O ORDOLIBERALISMO ENTRE “POLÍTICA ECONÔMICA” E “POLÍTICA DE SOCIEDADE”
Nascido nos anos 1930 em Freiburg im Breisgau pela aproximação de economistas como Walter Eucken (1891-1950) e juristas como Franz Böhm (1895-1977) e Hans Grossman-Doerth (1884-1944), o ordoliberalismo é a forma alemã do neoliberalismo, a que vai impor-se após a guerra na República Federal da Alemanha. O termo “ordoliberalismo” resulta da ênfase em comum desses teóricos na ordem constitucional e procedural que se encontra na base de uma sociedade e de uma economia de mercado.
A “ordem” (Ordo) como tarefa política
A própria palavra “ordem” deve ser entendida em dois sentidos: um sentido propriamente epistemológico ou sistêmico, que é da alçada da análise dos diferentes “sistemas” econômicos, e um sentido normativo, que acaba determinando certa política econômica. No último capítulo dos Grundlagen der Nationalökonomie [Fundamentos da economia nacional] (1940), Eucken distingue entre “ordem econômica” (Wirtschaftsordnung) e “ordem da economia” (Ordnung der Wirtschaft): o primeiro conceito se insere numa tipologia das “formas de organização”; o segundo tem um alcance normativo na medida em que remete à realização e à defesa de uma ordem econômica capaz de superar os múltiplos aspectos da crise da vida moderna, a saber, a ordem da concorrência (Wettbewerbsordnung)[1]. Dessa última perspectiva, se revela que a ordem da concorrência, longe de ser uma ordem natural, deve ser constituída e regulada por uma política “ordenadora” ou “de ordenação” (Ordnungspolitik)[2]. O objeto próprio dessa política é o quadro institucional, que é o que pode assegurar o bom funcionamento dessa “ordem econômica” específica. De fato, na ausência de um quadro institucional adequado, as medidas de política econômica, mesmo as mais bem-intencionadas, estão condenadas à ineficácia.
Num artigo de 1948 intitulado “Das ordnungspolitische Problem” [O problema político da ordenação], Eucken toma o exemplo da Alemanha pós-guerra para ressaltar a importância decisiva desse quadro. Em 1947, leis de dissolução de cartéis foram promulgadas para desconcentrar o poder econômico. Mas essas leis foram instauradas quando o controle do processo econômico estava nas mãos das agências do governo central. No contexto dessa “ordem econômica”, o de uma economia dirigida, essas medidas não tiveram efeito algum: produtos como cimento, aço, carvão ou couro continuaram a ser repartidos por intermédio do governo, de modo que a direção da economia continuou essencialmente inalterada. Mas, se a “ordem econômica” fosse diferente, ou seja, se os preços servissem como reguladores, não há dúvida de que o resultado da lei antimonopólio teria sido completamente diferente[3]. Assim, a tarefa política do momento era estabelecer uma ordem de concorrência baseada no mecanismo dos preços e, para isso, criar um quadro institucional especificamente adaptado a uma economia de concorrência.
Nascido nos círculos intelectuais contra o nazismo, o ordoliberalismo é uma doutrina de transformação social que apela para a responsabilidade dos homens. Como agir para refundar uma ordem social liberal depois dos erros do estadismo totalitário? Essa foi a pergunta que se fizeram, desde o início, os principais representantes do ordoliberalismo. Para eles, trata-se de reconstruir a economia de mercado com base numa análise científica da sociedade e da história[4]. Mas certa dimensão moral é consubstancial com essa análise: a “ordem liberal” é testemunha da capacidade humana de criar de forma voluntária e consciente uma ordem social justa, condizente com a dignidade do homem. A criação de um Estado de direito (Rechtsstaat) é a condição dessa ordem liberal. Isso significa que o estabelecimento e o funcionamento do capitalismo não são predeterminados: eles dependem das ações políticas e das instituições jurídicas. Michel Foucault insiste com toda razão na importância de confrontar essa concepção com a concepção marxista da história do capitalismo dominante na época[5]. De fato, o ordoliberalismo rejeita com vigor toda forma de redução do jurídico a uma simples “superestrutura”, assim como a ideia correlativa da economia como “infraestrutura”. É particularmente testemunha disso este trecho do artigo de 1948 que acabamos de mencionar:
"Falsa seria a visão segundo a qual a ordem econômica seria como a infraestrutura (der Unterbau) sobre a qual se ergueriam as ordens da sociedade, do Estado, do direito e as outras ordens. A história dos tempos modernos ensina tão claramente quanto as épocas mais antigas que as ordens do Estado ou as ordens jurídicas também têm influência sobre a formação da ordem econômica."
Eucken esclarece suas palavras referindo-se de novo à situação da Alemanha após 1945. De um lado, a transformação da ordem econômica por causa do surgimento de grupos monopólicos de poder pode influenciar de modo considerável a tomada de decisão no Estado; de outro, a formação de monopólios pode ser encorajada pelo próprio Estado, em especial por intermédio de sua política de patentes, de sua política comercial, de sua política de taxas, como aconteceu regularmente nos últimos tempos, aponta Eucken:
"Primeiro o Estado favorece a formação do poder econômico privado e depois se torna parcialmente dependente dele. Assim, não há uma dependência unilateral das outras ordens em relação à ordem econômica, mas uma dependência recíproca, uma “interdependência das ordens” (Interdependenz der Ordnungen).[6]"
Essa análise comporta uma consequência decisiva: o devir do capitalismo não é inteiramente determinado pela lógica econômica de acumulação do capital, ao contrário do que dizia um discurso marxista amplamente difundido na época. Desse último ponto de vista, “existe na verdade apenas um capitalismo, já que existe apenas uma lógica do capital”; mas, do ponto de vista ordoliberal, que já era o de Rougier, “a história do capitalismo somente pode ser uma história econômico-institucional”, o que significa que o capitalismo tal como o conhecemos depende da “singularidade histórica de uma figura econômico-institucional”, e não da figura que dita a lógica da acumulação do capital. A implicação política dessa consideração é manifesta: longe de o impasse dessa figura do capitalismo ser o impasse do “capitalismo tout court”, abre-se todo um campo de possibilidades diante dela, desde que trabalhe em favor de certas transformações econômicas e políticas[7].
Obra da vontade, e não produto de uma evolução cega, a ordem de mercado é, pois, parte de um conjunto coerente de instituições conformes com a moral. Os ordoliberais não são os únicos na época a romper com a perspectiva naturalista do velho free trade, mas caracterizam-se por ter sistematizado teoricamente esse rompimento, mostrando que toda atividade de produção e troca exercia-se no quadro de uma constituição econômica específica e de uma estrutura social construída. A crítica da economia política clássica é formulada de maneira particularmente clara por Eucken em 1948, no artigo citado:
"Os clássicos reconheceram claramente que o processo econômico da divisão do trabalho impõe uma tarefa difícil e diversificada de direção. Isso já foi um resultado eminente, em relação ao qual a época ulterior ficou para trás. Viram também que esse problema somente poderia ser resolvido por uma ordem econômica (Wirtschaftsordnung) adequada. Esse foi outro reconhecimento novo e de grande alcance, que também se perdeu posteriormente. Apesar disso, a política econômica, por mais que tenha sido influenciada pelos clássicos, não foi suficientemente orientada para o problema da ordenação (Ordnungsproblem). Os clássicos viam a solução do problema de direção na ordem “natural”, na qual os preços de concorrência conduzem automaticamente o processo. Acreditavam que a ordem natural se realiza espontaneamente e que o corpo da sociedade não precisa de um “regime alimentar rigorosamente determinado” (Smith), portanto, de uma política determinada de ordenação da economia (Wirtschaftsordnungspolitik), para prosperar. Chegaram, a partir daí, a uma política do “laissez-faire” e, com ela, ao nascimento de formas de ordem dentro das quais a direção do processo econômico deixou aparecer danos importantes. A confiança na autorrealização da ordem natural era grande demais (Das Vertrauen auf die Selbstverwirklichung der natürlichen Ordnung war zu groß).[8]"
De forma ainda mais categórica, Röpke resume bem o espírito da doutrina em Civitas humana, em que recupera, fazendo eco ao Colóquio Lippmann, a rejeição do laissez-faire:
"Não é empenhando-nos em não fazer nada que suscitaremos uma economia de mercado vigorosa e satisfatória. Muito pelo contrário, essa economia é uma formação acadêmica, um artifício da civilização; ela tem em comum com a democracia política o fato de ser particularmente difícil e pressupor muitas coisas que devemos nos esforçar obstinadamente para atingir. Isso constitui um amplo programa de rigorosa política econômica positiva, com uma lista que impõe tarefas a ser cumpridas.[9]"
Particularmente eloquente aqui é a aproximação que se faz entre economia de mercado e democracia política – tanto uma como a outra fazem parte do domínio do artifício, não da natureza.
Mas esse amplo acordo sobre a crítica às ilusões naturalistas da economia política clássica não consegue dissimular certas diferenças, ou mesmo divergências, sobre a natureza do remédio que se deve dar aos males que atingem a sociedade moderna. É com razão, portanto, que os comentadores chamaram muitas vezes atenção para o fato de que a unidade da corrente era problemática. É possível distinguir esquematicamente dois grupos principais: de um lado, o dos economistas e dos juristas da Escola de Freiburg, entre os quais os mais importantes eram Walter Eucken e Franz Böhm; de outro lado, o de um liberalismo de inspiração “sociológica”, cujos principais representantes foram Alfred Müller-Armack, Wilhelm Röpke e Alexander von Rüstow[10]. Os fundadores da Escola de Freiburg transformam o quadro jurídico-político em principal fundamento da economia de mercado e objeto da constituição econômica. As “regras do jogo” institucionais parecem monopolizar sua atenção. Os autores do segundo grupo, que não tinham menos influência do que os primeiros sobre as autoridades políticas, darão muito mais ênfase ao quadro social em que a atividade econômica deve desenvolver-se. É o caso dos economistas com preocupações sociológicas mais pronunciadas, assim como religiosas e morais, como Röpke e Von Rüstow. Em poucas palavras, enquanto o primeiro grupo dá prioridade ao crescimento econômico, que supostamente traz em si mesmo o progresso social, o segundo é muito mais atento aos efeitos de desintegração social do processo do mercado e, consequentemente, atribui ao Estado a tarefa de instaurar um “meio social” (soziale Umwelt) próprio para reintegrar os indivíduos nas comunidades. O primeiro grupo enuncia os princípios de uma “política econômica” (Wirtschaftspolitik); o segundo tenta elaborar uma verdadeira “política de sociedade” (Gesellschaftspolitik)[11].
A legitimação do Estado pela economia e seu “suplemento social”
O ordoliberalismo forneceu a justificativa doutrinal da reconstrução política alemã ocidental, fazendo da economia de mercado a base de um Estado liberal-democrático. Essa justificação comporta dois aspectos, um negativo e outro positivo.
Em primeiro lugar, e esse é o aspecto negativo, a crítica ordoliberal ao nazismo faz deste último o resultado natural e a verdade da economia planificada e dirigida. Longe de constituir uma “monstruosidade” ou um “corpo estranho”, o nazismo foi como o fator revelador de uma espécie de invariante que une necessariamente certos elementos entre eles: economia protegida, economia de assistência, economia planificada, economia dirigida[12]. Significativamente, Röpke chegará a designar a economia planificada como “economia de comando” (Kommandowirtschaft)[13]! Mas essa crítica vai ainda mais longe. Ela denuncia no nazismo uma lógica de crescimento infinito do poder do Estado e, desse modo, permite-se voltar contra ele a crítica que ele sempre dirigiu à sociedade burguesa individualista – segundo os ordoliberais, não é de fato a economia de mercado que é responsável pela dissolução dos laços orgânicos tradicionais e pela atomização dos indivíduos, mas, sim, o crescimento do poder do Estado, cujo efeito foi destruir os laços de comunidade entre os indivíduos[14]. É ainda a Röpke que caberá fornecer um fundamento filosófico a essa crítica ao nazismo: do ponto de vista do ordoliberalismo, o nazismo apenas levou ao extremo a aplicação na economia e na sociedade do tipo de racionalidade que valia nas ciências da natureza. O coletivismo econômico aparece nessa perspectiva como a extensão da “eliminação cientística do homem” à prática econômica e política. Esse “napoleonismo econômico” somente pode prosperar “à sombra da corte marcial”[15], na medida em que busca o domínio total da sociedade por intermédio de um planejamento ao qual cada indivíduo é constrangido a obedecer. Coletivismo econômico e coerção tirânica do Estado estão ligados, como estão economia de mercado e liberdade individual. A economia de mercado é, ao contrário, um obstáculo redibitório a qualquer “politização da vida econômica”; ela impede que o poder político decida pelo consumidor. O princípio da “livre escolha” aparece aqui não apenas como um princípio de eficácia econômica, mas também como um antídoto contra qualquer desvio coercitivo do Estado.
Considerada agora sob seu aspecto positivo, a originalidade doutrinal do ordoliberalismo, no contexto histórico da reconstrução das instituições políticas alemãs após a guerra, é operar, segundo a expressão de Foucault, um “duplo circuito” entre o Estado e a economia. Se o primeiro fornece o quadro de um espaço de liberdade dentro do qual os indivíduos podem buscar seus interesses particulares, o livre jogo econômico criará e legitimará em outro sentido as regras de direito público do Estado. Em outras palavras, “a economia produz legitimidade para o Estado que é fiador dela”[16]. Nesse sentido, o problema dos ordoliberais é rigorosamente o inverso daquele que enfrentavam os liberais do século XVIII: não é o de abrir espaço para a liberdade econômica dentro de um Estado existente que já tem legitimidade própria, mas, sim, o de fazer um Estado existir a partir do espaço preexistente da liberdade econômica[17]. Para ser compreendida, a importância dessa legitimação do Estado mediante o crescimento econômico e o aumento do padrão de vida deve evidentemente ser reinserida na história política da Alemanha e, em particular, na experiência traumatizante do Terceiro Reich.
Para Foucault, é isso que explica o amplo e constante “consenso” em torno dos objetivos econômicos apresentados pelas autoridades alemãs ocidentais em 1948. De fato, em abril de 1948, o Conselho Científico criado junto ao departamento de economia alemão na zona anglo-americana – do qual faziam parte em especial Eucken, Böhm e Müller-Armack – envia a esse departamento um relatório que afirma que a direção do processo econômico deve ser feita pelo mecanismo de preços. Alguns dias depois, Ludwig Erhard[18], responsável pela administração econômica da “bizona”, toma esse princípio para si e pede que a economia seja liberada das restrições do Estado. De fato, a liberalização dos preços vai ser atrelada a uma reforma monetária a partir de junho de 1948. Essa decisão política vai contra a corrente do clima dirigista e intervencionista que prevalecia na época em toda a Europa, principalmente em virtude das exigências da reconstrução.
Dois homens tiveram um papel decisivo na conversão de Erhard, reticente a esse tipo de medida. O primeiro foi ninguém menos que o próprio Eucken. Em 1947, ele publica um texto com um título significativo: “A miséria econômica alemã” (“Die deutsche Wirtschaftsnot”). Ele mostra no artigo como a economia dirigida conduz à desintegração do sistema produtivo e aponta a responsabilidade dos Aliados nesse estado de coisas. A seu ver, a política aliada aparece como continuação direta da política nazista: controle de preços e distribuição, desmontes, confiscos etc. Ele preconiza que o sistema de economia dirigida seja revogado, atrelando a reforma monetária à liberalização dos preços. Manifestamente, o trabalho de persuasão de Eucken ao longo de 1947 explica em grande parte a rapidez de execução da reforma monetária[19]. O segundo pensador que influenciou diretamente Erhard foi Röpke. De volta à Alemanha em 1947, depois de doze anos de exílio, ele faz a mesma análise que Eucken: o principal problema da economia alemã é a “perda da função dos preços como indicadores de escassez”[20]. Em abril de 1948, Erhard visita Röpke, que na época residia em Genebra e, segundo um de seus biógrafos, tomou a decisão de fazer a reforma monetária assim que voltou da Suíça[21].
Contudo, por si só a promoção da economia à instância de legitimação não resolve a questão de qual exatamente deve ser a forma da organização política do Estado por reconstruir. A instituição do mercado não é suficiente para determinar a forma da construção constitucional. Embora possamos admitir a tese proposta por Foucault de uma legitimação do Estado pela economia, não podemos nos esquecer de que no ordoliberalismo, ou ao menos no segundo dos dois grupos discernidos antes, há também uma tentativa de legitimação da autoridade política por sua “missão social”. Considerações tanto morais como sociais vão permitir que se mude significativamente a orientação da doutrina. Isso porque não se trata apenas de dizer quais são os direitos e as liberdades dos indivíduos; é preciso situar também as raízes e o meio concreto dos deveres que eles terão de cumprir.
Röpke sublinhou particularmente o fato de que uma das dimensões da grande crise civilizacional que levou ao totalitarismo adquire o aspecto de crise de legitimidade do Estado. Sobre o que repousar a legitimidade política? Um Estado legítimo é um Estado que se inclina ao direito, respeita o princípio de liberdade de escolha, é claro, mas também é um Estado que obedece ao princípio de subsidiaridade, tal como defendido pela doutrina católica, isto é, respeita o meio de integração dos indivíduos em esferas naturais hierarquizadas. O fundamento da ordem política não é somente econômico, mas é também sociológico. Se é preferível adotar um Estado descentralizado de tipo federal, que respeita o princípio de subsidiaridade baseado na ideia dessa hierarquia de “comunidades naturais”, é porque apenas essa forma institucional fornece aos indivíduos um quadro social estável, seguro, mas também moralizante. É essa integração na família, na vizinhança, no bairro ou na região que lhes dará o sentido de suas responsabilidades, o sentimento de suas obrigações para com o outro, o gosto pelo cumprimento de seus deveres, sem os quais não há nem laço social nem felicidade verdadeira. Como veremos adiante, é necessária uma política específica, de tipo “sociológico”, para assegurar essa base moral e social do Estado, de modo que podemos falar, também nesse caso, em um “duplo circuito” entre a sociedade e o Estado. A descentralização é integrada aqui à doutrina liberal de limitação do poder do Estado. Röpke explica da seguinte maneira o “princípio da hierarquia”:
"Partindo de cada indivíduo e retornando à central estatal, o direito original encontra-se no escalão inferior, e cada escalão superior entra em jogo subsidiariamente, no lugar do escalão imediatamente inferior, apenas quando uma tarefa ultrapassa o domínio deste último. Constitui-se, assim, um escalonamento do indivíduo, além da talha e da comuna, até o cantão e, finalmente, até o Estado central, um escalonamento que, ao mesmo tempo, limita o próprio Estado ao qual ele contrapõe o direito dos escalões inferiores, com sua esfera inviolável de liberdade. Portanto, nesse sentido largamente entendido da “hierarquia”, o princípio da descentralização política já implica o programa do liberalismo em seu sentido mais estendido e mais geral, um programa que, desse modo, faz parte das condições essenciais de um Estado são, de um Estado que estabelece para si mesmo as limitações necessárias e, respeitando as esferas livres do Estado, adquire sua saúde, força e estabilidade.[22]"
Que ninguém se engane, portanto, com o sentido que Röpke dá à qualificação dessa base social como “natural” – o adjetivo está aí apenas para significar seu caráter de condição para uma “integração sã” do indivíduo em seu meio. A evolução das sociedades ocidentais desde o século XIX engendrou uma desintegração patológica crescente dessas comunidades. Consequentemente, compete ao Estado operar uma adaptação permanente desses quadros sociais mediante uma política específica, a qual tem dois objetivos, apresentados por Röpke como conciliáveis e complementares: a consolidação social da economia de mercado e a integração dos indivíduos em comunidades locais.
A ordem da concorrência e a “constituição econômica”
Assim como vimos, em seu sentido propriamente normativo, “ordo” designa uma organização economicamente eficaz e, ao mesmo tempo, respeitosa da dimensão moral do homem, uma “organização capaz de funcionar e digna do Homem”[23]. Essa organização só pode ser a de uma economia de mercado. Sob esse aspecto, a Ordnungspolitik visa, acima de tudo, por meio de uma legislação econômica apropriada, a determinar um “quadro” estável em que poderá desenvolver-se de modo ótimo um “processo” econômico baseado na livre concorrência e na coordenação dos “planos” dos agentes econômicos pelo mecanismo de preços. Em consequência, ela faz da soberania do consumidor e da concorrência livre e não distorcida os princípios fundamentais de toda “constituição econômica”. O que funda, então, a superioridade a um só tempo econômica e moral da economia de mercado em relação às outras ordens econômicas possíveis?
A superioridade da economia de mercado deve-se, segundo eles, ao fato de que ela é a única forma suscetível de superar a escassez de bens (primeiro critério, ou critério da “capacidade de funcionamento”) e, ao mesmo tempo, deixar os indivíduos livres para conduzir a própria vida como bem entenderem (segundo critério, ou critério da “dignidade do homem”). O princípio que se encontra no cerne dessa ordem econômica não é outro senão o princípio da concorrência, e é precisamente por isso que essa ordem é superior a todas as outras. Segundo as palavras de Böhm, o sistema concorrencial é “o único que dá chance total aos planos espontâneos do indivíduo” e consegue “conciliar os milhões de planos espontâneos e livres com os desejos dos consumidores”, isso sem comando nem coerção legal[24]. Como vimos anteriormente, essa promoção do princípio da concorrência acaba introduzindo um deslocamento importante com relação ao liberalismo clássico, na medida em que o mercado não é mais definido pela troca, mas pela concorrência. Se a troca funciona pela equivalência, a concorrência implica desigualdade[25].
O mais importante, porém, é a atitude essencialmente antinaturalista e antifatalista que decorre desse reconhecimento da lógica da concorrência que rege a economia de mercado: enquanto os velhos economistas liberais concluíram pela necessidade de uma não intervenção do Estado, os ordoliberais transformaram a livre concorrência em objeto de uma escolha política fundamental. É porque, para eles, a concorrência não é um dado natural, mas uma “essência” evidenciada pelo método da “abstração isolante”[26]. A “redução eidética” elaborada por Husserl é posta em prática no campo da ciência econômica. O objetivo é extrair o necessário do contingente, fazendo um objeto qualquer variar pela imaginação, até que seja isolado um predicado que não pode ser separado dele: o invariante obtido revela a essência ou eidos do objeto examinado, daí o nome de “eidético” dado ao método. Assim, longe de repousar sobre a observação de fatos naturais, o liberalismo rompe com qualquer atitude de “ingenuidade naturalista”[27], justifica sua preferência por certa organização econômica através de uma argumentação racional que convida à construção jurídica de um Estado de direito e uma ordem de mercado.
Na realidade, a política ordoliberal depende inteiramente de uma decisão constituinte: trata-se de institucionalizar a economia de mercado na forma de uma “constituição econômica”, ela própria parte integrante do direito constitucional positivo do Estado, de maneira a desenvolver a forma de mercado mais completa e mais coerente[28]. Como explicam os economistas e os juristas de Freiburg, o direito econômico da concorrência é uma das partes importantes do sistema jurídico estabelecido pelo legislador e pela jurisprudência. Eucken e Erhard chamarão essa constituição econômica de “decisão de base” ou “decisão fundamental”. Seu princípio é simples: “A realização de um sistema de preços de concorrência perfeita é o critério para qualquer medida de política econômica”[29].
Todos os artigos da legislação econômica devem contribuir para assegurar o bom funcionamento dessa lógica da “concorrência perfeita”. As diferentes peças do modelo ajustam-se umas às outras graças ao trabalho dos cientistas experts que elaboram seus “princípios constituintes” (konstituierende Prinzipien). Como já indica o nome, esses princípios têm a função de constituir a ordem como estrutura formal. São seis: princípio da estabilidade da política econômica, princípio da estabilidade monetária, princípio dos mercados abertos, princípio da propriedade privada, princípio da liberdade dos contratos e princípio da responsabilidade dos agentes econômicos[30].
Política de “ordenação” e política “reguladora”
Postas as regras institucionais, como definir precisamente a política que compete ao governo conduzir? Essa política deve ser exercida em dois níveis de importância: num primeiro nível, por um sólido enquadramento ou mesmo por uma educação da sociedade pela legislação e, num segundo nível, pela ação vigilante de uma “polícia dos mercados”.
Os neoliberais alemães estão muito distantes de uma hostilidade de princípio a qualquer intervenção do Estado. Em compensação, pretendem distinguir as boas intervenções das más, de acordo com o critério de conformidade destas ao “modelo” proposto pela constituição. A distinção ordoliberal entre ações “conformes” e ações “não conformes” à ordem de mercado não deve ser assimilada à distinção benthamiana de agendas e não agendas. O critério discriminador não é o resultado da ação, mas o respeito ou não das “regras do jogo” fundamentais da ordem concorrencial. A lógica é mais procedural do que consequencialista.
A distinção fundamental entre o “quadro” e o “processo” fundamenta a distinção entre os dois níveis da política ordoliberal, a saber, a política de “ordenação” e a política “reguladora”: as ações conformes podem pertencer ao “quadro” e, nesse caso, definem uma política “ordenadora”, ou de “ordenação”, mas podem também pertencer ao “processo” e, nesse caso, correspondem a uma política “reguladora”. Segundo Eucken, o “quadro” é o produto da história dos homens, de modo que o Estado pode continuar a moldá-lo por uma política ativa de “ordenação”; o “processo” da atividade pertence à ação individual, por exemplo, a iniciativa privada no mercado, e deve ser exclusiva e estritamente regida pelas regras da concorrência na economia de mercado.
A política de “ordenação” visa a criar as condições jurídicas de uma ordem concorrencial que funcione com base em um sistema de preços livres. Para retomarmos uma expressão de Eucken, convém moldar os “dados” globais, aqueles que se impõem ao indivíduo e escapam ao mercado, a fim de construir o quadro da vida econômica de tal forma que o mecanismo de preços possa funcionar regular e espontaneamente. Esses dados são as condições de existência do mercado nas quais o governo deve intervir. Eles podem ser divididos em dois tipos: dados da organização social e econômica e dados materiais. Os primeiros são as regras do jogo que devem ser impostas aos atores econômicos individuais. O livre-câmbio mundial é um exemplo desse tipo de dado. Também devemos incluir entre eles a ação sobre a mente, ou mesmo o condicionamento psicológico (o que foi chamado por Erhard de “Seelen Massage”[31]). Os dados materiais compreendem, de um lado, as infraestruturas (os equipamentos) e, de outro, os recursos humanos (demográficos, culturais, morais e escolares). O Estado também pode agir sobre as técnicas, favorecendo o ensino superior e a pesquisa, assim como pode estimular a poupança pessoal graças a sua ação sobre o sistema fiscal e social. Röpke dirá que essa política de enquadramento, típica do “intervencionismo liberal”, apoia-se em:
"instituições e disposições que garantem à concorrência esse quadro, essas regras do jogo e esse aparelho de vigilância imparcial das regras do jogo, das quais a concorrência tem tanta necessidade quanto um torneio, sob pena de transformar-se numa rixa feroz. De fato, uma ordenação de concorrência genuína, justa, leal, flexível em seu funcionamento, não pode existir sem um quadro moral e jurídico bem concebido, sem uma vigilância constante das condições que permitem à concorrência produzir seus efeitos enquanto verdadeira concorrência de rendimento.[32]"
Quanto mais eficaz é essa política de ordenação, menos importante deve ser a política reguladora do processo[33]. De fato, a política “reguladora” tem como função “regular” as estruturas existentes de maneira a fazê-las evoluir no sentido da ordem da concorrência ou garantir sua conformidade a essa ordem contra qualquer desvio. Consequentemente, longe de contrariar a lógica da concorrência, ela tem a tarefa de afastar todos os obstáculos ao livre jogo do mercado por intermédio do exercício de uma verdadeira polícia dos mercados, da qual é um exemplo a luta contra os cartéis. A política conjuntural não é descartada, portanto, mas deve obedecer à regra constitucional suprema da estabilidade dos preços e do controle da inflação, e não causar dano à livre fixação dos preços. Nem a preservação do poder de compra nem a manutenção do pleno emprego nem o equilíbrio da balança comercial poderiam ser os principais objetivos, necessariamente subordinados aos “princípios constituintes”.
A lei de 1957 sobre a criação do Bundesbank é um exemplo perfeito dessa orientação, quando especifica que o Banco Central é independente e não se submete às diretivas do governo e que sua missão principal é salvaguardar a moeda. É preciso, portanto, negar-se a intervir no “processo”, em particular por uma política monetária laxista, que se aproveitaria abusivamente da baixa dos juros para obter o pleno emprego. Por princípio, a política ativa de tipo keynesiano é incompatível com os princípios ordoliberais. Ela favorece a inflação e enrijece os mercados, ao passo que a política estrutural deve visar, ao contrário, à flexibilidade de salários e preços. De maneira geral, serão vedados todos os instrumentos aos quais recorre a planificação, como fixação de preços, apoio a dado setor do mercado, criação sistemática de empregos e investimento público. Além de se subordinar às leis da constituição econômica, a política reguladora é comandada por alguns princípios específicos, definidos precisamente como “reguladores” (regulierende Prinzipien): criação de uma agência de controle dos cartéis, política fiscal direta e progressiva, controle dos efeitos não desejados susceptíveis de serem causados pela liberdade de planejamento concedida aos agentes econômicos, vigilância específica do mercado de trabalho[34]. Para resumirmos, a política de ordenação intervém diretamente no “quadro” ou nas condições de existência do mercado de modo a realizar os princípios da constituição econômica; a política reguladora intervém não diretamente no “processo” em si, mas por intermédio de um controle e de uma vigilância cujo intuito é afastar todos os obstáculos ao livre jogo da concorrência e, assim, facilitar o “processo”.
O cidadão-consumidor e a “sociedade de direito privado”
O ordoliberalismo visa a fundar uma ordem social e política sobre um tipo determinado de relação social: a concorrência livre e leal entre indivíduos perfeitamente soberanos de suas vidas. Qualquer distorção da concorrência traduz uma dominação ilegítima do Estado ou de um grupo de interesses privados sobre o indivíduo. Ela pode ser assimilada à tirania e à exploração.
A principal questão para o ordoliberalismo é a do poder: a do poder de direito de que cada indivíduo dispõe sobre sua vida – nesse sentido, a propriedade privada é compreendida como um meio de independência – e, ao mesmo tempo, a do poder ilegítimo de todos os grupos de interesses susceptíveis de causar dano a esse poder dos indivíduos mediante práticas anticoncorrenciais. O ideal social – às vezes extremamente arcaizante, como em Röpke – remete simultaneamente a uma sociedade de pequenos empreendedores dos quais nenhum tem condições de exercer um poder exclusivo e arbitrário sobre o mercado e a uma democracia de consumidores que exercem diariamente seu poder individual de escolha. A ordem política mais perfeita parece ser a que satisfaz uma multidão de soberanos individuais que teriam a última palavra tanto na política como no mercado. Erhard ressaltava que “a liberdade de consumo e a liberdade de produção são, no espírito do cidadão, direitos fundamentais intangíveis”[35].
Devemos notar que essa promoção política do consumidor, longe de ser anódina, deve ser diretamente vinculada ao princípio constitucional da concorrência. Obviamente, os indivíduos são ligados entre si por ações econômicas nas quais intervêm tanto como produtores quanto como consumidores. A diferença é que o indivíduo como produtor procura satisfazer uma demanda da sociedade – portanto, de certo modo ele é o “criado” –, ao passo que como consumidor ele está em posição de “comandar”. A tese dos ordoliberais é que existem “interesses constitucionais comuns” nos consumidores que não existem nos produtores. De fato, os interesses dos indivíduos como produtores são do tipo protecionista, na medida em que visam a obter um tratamento particular para pessoas ou grupos determinados, ou seja, um “privilégio”, e não regras que valham para todos uniformemente. Ao contrário, os interesses dos indivíduos como consumidores são consensuais e comuns, mesmo que se concentrem em mercados diferentes: todos os consumidores têm, enquanto tais, o mesmo interesse pelo processo concorrencial e pelo respeito às regras da concorrência. Desse ponto de vista, a “constituição econômica” da ordem da concorrência parece estar ligada a uma espécie de contrato entre o consumidor-eleitor e o Estado, na medida em que consagra o interesse geral consagrando a soberania do consumidor[36].
Evidentemente, o Estado deve começar por respeitar a igualdade de chances no jogo concorrencial, suprimindo tudo que possa parecer privilégio ou proteção concedidos a tal interesse particular em detrimento de outros[37]. Um dos principais argumentos da doutrina, que encontramos em outras correntes liberais, diz que um dos principais vieses do capitalismo, a concentração excessiva e a cartelização da indústria, não é de natureza endógena, mas se origina em políticas de privilégio e proteção praticadas pelo Estado quando se encontra sob o controle de alguns grandes interesses privados. Por isso é necessário um “Estado forte”, capaz de resistir a todos os grupos de pressão, livre dos dogmas “manchesterianos” do Estado mínimo.
Erhard resumiu muito bem o espírito dessa doutrina em La prospérité pour tous [A prosperidade para todos]. O Estado tem um papel essencial a desempenhar: ele é o protetor supremo da concorrência e da estabilidade monetária, considerada um “direito fundamental do cidadão”. O direito fundamental de gozar da igualdade de direitos e chances e de um “quadro estável” – sem os quais a concorrência seria distorcida – legitima e orienta a intervenção pública. A seu ver, a política consiste em ater-se a regras gerais, sem jamais privilegiar um grupo em particular, porque isso seria introduzir distorções graves na destinação dos rendimentos ou na alocação dos recursos no conjunto da economia. Esta última é um todo cujas partes são ligadas entre si de maneira coerente.
"Os interesses particulares e o apoio a grupos bem definidos devem ser proscritos, nem que seja por causa da interdependência de todo os fenômenos econômicos. Toda medida especial tem repercussões em domínios que poderiam parecer absolutamente distintos, nos quais jamais se poderia imaginar que pudessem ocorrer tais incidências.[38]"
Mas é no ensaio hoje clássico de Böhm, “Privatrechtsgesellschaft und Marktwirtschaft”[39] [Sociedade de direito privado e economia de mercado], que encontramos a legitimação teórica mais bem-acabada e original da “preferência constitucional” pela ordem da concorrência. O autor ataca a ideia preconcebida dos juristas de que o indivíduo, no plano do direito, é imediatamente confrontado com o Estado. Mostra que a Revolução Francesa, longe de emancipar o indivíduo da sociedade, na realidade o “deixou na sociedade”: a sociedade é que foi transformada de sociedade feudal de privilégios “em pura sociedade de direito privado” (in eine reine Privatrechtsgesellschaft)[40]. Ele esclarece o que se deve entender por “sociedade de direito privado”: “Uma sociedade de direito privado não é em absoluto um simples avizinhamento de indivíduos sem ligação, mas uma multidão de homens que estão submetidos a uma ordem unitária (einheitlichen Ordnung) e, a bem dizer, a uma ordem de direito (Rechtsordnung)”. Essa ordem de direito privado não estabelece apenas as regras a que todos os membros da sociedade são submetidos quando contraem contratos entre si, adquirem bens e títulos uns dos outros, cooperam uns com os outros ou trocam serviços etc.; acima de tudo, ela outorga a todas as pessoas que se situam sob sua jurisdição uma enorme liberdade de movimento, uma competência para conceber planos e conduzir a própria vida em relação com os próximos, um status no interior da sociedade de direito privado que não é um “dom da natureza”, mas um “direito civil social”; não um “poder natural”, mas uma “permissão social”. A realidade do direito é, pois, não que o indivíduo enfrente diretamente o Estado, mas que se ligue a seu Estado “pela intermediação da sociedade de direito privado”[41].
Inegavelmente, há nisso uma forma de reabilitação da “sociedade civil” contra certa propensão do pensamento alemão a subordiná-la ao Estado[42]. É particularmente importante ressaltar esse ponto na medida em que o funcionamento do sistema de direção da economia de mercado pressupõe a existência de uma sociedade de direito privado[43]. Nessas condições, a tarefa do governo limita-se “a estabelecer a ordem-quadro (die Rahmenordnung), velar por ela e forçar sua observância”[44]. O mais notável é que Böhm não hesita em retomar por sua conta, embora distorcendo seu sentido, a distinção rousseauniana de “vontade geral” e “vontade particular”[45]. Cumprindo sua missão, o Estado age de forma imparcial e garante que a “vontade geral” não será sacrificada no altar das diferentes vontades particulares. De um lado, há todos os grupos de pressão organizados com base em interesses profissionais que tentam enfraquecer o mandato constitucional do Estado, fazendo prevalecer um interesse particular em detrimento da generalidade das regras do direito privado; de outro, há o interesse geral de todos os membros da sociedade pela instauração e pela conservação de uma ordem de concorrência regida pelo direito privado. Dessa perspectiva, a “vontade geral” é a vontade de defender a generalidade das regras do direito privado, e a “vontade particular” é a “vontade profissional” pela qual um grupo de interesses age a fim de obter isenções da lei ou uma lei específica a seu favor. Enquanto em Rousseau a vontade geral constitui, como relação do povo com ele mesmo, o fundamento do direito público, em Böhm ela tem por objeto o estabelecimento e a manutenção do direito privado. Desse modo, o governo é o guardião da “vontade geral”, sendo o guardião das regras do direito privado[46].
A “economia social de mercado”: as ambiguidades do “social”
Para os ordoliberais, o termo “social” remete a uma forma de sociedade baseada na concorrência como um tipo de vínculo humano, uma forma de sociedade que se deve construir e defender pela ação deliberada de uma Gesellschaftspolitik (“política de sociedade”), como a batizaram Von Rüstow e Müller-Armack. Objeto de uma política deliberada, esse tipo de sociedade de indivíduos soberanos em suas escolhas é também o fundamento último de um Estado de direito, como acabamos de ver.
Esse mesmo termo designa também, em sentido mais clássico, certa fé no resultado benéfico do processo econômico de mercado, uma fé que o título do famoso livro de Erhard já citado resume bem: La prospérité pour tous [A prosperidade para todos]. Müller-Armack[47], propagador da expressão “economia social de mercado”, explica que a economia de mercado era chamada “social” porque obedecia às escolhas dos consumidores, realizava uma democracia de consumo através da concorrência, fazendo pressão sobre as empresas e os assalariados para melhorar a produtividade: “Essa orientação ao consumo equivale, na verdade, a uma prestação de serviço social da economia de mercado”; acrescenta que “o aumento da produtividade, garantida e imposta constantemente pelo sistema concorrencial, age do mesmo modo que uma fonte de progresso social”[48].
Antes de se renderem, os socialistas alemães criticaram esse conceito, sob o pretexto de que a economia de mercado não podia ser social, que até por princípio ela era contrária a qualquer economia baseada na solidariedade e na cooperação social. Müller-Armack responde com dois argumentos:
- Um sistema de economia de mercado é superior a qualquer outra forma de economia quando se trata de garantir o bem-estar e a segurança econômica. “É a busca de uma síntese entre as regras do mercado, de um lado, e as necessidades sociais de uma sociedade de massa industrial moderna, de outro.”[49]
- A economia social de mercado opõe-se à economia liberal de mercado. A economia de mercado é um desejo da sociedade, é uma escolha coletiva irrevogável. Uma ordem de mercado é uma “ordem artificial”, determinada por objetivos da sociedade. É uma máquina social que necessita de regulagem, é um artifício, um meio técnico que deve produzir resultados benéficos, desde que nenhuma lei viole as regras de mercado.
O sentido de “social”, portanto, é ambíguo: ora remete diretamente a uma realidade construída pela ação política, ora procede de uma crença nos benefícios sociais do sistema de concorrência perfeita. Também é muito abrangente. Para Müller-Armack, uma economia social de mercado compreende a política cultural, a educação e a política científica. O investimento no capital humano, o urbanismo, a política ambiental fazem parte dessa política de enquadramento social.
Em seu sentido ordoliberal, a expressão “economia social de mercado” é diretamente oposta à expressão Estado de bem-estar ou Estado social. A “prosperidade para todos” é uma consequência da economia de mercado e apenas dela, ao passo que os seguros sociais e as indenizações de todos os tipos pagos pelo Estado social – um mal necessário, sem dúvida, mas provisório, que tanto quanto possível deve ser limitado – podem desmoralizar os agentes econômicos. A responsabilidade individual e a caridade em suas diferentes formas são os únicos remédios verdadeiros para a pobreza.
Os ordoliberais, embora tenham influenciado muito o poder político na Alemanha desde o fim da guerra, não conseguiram livrar-se de um sistema de seguros sociais que datava de Bismarck nem interromper seu crescimento como desejavam. Do mesmo modo, tiveram de se conformar com a cogestão das empresas, uma espécie de compromisso com os sindicatos alemães no pós-guerra. No entanto, é um completo contrassenso identificar esse intervencionismo social com o ordoliberalismo[50]. Segundo essa doutrina, a “política social” deveria limitar-se a uma legislação protetora mínima dos trabalhadores e a uma redistribuição fiscal muito moderada, que permitisse a cada indivíduo continuar a participar do “jogo do mercado”. Deveria ater-se, assim, à luta contra a exclusão, tema que permite unir a doutrina cristã da caridade e a filosofia neoliberal da integração de todos no mercado por intermédio da “responsabilidade individual”. Röpke enfatizou que também era tarefa do “intervencionismo liberal” garantir aos indivíduos um quadro de vida estável e seguro, o que supunha não tanto “intervenções de conservação”, mas intervenções de adaptação, as únicas capazes de proteger os mais fracos contra a dureza das mudanças econômicas e tecnológicas.
O progresso social passa pela constituição de um “capitalismo popular”, baseado no estímulo à responsabilidade individual mediante a constituição de “reservas” e a formação de um patrimônio pessoal obtido graças ao trabalho. Erhard explica sem nenhuma ambiguidade: “Os termos livre e social se sobrepõem [...]; quanto mais livre a economia, mais social ela é, e maior é o ganho para a economia nacional”[51]. É da livre competição que nascerá todo o progresso social: “Bem-estar para todos e bem-estar pela concorrência” são sinônimos[52]. Em matéria de política social, portanto, deve-se recusar o princípio indiscriminado da proteção de todos. O valor ético está na luta concorrencial, não na proteção generalizada do Estado de bem-estar, “em que cada um enfia a mão no bolso de seu vizinho”[53].
A “política de sociedade” do ordoliberalismo
Como vimos anteriormente, um dos aspectos importantes da doutrina é a afirmação da interdependência de todas as instituições, assim como de todos os níveis da realidade humana. A ordem política, os fundamentos jurídicos, os valores e as mentalidades fazem parte da ordem global, e todos têm efeito sobre o processo econômico. Os objetivos da política compreenderão logicamente uma ação sobre a sociedade e o quadro de vida, com o intuito de conciliá-los com o bom funcionamento do mercado. A doutrina leva, portanto, à redução da separação entre Estado, economia e sociedade, tal como existia no liberalismo clássico. Ela embaralha as fronteiras, considerando que todas as dimensões do homem são como peças indispensáveis ao funcionamento de uma “máquina econômica” (Müller-Armack). A economia de mercado só pode funcionar se estiver apoiada numa sociedade que lhe proporcione as maneiras de ser, os valores, os desejos que lhe são necessários. A lei não basta, são necessários também os costumes. Esse, sem dúvida, é o significado mais profundo da expressão “economia social de mercado”, se considerarmos que essa economia é uma entidade global dotada de coerência[54].
O ordoliberalismo concebe a sociedade a partir de certa ideia do vínculo entre os indivíduos. Em matéria de relação social, a concorrência é norma. Ela caminha de mãos dadas com a liberdade. Não há liberdade sem concorrência, não há concorrência sem liberdade. A concorrência é o modo de relação interindividual mais conforme com a eficácia econômica e, ao mesmo tempo, mais conforme com as exigências morais que se podem esperar do homem, na medida em que ela permite que ele se afirme como ser autônomo, livre e responsável por seus atos.
Essa concorrência é leal quando envolve indivíduos capazes de exercer sua capacidade de julgamento e escolha. Essa capacidade depende de estruturas jurídicas, mas também de estruturas sociais. Surge daí a ideia de uma “política de sociedade”, que logicamente completa os considerandos constitucionais da doutrina. Para evitar qualquer confusão, portanto, devemos ter o cuidado de sempre traduzir Gesellschaftspolitik por “política de sociedade”, e não por “política social”, pois o genitivo objetivo tem uma função essencial aqui, na medida em que significa que a sociedade é o objeto e o alvo da ação governamental, de forma alguma que essa ação deva ter o propósito de transferir as rendas mais altas para as rendas mais baixas. É por isso que Foucault tem toda a razão de falar aqui de “governo de sociedade”, em oposição ao “governo econômico” dos fisiocratas[55].
Röpke é incontestavelmente um dos que mais teorizaram essa especificidade da política de sociedade. Para defender a economia de mercado contra o veneno mortal do coletivismo, é importante, escreve ele em suas muitas e copiosas obras, criticar o capitalismo histórico, isto é, a forma concreta que o princípio de ordem da economia de mercado tomou[56]. Esta última continua a ser o melhor sistema econômico e, como vimos, o único sustentáculo de um Estado genuinamente liberal. Mas a economia de mercado “foi distorcida e desfigurada pelo monopolismo e pelas usurpações irracionais do Estado”[57], a tal ponto que o capitalismo, em sua forma atual, tornou-se uma “forma conspurcada, adulterada da economia de mercado”[58]. O “humanismo econômico”, ainda denominado “terceira via”, apoia-se num liberalismo sociológico (soziologische Liberalismus) “contra o qual perdem o gume as armas forjadas para atacar o antigo liberalismo puramente econômico”[59]. Röpke admite que o antigo liberalismo ignorava a sociedade ou supunha que ela se adaptava espontaneamente à ordem de mercado. Isso era uma cegueira culpada, produzida pelo racionalismo otimista das Luzes, que ignorava o laço social, a diversidade de suas formas, os contextos “naturais” em que desabrochava. Convém definir, então, as condições sociais de funcionamento do sistema concorrencial e considerar as reformas que devem ser feitas para obtê-las. É isso que especificará essa “terceira via” como a via do “liberalismo construtor” e do “humanismo econômico”, tão estranhos ao coletivismo como ao capitalismo monopolista, dois tipos de economia que favorecem o comando, o despotismo, a dependência.
A questão que se coloca na obra de Röpke é esta, portanto: de que tipo deve ser a sociedade na qual o consumidor poderá exercer plena e continuamente seu direito de escolher, com toda a independência, os bens e os serviços que mais o satisfaçam?
Essa “terceira via”, que se distingue do constitucionalismo mais estritamente jurídico dos fundadores da Escola de Freiburg por uma dimensão moral mais pronunciada, deve responder a um desafio muito mais vasto do que os desregramentos econômicos. Ela deve remediar uma “crise total de nossa sociedade”. O que explica que essa “política de estrutura”[60] seja mais bem definida como uma “política de sociedade”, isto é, uma política que visa a uma transformação completa da sociedade, num sentido evidentemente muito diferente do coletivismo. A fórmula decisiva é dada em Civitas humana: “Mas a própria economia de mercado só pode durar por meio de uma política de sociedade que repouse sobre uma nova base”[61]. Essa política que pretende produzir indivíduos capazes de escolhas responsáveis e ponderadas deve procurar descentralizar as instituições políticas, descongestionar as cidades, desproletarizar e desagregar as estruturas sociais, desmonopolizar a economia e a sociedade – em suma, ela deve procurar fazer uma “economia humana”, segundo a expressão que Röpke tanto aprecia, e da qual vê exemplos nas aldeias do cantão de Berna, compostas de pequenas e médias fazendas e empresas artesanais.
O aspecto arcaizante e nostálgico desse liberalismo sociológico não consegue esconder o fato de que o conjunto dos neoliberais deve responder a um problema crucial. Como reabilitar a economia de mercado, como continuar a acreditar na soberania plena do indivíduo no contexto do gigantismo da civilização capitalista industrial e urbana? O problema apresentou-se a Hayek, e ele foi obrigado a distinguir entre a “ordem espontânea” das interações individuais e a “organização” que repousa sobre uma concertação deliberada, em particular a da produção moderna, tanto nas empresas capitalistas como nos aparelhos administrativos do Estado[62]. Em que medida ainda se pode fazer do indivíduo independente, consumidor e produtor, a entidade de referência da ordem econômica de mercado? Röpke tem o mérito de não se esquivar do problema. Se quisermos evitar a “sociedade de formigas” do capitalismo das grandes unidades e do coletivismo, devemos tratar de fazer com que as estruturas sociais forneçam aos indivíduos as bases de sua independência e sua dignidade.
Foucault viu claramente o equívoco dessa “política de sociedade”[63]. Ela deve evitar que a sociedade seja inteiramente tomada pela lógica de mercado (princípio de heterogeneidade da sociedade e da economia), mas deve fazer igualmente com que os indivíduos se identifiquem com microempresas, permitindo a realização de uma ordem concorrencial (princípio de homogeneidade da sociedade e da economia). “Economia de mercado e sociedade não comercializada completam-se e amparam-se mutuamente. Compreendem-se mutuamente como espaço vazio e quadro, como uma lente convexa e outra côncava que juntas criam a objetiva fotográfica”[64].
Esse ponto merece ser examinado com atenção. Devemos enquadrar a economia de mercado, situá-la firmemente no “quadro sociológico-antropológico” do qual ela se nutre, mas jamais perder de vista que ela deve também se distinguir dele.
"A economia de mercado não é tudo. Numa sociedade viva e saudável, ela tem lugar marcado onde não se pode prescindir dela, e onde é preciso que seja pura e límpida. Mas ela degenera infalivelmente, apodrece e envenena com seus germes pútridos todas as outras frações da sociedade se, ao lado desse setor, não houver outros: os setores do abastecimento individual, da economia de Estado, do planismo, da dedicação e da simples e não comercial humanidade.[65]"
O mercado deve encontrar seus limites nas esferas livres da lógica mercantil: a autoprodução, a vida familiar, o setor público são indispensáveis à existência social[66]. Essa exigência de pluralidade das esferas sociais não está ligada a uma preocupação de eficácia ou justiça, mas, sim, à natureza plural do homem, coisa que o “velho liberalismo econômico” não compreendeu. O laço social não pode reduzir-se a uma relação comercial.
"Perdera-se de vista que a economia de mercado é uma seção estreita da vida social, que é enquadrada e mantida por um domínio bem mais amplo: campo exterior em que os homens não são concorrentes, produtores, comerciantes, consumidores, membros de sociedades de exploração, acionistas, poupadores, mas simplesmente homens que não vivem só de pão, membros de famílias, vizinhos, correligionários, colegas de profissão, cidadãos da coisa pública, seres de carne e sangue, com pensamentos e sentimentos eternamente humanos pendendo para a justiça, a honra, a ajuda mútua, o sentido do interesse geral, a paz, o trabalho bem feito, a beleza e a paz da natureza. A economia de mercado é somente uma organização determinada e, como vimos, absolutamente indispensável dentro de um estreito domínio em que ela encontra seu lugar devido e não deformado; entregue a si mesma, seria perigosa e até insustentável, porque reduziria os homens a uma existência totalmente antinatural, e eles, cedo ou tarde, rejeitariam tanto essa organização como a economia de mercado, que então lhes seria odiosa.[67]"
A principal causa da grande crise social e moral do Ocidente que conduz direto ao coletivismo deve-se ao fato de que o quadro social não é suficientemente sólido. Não foi a economia de mercado que não funcionou, foram as estruturas de enquadramento que cederam. Röpke pensa a crise social como um rompimento dos diques que deveriam “conter” o mercado: “As bordas carunchosas trouxeram a ruína da economia liberal dos tempos passados e, ao mesmo tempo, de todo o sistema social do liberalismo”[68].
Qual é o remédio, então? Se a economia de mercado é como um vazio, convém consolidar novamente as bordas, adotar uma política que “visa a uma maior solidez do quadro sociológico-antropológico”[69].
Esse “programa sociológico” compreende diversas vias – descentralização, desproletarização, desurbanização –, todas tendendo a um objetivo comum: uma sociedade de pequenas unidades familiares de habitação e produção, independentes e concorrendo umas com as outras. Cada indivíduo deve ser inserido profissionalmente num quadro de trabalho que lhe garanta independência e dignidade. Em uma palavra, cada indivíduo deve gozar das garantias oferecidas pela pequena empresa ou, melhor, cada indivíduo deve funcionar como uma pequena empresa. Vemos aqui o equívoco apontado por Foucault: o que deveria funcionar como um fora do mercado que o limita do exterior é pensado precisamente sob o modelo de um mercado atomístico, composto de múltiplas unidades independentes.
A pequena empresa como remédio para a proletarização
Examinemos mais de perto a crítica de Röpke à proletarização, principal fator do coletivismo. A sociedade industrial conduziu a um desenraizamento urbano e a um nomadismo sem precedentes de massas assalariadas: “É um estado patológico como nunca existiu antes, em tal amplitude, no curso da história”[70]. Resgatando acentos que pouco se ouviam na sociologia desde Auguste Comte, Röpke mostra que esse nomadismo proletário ligado à destruição do campesinato e do artesanato pela grande exploração concentrada criou um grande vazio na existência de milhões de trabalhadores, privados de segurança e estabilidade, “assalariados urbanizados, sem independência, sem propriedade, inseridos em explorações gigantescas da indústria e do comércio”[71]. Em razão do vazio que criou, a proletarização é analisada como uma perda de autonomia da existência e um isolamento social:
"A proletarização significa que homens caem numa situação sociológica e antropológica perigosa, caracterizada por falta de propriedade, falta de reservas de toda natureza (inclusive laços familiares e de vizinhança), dependência econômica, desenraizamento, alojamentos de massas semelhantes a casernas, militarização do trabalho, distanciamento da natureza, mecanização da atividade produtora, em resumo, uma desvitalização e despersonalização gerais.[72]"
A política de sociedade deve ter como prioridade “preencher o fosso que separa os proletários da sociedade burguesa, desproletarizando-os, fazendo-os, no verdadeiro e nobre sentido da palavra, burgueses, cidadãos, isto é, autênticos membros da civitas”[73]. Essa política de integração, cujo campo já fora esboçado por Von Rüstow durante o Colóquio Lippmann, passa pelo desenvolvimento da pequena exploração familiar e pela difusão da propriedade num contexto de pequenas cidades ou aldeias, nas quais se podem estabelecer laços de conhecimento mútuo. Tal política opõe-se, portanto, ao Estado social, que apenas diminui um pouco mais o homem, fazendo-o depender de subsídios coletivos. O grande perigo é que o desenraizamento proletário e a perda de toda propriedade pessoal que caracterizam essa situação levem a essa nova escravidão do Estado de bem-estar: “Quanto mais se estende a proletarização, mais impetuosamente afirma-se o desejo dos desenraizados de fazer o Estado lhes garantir o necessário e a segurança econômica e mais desaparecem os restos da responsabilidade pessoal” [74]. Desproletarizar as massas desenraizadas pelo capitalismo industrial não é torná-las seguradas socialmente, mas proprietárias, poupadoras, produtoras independentes. Para Röpke, a propriedade é o único meio de enraizar de novo os indivíduos em um meio, dar a eles a segurança que desejam, motivá-los para o trabalho: “Nosso dever é conservar e aumentar com todas as nossas forças o número de camponeses, artesãos, pequenos industriais e comerciantes, em resumo, todos os indivíduos independentes, munidos de propriedade de produção e habitação” [75]. A economia de mercado precisa desse “sustentáculo humano”, desses “homens solidamente ancorados na vida, graças a seu tipo de trabalho e vida” [76].
Essa idealização da exploração familiar que inspira a política de restauração da propriedade individual, vista como ponto essencial da reforma social, nunca dá a entender, porém, que todos os assalariados se tornarão de fato pequenos donos de empresa. Trata-se antes de um modelo social, do qual cada indivíduo poderá aproximar-se e apreciar os benefícios morais e materiais, graças à propriedade de sua casa e ao cultivo de sua horta: “Temos convicção de que a horta nos fundos de casa fará milagres”, exclama Röpke[77]. Com a horta, graças à autoprodução que poderá realizar, o assalariado será seu mestre, como um empreendedor que teria sobre os próprios ombros toda a responsabilidade pelo processo de produção. Tornando-se proprietário e produtor familiar, o indivíduo recuperará as virtudes da prudência, da seriedade e da responsabilidade, tão indispensáveis à economia de mercado. Esta última necessita que as estruturas sociais lhe forneçam homens independentes, corajosos, honestos, trabalhadores, rigorosos, sem os quais ela só pode degenerar num hedonismo egoísta. Essa dimensão moral da pequena empresa constitui o que ele chama significativamente de “núcleo camponês da economia política”[78]. Somente quando o “código da honestidade”, a ética do trabalho e a preocupação com a liberdade estão suficientemente enraizados no indivíduo é que se pode desenvolver no mercado uma concorrência leal e sadia e que o equilíbrio social pode ser recuperado. Em uma palavra, os “diques” morais que permitem que os indivíduos “se mantenham de pé” são idênticos aos que permitem “manter de pé” a economia de mercado. Eles repousam sobre a generalização efetiva do modelo de empresa à escala da sociedade como um todo. A empresa pequena ou média é a muralha contra os desregramentos introduzidos pelo capitalismo, exatamente do mesmo modo como as comunidades naturais, dentro do princípio federalista de subsidiaridade, constituem os limites do poder do Estado.
A “terceira via”
O neoliberalismo de Röpke é um projeto social que visa a uma “organização econômica de homens livres”[79]. Segundo ele, somente se é livre quando se é proprietário, membro de uma comunidade natural familiar, empresarial e local, podendo contar com solidariedades próximas (família, amigos, colegas) e tendo energia para enfrentar a concorrência geral. Essa “terceira via” situa-se entre o “darwinismo social” do laissez-faire e o Estado social que cuida do indivíduo do berço à sepultura[80]. Ela deve fundar-se na ideia da “responsabilidade individual”: “Quanto mais o Estado cuidar de nós, menos inclinação teremos para agir por nossas próprias forças”[81]. A propriedade e a empresa são, pois, os quadros sociais dessa autonomia da vontade econômica: “O camponês sem dívidas, que possua uma terra suficientemente grande, é o homem mais livre do nosso planeta”[82].
Essa terceira via tem vários rostos. Poderíamos ver nela apenas uma fórmula de compromisso, uma espécie de via média entre o liberalismo e o planismo. É o que Röpke dá a entender em certos textos escritos antes da guerra[83], nos quais rejeita as oposições radicais entre as “soluções totais” dos fanáticos:
"Por que continuar a pôr em formação de batalha, um em face do outro, o liberalismo e o intervencionismo, se em verdade pode tratar-se apenas de um pouco mais ou um pouco menos de liberalismo, e não um brutal sim ou não, já que o liberalismo integral é uma impossibilidade e o intervencionismo integral extingue-se por si mesmo e torna-se puro comunismo?[84]"
Contudo, em outros textos, o discurso é muito mais ambicioso. A “terceira via” define um liberalismo sociológico “construtor” que tem como objetivo uma remodelação social completa, indispensável para remediar a grande crise de nossa época. Ele define a Gesellschaftspolitik como:
"uma política que perseguirá em uníssono a restauração da liberdade econômica, a humanização das condições de trabalho e vida, a supressão da proletarização, da despersonalização, do desenquadramento social, da formação em massa, do gigantismo e do privilégio, e outras degenerações patológicas do capitalismo, tal política é mais do que uma simples reforma econômica e social. [...] Todas as desordens econômicas de nosso tempo são apenas os sintomas superficiais de uma crise total de nossa sociedade, e é como tal que devemos tratá-la e curá-la. Assim, uma reforma econômica eficaz e duradoura deve ser, ao mesmo tempo, uma reforma radical da sociedade.[85]"
É talvez por essa ênfase no aspecto moral do “espírito de empresa”, da “responsabilização individual”, da “ética da competição”, que o liberalismo sociológico de Röpke esclarece tão bem os esforços feitos para transformar a empresa numa espécie de forma universal que dá à autonomia de escolha dos indivíduos o poder de se exercer.
É provável que a exaltação das virtudes da vida camponesa nos faça rir hoje por seu romantismo e seu vitalismo um tanto antiquados. A contribuição fundamental de Röpke à governamentalidade neoliberal reside, na verdade, no fato de recentrar a intervenção governamental no indivíduo para conseguir que ele organize sua vida, ou seja, a relação que tem com sua propriedade privada, sua família, seu cônjuge, seus seguros e sua aposentadoria, de modo que essa vida faça dele “uma espécie de empresa permanente e múltipla”[86]. Devemos ressaltar aqui a que ponto essa promoção do modelo de empresa à universalidade nos distancia de Locke. Para este último, o sentido amplo da noção de “propriedade” tinha a função de legitimar a propriedade dos bens exteriores como extensão da propriedade de si mesmo realizada pelo trabalho. Para alguns neoliberais contemporâneos, tanto a relação consigo mesmo como a relação com os bens exteriores devem tomar como modelo a lógica da empresa como unidade de produção em concorrência com os outros. Em outras palavras, não é o resultado do trabalho que é anexado à pessoa, como um prolongamento dela, mas é o governo que o indivíduo tem de si que deve interiorizar as regras de funcionamento da empresa; não é o exterior (ou seja, o resultado do trabalho) que é levado para o interior, mas é o exterior (ou seja, a empresa) que fornece à interioridade da relação consigo mesmo a norma de sua própria reorganização.
Em última análise, ainda que a coerência de conjunto da doutrina seja problemática, o legado político que os dois ramos do ordoliberalismo alemão deixaram ao neoliberalismo contemporâneo consiste em duas coisas essenciais. Em primeiro lugar, a promoção da concorrência a uma norma cujo intuito é orientar uma “política de ordenação”: embora a epistemologia de Eucken tenha caído amplamente no esquecimento, salvo em certos círculos de especialistas, os princípios da “constituição econômica” continuam a ser invocados para avaliar medidas de política econômica, ainda que isso termine muitas vezes numa lenga-lenga formal. Em segundo lugar, a atribuição de um objeto absolutamente específico à ação política, a saber, a “sociedade” até em sua trama mais fina e, portanto, o indivíduo como foco do governo de si mesmo e ponto de apoio do governo da conduta. É nisso, de fato, que devemos situar o sentido profundo da universalização da lógica da empresa preconizada pela “política de sociedade” em sua forma mais bem-acabada.
__________________________________________________________[1] Rainer Klump, “On the Phenomenological Roots of German Ordnungstheorie: What Walter Eucken Owes to Edmund Husserl”, em Patricia Commun (org.), L’ordolibéralisme allemand aux sources de l’économie sociale de marché (Cergy-Pontoise, Cirac/Cicc, 2003), p. 158.
[2] O termo alemão Ordnung deve ser entendido em sentido ativo: não o arranjo dos elementos que dá a um sistema já constituído uma coerência própria, mas a atividade de pôr em ordem ou mesmo de estabelecer uma ordem. Traduzimos o sentido sistêmico por “ordem” e o sentido político ativo por “ordenação”.
[3] Walter Eucken, “Das ordnungspolitische Problem”, Ordo – Jahrbuch für die Ordnung der Wirtschaft und Gesellschaft, v. 1 (Freiburg, J. B. C. Mohr, 1948), p. 65.
[4] Ver Jean-François Poncet, La politique économique de l’Allemagne occidentale (Paris, Sirey, 1970), p. 58.
[5] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard, 2004), p. 169 e seg.
[6] Walter Eucken, “Das ordnungspolitische Problem”, cit., p. 72.
[7] Sobre todo esse desenvolvimento, ver Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 170-1.
[8] Walter Eucken, “Das ordnungspolitische Problem”, cit., p. 80.
[9] Wilhelm Röpke, Civitas humana ou les questions fondamentales de la réforme économique et sociale (trad. Paul Bastier, Paris, Librairie de Médicis, 1946), p. 65.
[10] Já falamos dos dois últimos autores no capítulo precedente, com relação ao papel que tiveram nos debates do Colóquio Walter Lippmann; quanto ao terceiro, nós o apresentaremos adiante neste capítulo.
[11] É o que sublinha Michel Senellart, que discerne na superestimação da homogeneidade do discurso ordoliberal uma das limitações do trabalho de Michel Foucault. Ver Michel Senellart, “Michel Foucault: la critique de la Gesellschaftspolitik ordolibérale”, em Patricia Commun (org.), L’ordolibéralisme allemand aux sources de l’économie sociale de marché, cit., p. 48.
[12] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 113.
[13] Patricia Commun (org.), L’ordolibéralisme allemand aux sources de l’économie sociale de marché, cit., p. 196, nota 59.
[14] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 117.
[15] Wilhelm Röpke, Civitas humana, cit., p. 57.
[16] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 86.
[17] Ibidem, p. 88.
[18] Ludwig Erhard, que se tornará ministro da Economia de Adenauer em 1951, é considerado o pai do “milagre econômico alemão”.
[19] Patricia Commun (org.), L’ordolibéralisme allemand aux sources de l’économie sociale de marché, cit., p. 194. Iniciada em 20 de junho de 1948, essa reforma monetária substitui o antigo Reichsmark pelo Deutsche Mark e estabelece o Bank Deutscher Länder na função de banco de emissão. Ela tem três objetivos: diminuir a massa monetária para reabsorver o excedente do poder de compra, aumentar a velocidade da circulação da moeda e restabelecer um padrão monetário de trocas (ibidem, p. 207-8).
[20] Ibidem, p. 195.
[21] Idem.
[22] Wilhelm Röpke, Civitas humana, cit., p. 161. Sabemos que lugar a construção europeia reservou ao princípio de subsidiaridade. Sobre a relação dessa construção com o ordoliberalismo, ver capítulo 7 deste volume.
[23] Walter Eucken, Grundsätze der Wirtschaftspolitik (6. ed., Tübingen, J. C. B. Mohr [Paul Siebeck], 1952), p. 239, citado por Laurence Simonin, “Le choix des règles constitutionnelles de la concurrence: ordolibéralisme et théorie contractualiste de l’État”, em Patricia Commun (org.), L’ordolibéralisme allemand aux sources de l’économie sociale de marché, cit., p. 71.
[24] Franz Böhm, “Die Idee des Ordo im Denken Walter Euckens”, Ordo, v. 3, 1950, p. 15, citado por Laurence Simonin, “Le choix des règles constitutionnelles de la concurrence”, cit., p. 71.
[25] Ver capítulo 1 deste volume.
[26] O original alemão diz exatamente: “pointiert hervorhebende Abstraktion”.
[27] De acordo com a expressão husserliana utilizada muito a propósito por Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 123.
[28] Ver François Bilger, La pensée économique libérale dans l’Allemagne contemporaine (Paris, LGDJ, 1964), cap. 2.
[29] Ver Jean-François Poncet, La politique économique de l’Allemagne occidentale, cit., p. 60.
[30] Sylvain Broyer, “Ordnungstheorie et ordolibéralisme: les leçons de la tradition. Du caméralisme à l’ordolibéralisme: ruptures et continuités?”, em Patricia Commun (org.), L’ordolibéralisme allemand aux sources de l’économie sociale de marché, cit., p. 98, nota 73.
[31] Literalmente, “massagem das almas”!
[32] Wilhelm Röpke, Civitas humana, cit., p. 66.
[33] Como escreveu Jean-François Poncet: “Quanto mais ativa e esclarecida for a política ordenadora, menos a política reguladora terá de se manifestar” (La politique économique de l’Allemagne occidentale, cit., p. 61).
[34] Sylvain Broyer, “Ordnungstheorie et ordolibéralisme: les leçons de la tradition”, cit.
[35] Ludwig Erhard, La prospérité pour tous (trad. Francis Brière, Paris, Plon, 1959), p. 7 [ed. bras.: Bem-estar para todos, trad. Ana de Freitas, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1984].
[36] Para o desenvolvimento inteiro, ver Laurence Simonin, “Le choix des règles constitutionnelles de la concurrence”, cit., p. 70.
[37] Ver Viktor Vanberg, “L’École de Freiburg”, em Philippe Nemo e Jean Petitot (orgs.), Histoire du libéralisme en Europe (Paris, PUF, 2006), p. 928 e seg.
[38] Ludwig Erhard, La prospérité pour tous, cit., p. 85.
[39] Franz Böhm, “Privatrechtsgesellschaft und Marktwirtschaft”, Ordo Jahrbuch, v. 17, 1966, p. 75-151.
[40] Ibidem, p. 84-5.
[41] Ibidem, p. 85.
[42] Basta pensar na maneira como Hegel faz do Estado o verdadeiro fundamento da sociedade civil em seus Princípios da filosofia do direito [trad. Orlando Vitorino, São Paulo, Martins Fontes, 2009].
[43] Franz Böhm, “Privatrechtsgesellschaft und Marktwirtschaft”, cit., p. 98.
[44] Ibidem, p. 138.
[45] Ibidem, em especial p. 140-1.
[46] Veremos no capítulo 5 todo o proveito que um Hayek tira dessa delimitação do papel do governo.
[47] Depois de Erhard, Müller-Armack foi o economista ordoliberal alemão que mais se envolveu na implantação de políticas econômicas. Também foi um dos homens mais eficazes para fazer valer as condições alemãs no processo de construção da Europa. Professor de economia e responsável pelo Ministério das Finanças, faz a ponte entre a teoria e a prática. Em 1946, lança a expressão “economia social de mercado” numa obra intitulada Wirtschaftslenkung und Marktwirtschaft [Economia planificada e economia de mercado]. Na Universidade de Colônia, foi sobretudo um dos negociadores do Tratado de Roma de 1957 e artífice do compromisso que assegurará a dupla assinatura. Depois disso, foi subsecretário de Estado dos Assuntos Europeus, a partir de 1958, e foi com grande frequência o representante alemão em diversas negociações ligadas à construção europeia.
[48] Alfred Müller-Armack, citado em Hans Tietmeyer, Économie sociale de marché et stabilité monétaire (trad. Sylvain Broyer, Paris/Frankfurt, Économica/Bundesbank, 1999), p. 6. Note-se que a expressão foi criada um ano antes de Müller-Armack aderir à Sociedade Mont-Pèlerin de Hayek e Röpke (ele foi um dos dez primeiros alemães da sociedade).
[49] Alfred Müller-Armack, Auf dem Weg nach Europa. Erinnerungen und Ausblicke (Tübingen/Stuttgart, Rainer Wunderlich/C. E. Poeschel, 1971), citado em Hans Tietmeyer, Économie sociale de marché et stabilité monétaire, cit., p. 207.
[50] Ver a esse respeito o capítulo 7 deste volume, dedicado à construção da Europa.
[51] Ludwig Erhard, citado em Hans Tietmeyer, Économie sociale de marché et stabilité monétaire, cit., p. 6.
[52] Ludwig Erhard, La prospérité pour tous, cit., p. 3.
[53] Ibidem, p. 133.
[54] Remeter-se a esse respeito à leitura de Michel Foucault em Naissance de la biopolitique, cit., p. 150. Ver também o artigo de Michel Senellart, “Michel Foucault”, cit., p. 45-8.
[55] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 151; grifo nosso.
[56] Ver Wilhelm Röpke, Civitas humana, cit., p. 26.
[57] Ibidem, p. 37.
[58] Ibidem, p. 65.
[59] Ibidem, p. 43.
[60] Ibidem, p. 69.
[61] Ibidem, p. 74. Modificamos a tradução, traduzindo Gesellschaftspolitik por “política de sociedade”, e não “política social”, pelas razões explicadas anteriormente. A frase alemã é a seguinte: “Die Marktwirtschaft selbst ist aber nur zu halten bei einer widergelagerten Gesellschaftspolitik” (Civitas humana. Grundfragen der Gesellschaft und Wirtschaftsreform, Erlenbach/Zurique, Eugen Rentsch, 1944, p. 85).
[62] Ver capítulo 5 deste volume.
[63] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 246-7.
[64] Wilhelm Röpke, Civitas humana, cit., p. 74. Essa imagem do quadro e do vazio, da borda e do oco, não deixa de lembrar a temática do encastramento (embeddedness) de Karl Polanyi. Dos mesmos sintomas da crise da civilização capitalista, Röpke e Polanyi extraem consequências políticas diametralmente opostas.
[65] Ibidem, p. 72.
[66] Em La crise de notre temps (trad. Hugues Faesi e Charles Reichard, Paris, Payot, 1962), p. 136, Röpke afirma nessa mesma linha: “O princípio do mercado pressupõe certos limites e, se a democracia deve ter esferas livres da influência do Estado para não cair no despotismo desmedido, a economia de mercado deve ter esferas que não sejam submetidas às leis de mercado, sob pena de tornar-se intolerável: a esfera do autoabastecimento, a esfera das condições de vida por mais simples e modestas que seja, a esfera do Estado e da economia planificada”.
[67] Wilhelm Röpke, Civitas humana, cit., p. 71-2.
[68] Ibidem, p. 73.
[69] Ibidem, p. 74.
[70] Ibidem, p. 228.
[71] Ibidem, p. 229.
[72] Ibidem, p. 230
[73] Ibidem, p. 167. Note-se que Röpke joga deliberadamente com a ambiguidade da palavra Bürger, que significa tanto “burguês” como “cidadão”. Esse jogo diz muito a respeito da tendência do neoliberalismo de diluir a distinção entre o econômico e o político.
[74] Ibidem, p. 231.
[75] Ibidem, p. 257.
[76] Wilhelm Röpke, La crise de notre temps, cit., p. 198.
[77] Ibidem, p. 152.
[78] Wilhelm Röpke, Civitas humana, cit., p. 290.
[79] Idem, La crise de notre temps, cit., p. 201.
[80] Ibidem, p. 183
[81] Idem.
[82] Ibidem, p. 227.
[83] Como, por exemplo, em Wilhelm Röpke, Explication économique du monde moderne (trad. Paul Bastier, Paris, Librairie de Médicis, 1940), p. 281.
[84] Ibidem, p. 282.
[85] Ibidem, p. 284-5.
[86] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 247.
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