma que o Estado burocrático destrói as virtudes da sociedade civil: a honestidade, o sentido do trabalho bem feito, o esforço pessoal, a civilidade, o patriotismo. Não é o mercado que destrói a sociedade civil com sua “sede de lucro”, porque ele não poderia funcionar sem essas virtudes da sociedade civil; é o Estado que corrói as molas da moralidade individual. Como mostrou Albert O. Hirschman, o argumento não era novo: tratava-se de um dos três esquemas fundamentais da “retórica reacionária”, o que ele chama de “efeito perverso”. Buscar o bem da maioria por meio de políticas de proteção e redistribuição resulta infalivelmente em fazer sua desgraça[38]. Essa foi a tese amplamente difundida por Charles Murray em Losing Ground [Perdendo terreno], obra lançada em plena era Reagan[39]. A luta generosa contra a pobreza fracassou porque dissuadiu os pobres de tentar progredir, o contrário do que fizeram várias gerações de imigrantes. Manter os indivíduos em categorias desvalorizadas, fazê-los perder dignidade e autoestima, homogeneizar a classe pobre são alguns dos efeitos não desejados do auxílio social. Para Murray, existe apenas uma solução: a supressão do welfare State e a recuperação da solidariedade entre parentes e vizinhos, que obriga o indivíduo a assumir suas responsabilidades, a recuperar certo status, certo orgulho, para manter a honra.
Uma das constantes do discurso neoliberal é a crítica da “dependência à assistência” gerada pela cobertura generosa dos riscos concedida pelos sistemas de assistência social. Os reformadores neoliberais não só se serviram do argumento da eficácia e do custo, como também alegaram a superioridade moral das soluções dadas ou inspiradas pelo mercado.
Essa crítica repousa sobre um postulado que diz respeito à relação do indivíduo com o risco. O “Estado de bem-estar”, querendo promover o bem-estar da população por meio de mecanismos de solidariedade, eximiu os indivíduos de suas responsabilidades e dissuadiu-os de procurar trabalho, estudar, cuidar de seus filhos, prevenir-se contra doenças causadas por práticas nocivas. A solução, portanto, é pôr em ação, em todos os domínios e em todos os níveis, sobretudo no nível microeconômico do comportamento dos indivíduos, os mecanismos do cálculo econômico individual. O que deveria ter dois efeitos: a moralização dos comportamentos e uma maior eficiência dos sistemas sociais. Foi assim que, nos anos 1970, nos Estados Unidos, o auxílio às famílias com filhos dependentes (Aid to Families with Dependent Children) tornou-se o símbolo dos efeitos nefastos do welfare State, por encorajar a dissolução dos laços familiares, multiplicar as famílias assistidas e desestimular as welfare mothers de trabalhar. O que será confirmado, no registro acadêmico, pela demonstração de Gary Becker em A Treatise on Family, baseada no cálculo dos custos e das vantagens para as jovens mães em permanecer solteiras[40]. O “Estado de bem-estar” tem o efeito perverso de incitar os agentes econômicos a preferir o ócio ao trabalho. Essa argumentação, repetida até fartar, associa a segurança dada aos indivíduos à perda do senso de responsabilidade, ao abandono dos deveres familiares, à perda do gosto pelo esforço e do amor ao trabalho. Em uma palavra, a proteção social destrói valores sem os quais o capitalismo não poderia funcionar[41].
O ensaísta norte-americano George Gilder, no best-seller Wealth and Poverty, publicado no momento em que Reagan chegava ao poder, foi sem dúvida quem insistiu com mais eloquência na relação entre valores e capitalismo[42]. Para ele, o futuro repousa sobre a fé no capitalismo, tal como é expressa por Walter Lippmann em The Good Society:
"A fé no homem, no futuro, a fé no retorno cada vez maior do dom, a fé nas vantagens mútuas do comércio, a fé na providência de Deus são fundamentais para o êxito do capitalismo. Todas são necessárias para encorajar a paixão no trabalho e o espírito de empresa contra todos os fracassos e as frustrações inevitáveis de um mundo perdido; para inspirar a confiança e a solidariedade numa economia em que elas muitas vezes serão traídas; para encorajar a renúncia aos prazeres imediatos em nome de um futuro que corre o risco de virar fumaça; e, finalmente, para estimular o gosto pelo risco e pela iniciativa num mundo em que os lucros evaporam quando os outros se recusam a entrar no jogo.[43]"
Se a riqueza repousa sobre essas virtudes, a pobreza é encorajada por políticas duplamente dissuasivas em relação ao trabalho e à fortuna: “A ajuda social e outras subvenções apenas prejudicam o trabalho. Os pobres escolhem o ócio não por fraqueza moral, mas porque são pagos para escolhê-lo”[44]. E tirar dos ricos para dar aos pobres por meio dos impostos é dissuadir os ricos de enriquecer: “O imposto progressivo é o principal perigo que ameaça esse sistema e desencoraja os ricos a arriscar seu dinheiro”[45].
O remédio que se deve dar a essa situação é evidente: diminuir as transferências de uns para os outros. A única guerra contra a pobreza que se sustenta é a volta aos valores tradicionais: “Trabalho, família e fé são os únicos remédios para a pobreza”[46]. Esses três meios estão ligados, já que é a família que transmite o sentido do esforço e a fé. Casamento monogâmico, crença em Deus e espírito de empresa são os três pilares da prosperidade, uma vez que nos livramos da ajuda social, que apenas destrói a família, a coragem e o trabalho.
Milton Friedman e sua esposa, Rose, vão no mesmo sentido, considerando que “a expansão do Estado ao longo das últimas décadas e o crescimento da criminalidade no mesmo período constituem duas faces de uma mesma evolução”[47]. Isso acontece porque a intervenção do Estado repousa sobre uma concepção do indivíduo como “produto de seu meio, logo, não podendo ser considerado responsável por seus atos”. É preciso inverter essa representação e considerar o indivíduo plenamente responsável. Responsabilizar o indivíduo é responsabilizar a família [48]. Esse será, entre outros, o objetivo da livre escolha da escola pelos pais e da liberdade que terão de financiar em parte a escolaridade dos filhos. Se o enriquecimento deve ser um valor supremo, é porque é visto como a razão mais eficaz para incentivar os trabalhadores a aumentar o esforço e o desempenho, da mesma forma que a propriedade privada da residência dos trabalhadores ou da empresa é vista como condição para a responsabilidade individual. Por isso, deve-se vender os conjuntos habitacionais para favorecer uma “democracia de proprietários” e um “capitalismo popular”. Da mesma forma, deve-se submeter a direção das empresas aos acionistas por intermédio da privatização, porque eles serão exigentes com a gestão de seu patrimônio. De modo mais geral, é preciso pôr o cliente na posição de árbitro entre vários operadores para que pressione a empresa e seus agentes a servi-lo melhor. A concorrência introduzida pelos consumidores é a principal alavanca para a “responsabilização”, portanto, para o bom desempenho dos assalariados nas empresas.
Um novo discurso de valorização do “risco” inerente à vida individual e coletiva tenderá a fazer pensar que os dispositivos do Estado social são profundamente nocivos à criatividade, à inovação, à realização pessoal. Se o indivíduo é o único responsável por seu destino, a sociedade não lhe deve nada; em compensação, ele deve mostrar constantemente seu valor para merecer as condições de sua existência. A vida é uma perpétua gestão de riscos que exige rigorosa abstenção de práticas perigosas, autocontrole permanente e regulação dos próprios comportamentos, misturando ascetismo e flexibilidade. A palavra-chave da sociedade de risco é “autorregulação”. Essa “sociedade de risco” tornou-se uma daquelas evidências que acompanham as mais variadas propostas de proteção e seguro privados. Um imenso mercado de segurança pessoal, que vai do alarme doméstico aos planos de aposentadoria, desenvolveu-se proporcionalmente ao enfraquecimento dos dispositivos de seguros coletivos obrigatórios, reforçando por um efeito de circuito-fechado o sentimento de risco e a necessidade de se proteger individualmente. Por uma espécie de ampliação dessa problemática do risco, algumas atividades foram reinterpretadas como meios de proteção pessoal. É o caso, por exemplo, da educação e da formação profissional, vistas como escudos que protegem do desemprego e aumentam a “empregabilidade”.
Para compreender essa nova moral, devemos ter em mente a “revolução” que os economistas norte-americanos pretenderam fazer a partir dos anos 1960. A razão econômica aplicada a todas as esferas da ação privada e pública permite eliminar as linhas de separação entre política, sociedade e economia. Sendo global, deve estar na base de todas as decisões individuais, permite a inteligibilidade de todos os comportamentos e deve ser a única a estruturar e legitimar a ação do Estado[49].
É o que mostram os chamados “novos” economistas. Eles tentaram estender o campo de análise da teoria padrão a novos objetos. Não se trata aqui, como era o caso com os teóricos austro-americanos, de dar novas bases à ciência econômica por uma teoria do empreendedorismo; para eles, trata-se – e já é muito – de sair dos domínios tradicionais da análise econômica para generalizar a análise de custo-benefício a todo o comportamento humano. Obviamente, há muitas pontes entre essas correntes, mas as lógicas são heterogêneas. O próprio Von Mises ambicionava uma ciência total da escolha humana. Mas acreditava que tinha de elaborá-la refundando os conceitos e os métodos da economia. Tentava desse modo distinguir a ação humana em geral como criação de sistemas meios-fins (estudada pela praxeologia) e a economia monetária e comercial específica (que é da ordem da catalaxia).
Os economistas norte-americanos adeptos da economia padrão querem estabelecer que as ferramentas mais tradicionais de análise podem ser amplamente estendidas em seus usos, mostrando desse modo que se pode fazer a economia de uma revolução paradigmática e conservar as velhas ferramentas do cálculo de maximização. A família, o casamento, a delinquência, o desemprego, mas também a ação coletiva, a decisão política e a legislação tornam-se objetos do raciocínio econômico. É assim que Gary Becker formula uma nova teoria da família, considerando-a uma firma que emprega certa quantidade de recursos em moeda e tempo para produzir “bens” de diferentes naturezas: competências, saúde, autoestima e outras “mercadorias”, como filhos, prestígio, cobiça, prazer sensorial etc.[50].
O fundamento da iniciativa de Becker consiste em estender a função de utilidade empregada na análise econômica de modo que o indivíduo seja considerado um produtor e não um simples consumidor. Ele produz mercadorias que vão satisfazê-lo, utilizando bens e serviços comprados nos mercados, tempo pessoal e outros “inputs” que possuem valor, preços ocultos, mas calculáveis. Em resumo, trata-se de escolher entre diferentes “funções de produção”, supondo que todo bem é “produzido” pelo indivíduo, que por sua vez mobiliza recursos variados: dinheiro, tempo, capital humano e até mesmo as relações sociais assimiladas a um “capital social”[51]. O que coloca, evidentemente, o problema da identificação dos “inputs”, mas também o da quantificação de todos os aspectos não monetários que entram no cálculo e levam a uma decisão.
A questão principal, nesse reinvestimento das regiões externas do campo classicamente delimitado da ciência econômica, é dar, ou melhor, devolver consistência teórica à antropologia do homem neoliberal, não só, como diz Becker, com a intenção de perseguir um objetivo científico desinteressado, mas para fornecer apoios discursivos indispensáveis à governamentalidade neoliberal da sociedade. Por mais influente que tenha sido por si só essa concepção do homem como capital – o que é propriamente o significado do conceito de “capital humano” –, ela não conseguiu produzir as mutações subjetivas de massa que se podem constatar hoje. Para isso, foi necessário que ela tomasse corpo materialmente pela instauração de dispositivos múltiplos, diversificados, simultâneos ou sucessivos, que moldaram duradouramente a conduta dos sujeitos.
Disciplina (1): um novo sistema de disciplinas
O próprio conceito de governamentalidade, como ação sobre as ações de indivíduos supostamente livres em suas escolhas, permite redefinir a disciplina como técnica de governo próprio das sociedades de mercado. O termo disciplina poderá surpreender nesse caso. Ele implica, ao menos aparentemente, certa inflexão com relação ao sentido que Foucault lhe dá em Vigiar e punir[b], quando o aplica às técnicas de distribuição espacial, classificação e adestramento dos corpos individuais. O modelo da disciplina era, para ele, o panóptico benthamiano. Contudo, longe de opor “disciplina”, “normalização” e “controle”, como defendem certas exegeses, a reflexão de Foucault fez transparecer de modo cada vez mais nítido a matriz dessa nova forma de “conduta das condutas”, que pode diversificar-se, conforme o caso, desde o encarceramento dos prisioneiros até a vigilância da qualidade dos produtos vendidos no mercado[52]. Se “governar é estruturar o campo de ação eventual dos outros”, então a disciplina pode ser redefinida, de forma mais ampla, como um conjunto de técnicas de estruturação do campo de ação que variam conforme a situação em que se encontra o indivíduo[53].
Desde a era clássica das disciplinas, portanto, o poder não pode exercer-se por pura coerção sobre um corpo; ele deve acompanhar o desejo individual e orientá-lo, pondo em ação aquilo que Bentham chama de “influência”. O que pressupõe que ele penetre no cálculo individual – e até participe dele – para agir sobre as antecipações imaginárias dos indivíduos: para reforçar o desejo (pela recompensa), para enfraquecê-lo (pela punição), para desviá-lo (pela substituição de objeto).
Essa lógica que consiste em dirigir indiretamente a conduta é o horizonte das estratégias neoliberais de promoção da “liberdade de escolher”. Nem sempre distinguimos a dimensão normativa que necessariamente lhes pertence: a “liberdade de escolher” identifica-se com a obrigação de obedecer a uma conduta maximizadora dentro de um quadro legal, institucional, regulamentar, arquitetural, relacional, que deve ser construído para que o indivíduo escolha “com toda a liberdade” o que deve obrigatoriamente escolher para seu próprio interesse. O segredo da arte do poder, dizia Bentham, é agir de modo que o indivíduo busque seu interesse como se fosse seu dever, e vice-versa.
Devemos distinguir três aspectos das disciplinas neoliberais. A liberdade dos sujeitos econômicos pressupõe, em primeiro lugar, a segurança dos contratos e o estabelecimento de um quadro estável. A disciplina neoliberal conduz a estender o campo de ação que se deve estabilizar mediante regras fixas. A constituição de um quadro não somente legal, mas também orçamentário e monetário, deve impedir os sujeitos de prever variações de política econômica, isto é, fazer dessas variações objetos de antecipação. Isso significa que o cálculo individual deve poder apoiar-se numa ordem de mercado estável, o que exclui fazer do próprio quadro um objeto de cálculo.
A estratégia[54] neoliberal consistirá, então, em criar o maior número possível de situações de mercado, isto é, organizar por diversos meios (privatização, criação de concorrência dos serviços públicos, “mercadorização” de escola e hospital, solvência pela dívida privada) a “obrigação de escolher” para que os indivíduos aceitem a situação de mercado tal como lhes é imposta como “realidade”, isto é, como única “regra do jogo”, e assim incorporem a necessidade de realizar um cálculo de interesse individual se não quiserem perder “no jogo” e, mais ainda, se quiserem valorizar seu capital pessoal num universo em que a acumulação parece ser a lei geral da vida.
Por fim, dispositivos de recompensas e punições, sistemas de estímulo e “desestímulo” substituirão as sanções do mercado para guiar as escolhas e a conduta dos indivíduos quando as situações mercantis ou quase mercantis não são inteiramente realizáveis[55]. Serão construídos sistemas de controle e avaliação de conduta cuja pontuação condicionará a obtenção das recompensas e a evitação das punições. A expansão da tecnologia avaliativa como modo disciplinar repousa sobre o fato de que quanto mais livre para escolher é supostamente o indivíduo calculador, mais ele deve ser vigiado e avaliado para obstar seu oportunismo intrínseco e forçá-lo a conjuntar seu interesse ao da organização que o emprega.
Friedman é um dos principais pensadores dessa nova forma de disciplina. Falamos anteriormente do papel que ele teve na difusão de massa dos ideais do livre mercado e da livre empresa. Muito mais conhecido do público que Hayek e, sem dúvida, mais influente que ele nas políticas norte-americanas, Friedman fez conjuntamente uma carreira acadêmica – consagrada com um prêmio Nobel de Economia como figura principal da Escola de Chicago e fundador do monetarismo – e uma carreira de propagandista dos benefícios da liberdade econômica.
Friedman distinguiu-se fazendo do princípio monetarista o correspondente, no plano estritamente econômico, das regras formais tais como foram pensadas pelos neoliberais nos anos 1930. Esse princípio particular pode ser enunciado da seguinte maneira: para coordenar suas atividades no mercado, os agentes econômicos devem conhecer de antemão as regras simples e estáveis que presidem suas trocas. O que é verdadeiro em matéria jurídica deve ser verdadeiro a fortiori no plano das políticas econômicas. Estas devem ser automáticas, estáveis e perfeitamente conhecidas[56]. A moeda faz parte dessa estabilidade indispensável aos agentes econômicos para que possam desenvolver suas atividades. Contudo, estabelecer esse quadro estável significa que os agentes econômicos terão de se adaptar a ele e modificar seu comportamento. O intervencionismo de Friedman consiste em implantar coerções de mercado que forçam os indivíduos a adaptar-se a ele. Em outras palavras, trata-se de pôr os indivíduos em situações que os obriguem à “liberdade de escolher”, isto é, a manifestar na prática sua capacidade de cálculo e governar a si próprios como indivíduos “responsáveis”. Esse intervencionismo especial consiste em abandonar um grande número de instrumentos antigos de gestão (despesas orçamentárias ativas, política de renda, controle de preços e câmbio) e ater-se a uns poucos indicadores-chave e a objetivos limitados, como taxa de inflação, taxa de crescimento da massa monetária, déficit orçamentário e endividamento do Estado, a fim de restringir os atores da economia a um sistema de coerções que os obriga a comportar-se como exige o modelo.
Seguindo Friedman, cuja teoria monetária se fundamenta no princípio da ineficácia das políticas monetárias ativas, economistas norte-americanos desenvolveram nos anos 1970 a ideia de que as políticas de regulação macroeconômicas somente perderiam eficácia em consequência dos comportamentos de aprendizado dos agentes econômicos. A tentativa de retomada da economia por uma diminuição das taxas de juros ou por um incentivo orçamentário tem êxito cada vez menor à medida que é utilizada, porque os agentes econômicos “aprendem” que essas medidas não têm os efeitos reais proclamados. A “teoria das expectativas racionais” é um caso particular da explicação pelos efeitos não desejados. As intenções políticas são frustradas em seu resultado em razão da não consideração das capacidades de cálculo sofisticado dos agentes, que, ao cabo de uma série de experiências das consequências dessas políticas, não se deixam mais enganar pelas ilusões da moeda abundante ou das diminuições de impostos. Disso resulta que o governo não pode mais considerá-los seres passivos, que reagem por reflexo aos stimuli monetários e orçamentários. De certo modo, o cálculo maximizador incorpora as próprias políticas como um dos parâmetros que devem ser levados em consideração. Essa “interiorização” da política no cálculo individual permite repensarmos a forma como evoluiu progressivamente o próprio neoliberalismo.
O monetarismo, tal como foi teorizado por Friedman, teve uma difusão rápida, à altura da situação criada pelo colapso do sistema monetário internacional após a guerra, através da implantação de taxas de câmbio flutuantes e do papel dos capitais voláteis, que podiam ameaçar qualquer divisa que não fosse gerida de acordo com as novas normas de disciplina monetária. Esta última tornou-se, em suma, uma disciplina imposta pelos mercados financeiros, como se viu na Grã-Bretanha em 1976, na França em 1991 e na Suécia em 1994. Assim, a luta contra a inflação constituiu a prioridade das políticas governamentais, enquanto a taxa de desemprego transformava-se em simples “variável de ajuste”. A luta pelo pleno emprego tornou-se suspeita de ser um fator de inflação sem efeito duradouro. A teoria friedmaniana da “taxa de desemprego natural” foi amplamente aceita por autoridades políticas de todas as cores.
O próprio orçamento tornou-se um instrumento de disciplina dos comportamentos. A diminuição dos impostos sobre empresas e rendas mais elevadas foi apresentada muitas vezes como um meio de reforçar o estímulo ao enriquecimento e ao investimento. Na realidade, de forma muito mais dissimulada, o objetivo da diminuição da pressão fiscal, assim como a recusa de aumentar as cotizações sociais, foram meios – mais ou menos eficazes, conforme a situação das relações de força – de impor reduções do gasto público e dos programas sociais em nome do equilíbrio e da limitação da dívida do Estado. O melhor exemplo dessa estratégia fiscal é, sem dúvida, o de Ronald Reagan, que em 1985 aprovou uma lei que exigia a redução automática dos gastos públicos até o restabelecimento do equilíbrio orçamentário em 1995 (Balanced Budget and Deficit Reduction Act), logo depois de ter criado um déficit considerável. Conseguindo que se esquecesse que a diminuição dos descontos obrigatórios de uns acarretava necessariamente uma contrapartida para os outros, os governos neoliberais instrumentalizaram os “buracos” criados nos orçamentos para demonstrar o custo “exorbitante” e “intolerável” da proteção social e dos serviços públicos. Por um encadeamento mais ou menos intencional, o racionamento que se impôs aos programas sociais e aos serviços públicos, degradando o atendimento, gerou frequentemente o descontentamento dos usuários e a adesão ao menos parcial destes às críticas de ineficácia que se dirigiam contra aqueles[57].
Essa dupla restrição monetária e orçamentária foi utilizada como uma disciplina social e política “macroeconômica” que supostamente dissuadia – pela inflexibilidade das regras estabelecidas – qualquer política que procurasse priorizar o emprego, quisesse atender às reivindicações salariais ou visasse à retomada da economia por intermédio do gasto público. É como se, por essas regras, o Estado se impusesse interdições definitivas com respeito ao uso de certas alavancas de ação sobre o nível de atividade, mas ao mesmo tempo, constrangendo os agentes a interiorizá-las, desse a si próprio os meios de agir permanentemente sobre eles através de uma “corrente invisível” (para empregarmos a expressão de Bentham) que os obrigava a comportar-se como indivíduos em competição uns com os outros.
Se era difícil convencer as populações de que deviam aceitar uma cobertura social menor sobre doenças e velhice, na medida em que se trata de “riscos universais”, era mais fácil culpar os desempregados e pôr em funcionamento um princípio de divisão entre os trabalhadores bons e sérios, que eram bem-sucedidos, e todos aqueles que fracassavam por sua própria culpa, que não conseguiam “dar a volta por cima” e, além do mais, viviam nas costas da coletividade. O thatcherismo explorou largamente o script da culpa individual, desenvolvendo a ideia de que a sociedade não deveria nunca mais ser considerada responsável pela sorte dos indivíduos.
Um dos principais argumentos das políticas neoliberais consistiu em denunciar a excessiva rigidez do mercado de trabalho. A ideia-diretriz, nesse caso, é a da contradição que existiria entre a proteção da qual desfrutaria a mão de obra e a eficiência econômica. Essa ideia não é nova. Jacques Rueff, já nos anos 1920, criticava o dole[58] britânico como a principal causa do desemprego do lado de lá do canal da Mancha. O que é novidade é a concepção disciplinar de encargo dos desempregados. De fato, não se trata de suprimir pura e simplesmente toda assistência aos desempregados, mas de fazer com que essa ajuda leve a uma maior docilidade por parte dos trabalhadores privados de emprego. Trata-se de fazer do mercado de emprego um mercado muito mais conforme com o modelo de pura concorrência, não simplesmente por preocupação dogmática, mas para disciplinar melhor a mão de obra, ordenando-a pelos imperativos de recuperação da rentabilidade. Trata-se de recuperar, sob uma nova forma, uma política que visa a penalizar o trabalhador sem emprego para que, de alguma maneira, ele seja levado a encontrar o mais rápido possível um novo trabalho porque não pode arranjar-se muito tempo com o auxílio que recebe. Lembramos que, em outras épocas, a reforma da assistência social na Inglaterra perseguiu objetivos semelhantes. A Lei dos Pobres de 1834, promulgada por instigação de Nassau Senior e Edwin Chadwick, seguindo o espírito da economia clássica e do princípio de utilidade, traduziu-se na imposição de um regime de trabalho quase penitenciário aos residentes das workhouses, algo verdadeiramente repugnante para os que zelavam por sua liberdade e sua dignidade.
Esse é o espírito das políticas de “welfare to work” (“passar da ajuda social para o trabalho”), que também são construídas sobre o postulado da escolha racional. No terreno da política de emprego, a disciplina neoliberal consistiu em “responsabilizar” os desempregados utilizando a arma da punição contra aqueles que não aceitavam dobrar-se às regras do mercado. O desemprego traduzia uma preferência do agente econômico pelo ócio quando este é subvencionado pela coletividade, portanto, o ócio seria “voluntário”. Querer reduzi-lo por meio de políticas de reflação é inútil, e até nefasto, segundo a doutrina da taxa de desemprego natural. A indenização dos desempregados equivale a criar “armadilhas de desemprego”. A primeira tarefa prática foi atacar tudo que pudesse contribuir para que essa suposta rigidez fosse a causa do desemprego. A segunda visava a construir um sistema de “volta ao emprego” muito mais restritivo para os assalariados sem emprego.
Os sindicatos e a legislação trabalhista foram os primeiros alvos dos governos que adotaram o neoliberalismo. A dessindicalização na maioria dos países capitalistas desenvolvidos teve causas objetivas, sem dúvida, como a desindustrialização e a deslocalização de fábricas em regiões e países com baixos salários, sem tradição de lutas sociais ou submetidos a um regime despótico. Mas foi resultado também de uma vontade política de enfraquecimento da força sindical que, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha em especial, traduziu-se por uma série de medidas e dispositivos legislativos que limitaram o poder de intervenção e mobilização dos sindicatos[59]. Consequentemente, a legislação social mudou de forma muito mais favorável aos empregadores: revisão dos salários para baixo, supressão da indexação da remuneração pelo custo de vida, maior precarização dos empregos[60]. A orientação geral dessas políticas reside no desmantelamento dos sistemas que protegiam os assalariados contra as variações cíclicas da atividade econômica e sua substituição por novas normas de flexibilidade, o que permite que os empregadores ajustem de forma ótima suas necessidades de mão de obra ao nível de atividade, ao mesmo tempo que reduz ao máximo o custo da força de trabalho.
Essas políticas visam também a “ativar” o mercado de trabalho modificando o comportamento dos desempregados. O “buscador de emprego” deve tornar-se ator de sua empregabilidade, um ser self-entreprising, que se encarrega de si mesmo. Os direitos à proteção social são cada vez mais subordinados aos dispositivos de estímulo e punição que obedecem a uma interpretação econômica do comportamento dos indivíduos[61].
Essas medidas de “responsabilização” dos “buscadores de emprego” não são exclusividade dos governos conservadores. Elas encontraram alguns de seus melhores defensores na esquerda europeia, como tende a comprovar a “corajosa” Agenda 2010 do chanceler alemão Gerhard Schröder, que condiciona rigorosamente a ajuda que o Estado concede aos que procuram emprego à docilidade destes em aceitar o emprego que lhes é proposto, assim como ao nível de renda e aos bens da família:
"Todo beneficiário do dinheiro dos contribuintes deve estar disposto a limitar tanto quanto possível o encargo que ele representa para a coletividade, o que significa que todas as rendas e os bens próprios devem ser os primeiros a ser utilizados para prover suas necessidades elementares.[62]"
Como vemos, essa política disciplinar põe radicalmente em questão os princípios de solidariedade às eventuais vítimas dos riscos econômicos.
Disciplina (2): a obrigação de escolher
Não há um único domínio em que a concorrência não seja enaltecida como meio de aumentar a satisfação do cliente, graças ao estímulo que dá aos produtores. A “liberdade de escolha” é um tema fundamental das novas normas de conduta dos sujeitos. Parece que é impossível conceber um sujeito que não seja ativo, calculista, à espreita das melhores oportunidades. Esquecendo todos os limites de seus benefícios, mostrados pela teoria econômica há pelo menos um século (diferenciação dos produtos, monopólio natural etc.), a nova doxa reconhece apenas a pressão que o consumidor é capaz de exercer sobre o fornecedor de bens e serviços. Em resumo, trata-se de construir novas exigências que ponham os indivíduos em situações em que são obrigados a escolher entre ofertas alternativas e incitados a maximizar seus próprios interesses.
A “liberdade de escolher”, que para Friedman resume todas as qualidades que se tem o direito de esperar do capitalismo concorrencial, é uma das principais missões do Estado. É tarefa sua não apenas reforçar a concorrência nos mercados existentes, mas também criar concorrência onde ela ainda não existe. Isso porque o capitalismo é o único sistema capaz de proteger a liberdade individual em todos os domínios, em particular no político. Trata-se, portanto, de introduzir dispositivos de mercado e estímulos mercantis, ou quase mercantis, para conseguir que os indivíduos se tornem ativos, empreendedores, “protagonistas de suas escolhas”, “arrojados”.
Sem dúvida, deveríamos lembrar aqui que certo ethos da escolha supostamente livre encontra-se no centro das mensagens publicitárias e das estratégias de marketing, e essa disposição adquirida aos poucos foi facilitada pelos desenvolvimentos tecnológicos que ampliaram a gama de produtos e canais de difusão da mass media. O consumidor deve tornar-se previdente. Como vimos anteriormente, ele deve munir-se individualmente de todas as garantias (cobertura de seguros privados, casa própria, conservação de sua empregabilidade). Deve escolher racionalmente, em todos os domínios, os melhores produtos e, cada vez mais, os melhores prestadores de serviços (o modo de entrega de seu correio, o fornecedor de sua eletricidade etc.). E, como cada empresa amplia a gama dos produtos que fornece, o sujeito deve “escolher” de forma cada vez mais sutil a oferta comercial mais vantajosa (por exemplo, a hora e a data da viagem de avião ou trem, o produto de seguro ou poupança etc.). Essa “privatização” da vida social não se limita ao consumo privado e ao lazer de massa. O espaço público é construído cada vez mais pelo modelo do “global shopping center”, segundo a expressão empregada por Drucker para designar o universo em que vivemos hoje.
Um dos casos exemplares da construção de situação de mercado pela qual os neoliberais se mobilizaram muito no terreno político é o da educação. Também nesse domínio, Friedman foi pioneiro. Diante da degradação do setor público educacional nos Estados Unidos, ele propôs nos anos 1950 a implantação de um sistema de concorrência entre os estabelecimentos escolares baseado no “cheque-educação”[63]. O sistema consiste em deixar de financiar diretamente as escolas e dar a cada família um “cheque” representando o custo médio da escolaridade; a família é livre para utilizá-lo na escola de sua escolha e ainda acrescentar a quantia que quiser, de acordo com suas prioridades em matéria de escolarização. Mais uma vez, o raciocínio baseia-se no comportamento supostamente racional do consumidor, que deve poder arbitrar entre várias possibilidades e escolher a melhor oportunidade. Na realidade, o sistema de “cheques-educação” tem dois objetivos associados: pretende transformar as famílias em “consumidoras de escola” e visa a introduzir a concorrência entre os estabelecimentos escolares, o que elevará o nível dos mais medíocres. Esse sistema combina um financiamento público, considerado legítimo para a “educação primária” por seus efeitos positivos em toda a sociedade, e uma administração de tipo empresarial do estabelecimento escolar, posto em situação de competição com os outros. Essa orientação a favor de um “mercado escolar” dominou as políticas de reforma escolar no mundo a partir dos anos 1990, em graus diferentes conforme o país. Isso não deixou de ter consequências para a fragmentação dos sistemas educacionais e a diferenciação dos locais e dos modos de escolaridade, de acordo com as classes sociais.
Disciplina (3): a gestão neoliberal da empresa
A disciplina neoliberal não se limita a essa maneira “negativa” de orientar as condutas por regras imutáveis no plano “macroeconômico” que os agentes racionais devem incorporar em seu próprio cálculo. Também não se reduz à instauração de situações de concorrência que obrigam o indivíduo a escolher muito além da esfera do consumo de bens e serviços comerciais. A extensão e a intensificação das lógicas de mercado tiveram efeitos muito patentes na organização do trabalho e nas formas de emprego da força de trabalho. O que a lógica do poder financeiro fez foi apenas acentuar o disciplinamento dos assalariados submetidos a uma exigência de resultados cada vez maior[64]. A busca obsessiva de mais-valor na bolsa implicou não apenas a garantia aos proprietários do capital de um crescimento contínuo de seus rendimentos, à custa dos assalariados – o que ocasionou uma maior divergência entre a evolução dos salários e a evolução dos ganhos de produtividade e, como dissemos, uma acentuação ainda mais marcada das desigualdades na distribuição de renda[65] –, como também e, sobretudo, traduziu-se pela imposição de normas de rentabilidade mais elevadas em todas as economias, em todos os setores e em todos os escalões da empresa. Assim, cada vez mais assalariados foram submetidos a sistemas de estímulo e punição que visavam a atingir ou a superar os objetivos de criação de valor acionário, objetivos que eram eles próprios definidos por métodos de ajuste a partir das normas internacionais de rentabilidade. Assim, toda uma disciplina do valor acionário tomou forma em técnicas contábeis e avaliativas de gestão da mão de obra cujo princípio consiste em fazer de cada assalariado uma espécie de “centro de lucro” individual. É que o princípio da gestão neoliberal – que certos autores chamam de “autonomia controlada”, “coerção flexível”, “autocontrole” – visa a “interiorizar” as coerções da rentabilidade financeira na própria empresa e, ao mesmo tempo, fazer os assalariados interiorizarem as novas normas de eficiência produtiva e desempenho individual.
Fazer com que os indivíduos ajam no sentido desejado supõe que se criem as condições particulares que os obrigam a trabalhar e se comportar como agentes racionais. A alavanca do desemprego e da precariedade foi, sem dúvida, um meio poderoso de disciplina, em particular em matéria de taxas de sindicalização e reivindicação salarial. Mas essa alavanca “negativa”, cujo motor é o medo, sem dúvida estava longe de ser suficiente para a reorganização das empresas. Outros instrumentos de gestão foram necessários para reforçar a pressão da hierarquia sobre os assalariados e aumentar seu comprometimento. Assim, a gestão das empresas privadas desenvolveu práticas de gestão de mão de obra cujo princípio é a individualização de objetivos e recompensas com base em avaliações quantitativas repetidas. Essa orientação, com frequência identificada com o questionamento do modelo burocrático tal como seu tipo ideal foi esboçado por Max Weber, também consistiu em inverter o sentido da obediência. Em vez de obedecer aos procedimentos formais e às ordens hierárquicas vindas de cima, os assalariados foram levados a curvar-se às exigências de prazo e qualidade impostas pelo “cliente”, alçado a fonte exclusiva de restrições inelutáveis. Em todo caso, a individualização do desempenho e das gratificações permitiu que a concorrência entre os assalariados fosse dada como um tipo normal de relação dentro da empresa. É como se o mundo do trabalho tivesse “interiorizado” a lógica da competição exacerbada que existe ou deveria existir entre as empresas, assim como a lógica concorrencial para captar e manter o capital dos acionistas que leva à “criação de valor” em benefício deles. Isso pôs sob pressão mais direta dos mercados um número maior de assalariados, não apenas executivos, mas também operários e funcionários de escritório. Isso não resultou numa diminuição dos controles hierárquicos, mas na modificação progressiva desses controles no contexto de uma “nova gestão” que pôde apoiar-se em modos de organização, novas tecnologias de contabilidade, registro, comunicação etc.[66].
Essa “nova gestão” tomou formas muito diversas, como o desenvolvimento da contratualização das relações sociais, a descentralização das negociações entre assalariados e patronato no plano da empresa, a concorrência das unidades da empresa entre si ou com unidades externas, a normalização pela imposição generalizada de padrões de qualidade e o crescimento da avaliação individualizada dos resultados[67]. As fronteiras entre o dentro e o fora da empresa tornaram-se mais vagas com o desenvolvimento da subcontratação, da autonomização das entidades dentro da empresa, do recurso ao emprego temporário, das estruturas de projetos, do trabalho dividido em “missões” e do apelo a consultores externos.
Essas novas formas de organização do trabalho e da gestão permitem definir um novo modelo de empresa que Thomas Coutrot chama de “empresa neoliberal”[68]. A maior autonomia das equipes ou indivíduos, a polivalência, a mobilidade entre “grupos de projeto” e unidades descentralizadas traduzem-se por um enfraquecimento e uma instabilidade dos coletivos de trabalho. As novas formas de disciplina da empresa neoliberal são exercidas a uma maior distância, de maneira indireta, antes ou depois da ação produtiva. O controle é feito por registro de resultados, por rastreabilidade dos diferentes momentos da produção, por uma vigilância mais difusa dos comportamentos, das maneiras de ser, dos modos de relacionamento com os outros, em especial em todos os locais de produção de serviços que tenham contato com a clientela e em todas as organizações em que a operação do trabalho pressupõe cooperação e troca de informações. Essa gestão mais “personalizada” e mais difusa joga com a concorrência entre assalariados e entre segmentos da empresa para constrangê-los, mediante uma comparação de métodos e resultados (benchmarking)[69], a alinhar-se aos desempenhos máximos e às “melhores práticas” num processo sem fim. A concorrência torna-se, assim, um modo de interiorização das exigências de rentabilidade do capital que permite o afrouxamento das linhas hierárquicas e dos controles permanentes realizados pelo pessoal intermediário, introduzindo uma pressão disciplinar ilimitada.
A terceirização de certas atividades e a descentralização em unidades mais autônomas aumentam a necessidade de avaliação para coordenar as atividades. A avaliação torna-se a chave da nova organização, o que acaba por cristalizar tensões de todos os tipos, ainda que seja a que diz respeito à contradição entre a injunção à criatividade e à tomada de riscos e o julgamento social que surja como lembrete das relações efetivas de poder dentro da empresa.
Esse novo modo de organização da empresa teve consequências importantes para o trabalho e o emprego. Traduziu-se em intensificação do trabalho, diminuição dos prazos e individualização dos salários. Esse último método, vinculando remuneração a desempenho e competência, ampliou o poder da hierarquia e reduziu todas as formas coletivas de solidariedade. Mas é coextensivo a uma nova prática de governo dos assalariados baseada no “autocontrole”, que é pretensamente muito mais eficaz do que a coerção externa. Essa “filosofia da gestão” foi formulada por Peter Drucker. Ele explica que, na nova economia do saber, não se trata mais de gerir estruturas, mas, sim, de “guiar” pessoas que têm saberes para que produzam o máximo possível. Gestão por metas, avaliação de desempenhos e autocontrole dos resultados são os métodos empregados por essa gestão dos indivíduos:
"A principal vantagem da gestão por metas é que ela permite aos executivos medir seu próprio desempenho. O autocontrole reforça a motivação, o desejo de fazer melhor, de não se encostar. [...] Embora não seja indispensável para dar unidade de rumo e esforço à equipe dirigente, a gestão por metas é indispensável para permitir o autocontrole.[70]
Esse autocontrole também é econômico, porque permite a redução da pirâmide hierárquica, e mais eficaz, na medida em que o trabalho não depende mais de uma necessidade externa, mas de uma coerção interna:
"Ele substitui o controle feito de fora pelo controle feito de dentro, muito mais estrito, exigente e eficaz. Leva o executivo a agir não porque alguém lhe disse o que era preciso fazer, ou o obrigou a fazê-lo, mas porque as necessidades objetivas de sua tarefa assim o exigem. Esse homem agirá não porque outro quis desse modo, mas porque ele próprio decidiu que deveria fazê-lo – em outras palavras, ele agirá como um homem livre.[71]"
Essa “filosofia da liberdade”, que tem aplicação universal, “assegura o desempenho, transformando necessidades objetivas em objetivos pessoais. Essa é a própria definição da liberdade – a liberdade no quadro da lei”[72]. Assim, o gestor tenta captar as energias individuais, não de acordo com uma lógica “artista” ou “hedonista”, mas segundo um regime de autodisciplina que manipula as instâncias psíquicas de desejo e culpa. Trata-se de mobilizar a aspiração à “realização pessoal” a serviço da empresa, transferindo exclusivamente para o indivíduo, contudo, a responsabilidade pelo cumprimento dos objetivos. O que, evidentemente, tem um alto custo psíquico para os indivíduos[73].
Esse autogoverno não é obtido espontaneamente por simples efeito de um discurso sedutor de gestão que manipula a aspiração de cada indivíduo à autonomia. Esse controle da subjetividade somente é operado de maneira eficaz dentro de um contexto de mercado de trabalho flexível, em que a ameaça de desemprego está no horizonte de todo assalariado. Ele também é resultado de técnicas de gestão que tentaram objetivar as exigências de mercado e de rentabilidade financeira na forma de indicadores numéricos de metas e resultados e, mediante a individualização dos desempenhos medidos e discutidos em entrevistas pessoais, fazer com que os assalariados interiorizem a necessidade vital para eles de melhorar continuamente sua “empregabilidade”. O cúmulo do autocontrole, que também mostra o mecanismo perverso que transforma cada um em “instrumento de si mesmo”, ocorre quando o assalariado é convidado a definir não somente as metas que ele deve atingir, mas também os critérios pelos quais ele quer ser julgado.
Racionalidade (1): a prática dos especialistas e dos administradores
Não se trata mais, como no “welfarismo”, de redistribuir bens de acordo com certo regime de direitos universais à vida, isto é, à saúde, à educação, à integração social e à participação política, mas de apelar à capacidade de cálculo dos sujeitos para fazer escolhas e alcançar resultados estabelecidos como condições de acesso a certo bem-estar. O que pressupõe que os sujeitos, para “ser responsáveis”, disponham dos elementos desse cálculo, dos indicadores comparativos, da tradução contábil de suas ações, ou ainda, mais radicalmente, da monetarização de suas “escolhas”: deve-se “responsabilizar” os doentes, os estudantes e suas famílias, os universitários, os que estão à procura de emprego, fazendo-os arcar com uma parte crescente do “custo” que eles representam, exatamente do mesmo modo como se deve “responsabilizar” os assalariados individualizando as recompensas e as punições ligadas a seus resultados.
Esse trabalho político e ético de responsabilização está associado a numerosas formas de “privatização” da conduta, já que a vida se apresenta somente como resultado de escolhas individuais. O obeso, o delinquente ou o mau aluno são responsáveis por sua sorte. A doença, o desemprego, a pobreza, o fracasso escolar e a exclusão são vistos como consequência de cálculos errados. A problemática da saúde, da educação, do emprego e da velhice confluem numa visão contábil do capital que cada indivíduo acumularia e geraria ao longo da vida. As dificuldades da existência, a desgraça, a doença e a miséria são fracassos dessa gestão, por falta de previsão, prudência, seguro contra riscos[74]. Daí o trabalho “pedagógico” que se deve fazer para que cada indivíduo se considere detentor de um “capital humano” que ele deve fazer frutificar, daí a instauração de dispositivos que são destinados a “ativar” os indivíduos, obrigando-os a cuidar de si mesmos, educar-se, encontrar um emprego.
É importante, sob esse aspecto, não confundir a ideologia triunfante da nova direita e a racionalidade governamental que a sustenta. A grande ofensiva ideológica contra a intervenção do Estado não precedeu apenas as reorientações práticas, ela as acompanhou. E o mais importante na virada neoliberal não foi tanto a “retirada do Estado”, mas a modificação de suas modalidades de intervenção em nome da “racionalização” e da “modernização” das empresas e da administração pública. Desse ponto de vista, talvez não tenham sido tanto os intelectuais midiáticos e os jornalistas convertidos que tiveram o papel mais importante, mas os especialistas e os administradores públicos dóceis, que, nos diferentes campos em que deveriam intervir, instauraram os novos dispositivos e modos de gestão próprios do neoliberalismo, apresentando-os como técnicas políticas novas, guiadas unicamente pela busca de resultados benéficos para todos. Esses “intelectuais orgânicos” do neoliberalismo, afirmando-se ora de direita, ora de esquerda, ou sucessivamente um e outro[75], tiveram um papel-chave na naturalização dessas práticas, em sua neutralização ideológica e, por fim, em sua implantação prática. Células de pesquisa, inúmeros colóquios, amplas operações de formação de quadros da função pública, produção e difusão maciça de um léxico homogêneo, verdadeira lingua franca das elites modernizadoras, acabaram por impor o discurso ortodoxo da gestão. Mas não nos enganemos: as políticas neoliberais não foram implantadas em nome da “religião do mercado”, mas em nome de imperativos técnicos de gestão, em nome da eficácia, ou até mesmo da “democratização” dos sistemas de ação pública. As elites convertidas à racionalização das políticas públicas desempenharam o papel principal, com a ajuda, evidentemente, do conjunto dos aparelhos de fabricação do consentimento que retransmitiram seus argumentos a favor da “modernidade”.
Tanto à direita como à esquerda, algumas figuras pioneiras sobressaíram-se precocemente na França, como Raymond Barre em 1978 ou, alguns anos depois, Jacques Delors: ambos seguiam o mesmo script do “realismo”, do “rigor” e da “modernidade”. Na verdade, em poucos anos, todas as elites políticas e econômicas passaram de um modo de gestão “keynesiano” para um modo “neoliberal”, carregando com elas grande parte dos quadros administrativos e partidários. Como Bruno Jobert disse com razão:
"os vetores dessas mudanças são menos as novas elites do que as elites antigas que procuraram, muitas vezes com sucesso, eternizar sua influência, ainda que tivessem de mudar suas orientações. Os promotores do neoliberalismo são, na maioria vezes, gente arrependida, tocada pela graça desse novo verbo.[76]"
O que é verdade para os antigos países do Leste, onde os apparatchiks stalinistas tornaram-se os novos mestres do capitalismo restaurado, é verdade também, sem dúvida de forma menos evidente, para o Oeste, onde os especialistas, às vezes de esquerda, e os administradores, formados muitas vezes no culto do serviço público, converteram-se ao léxico do management e da performance.
A virada neoliberal das práticas dos altos funcionários é um desmentido da tese da Escola do Public Choice, que afirma que estes últimos nunca deixaram de expandir a intervenção e o volume dos recursos da burocracia. Na realidade, o modo neoliberal de ação pública constitui muito mais uma virada na racionalização burocrática do que um desengajamento do Estado. O que importa aos altos funcionários não é necessariamente o aumento de impostos e o aumento do número de seus subordinados, como pensavam os economistas da “escolha racional”. O que lhes interessa é o aumento de seu poder e de sua legitimidade, como mostrou, aliás, Weber, o que pressupõe tornar-se adepto da “mudança”, da “reforma” ou até mesmo do “fim” da burocracia de Estado, ao menos quando essa reorientação não põe em questão o domínio que eles exercem.
Racionalidade (2): a “terceira via” da esquerda neoliberal
O longo sucesso do neoliberalismo foi assegurado não apenas pela adesão das grandes formações políticas de direita a um novo projeto político de concorrência mundial, mas também pela porosidade da “esquerda moderna” aos grandes temas neoliberais, a ponto de termos a impressão em certos casos – pensamos sobretudo no “blairismo”[77] – de uma submissão total à racionalidade dominante. Encontraríamos a mesma tendência nos Estados Unidos, onde os “liberals” começaram a falar, pensar e agir como os “conservatives”[78]. O mais marcante nessa institucionalização do neoliberalismo foi a aceitação por parte da esquerda moderna da visão neoliberal do mercado de trabalho flexível e da política de recolocação dos desempregados. Isso foi acompanhado, no plano doutrinal, de um abandono de qualquer referência a Keynes e, a fortiori, de uma renúncia a qualquer elaboração de um novo keynesianismo adaptado à mudança de escala provocada pela construção da Europa e pela globalização.
Nada ilustra melhor a virada neoliberal da esquerda do que a mudança de significado da política social, rompendo com toda a tradição social-democrata que tinha como linha diretriz um modo de partilha de bens sociais indispensáveis à plena cidadania. A luta contra as desigualdades, que era central no antigo projeto social-democrata, foi substituída pela “luta contra a pobreza”, segundo uma ideologia de “equidade” e “responsabilidade individual” teorizada por alguns intelectuais do blairismo, como Anthony Giddens. A partir daí, a solidariedade é concebida como um auxílio dirigido aos “excluídos” do sistema, visando aos “bolsões” de pobreza, segundo uma visão cristã e puritana. Esse auxílio dirigido a “populações específicas” (“pessoas com deficiência”, “aposentadorias mínimas”, “idosos”, “mães solteiras” etc.), para não criar dependência, deve ser acompanhado de esforço pessoal e trabalho efetivo. Em outras palavras, a nova esquerda tomou para si a matriz ideológica de seus oponentes tradicionais, abandonando o ideal da construção de direitos sociais para todos.
No entanto, não conseguiríamos compreender o neoliberalismo de esquerda, essa nova forma política que sucedeu à social-democracia, se nos contentássemos em vê-la como uma simples adesão à ideologia neoliberal. Aliás, essa “esquerda moderna” se defende da acusação tomando distância do que acredita ser o neoliberalismo, isto é, para ela, um puro e simples retorno ao laissez-faire. Mas, embora ataque essa “ideologia selvagem” para distinguir-se da direita, ela aceita, assume e reproduz uma forma de pensamento, uma maneira de apresentar os problemas e, com isso, um sistema de respostas que constitui uma racionalidade abrangente, isto é, um tipo de discurso normativo no qual toda a realidade é tornada inteligível e pelo qual são prescritas como “evidentes por si mesmo” determinadas políticas. Em uma palavra, e talvez de forma paradoxal, nada manifesta melhor a natureza da racionalidade neoliberal do que a evolução das práticas dos governos que há trinta anos se dizem de esquerda, mas conduzem uma política muito semelhante à da direita[79]. Todo discurso “responsável”, “moderno” e “realista”, isto é, que participa dessa racionalidade, caracteriza-se pela aceitação prévia da economia de mercado, das virtudes da concorrência, das vantagens da globalização dos mercados e das exigências inelutáveis da “modernização” financeira e tecnológica. A prática disciplinar do neoliberalismo impôs-se como um dado de fato, uma realidade diante da qual não se pode fazer nada, a não ser adaptar-se.
O melhor exemplo dessa identificação é, sem dúvida, o “manifesto” assinado por Tony Blair e Gerhard Schröder em 1999, por ocasião das eleições europeias, e intitulado A terceira via e O novo centro (The Third Way/Das neue Mitte). O objetivo da esquerda moderna, afirma-se ali, é oferecer:
"um quadro sólido para uma economia de mercado competitiva. A livre competição entre os agentes de produção e a livre troca são essenciais para estimular a produtividade e o crescimento. Por essa razão, é necessário dotar-se de um quadro que permita às forças do mercado funcionar convenientemente – isso é essencial para o crescimento econômico e é condição prévia de uma política eficaz em prol do emprego."
Esse “quadro”, objeto da “nova política da oferta da esquerda”, opõe-se aos “últimos vinte anos de laissez-faire [em francês no texto] neoliberal”, que são qualificados de “ultrapassados”. Vemos aqui como a interpretação equivocada do neoliberalismo permite a construção de uma falsa oposição e compreendemos também que, com essa premissa, o manifesto desenvolve na prática o conjunto da argumentação autenticamente neoliberal: custo excessivamente elevado do trabalho, gastos públicos muito grandes, primazia perigosa dos direitos sobre as obrigações e confiança excessiva na gestão da economia pelo governo.
Esse manifesto da esquerda moderna traduz particularmente bem o que chamamos aqui de “racionalidade neoliberal”. Começa questionando as velhas soluções da esquerda arcaica:
"O desafio da justiça social era confundido às vezes com a palavra de ordem da igualdade de renda. A consequência era a pouca atenção que se dava à recompensa pessoal pelo esforço e pela responsabilidade; além disso, havia o risco de que “social-democracia” fosse associada a “conformidade e mediocridade”, em vez de encarnar a criatividade, a diversidade e o bom desempenho."
É preciso, ao contrário, reforçar a responsabilidade individual como princípio geral das políticas públicas: “Os sociais-democratas querem transformar a boia salva-vidas dos direitos sociais em um trampolim para a responsabilidade individual”, segundo a expressão tipicamente blairista.
Também é preciso flexibilizar os mercados de trabalho:
"As empresas devem ter margens de manobra suficientes para agir e aproveitar as oportunidades que se apresentam: não devem ser entravadas por um excesso de regras. Os mercados de trabalho, capital e bens devem ser flexíveis: não se pode aceitar rigidez num setor da economia e abertura e dinamismo em outro. A adaptabilidade e a flexibilidade são vantagens cada vez mais rentáveis numa economia baseada no conhecimento."
É preciso ainda diminuir os impostos, em particular os que possam prejudicar a competitividade das empresas, e reduzir o papel do Estado:
"O custo do trabalho estava sendo sobrecarregado por encargos cada vez mais elevados. A crença de que o Estado devia atacar todas as falhas ou as lacunas do mercado levou muito frequentemente a uma ampliação desmedida da missão da administração pública e a uma burocracia cada vez maior. O equilíbrio entre as ações individuais e a ação coletiva foi rompido. Valores importantes para os cidadãos – construção autônoma de si mesmo, sucesso pessoal, espírito de empreendimento, responsabilidade individual e sentimento de pertencimento a uma comunidade – foram muito frequentemente subordinados às garantias sociais universais. "Muito frequentemente, os direitos foram erguidos acima das obrigações, mas não podemos jogar nossas responsabilidades, conosco, com a nossa família, com a nossa vizinhança ou com o conjunto da sociedade, sobre o Estado e nos colocar inteiramente em suas mãos. Se deixamos de lado o princípio da obrigação mútua, o sentimento de pertencimento coletivo enfraquece, as responsabilidades para com a família ou os vizinhos desaparecem, a delinquência e o vandalismo aumentam, e o nosso aparato legal não pode mais se manter. A capacidade dos governos de regular com precisão a economia nacional, com o intuito de favorecer o crescimento e o emprego, foi superestimada. A importância das empresas e dos atores econômicos na criação de riquezas foi subestimada. Na verdade, exageramos as fraquezas do mercado e subestimamos suas qualidades."
As propostas dessa nova política da oferta que deve substituir a política ultrapassada da demanda, isto é, o keynesianismo, repousam sobre o princípio geral da primazia da empresa privada na economia e sobre a importância dos “valores” que ela é capaz de difundir na sociedade. O que leva à definição de uma nova maneira de governar, mais moderna: “O Estado não deve remar, mas manter o leme – apenas o estrito necessário de controle, esse é o desafio”. O que significa que o combate ao crescimento da administração pública e dos gastos públicos torna-se prioridade nessa nova política da oferta: “No setor público, a burocracia deve diminuir em todos os níveis; metas de resultados concretos devem ser formuladas; a qualidade dos serviços públicos deve ser permanentemente avaliada, e os desempenhos ruins, erradicados”. Mas essa nova maneira de “pilotar” deve apoiar-se em um “estado de espírito” e valores que não têm mais nada que ver com os da velha esquerda:
"Para o pleno êxito das novas políticas públicas, é necessário promover uma mentalidade de vencedor e um novo espírito de empreendimento em todos níveis da sociedade. Isso requer: uma mão de obra competente e bem formada, que queira assumir novas responsabilidades; um sistema de seguridade social que dê uma nova chance, encorajando ao mesmo tempo o espírito de iniciativa, a criatividade e o desejo de enfrentar novos desafios; e um clima favorável aos empreendedores, sua independência e seu espírito de iniciativa. É necessário fazer com que a criação e a sobrevivência das pequenas empresas sejam facilitadas; queremos uma sociedade que honre seus empresários, como faz com os artistas e os jogadores de futebol, e volte a valorizar a criatividade em todos os domínios da vida."
Esse manifesto nos permite compreender melhor a natureza do “realismo” da esquerda moderna, cujo principal promotor na cena europeia foi Tony Blair. A característica mais importante do blairismo, desde que conquistou o Partido Trabalhista em 1994, é a retomada da herança thatcheriana, considerada não uma política que se deveria derrubar, mas um fato consumado[80].
Em A terceira via, livro escrito em conjunto, Anthony Giddens e Tony Blair teorizam essa virada. A missão do New Labour, afirmam, é apresentar respostas de “centro-esquerda” dentro do novo quadro imposto pelo neoliberalismo, visto como um dado irreversível. A palavra mestra dessa linha política é a adaptação dos indivíduos à nova realidade, não sua proteção contra as vicissitudes de um capitalismo globalizado e financeirizado. A “nova esquerda” é aquela que aceita o quadro da globalização liberal e exalta todas as oportunidades que podem ser tiradas disso para o benefício do crescimento e da competitividade das economias[81]. O comissário europeu para o Comércio, Peter Mandelson, apresenta uma formulação muito clara do “consenso” quando elogia o “boom de abertura dos mercados” em todo o mundo, o que, a seu ver, impede que se volte atrás em matéria de política econômica e social, coisa que não seria possível nem, aliás, desejável, uma vez que a prosperidade de todos depende dessa abertura econômica[82].
A esquerda moderna é também aquela que admite que a principal fonte de riqueza e crescimento, se não a única, é a empresa privada, e conclui que, em todas as suas ações, o poder público deve promovê-la e, no que diz respeito ao fornecimento de serviços públicos, deve desenvolver parcerias com esse importante agente da economia. Uma das primeiras batalhas travadas por Tony Blair foi a supressão do Artigo 4 dos estatutos do Labour Party, que se atribuía como objetivo a socialização dos meios de produção. De fato, o New Labour nunca voltou atrás na grande onda de privatizações realizada por Margaret Thatcher, envolvendo mais de quarenta grandes empresas e representando quase 1 milhão de assalariados, do mesmo modo, aliás, que a “esquerda plural” na França, entre 1997 e 2002, não suspendeu o processo iniciado em meados dos anos 1980.
A concepção de sociedade e indivíduo que serve de apoio para essa política é muito semelhante à que estrutura as orientações da direita neoliberal. Primazia da concorrência sobre a solidariedade, capacidade de aproveitar as oportunidades para ser bem-sucedido e responsabilidade individual são vistas como os principais fundamentos da justiça social[83]. A política da esquerda moderna deve ajudar os indivíduos a ajudar a si mesmos, isto é, a “dar a volta por cima” numa competição geral que não é questionada em si mesma. Isso se traduz num discurso amparado na reintrodução das categorias típicas do esquema concorrencial do vínculo social: o capital humano, a igualdade de oportunidades, a responsabilidade individual etc., em detrimento de uma concepção alternativa do vínculo social que se basearia em uma maior solidariedade e em objetivos de igualdade real. Foi, no fundo, partindo dessa concepção “arcaica” da sociedade defendida pela “velha” esquerda que a doutrina da “esquerda moderna” se construiu. Jacques Delors, no prefácio à edição francesa, resume bem o objetivo dos dois autores:
"Os sociais-democratas adeptos da terceira via não defendem mais a ideia de que o cidadão deve ser protegido pelo Estado, alimentado, alojado e vestido desde o nascimento até a morte, como dizia Hobhouse; ao contrário, seu objetivo é criar condições que permitam aos indivíduos alcançar um alto nível de vida decente, graças aos próprios esforços.[84]"
Giddens resume a política da terceira via no slogan: “Não há direitos sem responsabilidades”, o que, segundo ele, significa que é preciso aumentar as obrigações individuais no mercado de trabalho[85]. Segundo ele, o Estado é um “investidor social” que, mais do que proteger, ajuda as pessoas a adaptar-se:
"Os sociais-democratas devem modificar a concepção da relação entre risco e segurança que herdou do Estado de bem-estar e esforçar-se para desenvolver uma sociedade de pessoas arrojadas e responsáveis, tanto na esfera do Estado quanto na gestão empresarial e no mercado de trabalho.[86]"
A cidadania não é mais definida como participação ativa na definição de um bem comum próprio de uma comunidade política, mas como uma mobilização permanente de indivíduos que devem engajar-se em parcerias e contratos de todos os tipos com empresas e associações para a produção de bens locais que satisfaçam os consumidores. A ação pública deve visar, acima de tudo, à instauração de condições favoráveis à ação dos indivíduos, orientação que tende a dissolver o Estado no conjunto dos produtores de “bens públicos”. Giddens define o papel da ação pública da seguinte maneira:
"O Estado não pode mais se contentar em assegurar proteção social. Deve assumir um papel mais amplo, mas também mais flexível, de regulador, contribuindo para a criação de uma esfera pública eficiente e bens públicos satisfatórios. Ele não é o único ator nesse domínio, muito pelo contrário. Assim, a distribuição de gêneros alimentícios a armazéns, supermercados etc. representa um bem público. Cabe ao Estado criar o marco de regulação dessa atividade.[87]"
Em que consiste exatamente essa “regulação” que deve levar à “boa” sociedade, segundo os próprios termos de Giddens? Trata-se de fazer com que o indivíduo tenha sempre a escolha de arbítrio entre produtos e serviços. Sem grande originalidade, o princípio da concorrência deve ser universal, inclusive para os serviços públicos. A única diferença é que as normas que os competidores devem seguir não são definidas da mesma maneira e pelos mesmos atores em todos os casos. Segundo Giddens:
"nos campos em que as forças do mercado são exercidas livremente, poderíamos dizer que o indivíduo se comporta como cidadão-consumidor. As normas derivam principal e diretamente da concorrência. Um televisor de má qualidade, oferecido pelo mesmo preço dos outros, não terá uma presença muito longa no mercado. O papel do Estado e das outras autoridades públicas limita-se a fiscalizar o quadro geral, impedindo a formação de monopólios e oferecendo meios de garantir os contratos. Nas esferas não mercantis – o Estado e a sociedade civil –, o consumidor deveria ter escolha. Mesmo que os princípios reguladores do mercado tenham nisso apenas um papel menor. No setor público, por exemplo, o indivíduo deveria poder escolher entre vários clínicos, escolas ou serviços sociais. Entretanto, as normas não podem ser garantidas pela concorrência como ocorre na esfera do mercado. Elas devem ser fiscalizadas diretamente por profissionais e autoridades públicas. Digamos que, nessas esferas, o indivíduo seja um consumidor-cidadão – ele tem o direito de esperar que as normas sejam rigorosamente aplicadas por uma autoridade externa.[88]"
Giddens retoma a argumentação dos teóricos da Escola do Public Choice e da “nova gestão pública”[89]. Contra o egoísmo dos funcionários públicos, “é preciso encorajar diversidade de fornecedores e criar estímulos eficazes” em todos os domínios, em particular na saúde e na educação[90]. Criação de concorrência e obrigação de escolha são os caminhos da reforma do Estado: “A possibilidade de escolha e, mais em geral, o reconhecimento de um maior poder do usuário contribuem para estimular a eficiência e o controle dos custos”[91], porque levam o prestador a melhorar o serviço[92]; “os sociais-democratas devem inspirar-se na crítica que diz que as instituições públicas, não usufruindo da disciplina do mercado, tornam-se preguiçosas e seus serviços acabam sendo de má qualidade”[93].
A doutrina da “terceira via” expressa muito bem o abandono dos pilares fundamentais da social-democracia (e do trabalhismo). O Estado social e as políticas de redistribuição de renda são concebidos como obstáculos ao crescimento, e não mais como elementos centrais do compromisso social. O New Labour prolongou e legitimou a crítica às políticas sociais construídas sobre direitos e conquistas, exaltou o sucesso individual com tons moralizantes que Malthus ou Spencer não teriam renegado[94]. Obviamente, o blairismo manteve certas diferenças com relação à pura ortodoxia econômica de tipo monetarista: implantação do salário mínimo, políticas orçamentárias anticíclicas, reinvestimento nos serviços públicos de saúde e educação com a ajuda do setor privado. No entanto, a verdade é que, por mais inegáveis que sejam, essas diferenças políticas inserem-se num mesmo quadro fundamental: o da racionalidade política e das práticas disciplinares características do neoliberalismo.
A propósito do New Labour, Keith Dixon fala de um “neoliberalismo de segunda geração”[95]. Se deixarmos de lado a ideia de que o neoliberalismo significa a retirada do Estado, podemos distinguir no ativismo reformador e centralizador do blairismo essa dimensão estruturante da nova forma de governo dos indivíduos[96]. É exatamente o que mostram certos analistas da política do New Labour quando tentam fazer seu balanço:
"O programa de reformas foi realizado com a mobilização e o desenvolvimento das capacidades de controle e direção do governo. Prosseguindo e adaptando o quadro legado pelos conservadores, modernizando a herança utilitarista (não existe confiança na sociedade), os neotrabalhistas reformaram sistematicamente o governo e seus modos de operação. Os governos Blair intensificaram maciçamente a centralização da Grã-Bretanha, deixando mais autonomia aos indivíduos e às organizações no interior de um sistema de coerções e controles reforçados, um sistema de “conduta das condutas”, diria Michel Foucault, que nem sempre escapa a um desvio burocrático ou até mesmo autoritário.[97]"
Portanto, aquilo que às vezes é chamado impropriamente de “conversão neoliberal da esquerda” não pode ser explicado apenas pelas campanhas ideológicas da direita ou pela capacidade de persuasão desta última. Essa conversão é mais fundamentalmente explicada pela difusão de uma racionalidade global que funciona como uma evidência amplamente compartilhada, que é da ordem não de uma lógica de partido, mas de uma técnica de governo dos homens supostamente neutra do ponto de vista ideológico.
O mais importante não é tanto o triunfo da vulgata neoliberal, mas a maneira como o neoliberalismo é traduzido em políticas concretas, às quais afinal é submetida uma parte da população assalariada, e esta às vezes até as aceita, mesmo quando essas políticas visam explicitamente ao retrocesso de direitos adquiridos, de solidariedade entre grupos e entre gerações, e levam grande parte dos sujeitos sociais a dificuldades e ameaças crescentes, inserindo-os sistemática e explicitamente numa lógica de “riscos”. O neoliberalismo é muito mais do que uma ideologia partidária. Aliás, em geral as autoridades políticas que adotam as práticas neoliberais recusam-se a admitir qualquer ideologia. O neoliberalismo, quando inspira políticas concretas, nega-se como ideologia, porque ele é a própria razão.
Assim, políticas muito semelhantes podem moldar-se nas mais diversas retóricas (conservadoras, tradicionalistas, modernistas, republicanas, conforme a situação e o caso), manifestando desse modo sua extrema plasticidade. Dito de outra maneira, a dogmática neoliberal apresenta-se como uma pragmática geral, indiferente às origens partidárias. A modernidade ou a eficácia não são nem de direita nem de esquerda, segundo dizem os que “não fazem política”. O essencial é que “funciona”, como dizia com frequência Tony Blair. É isso também que nos permite avaliar as diferenças entre o período militante do neoliberalismo político de Thatcher e Reagan e o período gestionário, no qual se trata apenas de “boa governança”, “boas práticas” e “adaptação à globalização”. No decorrer desse período de maturidade, os antigos opositores tiveram de abjurar grande parte de sua velha crítica ao capitalismo; tiveram finalmente de reconhecer a “economia de mercado” como o meio mais eficaz de coordenação das atividades econômicas. Em resumo, a grande vitória ideológica do neoliberalismo consistiu em “desideologizar” as políticas seguidas, a ponto de não serem sequer objeto de debate.
Temos aqui uma das causas do completo desmoronamento doutrinal da esquerda ao longo dos anos 1990. Se admitimos que os dispositivos práticos da gestão neoliberal dos indivíduos são os únicos eficazes, ou mesmo os únicos possíveis, ou em todo caso os únicos que conseguimos imaginar, é difícil ver como é possível opor-se aos princípios que os fundamentam (a hipótese das escolhas racionais, por exemplo) ou questionar efetivamente os resultados a que chegam (uma maior exposição à concorrência e aos “acidentes” da conjuntura mundial). Não resta nada além da lógica da persuasão retórica, que consiste em denunciar em alto e bom som o que se aceita a meia-voz. Foi o que as autoridades de esquerda mais “hábeis” souberam fazer quando necessário[98]. Mais ainda, o neoliberalismo político, tal como se desenvolveu, teve consequências importantes nas condutas efetivas dos indivíduos, incitando-os a “cuidar deles mesmos”, a não contar mais com a solidariedade coletiva e a calcular e maximizar seus interesses, perseguindo lógicas mais individuais num contexto de concorrência mais radical entre eles. Em outras palavras, a estratégia neoliberal consistiu e ainda consiste em orientar sistematicamente a conduta dos indivíduos como se estes estivessem sempre e em toda a parte comprometidos com relações de transação e concorrência no mercado.
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[1] Para termos uma visão sintética dessas políticas, basta considerarmos o manifesto de 1979 do Partido Conservador, com o qual Margaret Thatcher se elegeu. O programa previa controle da inflação, diminuição do poder dos sindicatos, recuperação dos incentivos ao trabalho e ao enriquecimento, fortalecimento do Parlamento e da lei, auxílio à família por uma política mais eficaz dos serviços sociais, reforço da Defesa. Ver Andrew Gamble, The Free Economy and the Strong State: The Politics of Thatcherism (Durham, Duke University Press, 1988).
[2] A expressão “nova direita” é a tradução da expressão inglesa new right, que designa precisamente as formações políticas, as associações e as mídias que apoiaram o discurso neoliberal e conservador a partir dos anos 1980. Portanto, não deve sugerir um parentesco qualquer com o movimento que recebeu esse nome na França.
[3] Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault: un parcours philosophique (Paris, Gallimard, 1984), p. 318-9 [ed. bras.: Michel Foucault: uma trajetória filosófica, trad. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro, 2. ed. rev., Rio de Janeiro, Forense, 2013].
[4] Michel Foucault, “Le jeu de Michel Foucault”, em Dits et écrits II (Paris, Gallimard, 2001), p. 306-7.
[5] Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault, cit., p. 268-9.
[6] O conteúdo desta seção retoma em parte a apresentação feita por El Mouhoub Mouhoud e Dominique Plihon no seminário “Question Marx”. Ele foi inteiramente revisto pelos autores para a presente publicação, com a ajuda de El Mouhoub Mouhoud.
[7] Esse aspecto é sublinhado muito unilateralmente na última obra de Naomi Klein, La stratégie du choc: la montée d’un capitalisme du désastre (trad. Leméac/Actes Sud, 2008) [ed. bras.: A doutrina do choque: ascensão do capitalismo de desastre, trad. Vania Cury, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008].
[8] Como indica sua carta inaugural, a Comissão Trilateral, fundada em 1973 por David Rockefeller, reúne duzentos “cidadãos distintos”, isto é, membros selecionadíssimos da elite política e econômica mundial provenientes da “tríade” (Estados Unidos, Europa, Japão) que se dedicarão a “desenvolver propostas práticas para uma ação conjunta”.
[9] Michel Crozier, Samuel Huntington e Joji Watanuki, The Crisis of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the Trilateral Commission (Nova York, New York University Press, 1975).
[10] Ibidem, p. 114.
[11] Ibidem, p. 115, citado em Serge Halimi, Le Grand Bond en arrière (Paris, Fayard, 2004), p. 249.
[12] O termo permite definir um circuito macroeconômico centrado na base territorial do Estado-nação.
[13] A elasticidade-preço da demanda designa, em linguagem econômica, a sensibilidade da demanda à variação dos preços.
[14] Ver Gérard Duménil e Dominique Lévy, Crise et sortie de crise, ordre et désordres néolibéraux (Paris, PUF, 2000).
[15] Com a virada da política de austeridade do governo Delors em 1983.
[16] Ver Dominique Plihon, Le nouveau capitalisme (Paris, La Découverte, 2003, Coleção Repères).
[17] Entre as dez recomendações da nova norma mundial, encontramos: disciplina orçamentária e fiscal (respeito ao equilíbrio orçamentário e diminuição dos descontos obrigatórios e taxas de impostos), liberalização comercial, com supressão das barreiras alfandegárias e fixação de taxas de câmbio competitivas, abertura à movimentação de capitais estrangeiros, privatização da economia, desregulamentação e criação de mercados concorrenciais e proteção aos direitos de propriedade, em particular à propriedade intelectual dos oligopólios internacionais.
[18] Dani Rodrik citado em Naomi Klein, La stratégie du choc, cit., p. 202. Diga-se de passagem, temos aqui uma ilustração muito boa do primeiro sentido do termo “estratégia” como escolha dos meios que permitem alcançar um objetivo previamente determinado.
[19] Ver Dominique Plihon, “L’État et les marchés financiers”, Les Cahiers Français, n. 277, 1996.
[20] Ver François Chesnais (org.), A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências (trad. Rosa Marques e Paulo Nakatani, São Paulo, Boitempo, 2005).
[21] Dominique Plihon, Le nouveau capitalisme, cit., p. 67 e seg.
[22] Sobre esse ponto, ver Randy Martin, The Financialization of Daily Life (Filadélfia, Temple University Press, 2002). Sobre o que chamaremos de “subjetivação financeira”, ver capítulo 9 deste volume.
[23] Scott Lasch e John Urry, The End of Organized Capitalism (Cambridge, Polity Press, 1987).
[a] No original, “mise en marché”. Não se trata apenas de transformar algo em mercadoria, mas de inscrever a lógica concorrencial do mercado nos comportamentos ou nas relações e nos processos que não foram e não necessariamente serão transformados em mercadorias. (N. E.)
[24] Como escrevem Dominique Plihon, Jézabel Couppey-Soubeyran e Dhafer Saïdane, “consequentemente, o objetivo da regulamentação não foi afastar a atividade bancária da concorrência, mas criar condições legais e leais de atividade (level playing field)”. Ver Les banques, acteurs de la globalisation financière (Paris, La Documentation Française, 2006), p. 113.
[25] Ibidem, p. 18-9.
[26] Como na França a “lei sobre as novas regulações econômicas”, de maio de 2001.
[27] Lembramos que essas medidas favoráveis ao capitalismo financeiro foram consenso entre as elites políticas e econômicas. Na França, coube a um governo de esquerda implantá-las.
[28] Sobre os mecanismos da crise financeira, ver Paul Jorion, Vers la crise du capitalisme américain (Paris, La Découverte, 2007), e Frédéric Lordon, Jusqu’à quand? Pour en finir avec les crises financières (Paris, Raisons d’Agir, 2008).
[29] Nos Estados Unidos, os créditos hipotecários foram maciçamente garantidos pelas duas agências públicas encarregadas dos empréstimos residenciais, Fannie Mae e Freddie Mac.
[30] Ver a conferência de Milton Friedman, The Invisible Hand in Economics and Politics (Singapura, Institute of Southeast Asian Studies, 1981).
[31] Por exemplo, nos Estados Unidos, George Gilder, Wealth and Poverty (Nova York, Bantam Books, 1981), ou, na França, Henri Lepage, Demain le capitalisme (Paris, Hachette, 1978, Coleção Pluriel).
[32] Frédéric Bastiat, Œuvres économiques (apres. Florin Aftalion, Paris, PUF, 1983, Coleção Libre Échange), p. 207.
[33] Entrevista com Henri Lepage, “Milton Friedman: le triomphe du libéralisme”, Politique Internationale, n. 100, 2003.
[34] Ver Milton Friedman, Capitalisme et libertés [1962] (Paris, Robert Laffont, 1971) [ed. bras.: Capitalismo e liberdade, trad. Afonso C. C. Serra, Rio de Janeiro, LTC, 2014].
[35] Milton Friedman e Rose Friedman, La liberté du choix (trad. Paris, Belfond, 1980), p. 204 [ed. bras.: Livre para escolher, trad. Ligia Filgueiras, Rio de Janeiro, Record, 2015].
[36] Outros argumentos vieram apoiar esse questionamento da intervenção pública. A escola econômica norte-americana conhecida como Public Choice desenvolveu um ponto de vista mais elaborado, aplicando às atividades públicas a lógica do cálculo econômico individual. Examinaremos essa doutrina no capítulo 9.
[37] Ver um dos primeiros dossiês acusatórios produzidos na França: Henri Lepage, “L’État-providence démystifié”, em Demain le capitalisme, cit., cap. 6.
[38] Albert O. Hirschman, Deux siècles de rhétorique réactionnaire (Paris, Fayard, 1995).
[39] Charles Murray, Losing Ground: American Social Policy (Nova York, Basic Books, 1984).
[40] Gary S. Becker, A Treatise on Family (Cambridge, Harvard University Press, 1981).
[41] Um exemplo dessa argumentação encontra-se em Philippe Bénéton, Le fléau du bien: essai sur les politiques sociales occidentales (Paris, Robert Laffont, 1983), p. 287.
[42] George Gilder, Richesse et pauvretés (Paris, Albin Michel, 1981).
[43] Ibidem, p. 85-6.
[44] Ibidem, p. 81.
[45] Ibidem, p. 72.
[46] Ibidem, p. 81; grifo de Gilder.
[47] Milton Friedman e Rose Friedman, La tyrannie du statu quo (trad. Patrice Hoffmann, Paris, Lattès, 1984), p. 211 [ed. bras.: Tirania do status quo, trad. Ruy Jungmann, Rio de Janeiro, Record, 1984].
[48] Ibidem, p. 214-5.
[49] Para Gary S. Becker, toda ação humana é econômica: “The economic approach provides a valuable unified framework for understanding all human behavior” [“A abordagem econômica fornece um quadro único valioso para a compreensão de todo o comportamento humano”], escreve o autor em The Economic Approach to Human Behavior (Chicago, University of Chicago Press, 1976), p. 14. O que significa que todos os aspectos do comportamento humano são traduzíveis em preços (p. 6). Ele começou sua obra com uma tese, The Economics of Discrimination (1957), que trata dos fenômenos de discriminação no mercado de trabalho dos Estados Unidos. Deu prosseguimento a essa tese com uma análise dos efeitos da educação em seu livro sobre o capital humano (Human Capital: A Theoretical and Empirical Analysis with Special Reference to Education, 1964) e teorizou seu método em Economic Theory (1971) e Economic Approach to Human Behavior (1976).
[50] Gary S. Becker, A Treatise on Family, cit., p. 24.
[51] Como ele faz em Gary S. Becker e Kevin M. Murphy, Social Economics: Market Behavior in a Social Environment (Cambridge, Harvard University Press, 2000).
[b] Trad. Raquel Ramalhete, 42. ed., Petrópolis, Vozes, 2015. (N. E.)
[52] Esse é o sentido que se deve dar à frase: “O panóptico é a própria fórmula de um governo liberal”, Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard, 2004), p. 69.
[53] Idem, “Le sujet et le pouvoir”, Dits et Écrits II, 1976-1988, cit., p. 1.056 e seg.
[54] O termo deve ser entendido aqui em seu sentido primeiro (ver no texto a distinção entre os dois sentidos de “estratégia”).
[55] Da mesma forma, mas num contexto muito diferente, Bentham distinguiu a estruturação normalizadora das ações espontâneas no mercado, de um lado, e a vigilância mais sutilmente construída das condutas nas instituições destinadas a educar ou reeducar os que não conseguiam funcionar sozinhos no espaço das trocas mercantis, de outro.
[56] Bernard Élie, “Milton Friedman et les politiques économiques”, em Marc Lavoie e Mario Seccareccia (orgs.), Milton Friedman et son œuvre (Montreal, Presses de l’Université de Montreal, 1993), p. 55.
[57] Analisaremos adiante a argumentação da Escola do Public Choice.
[58] Dole é o nome que se dá ao seguro pago aos desempregados na Grã-Bretanha.
[59] Lembramos aqui da brutalidade com que Reagan demitiu todos os controladores de voo após a greve de 1981, substituindo-os por trabalhadores não sindicalizados. Esse foi apenas um sinal da ofensiva generalizada contra os compromissos sociais que vieram com o New Deal. Aconteceu o mesmo na Grã-Bretanha, onde Thatcher travou uma batalha frontal contra os sindicatos e dominou sua ação com restrições drásticas.
[60] Para uma análise da evolução da legislação social nos Estados Unidos, ver Isabelle Richet, Les dégâts du libéralisme. États-Unis: une société de marché (Paris, Textuel, 2002).
[61] Sobre esse ponto, ver Mark Considine, Enterprising States: The Public Management of Welfare-to-Work (Cambridge, Cambridge University Press, 2001). Foi assim que foram endurecidas pouco a pouco, e em toda a parte, as condições de concessão de auxílio. Na França, por exemplo, foi implantado em 2005 um sistema de penalidade que reduz 20% o seguro-desemprego na primeira recusa a uma proposta de emprego, 50% na segunda e 100% na terceira. Em 2008, essa política punitiva – que já permitira o aumento do número de exclusões de inscritos na Agência Nacional para o Emprego (Anpe) – foi reforçada.
[62] Gerhard Schröder, Ma vie et la politique (trad. Geneviève Bégou et al., Paris, Odile Jacob, 2006), p. 295.
[63] Milton Friedman, “The Role of Government in Education” (1955), em Capitalism and Freedom (Chicago, University of Chicago Press, 1962). A ideia foi retomada e desenvolvida por John E. Chubb e Terry M. Moe, Politics, Markets and America’s Schools (Washington, The Brookings Institution, 1990).
[64] Catherine Sauviat fala com muita justiça do capital financeiro como uma “máquina de disciplinar os assalariados”. Ver “Os fundos de pensão e os fundos mútuos: principais atores da finança mundializada e do novo poder acionário”, em François Chesnais (org.), A finança mundializada, cit., p. 118.
[65] Michel Aglietta e Laurent Berrebi, Désordres dans le capitalisme mondial (Paris, Odile Jacob, 2007), p. 34.
[66] Ver Michel Gollac e Serge Volkoff, “Citius, Altius, Fortius. L’intensification du travail”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 114, set. 1996.
[67] Sobre esse ponto, ver Michel Lallement, “Transformation des relations du travail et nouvelles formes d’action politique”, em Pepper D. Culpepper, Peter A. Hall e Bruno Palier (orgs.), La France en mutation, 1980-2005 (Paris, Presses de Sciences Po, 2006).
[68] Thomas Coutrot, L’entreprise néo-libérale, nouvelle utopie capitaliste: enquête sur les modes d’organisation du travail (Paris, La Découverte, 1998).
[69] O benchmarking é muito precisamente um método de gestão que consiste em selecionar referências padrão de desempenho para comparar com os resultados de uma entidade produtiva (filial, departamento, empresa), determinar as “boas práticas” e estabelecer metas mais elevadas de desempenho.
[70] Peter Drucker, Devenez manager! Les meilleurs textes de P. Drucker (Paris, Village Mondial, 2006), p. 122 [ed. bras.: O melhor de Peter Drucker: o homem, a administração, a sociedade, trad. Maria Lúcia Leite Rosa, São Paulo, Nobel, 2002].
[71] Ibidem, p. 127.
[72] Idem.
[73] Ver Nicole Aubert e Vincent Gaulejac, Le coût de l’excellence (Paris, Seuil, 1991).
[74] Lembramos que a transformação dos indivíduos em “riscófilos” era a base da “refundação social” desejada pelo Movimento das Empresas da França (Medef). A oposição entre duas espécies de seres humanos – os “riscófilos”, dominantes corajosos, e os “riscófobos”, dominados temerosos – foi teorizada em 2000 por François Ewald e Denis Kessler, “Les noces du risque et de la politique”, Le Débat, n. 109, 2000. Robert Castel lhes deu uma resposta mordaz no jornal Le Monde (Robert Castel, “‘Risquophiles’, ‘risquophobes’: l’individu selon le Medef”, Le Monde, 6 jun. 2001): “Antigamente, os ‘maus pobres’ só podiam culpar a si mesmos por seu destino, porque eram indolentes, imoderados, lascivos, sujos e maus. Versão modernizada e um tanto eufemizada da mesma boa consciência moral, hoje merecem a invalidação social os riscófobos, os temerosos e todos aqueles que permanecem tão estupidamente aferrados às conquistas do passado que são incapazes de participar do advento desse futuro radiante que o capitalismo de amanhã prepara para nós. Isso é discurso de dominantes para dominantes”.
[75] Sobre esse ponto, convém considerar a trajetória pessoal dos atores dessa implantação prática dos esquemas neoliberais. Podemos nos perguntar, por exemplo, se a “segunda esquerda” na França não foi, para alguns, uma “passarela” que facilitou a passagem de um engajamento político ou sindical para uma participação ativa na “reforma” dos dispositivos do Estado social e educador.
[76] Bruno Jobert (org.), Le tournant néo-libéral en Europe: idées et recettes dans les pratiques gouvernementales (Paris, L’Harmattan, 1994), p. 15.
[77] Houve muitos outros, entre os quais a política de Gerhard Schröder e a grande aliança entre direita e esquerda na Alemanha e, na França, o êxito da política de abertura de Nicolas Sarkozy a algumas “personalidades” do Partido Socialista, que mostraram a que ponto o novo rumo ideológico decompôs o arcabouço intelectual e político da social-democracia.
[78] Para uma análise do “fascínio” da esquerda norte-americana pela maneira de pensar da direita, ver James K. Galbraith, The Predator State: How Conservatives Abandonned the Free Market and Why Liberals Should Too (Nova York, The Free Press, 2008).
[79] Não podemos esquecer, no entanto, que os partidos de esquerda foram atravessados por lutas internas mais ou menos virulentas. É forçoso constatar que os opositores dessa orientação neoliberal ficaram na defensiva, sob a acusação de serem partidários da antiga gestão administrativa, custosa, ineficaz e desmoralizante.
[80] Sobre esse ponto, ver a demonstração de Keith Dixon, Un digne héritier: Blair et le thatchérisme (Paris, Raisons d’Agir, 1999).
[81] Tony Blair dá uma excelente definição numa entrevista: “Eu diria que as atividades de um governo não devem ter o objetivo de entravar a competição entre as empresas no mercado global. Isso não é uma resposta apropriada e não funcionará, porque o mercado nos domina. Se tentarmos proteger as empresas dos efeitos do mercado global, o que acontece é que elas vão sobreviver alguns anos, depois vão desaparecer, porque a pressão da competição global é tamanha que isso acontecerá necessariamente. Em compensação, o que se pode fazer é equipar essas empresas, assim como os indivíduos que trabalham para elas, para que eles possam enfrentar os rigores desse mercado global. Essa é, a meu ver, a terceira via”. Citado em Philippe Marlière, Essais sur Tony Blair et le New Labour: la troisième voie dans l’impasse (Paris, Syllepse, 2003), p. 97-8.
[82] Peter Mandelson, “Europe’s Openness and the Politics of Globalisation”, The Alcuin Lecture, Cambridge, 8 fev. 2008.
[83] Michael Freeden, “True Blood or False Genealogy: New Labour and British Social Democratic Thought”, em Andrew Gamble e Tony Wright (orgs.), The New Social Democracy (Oxford, Blackwell, 1999), p. 163.
[84] Tony Blair e Anthony Giddens, La troisième voie: le renouveau de la social-démocratie (Paris, Seuil, 2002), p. 10. Jacques Delors retoma os argumentos e o léxico clássico dos adversários do welfarismo quando afirma que “as políticas tradicionais de proteção social geraram com frequência uma cultura de dependência e irresponsabilidade” (ibidem, p. 12). É interessante notar – nem que seja para descartar as hipocrisias de um socialismo francês ou de uma construção europeia que teriam escapado por milagre das garras da racionalidade neoliberal – que Delors insere seu projeto europeu no âmbito dessa terceira via. Seu Livro Branco de 1993, publicado pela Comissão Europeia (Croissance, compétitivité, emploi) retoma suas grandes linhas.
[85] Tony Blair e Anthony Giddens, La troisième voie, cit., p. 78.
[86] Ibidem, p. 111.
[87] Anthony Giddens, Le nouveau modèle européen (Paris, Hachette Littératures, 2007), p. 147.
[88] Ibidem, p. 158-9. Note-se de passagem que a expressão “fiscalizar o quadro geral” é de inspiração ordoliberal.
[89] Ibidem, p. 163. Sobre a “nova gestão pública”, ver capítulo 8 deste volume.
[90] Giddens toma como exemplo a privatização das escolas na Suécia e os cheques-educação nos Estados Unidos (ibidem, p. 166-7).
[91] Ibidem, p. 165-6.
[92] Ibidem, p. 165. Giddens pretendia distinguir o que chama de “democratização do cotidiano”, que reforça o poder do usuário, e o puro e simples “consumismo” neoliberal. Mas não está claro o que os distingue. Por exemplo, em matéria de ensino médio e superior, Giddens manifesta o novo consenso entre a esquerda moderna e a nova direita de que os universitários financiem eles próprios seus estudos, recorrendo a empréstimos.
[93] Anthony Giddens citado em Keith Dixon, Un digne héritier, cit., p. 77.
[94] Florence Faucher-King e Patrick Le Galès sublinham bem: “O New Labour adota uma visão que valoriza os ganhadores, os empreendedores (seja qual for sua cor, origem, idade), a segurança dos bens e das pessoas; os desafios da integração na sociedade, da redistribuição ou do discurso da solidariedade, do espaço público, são deixados de lado”. Ver Tony Blair, 1997-2007 (Paris, Presses de Sciences Po, 2007), p. 18.
[95] Keith Dixon, Un abécédaire du blairisme (Bellecombe-en-Bauges, Le Croquant, 2005), p. 15.
[96] Encontramos sua manifestação na forma falaciosa do “nem isso nem aquilo”, que não dá razão nem ao laissez-faire nem ao antigo compromisso social-democrata. Blair formulava a situação da seguinte maneira, antes de subir ao poder: “Se rejeito o rompante de laissez-faire dos que dizem que o governo não tem nenhum papel a desempenhar, rejeito também o retorno a um modelo de Estado corporativista, que já teve sua época. O papel do governo não é o de grande comendador da economia, mas de companheiro de estrada”. Ver Tony Blair, La nouvelle Grande-Bretagne: vers une société de partenaires (La Tour-d’Aigues, L’Aube, 1996), p. 101.
[97] Florence Faucher-King e Patrick Le Galès, Tony Blair, 1997-2007, cit., p. 16.
[98] A França “socialista” de Mitterrand mergulhou num banho retórico extremamente hostil ao neoliberalismo, embora, muito antes do blairismo, já tivesse adotado diversos dos métodos neoliberais.
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