sexta-feira, 25 de novembro de 2022

A Nova Razão do Mundo: 8 - O GOVERNO EMPRESARIAL

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O GOVERNO EMPRESARIAL

Por razões contrárias, tanto os “liberais” como os “antiliberais” parecem sempre ratificar a separação tradicional entre a esfera dos interesses privados e a do Estado, como se a primeira pudesse funcionar de forma autônoma e autorregulada. É assim que a crítica “antiliberal” continua a cair na armadilha da representação que faz do mercado um sistema fechado, natural e anterior à sociedade política. Mais ainda, essa interpretação do neoliberalismo como puro laissez-faire permitiu que uma “esquerda moderna” se apresentasse como alternativa à direita neoliberal, unicamente pelo fato de que afirmava pretender dar um “quadro sólido” à economia de mercado. Foi assim também que se perpetuou o erro de diagnóstico histórico cometido por Polanyi quando acreditou que o retorno do Estado significava o fim definitivo da utopia liberal.

De fato, as grandes ondas de privatização, desregulamentação e diminuição de impostos que se espalharam por todo o mundo a partir dos anos 1980 deram crédito à ideia de um desengajamento do Estado ou, pelo menos, do fim dos Estados-nações liberando a ação dos capitais privados nos campos regidos até então por princípios não mercantis.

No entanto, há muito tempo a fábula da imaculada concepção do mercado espontâneo e autônomo foi posta em dúvida. Pode causar espanto que a mesma constatação se repita várias décadas depois: o que agrada a alguns chamar de “livre mercado” está ligado a um mito que, embora tenha efeitos de altíssimos riscos, ainda assim está muito distante das práticas reais. Em 1935, num texto curto e notável (“Le New Deal permanent”), Walter Lippmann explicava nos seguintes termos a perda de autoridade da crença na autorregulação dos mercados:

"Os que pregam esse evangelho não o praticam. Essa não é mais a regra de sua conduta. Eles sustentam tenazmente que a economia é automaticamente autorreguladora, que o livre jogo da oferta e da demanda regulará a produção e a distribuição da riqueza de forma mais eficaz do que uma gestão e uma administração conscientes e concertadas. Na prática, porém, eles quase nunca aplicam esse princípio. Os que mais insistem no ideal do laissez-faire são os mesmos que, por meio de direitos aduaneiros e combinações, organizaram a vida industrial do país em sistemas de empresas submetidos a um controle altamente centralizado. Na maneira como expressam seu pensamento, são livre-cambistas. Em sua prática real, suspendem o livre jogo da oferta e da procura e, sempre que possível, substituem-no pela gestão consciente da produção e pela determinação administrativa dos preços e dos salários.[1]"

Assim, a partir dos anos 1930, parecia que a questão não se colocava mais nos termos da alternativa simplista entre o mercado autorregulador e a intervenção do Estado, mas tratava da natureza da intervenção governamental e seus objetivos. Segundo Lippmann, “a verdade é que, no Estado moderno, mesmo uma política de laissez-faire deveria ser administrada de forma deliberada, mesmo o livre jogo da oferta e da demanda deveria ser mantido de forma deliberada”[2]. Não é inútil ressaltar que essa constatação é a mesma que James K. Galbraith faz em The Predator State (2008). A chamada economia de mercado, diz ele, não poderia funcionar sem a densa rede de dispositivos sociais, educacionais, científicos e militares herdados dos períodos anteriores do capitalismo norte-americano, o que ele denomina, com uma expressão curiosamente muito semelhante à de Lippmann, “the enduring New Deal”[3].

Não basta constatar a continuidade da intervenção do Estado, ainda é preciso analisar de perto seus objetivos e os métodos que emprega. Muito frequentemente esquecemos que o neoliberalismo não procura tanto a “retirada” do Estado e a ampliação dos domínios da acumulação do capital quanto a transformação da ação pública, tornando o Estado uma esfera que também é regida por regras de concorrência e submetida a exigências de eficácia semelhantes àquelas a que se sujeitam as empresas privadas. O Estado foi reestruturado de duas maneiras que tendemos a confundir: de fora, com privatizações maciças de empresas públicas que põem fim ao “Estado produtor”, mas também de dentro, com a instauração de um Estado avaliador e regulador que mobiliza novos instrumentos de poder e, com eles, estrutura novas relações entre governo e sujeitos sociais[4].

A principal crítica que se faz ao Estado é sua falta global de eficácia e produtividade no âmbito das novas exigências impostas pela globalização: ele custa caro demais em comparação com as vantagens que oferece à coletividade e põe entraves à competitividade da economia. É, portanto, a uma análise econômica que se deseja submeter a ação pública para discriminar não apenas as agendas e as não agendas, mas a própria maneira de realizar as agendas. Esse é o objetivo da linha do “Estado eficaz”, ou do “Estado gerencial”, tal como este começa a se construir a partir dos anos 1980. Tanto a direita neoliberal como a esquerda moderna admitiram na prática que o governo não podia se desinteressar pela gestão da população no que diz respeito a segurança, saúde, educação, transporte, moradia e, obviamente, emprego. E menos ainda na medida em que a nova norma mundial da concorrência exige que os dispositivos administrativos e sociais custem menos e se orientem sobretudo para as exigências da competição econômica. A diferença que essas políticas querem introduzir reside na eficiência dessa gestão e, por conseguinte, no método que se deve empregar para fornecer bens e serviços à população. Quando essa gestão fica nas mãos da administração pública, ela contraria – segundo as “evidências” da nova ortodoxia – a lógica de mercado quanto ao papel dos preços e à pressão da concorrência. Esse é o fundamento da posição antiburocrática da fração “modernista” dos dirigentes da administração do Estado e de seus especialistas. O desprezo pelos agentes de base dos serviços públicos, os baixos salários pagos a eles, mas também a falta crônica de meios e pessoal à disposição desses mesmos serviços, sem falar das campanhas midiáticas contra a gestão burocrática e o “peso dos impostos”, contribuíram muito para a desvalorização daquilo que dependia da ação pública e da solidariedade social. O paradoxo é que muito frequentemente essa difamação convinha a uma parte das elites administrativas, que descobriram nela uma maneira de reforçar seu poder no campo burocrático. Mas foi sobretudo a concepção da ação pública que mudou sob o efeito da lógica da competição mundial. Embora o Estado seja visto como o instrumento encarregado de reformar e administrar a sociedade para colocá-la a serviço das empresas, ele mesmo deve curvar-se às regras de eficácia das empresas privadas.

Essa vontade de impor no cerne da ação pública os valores, as práticas e o funcionamento da empresa privada conduz à instituição de uma nova prática de governo. Desde os anos 1980, o novo paradigma em todos os países da OCDE determina que o Estado seja mais flexível, reativo, fundamentado no mercado e orientado para o consumidor. O management apresenta-se como modo de gestão “genérico”, válido para todos os domínios, como uma atividade puramente instrumental e formal, transponível para todo o setor público[5]. Essa mutação empresarial não visa apenas a aumentar a eficácia e a reduzir os custos da ação pública; ela subverte radicalmente os fundamentos modernos da democracia, isto é, o reconhecimento de direitos sociais ligados ao status de cidadão.

Essa redução da intervenção política a uma interação horizontal com atores privados introduz uma mudança de perspectiva. Não é mais, como nos tempos dos primeiros utilitaristas, apenas a questão geral da utilidade de sua ação que se coloca ao Estado, mas é a questão da medida quantificada de sua eficácia comparada com a de outros atores. É essa nova concepção “desencantada” da ação pública que leva a ver o Estado como uma empresa que se situa no mesmo plano das entidades privadas, um “Estado-empresa” que tem um papel reduzido em matéria de produção do “interesse geral”. Em outras palavras, supondo-se que o mercado não gera uma harmonia natural dos interesses, não decorre disso que o Estado, por sua vez, seja capaz de instaurar uma harmonia artificial, exceto se também ele for submetido a um modo de controle extremamente rigoroso.

Assim, a instituição do mercado regido pela concorrência – construção desejada e apoiada pelo Estado – foi fortalecida e prolongada por uma orientação que consistiu em “importar” as regras de funcionamento do mercado concorrencial para o setor público, no sentido mais amplo, até que o exercício do poder governamental fosse pensado de acordo com a racionalidade da empresa. Podemos perceber que a expressão “mercado institucional” tornou-se particularmente ambígua com o passar do tempo: não se tratava mais apenas de uma instituição política do mercado, mas, por inversão, de uma mercadorização da instituição pública obrigada a funcionar de acordo com as regras empresariais. Desse ponto de vista, o neoliberalismo sofreu uma inflexão prática muito clara, que podemos identificar como uma autorreflexão da lógica da concorrência que o poder público pretendia construir. A evolução dos últimos vinte anos acabou mostrando que Léon Walras estava errado: para ele, “o princípio da livre concorrência aplicável à produção das coisas de interesse privado não é mais aplicável à produção das coisas de interesse público”[6]. Era exatamente isso que os partidários da nova “governança” pretendiam fazer. Desse ponto de vista, o neoliberalismo político sofreu uma radicalização quando enxergou a concorrência como o instrumento mais eficiente para melhorar o desempenho da ação pública.

Da “governança de empresa” à “governança de Estado”

A mudança na concepção e na ação do Estado imprimiu-se no vocabulário político. O termo “governança” tornou-se palavra-chave da nova norma neoliberal, em escala mundial. A própria palavra “governança” (gobernantia) é antiga. No século XIII, designava o fato e a arte de governar[7]. Durante o período de constituição dos Estados-nações, o termo desdobrou-se progressivamente nas noções de soberania e governo. Reincorporado à língua francesa pelo presidente senegalês Léopold Sédar Senghor no fim do século XX, recuperou o vigor nos países anglófonos com o sentido de uma modificação das relações entre gerentes e acionistas, até adquirir significado político e alcance normativo quando foi aplicado às práticas dos governos submetidos às exigências da globalização. Nesse momento, tornou-se a principal categoria empregada pelos grandes organismos encarregados de difundir mundialmente os princípios da disciplina neoliberal, em especial pelo Banco Mundial nos países do Sul. A polissemia do termo é um indicativo de seu uso. De fato, ele une três dimensões cada vez mais entrelaçadas do poder: a condução das empresas, a condução dos Estados e, por fim, a condução do mundo[8].

Essa categoria política de “governança”, ou, mais exatamente, de “boa governança”, tem um papel central na difusão da norma da concorrência generalizada. A “boa governança” é a que respeita as condições de gestão sob os préstimos do ajuste estrutural e, acima de tudo, a abertura aos fluxos comerciais e financeiros, de modo que se vincula intimamente a uma política de integração ao mercado mundial. Assim, toma pouco a pouco o lugar da categoria “soberania”, antiquada e desvalorizada. Um Estado não deve mais ser julgado por sua capacidade de assegurar sua soberania sobre um território, segundo a concepção ocidental clássica, mas pelo respeito que demonstra às normas jurídicas e às “boas práticas” econômicas da governança[9].

A governança do Estado toma emprestada da governança da empresa uma característica importante. Da mesma forma que os gerentes das empresas foram postos sob a vigilância dos acionistas no âmbito da corporate governance predominantemente financeira, os dirigentes dos Estados foram colocados pelas mesmas razões sob o controle da comunidade financeira internacional, de organismos de expertise e de agências de classificação de riscos. A homogeneidade dos modos de pensar, a semelhança dos instrumentos de avaliação e validação das políticas públicas, as auditorias e os relatórios dos consultores, tudo indica que a nova maneira de conceber a ação governamental deve muito à lógica gerencial predominante nos grandes grupos multinacionais. O sucesso de uma ferramenta como o benchmarking[10] na análise e na condução de políticas públicas mostra como um instrumento que permite controlar e estimular a atividade das filiais das grandes multinacionais pôde passar da esfera da empresa para a esfera do governo. Esse empréstimo da gestão privada permitiu que se introduzissem na própria definição de “boa governança” “partes interessadas” totalmente estranhas às entidades classicamente incluídas nos princípios de soberania. Essas “partes interessadas” são os credores do país e os investidores externos que deverão julgar a qualidade da ação pública, isto é, a conformidade dessa ação a seus próprios interesses financeiros. Como respeitam as regras da corporate governance, os investidores estrangeiros esperam que os dirigentes locais adotem as regras da state governance. Podemos ver, desse modo, que esta última consiste em pôr os Estados sob o controle de um conjunto de instâncias supragovernamentais e privadas que determinam os objetivos e os meios da política que deve ser conduzida. Nesse sentido, os Estados são vistos como uma “unidade produtiva” como qualquer outra no interior de uma vasta rede de poderes político-econômicos submetidos a normas semelhantes.

A “governança” foi descrita muitas vezes como um novo modo de exercício do poder que implica instituições políticas e jurídicas internacionais e nacionais, associações, igrejas, empresas, think tanks, universidades etc. Sem entrar aqui na natureza do novo poder mundial, é forçoso constatar que a nova norma concorrencial implicou o desenvolvimento crescente de formas múltiplas de concessão de autoridade às empresas privadas, a ponto de podermos falar, em muitos domínios, de uma coprodução público-privada das normas internacionais. É o caso, por exemplo, da internet, das telecomunicações ou das finanças internacionais. Essa cogovernança privado-pública da política econômica leva à produção de medidas e dispositivos nos campos fiscal e regulatório sistematicamente favoráveis aos grandes grupos oligopolistas. Uma das manifestações desse processo é a delegação da elaboração de normas contábeis a um organismo privado mundial (Iasb[a]), que é ele próprio largamente influenciado pelos princípios de contabilidade em vigor nos Estados Unidos[11].

A empresa torna-se um dos fundamentos da organização da “governança” da economia mundial com o apoio dos Estados locais. Hoje são os imperativos, as premências e as lógicas das empresas privadas que comandam diretamente as agendas do Estado. Isso não quer dizer que as empresas multinacionais sejam todo-poderosas e organizem unilateralmente o “definhamento do Estado” nem que o Estado seja um simples “instrumento” nas mãos das multinacionais, segundo um esquema marxista ainda bastante difundido. Isso quer dizer que as políticas macroeconômicas são amplamente o resultado de codecisões públicas e privadas, embora o Estado mantenha certa autonomia em outros domínios – mesmo que essa autonomia tenha sido enfraquecida pela existência de poderes supranacionais e pela delegação de inúmeras responsabilidades públicas a um emaranhado de ONGs, comunidades religiosas, empresas privadas e associações.

Essa nova hibridação generalizada da chamada ação “pública” é o que explica a promoção da categoria de “governança” para pensar as funções e as práticas do Estado, em vez das categorias do direito público, a começar pela soberania. Ela remete a uma privatização da fabricação da norma internacional e a uma normatização privada necessária à coordenação das trocas de produtos e capitais. Ela não significa que o Estado se retira, mas que ele exerce seu poder de forma mais indireta, orientando tanto quanto possível as atividades dos atores privados e incorporando ao mesmo tempo os códigos, as normas e os padrões definidos por agentes privados (empresas de consulting, agências de classificação, acordos comerciais internacionais). Exatamente do mesmo modo como a gestão privada visa a fazer com que os assalariados trabalhem o máximo possível por meio de um sistema de incentivos, a “governança de Estado” visa oficialmente a fazer com que entidades privadas produzam bens e serviços de forma supostamente mais eficiente e outorga ao setor privado a capacidade de produzir normas de autorregulação no lugar da lei. O Estado espera dos atores privados nacionais ou transnacionais que ajam no sentido de uma coordenação das atividades internacionais. Trata-se, portanto, de um Estado que é muito mais “estrategista” do que produtor direto de serviços. Foi esse o sentido, por exemplo, do Acordo de Basileia II, que deixou a cargo das instituições financeiras internacionais a definição de seus próprios critérios de autocontrole.

O fracasso da Comissão de Basileia, brutalmente revelado pela crise financeira em 2007, é acima de tudo o fracasso dessa governança híbrida tipicamente neoliberal, que envolve tanto os poderes públicos como os grandes atores privados do sistema. Convém lembrarmos, em primeiro lugar, que o setor financeiro não foi deixado inteiramente por conta. A esse respeito, não devemos confundir ausência de regras com falha das regras. A concorrência mundial entre conglomerados bancários e entre bolsas de valores tornou progressivamente necessárias novas regras internacionais. Em 1974, num contexto marcado pelo fim do sistema monetário internacional e pelo aumento dos riscos ligados à flutuação das divisas[12], o Comitê de Basileia para o Controle Bancário foi criado sob a égide do Banco de Compensações Internacionais. Esse comitê foi encarregado de desenvolver o que se convenciou denominar “supervisão prudencial” do sistema financeiro. Tratava-se de um conjunto de normas relativas à concorrência generalizada das instituições de financiamento[13]. Essa nova regulação visava a obrigar os bancos não apenas a obedecer às regras legais, mas também a praticar um autocontrole mais rigoroso (controle interno) e a submeter-se a normas mais estritas de transparência em relação aos demais atores do mercado.

Dentro do edifício de supervisão do setor, a vocação do Comitê de Basileia é definir padrões que possam ser repetidos nas regulamentações nacionais. Por outro lado, as autoridades de tutela delegam a responsabilidade do controle interno aos bancos, exigindo que separem as atividades de risco das atividades de controle de risco. Paulatinamente, essas autoridades codificaram os procedimentos de controle interno em todos os níveis[14]. Em 1988, os acordos chamados de Basileia I estabeleceram normas para fundos próprios que logo se mostraram inadequadas ao aumento dos riscos operacionais e de mercado. No fim de 2006, após longas negociações em que os estabelecimentos bancários se valeram de todo o seu peso, chegou-se a novos acordos, os chamados Basileia II. Estes estabeleceram novas regras de solvência, métodos mais estritos de controle interno e obrigação de transparência na gestão. Esses “três pilares” de regulamentação completam os dispositivos nacionais já existentes. Nos Estados Unidos, após o caso Enron, a Lei Sarbanes-Oxley de 2002 tentou reforçar os mecanismos de vigilância dos estabelecimentos financeiros e, na França, a Lei de Segurança Financeira de 2003 aumentou a transparência das operações e criou uma instância de vigilância do mercado (a Autoridade do Mercado Financeiro).

Esse conjunto normativo público/privado revelou-se falho. Foi ele que permitiu, por intermédio da securitização de créditos e dos produtos derivados, o desenvolvimento de uma prática sistemática de transferência externa dos riscos assumidos pelos bancos. De fato, estes últimos conseguiram se esquivar das regras de índice de solvência estabelecidas pelos Acordos de Basileia II, nas próprias barbas das autoridades de tutela (as dos Estados Unidos, em primeiro lugar), transferindo os riscos, em mercados pouco regulamentados, para atores menos vigiados e menos controlados do que os próprios bancos (como os hedge funds e as empresas de seguro). O erro foi acreditar que a dispersão dos riscos por um número maior de detentores de risco de crédito seria um fator de estabilização do mercado financeiro internacional. As autoridades de tutela permitiram que se instaurasse, assim, um mecanismo de desestabilização sistêmica. Por intermédio de uma série de “veículos” de extrema complexidade, os riscos ligados aos créditos “tóxicos” se propagaram por uma longa cadeia de transferência, de modo que os que se encontravam no fim dela não eram mais capazes de avaliar a perda potencial representada pelos portfólios securitizados, ou melhor, contaminados[15]. Esse mecanismo de transferência de risco, baseado nas teorias otimistas da eficiência dos mercados[16], multiplicou automaticamente a tomada de risco, porque os bancos, quanto mais condições têm de transferir os riscos, mais afrouxam a vigilância.

A crise financeira põe em evidência de modo extraordinário os perigos inerentes à governamentalidade neoliberal quando esta leva a confiar, em pleno centro do sistema econômico capitalista, parte da supervisão prudencial aos próprios “atores”, com o pretexto de que eles sofrem diretamente as exigências da concorrência mundial e sabem se governar, buscando interesses próprios. Foram precisamente essas lógicas de hibridação que relaxaram a vigilância e conduziram a comportamentos altamente desestabilizadores. Entre os atores privados que desempenharam os papéis mais nocivos, encontramos em particular o pequeno número de agências de classificação encarregadas de avaliar os estabelecimentos bancários. Esses atores, responsáveis pela vigilância, função altamente estratégica, escapam a qualquer vigilância e apresentam graves problemas de conflito de interesses, na medida em que as avaliações são solicitadas e pagas pelas empresas classificadas. Evidentemente, as falhas do dispositivo de vigilância são muito diversas, mas as regras foram o fator decisivo, pois, além de terem sido elaboradas e implementadas pelos próprios “vigiados”, referiam-se apenas aos estabelecimentos considerados individualmente, o que as tornava inoperantes em caso de crise sistêmica. O que está em questão, portanto, é a capacidade dos atores privados de autodisciplinar-se, considerando-se os interesses não apenas do seu estabelecimento, mas também do próprio sistema[17].

Encontramos essa mesma lógica de regulação indireta e híbrida em todos os processos de especificação técnica que são necessários ao comércio mundial e foram deixados a cargo da negociação dos profissionais de cada setor. Essa evolução remete, obviamente, às próprias transformações econômicas e financeiras. A concorrência se exacerbou de tal maneira que conduziu a reações diversas em matéria de produção e marketing, como a acentuação da “diferenciação dos produtos” como modalidade privilegiada de competição entre as empresas. A concorrência oligopolista entre grandes grupos mundiais levou-os a aliar-se no campo de “pesquisa e desenvolvimento” (P&D) com o intuito de compartilhar recursos e dividir riscos. Dentro dessa configuração, os Estados não têm mais do que um papel de subordinado ou assistente e interiorizam suficientemente esse papel para não ter mais condições de definir políticas sociais, ambientais ou científicas sem a concordância – ainda que tácita – dos oligopólios.

O Estado não se retira[18], mas curva-se às novas condições que contribuiu para instaurar. A construção política das finanças globais é a melhor demonstração disso[19]. É com os recursos do Estado, e com uma retórica em geral muito tradicional (o “interesse nacional”, a “segurança” do país, o “bem do povo” etc.), que os governos, em nome de uma concorrência que eles mesmos desejaram e de uma finança global que eles mesmos construíram, conduzem políticas vantajosas para as empresas e desvantajosas para os assalariados de seus países. Quando se fala do peso crescente dos organismos internacionais ou intergovernamentais, como o FMI, a Organização Mundial do Comércio (OMC), a OCDE ou a Comissão Europeia, esquece-se de que os governos que fingem curvar-se passivamente a auditorias, relatórios, injunções e diretivas desses organismos são também ativamente parte interessada nisso. É como se a disciplina neoliberal, que impõe retrocessos sociais a grande parte da população e organiza uma transferência de renda para as classes mais afortunadas, supusesse um “jogo de máscaras” que possibilita que se jogue sobre outras instâncias a responsabilidade pelo desmantelamento do Estado social e educador mediante a instauração de regras de concorrência em todos os domínios da existência.

As grandes instituições internacionais criadas após a Segunda Guerra Mundial (FMI, Banco Mundial, Gatt) constituíram os principais vetores de imposição da nova norma neoliberal. Elas substituíram os Estados Unidos e a Grã-Bretanha sem grandes resistências. Para isso, as instituições de Bretton Woods tiveram de redefinir seu papel e, ao mesmo tempo, abrir espaço para novas instituições e agências não governamentais. A ascensão da OMC é um indício importante. Seria um erro vê-la apenas como um instrumento das regras universais de mercado, isolada das pressões e dos interesses estatais e oligopolistas, e, talvez mais ainda, considerá-la o principal defensor dos países do Sul, em virtude do deslocamento do conteúdo das negociações comerciais para as prioridades relacionadas ao desenvolvimento. A lógica dos interesses oligopolistas se manifesta de forma mais aberta sobretudo no campo da inovação tecnológica. Nas negociações da OMC, os países do Norte mostram-se mais propensos a servir aos interesses dos oligopólios dos setores que apresentam grandes gastos com P&D, permitindo que estendam direitos de propriedade intelectual. Por intermédio das instituições internacionais, os grupos de pressão dos oligopólios ligados ao conhecimento organizam a proteção da renda proveniente da inovação para recuperar os frutos das despesas privadas com P&D e contribuem para o confinamento dos países em desenvolvimento no subdesenvolvimento.

Outra inflexão na ação dos governos, ainda mais diretamente ligada à norma da concorrência mundial, diz respeito ao recentramento da intervenção do Estado nos fatores de produção.

O Estado tem agora uma responsabilidade eminente no que se refere tanto ao apoio logístico e de infraestrutura aos oligopólios quanto à atração desses grandes oligopólios para o território administrado por ele. Isso diz respeito a domínios muito diversos: pesquisa, universidade, transportes, incentivos fiscais, ambiente cultural e urbanização, garantia de mercado (mercados públicos abertos às pequenas e às médias empresas nos Estados Unidos). Em outras palavras, a intervenção governamental toma a forma de uma política de fatores de produção e ambiente econômico. O Estado concorrencial não é o Estado árbitro de interesses, mas o Estado parceiro dos interesses oligopolistas na guerra econômica mundial. É o que se vê claramente no nível da política comercial. O próprio sentido de livre-câmbio muda. Em consequência da fragmentação dos processos produtivos, os produtos exportados por uma economia contêm uma proporção cada vez maior de componentes importados. Por isso, os Estados são levados a substituir o protecionismo tarifário por um protecionismo estratégico, o protecionismo dos produtos por uma lógica de subvenção dos fatores de produção.

A norma da concorrência generalizada pressiona os Estados, ou outras instâncias públicas, a produzir condições locais ótimas de valorização do capital, o que poderíamos chamar, não sem certo paradoxo, de “bens comuns do capital”. Esses bens são os frutos dos investimentos em infraestrutura e instituições necessárias para atrair capitais e assalariados qualificados num regime de concorrência exacerbada. Estrutura de pesquisa, fisco, universidades, meios de circulação, redes bancárias, zonas de residência e lazer para executivos são alguns desses bens necessários à atividade capitalista, o que tende a mostrar que a condição da mobilidade do capital é a implantação por parte do Estado de infraestruturas fixas e imóveis.

O Estado já não se destina tanto a assegurar a integração dos diferentes níveis da vida coletiva quanto a ordenar as sociedades de acordo com as exigências da concorrência mundial e das finanças globais. A gestão da população muda de método e significado. Enquanto no período fordista a ideia predominante era, segundo a expressão consagrada, a “harmonia entre eficácia econômica e progresso social”, hoje, no contexto de um capitalismo nacional, essa mesma população é percebida apenas como um “recurso” à disposição das empresas, segundo uma análise em termos de custo-benefício. A política que ainda hoje é chamada de “social” por inércia semântica não se baseia mais em uma lógica de divisão dos ganhos de produtividade destinada a manter um nível de demanda suficiente para garantir o escoamento da produção em massa: ela visa a maximizar a utilidade da população, aumentando sua “empregabilidade” e sua produtividade, e diminuir seus custos, com um novo gênero de política “social” que consiste em enfraquecer o poder de negociação dos sindicatos, degradar o direito trabalhista, baixar o custo do trabalho, diminuir o valor das aposentadorias e a qualidade da proteção social em nome da “adequação à globalização”. Portanto, o Estado não abandona seu papel na gestão da população, mas sua intervenção não obedece mais aos mesmos imperativos nem aos mesmos motivos. Em vez da “economia do bem-estar”, que dava ênfase à harmonia entre o progresso econômico e a distribuição equitativa dos frutos do crescimento, a nova lógica vê as populações e os indivíduos sob o ângulo mais estreito de sua contribuição e seu custo na competição mundial.

As condições em que os grupos sociais entram em conflito também mudam com o governo empresarial. A racionalidade neoliberal marca o fim do regime “inclusivo” da oposição de classes instituído nas democracias liberais após a Segunda Guerra Mundial. A chamada “integração” dos sindicatos, correlata da gestão social-democrata, fazia do conflito de interesses um dos motores da acumulação do capital e da luta de classes um fator funcional do crescimento. A escansão clássica do conflito sindicalmente enquadrado, da negociação e do “avanço social” que amiúde resultava deles, era a própria manifestação dessa inclusão conflituosa. Isso não ocorre mais quando a população é duplamente considerada sob o ângulo privilegiado do “recurso humano” e do “encargo social”. A única forma admissível de relação com os sindicatos e, de modo mais geral, com os assalariados é o “acordo”, a “convergência”, o “consenso” em torno dos objetivos supostamente desejáveis para todos. Qualquer um que se recusasse a respeitar os princípios administrativos, qualquer sindicato que não aceitasse de imediato os resultados a que necessariamente deve levar o “acordo” e, com isso, se recusasse a agir em “concordância” com os governantes seria excluído do “jogo”. O novo regime de governo admite apenas “stakeholders”, “partes interessadas”, que têm interesse direto no sucesso do negócio em que entraram espontaneamente. O fato mais sintomático é, sem dúvida, a unidade obrigatória do discurso empregado. Enquanto na regulação antiga das relações sociais tratava-se de conciliar lógicas que eram consideradas, de saída, diferentes e divergentes, o que implicava procurar um “compromisso”, na nova regulação os termos do acordo são estabelecidos de imediato e de uma vez por todas, porque ninguém pode ser inimigo da eficácia e do bom desempenho. Apenas as modalidades práticas, os ritmos e certos ajustes secundários ainda podem ser objeto de discussão. Sabe-se que esse é o princípio das “reformas corajosas”, em particular das que visam a degradar a situação geral do maior número de indivíduos. Assim, podemos ver que as formas dos conflitos estão fadadas a mudar nas empresas, nas instituições, na sociedade como um todo. Ocorrem duas transformações importantes. De um lado, a lógica gerencial unifica os campos econômicos, sociais e políticos e cria as condições para uma luta transversal; de outro, desconstruindo sistematicamente todas as instituições que pacificavam a luta de classes, essa lógica “terceiriza” o conflito e dá a ele um caráter de contestação global do Estado empresarial e, por conseguinte, do novo capitalismo.

Governança mundial sem governo mundial

Instaura-se uma forma inédita de “poder mundial”, adaptado às características da economia globalizada. A competição econômica toma o aspecto de um confronto entre Estados que fazem alianças entre si e se coligam a empresas cuja rede de ação é cada vez mais globalizada. O chamado “mercado mundial” é um vasto entrelaçamento movediço de coalizões entre entidades privadas e públicas que se valem de todos os meios e os registros (financeiros, diplomáticos, históricos, culturais, linguísticos etc.) para promover os interesses misturados dos poderes estatais e econômicos. Devemos acrescentar ao cenário o papel crescente das entidades públicas subestatais, como as regiões ou as cidades, que aproveitam certa margem de liberdade para praticar outras formas de concorrência entre si a fim de obter vantagens.

Uma das características principais desse período não é o “fim dos Estados-nações”, segundo Kenichi Ohmae[20], mas a relativização de seu papel como entidade integradora de todas as dimensões da vida coletiva: organização do poder político, elaboração e difusão da cultura nacional, relações entre classes sociais, organização da vida econômica, nível de emprego, organização local etc. Os Estados tendem a delegar grande parte dessas funções às empresas privadas, que com frequência já são globalizadas ou obedecem a normas mundiais. Entregam a elas parte da tarefa de garantir o desenvolvimento socio-econômico do país, como a responsabilidade pela “cultura de massa” à mídia privada. Assistimos, por conseguinte, a uma privatização parcial das funções de integração, funções que não correspondem às mesmas exigências e temporalidades, conforme dependam da competência de empresas privadas ou das prerrogativas do poder público. É o caso do emprego, já que os subsídios às empresas asseguram apenas precariamente a missão de desenvolvimento e organização do território em longo prazo. É o caso também da “cultura” ou do ensino, uma vez que as empresas privadas não buscam os mesmos objetivos que aqueles classicamente atribuídos ao Estado.

Essa situação cria um complexo de interesses públicos e privados que mina a antiga divisão entre os interesses particulares e o interesse geral. Não se trata apenas do fato de que o Estado sofre uma erosão em suas margens de manobra; trata-se, sobretudo, do fato de que o Estado se põe a serviço de interesses oligopolistas específicos e não hesita em delegar a eles uma parte considerável da gestão sanitária, cultural, turística ou até mesmo “lúdica” da população.

Diante dessa situação inédita, não há ainda à vista nenhum esboço de governo mundial que tenha como vocação proteger as sociedades nacionais e locais contra a concorrência a que se entregam os oligopólios mundiais, assim como não há, aliás, um governo europeu que proteja as populações contra o dumping social e fiscal dos países-membros da União Europeia. Não existe uma regulação das trocas, nem em matéria de condições sociais nem em matéria de fisco nem em matéria monetária, além da zona do euro. É escusado dizer que nenhuma instância mundial soube prevenir as crises financeiras e proteger a economia e a sociedade contra a instabilidade crescente do capitalismo predominantemente financeiro.

Obviamente, esse contraste entre a facilidade de circulação do capital e a debilidade das instituições de regulação é atenuado em parte pelo papel crescente que se dá às instituições internacionais, como o FMI, o Banco Mundial, a OMC, o G8 ou o G20, que garantem um mínimo de coordenação em nível mundial. A estrutura mundial do poder tem cada vez menos a ver com a antiga representação do “direito dos povos” (o antigo jus gentium) da época do florescimento das soberanias nacionais. Essa transformação alimenta a tese pós-moderna da morte da soberania do Estado e do surgimento de novas formas de poder mundial[21]. Segundo essa tese, há um deslocamento do poder do Estado para o poder múltiplo e fragmentado de agências e órgãos “híbridos”, meio públicos e meio privados. Se é real essa concessão do trabalho de codificação das normas às empresas, como bem recordamos, convém não esquecer que a transformação em curso é mais global. De fato, são os princípios e os modos da ação pública que mudam com o domínio crescente do modelo da empresa, inclusive nas “funções soberanas” mais clássicas. Naomi Klein recorda que o governo Bush tirou partido do contexto de “guerra contra o terrorismo” para terceirizar, sem o menor debate público, “grande parte das funções mais delicadas do governo, da prestação de cuidados médicos aos soldados aos interrogatórios de prisioneiros, passando pela coleta e pela análise profunda de dados (data mining) sobre cada um de nós”. Ainda segundo ela, o governo age “não como o administrador de uma rede de fornecedores, mas como um investidor de capital de risco endinheirado que fornece ao complexo o capital inicial de que este necessita e torna-se o principal cliente de seus serviços”[22]. A extensão do campo da “governança”, portanto, não é apenas uma trama de relações múltiplas com atores não estatais ou simplesmente o sinal do declínio do Estado-nação, ela significa, mais profundamente, uma mudança do “formato” e do papel do Estado, que é visto agora como uma empresa a serviço das empresas[23]. É, sem dúvida, nessa transformação do Estado que se pode apreender melhor a nova articulação entre a norma mundial da concorrência e a arte neoliberal de governar os indivíduos.

O modelo da empresa

O intervencionismo neoliberal não visa a corrigir sistematicamente os “fracassos do mercado” em função de objetivos políticos considerados desejáveis para o bem-estar da população. Ele visa, em primeiro lugar, a criar situações de concorrência que supostamente privilegiam os mais “aptos” e os mais fortes e a adaptar os indivíduos à competição, considerada a fonte de todos os benefícios. Não que o mercado em si seja sempre preferível à gestão pública; o fato é que se supõe que os “fracassos do Estado” são mais prejudiciais que os do mercado. E também porque se considera que as tecnologias do management privado são remédios mais eficazes contra os problemas causados pela gestão administrativa do que as regras do direito público.

Desse ponto de vista, o exemplo britânico é notável. Como frisam Jack Hayward e Rudolf Klein:

"o que começou como retorno a uma opinião que lembrava o século XVIII, segundo a qual “governar melhor significa governar menos”, tornou-se cada vez mais uma busca por eficácia gerencial baseada na substituição dos métodos da administração pública por aqueles das empresas privadas (embora pouco renomadas por sua eficácia na Grã-Bretanha).[24]"

Para os novos conservadores, não bastava pôr freios automáticos ao crescimento dos gastos públicos; era preciso mudar profundamente o modo de gestão da ação pública. O thatcherismo iniciou um movimento intenso de recentralização administrativa à custa das coletividades locais – seguindo uma tendência nitidamente contrária aos princípios doutrinais de certos neoliberais favoráveis à descentralização do poder – e, ao mesmo tempo, uma reforma gerencial dos modos de gestão. A função pública foi dividida em agências independentes, com objetivos específicos; estas eram regidas por normas estabelecidas pelo “centro de comando”, expostas à concorrência e submetidas às decisões “soberanas” dos consumidores. Tratava-se de substituir uma administração que obedecia aos princípios do direito público por uma gestão regida pelo direito comum da concorrência.

Nos anos 1980, a prioridade é da empresa, vetor de todos os progressos, condição da prosperidade e, acima de tudo, provedora de empregos. Esse culto à empresa e ao empreendedor não é consequência apenas de lobbies patronais e doutrinários. Ele é celebrado todos os dias e em quase todos os países pelas elites administrativas, pelos especialistas em gestão, pelos economistas, pelos jornalistas submissos e pelas autoridades políticas. A homogeneização ideológica conjuga-se com a internacionalização das economias – a competitividade torna-se prioridade política no contexto da “abertura”. Em face da empresa ataviada com todas as qualidades, o Estado de bem-estar é apresentado como um “peso”, um freio ao crescimento e uma fonte de ineficácia[25]. A palavra de ordem thatcheriana, “recuar as fronteiras do Estado de bem-estar”, deu origem a um conjunto de crenças e práticas – o gerencialismo – que se apresenta como remédio universal para todos os males da sociedade, reduzidos a questões de organização que podem ser resolvidas por técnicas que procuram sistematicamente a eficiência. Evidentemente, esse gerencialismo reserva um lugar eminente ao administrador e a seu saber, fazendo dele um verdadeiro herói dos novos tempos[26].

O postulado dessa nova “governança” é que a gestão privada é sempre mais eficaz que a administração pública; que o setor privado é mais reativo, mais flexível, mais inovador, tecnicamente mais eficaz, porque é mais especializado, menos sujeito que o setor público a regras estatutárias. Vimos anteriormente que, para os neoliberais, o principal fator dessa superioridade reside no efeito disciplinador da concorrência como estímulo ao bom desempenho. É essa hipótese que se encontra no princípio de todas as medidas que visam a “terceirizar” para o setor privado ora serviços públicos inteiros, ora segmentos de atividades, incrementar as relações de associação contratual com o setor privado (por exemplo, na forma de “parcerias público-privadas”) ou, ainda, criar vínculos sistemáticos de subcontratação entre administrações públicas e empresas. O Estado “regulador” é aquele que mantém com empresas, associações ou agências públicas que possuam certa autonomia de gestão relações contratuais para a realização de determinados objetivos[27].

O conservadorismo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos mudou de face e quis aparecer como uma “revolução” ou um “rompimento” com o passado em nome dos valores da modernidade. A nova direita fez questão de se apresentar como uma força anticonservadora e “antissistema”, detentora do monopólio da mudança e da reforma, aproveitando-se sistematicamente do descontentamento das frações populares por meio de um populismo antielite e antiestado, em geral com matizes xenofóbicos. Uma das constantes da retórica da nova direita consistiu em mobilizar a opinião pública contra os “desperdícios”, os “abusos” e os “privilégios” de todos os parasitas que povoam a burocracia e vivem à custa da população honesta e trabalhadora. O gerencialismo tornou-se, assim, a “face aceitável do pensamento da nova direita sobre o Estado”, como observa Christopher Pollitt. Apresentando essa reforma como uma operação cirúrgica, ideologicamente neutra, benéfica a todos, a nova direita recebeu apoio muito além do campo conservador e impregnou-se largamente nas representações da esquerda moderna, que, exagerando a “modernidade” da qual desejava ser a legítima encarnação, quis mostrar que o neoliberalismo de esquerda não era menos “audacioso” que o de direita. O aspecto “técnico” e “tático” da nova gestão pública permitiu ocultar o fato de que o essencial era introduzir as disciplinas e as categorias do setor privado, intensificar o controle político em todo o setor público, reduzir tanto quanto possível o orçamento, suprimir o maior número possível de agentes públicos, reduzir a autonomia profissional de algumas profissões (médicos, professores, psicólogos etc.) e enfraquecer os sindicatos do setor público – em resumo, fazer na prática a reestruturação neoliberal do Estado[28].

A hipótese do ator egoísta e racional

A reestruturação da ação pública repousa sobre o postulado de que os funcionários públicos, assim como os usuários dos serviços públicos, são agentes econômicos que respondem apenas à lógica do interesse pessoal. Aumentar a eficácia da ação pública consistirá em fazer valer as imposições e os incentivos que orientarão a maneira como os indivíduos vão se conduzir, fazendo com que as decisões que serão conduzidos a tomar aliviem os custos e maximizem os resultados. A corrente do Public Choice, já mencionada, teve um papel pioneiro nesse tipo de metodologia quando aventou a hipótese de que nada provaria a priori que as escolhas dos eleitores e as decisões dos funcionários públicos resultariam em medidas ótimas para a população. Por sua vez, um grande número de trabalhos produzidos por economistas da Escola de Chicago procurou mostrar que os programas sociais e as regulamentações estavam longe de alcançar os resultados esperados por seus promotores, em especial em razão de efeitos perversos ou custos ocultos que não haviam sido levados em consideração em suas decisões.

Essas pesquisas iam ao encontro dos primeiros passos da avaliação quantitativa das decisões públicas dados por Bentham em Teoria das penas e das recompensas. Assim como as análises benthamianas, elas repousavam sobre a ideia de que todos os agentes envolvidos (beneficiários, pagantes, funcionários públicos) perseguiam interesses específicos e adotavam uma conduta racional para satisfazê-los, como qualquer empresa ou consumidor em ação no mercado[29]. Além disso, fundamentando sua análise na lógica do cálculo individual, essas mesmas pesquisas pretendiam mostrar que alguns “conseguem mais por seu dinheiro” do que outros. Assim, uma literatura abundante, visando a deslegitimar o Estado de bem-estar e as políticas redistributivas, dedicou-se a mostrar que esses dispositivos tendiam a ter efeitos contrários à igualdade que se desejava obter.

De modo geral, a aplicação do cálculo de custo-benefício tende a mostrar que o “consumidor” paga sempre mais caro por um bem público do que por um bem privado e que também paga mais caro por um bem privado cuja produção é regulamentada do que por um bem privado cuja produção não é regulamentada. Para além dessa vontade demonstrativa, porém, esse tipo de análise da “produção política” é importante pelo tipo de concepção do Estado que supõe. Este último diz respeito à análise econômica comum somente na medida em que é concebido a priori como um agente tal qual outro qualquer dentro do sistema econômico, um agente que busca seus próprios objetivos e deve responder à demanda com uma oferta, cuja produção é comparável à dos outros agentes econômicos privados.

Essa interpretação neoclássica da ação pública apareceu como relativamente nova na história oficial da teoria econômica. Ela considera o Estado não mais como uma entidade “exógena” à ordem do mercado, que deve respeitar limites externos, mas como uma entidade inteiramente integrada no espaço das trocas, no sistema de interdependência dos agentes econômicos.

Partir da hipótese de que todo agente público é um ser que fará seu interesse particular passar à frente do interesse geral não é uma coisa nova. Dissemos antes que o primeiro na história da teoria política a fazer disso um princípio de análise e reforma foi Bentham. Hoje, se não voltarmos a essa fonte essencial, não compreenderemos as relações entre a promoção do mercado, de um lado, e os princípios da “nova gestão”, de outro. Bentham tenta racionalizar a ação pública para aumentar sua eficácia, utilizando mecanismos de controle e incentivo estritos e refinados, cujo objetivo é orientar o comportamento dos indivíduos num sentido favorável ao interesse geral, ou ao menos diminuir a divergência entre o interesse de cada agente e o que é coletivamente esperado dele em termos de serviços úteis.

Entendendo que o Estado deve intervir na economia e na sociedade diretamente pela legislação e indiretamente para gerir e vigiar a população, a fim de orientar os interesses e as ações na direção mais adequada para assegurar “a maior felicidade para o maior número de pessoas”, Bentham tentou refletir, durante toda a sua longa carreira de tecnólogo e pensador, acerca dos dispositivos coercitivos e incitativos que possibilitam forçar os agentes públicos a unir interesse particular e interesse coletivo, segundo o “princípio de junção do interesse e do dever”[30]. A originalidade de Bentham – que faz dele um dos precursores ignorados do que desde então foi denominado a “nova gestão pública” – deve-se ao fato de que ele não se contenta em apelar para o mercado a fim de lutar contra os desperdícios burocráticos. Ele deseja descobrir meios substitutos de controle dos agentes públicos que tenham a mesma eficácia do mercado sobre os indivíduos que participam dele. O objetivo é eliminar todos os abusos, as incompetências, as vexações, as delongas, as opressões e as fraudes que os administrados sofrem nas mãos de políticos e funcionários públicos espontaneamente corrompidos por seu “sinister interest”, contrário ao interesse do maior número de indivíduos. Em muitos de seus textos, sobretudo em Código constitucional, escrito nos anos 1820, Bentham pinta um vasto quadro de um aparelho burocrático inteiramente ordenado pelo princípio de controle da conformidade das ações dos funcionários públicos com o interesse do público[31].

Por esse conjunto de dispositivos, a intervenção pública corresponderá ao objetivo governamental de “maior felicidade para o maior número de pessoas”. Com relação à organização do Estado, esse objetivo se especificará por meio da aplicação de dois princípios subordinados: o princípio de maximização da aptidão dos agentes públicos e o princípio de minimização do gasto público (Official aptitude maximized, expense minimized). O princípio de utilidade permite pensar ao mesmo tempo a eficácia das ações privadas espontâneas sobre o mercado e a necessidade de controle rígido das atividades dos que são capazes de fazer seu interesse privado passar à frente do interesse coletivo. De fato, a primazia do interesse pessoal conduz a dois caminhos que não são tão contraditórios como poderiam parecer: de um lado, dar a maior liberdade possível aos agentes que perseguem seu próprio objetivo no mercado; de outro, exercer controles estritos sobre todos os que deveriam trabalhar para o interesse coletivo, mas, quando não são suficientemente vigiados, infalivelmente são tentados a trabalhar para sua própria satisfação. A confiança que se tem em uns – relativa, é claro – é acompanhada de uma desconfiança absoluta em relação a outros. Portanto, o mesmo princípio, o do interesse, leva à descoberta de dispositivos normativos que produzirão na esfera pública resultados tão desejáveis quanto o mercado na esfera privada[32]. Para agir contra os abusos de poder, que são doenças estruturais de qualquer relação política, Bentham propõe como solução universal a transparência, que impede os funcionários públicos e os representantes eleitos de trabalhar para o próprio benefício ou de desperdiçar o dinheiro público. Bentham é um dos que instituíram como regra de ouro o controle dos agentes públicos pelo público. Invertendo o dispositivo panóptico, em que um pequeno número de inspetores podia vigiar um grande número de indivíduos, ele descreve disposições arquitetônicas em seu Código constitucional que permitem que o público, instalado em galerias em volta dos espaços onde se realiza o trabalho administrativo, observe por trás de espelhos falsos a intensidade do trabalho dos funcionários. Como na prisão panóptica, basta que o agente público acredite estar continuamente sob vigilância para que o dispositivo produza o efeito desejado. Por meio dessa vigilância, a esperança de ganhos obtidos com comportamentos criminosos é contrabalançada na mente do agente sob observação pela grande probabilidade de punição. “O bom governo depende da arquitetura mais do que se imaginava até o presente”, escreve Bentham[33]. Todo o edifício burocrático benthamiano é concebido como um sistema de controle pelo qual tudo deve ser ordenado: a definição precisa dos postos, das funções e das competências requeridas, o estabelecimento de normas nas relações entre os funcionários públicos e o público, a manutenção rigorosa e exaustiva dos livros contábeis, a publicação regular de relatórios de atividade, o regime permanente de inspeção dos serviços e, acima de tudo, o controle da opinião pública sobre a ação dos agentes do Estado.

Mas a vigilância não é tudo. Também é preciso saber empregar os incentivos positivos que estimulam o cumprimento do dever. Em Teoria das penas e das recompensas, Bentham imputava à igualdade dos salários a moleza e a ociosidade que imperavam nas repartições públicas. Para assegurar a união do interesse com o dever, é preciso transformar o salário numa recompensa proporcional à assiduidade e à forma como o serviço é prestado, o que é particularmente recomendado no caso da remuneração do responsável pelo serviço. Nos hospitais ou nas casas correcionais, nos locais de trabalho, no Exército e na Marinha, o responsável será punido ou recompensado conforme o número de feridos, doentes ou mortos, de modo que os interesses dele estejam de acordo com os que lhe foram confiados.

As análises de Bentham antecipam as do Public Choice na medida em que partem do mesmo postulado do agente calculador que sempre se guia pelo interesse pessoal. No entanto, como veremos adiante, há uma grande diferença em relação às análises do Public Choice no que se refere ao papel que se atribui aos mecanismos da democracia. Em todo caso, não compreenderíamos as relações entre as duas posições se não as situássemos naquilo que constitui propriamente a governamentalidade fundamentada sobre os interesses, se não víssemos que as práticas de mensuração e incentivo que visam a guiar as condutas são parte integrante da forma de governar os homens nas sociedades de mercado. A mensuração dos efeitos – o que hoje é chamado de avaliação – não é alheia à prática governamental moderna. Ela não é um acréscimo tardio; ao contrário, ela a caracteriza desde o início, como indica a atenção que a tecnologia do utilitarismo benthamiano lhe dedica. Certamente foi preciso tempo para que essa dimensão da avaliação da eficácia adquirisse toda a amplitude que hoje se reconhece nela e que aparece como o modo “evidente” de regulação da atividade pública. Desse ângulo, a prática neoliberal é um poderoso elemento revelador das lentas mutações que afetaram os modos de governo desde o século XVIII.

O Public Choice e a nova gestão pública

O consenso em torno de uma reforma de inspiração neoliberal da ação pública deriva da crença no fim da “era da burocracia”[34]. Em outras palavras, a reestruturação da ação governamental a que assistimos em graus e ritmos diferentes conforme o país não deve ser interpretada segundo seus critérios (os três “e”: eficácia, economia, eficiência), mas segundo a lógica antropológica da qual ela participa e cujos principais teóricos foram os economistas do Public Choice, em particular James Buchanan e Gordon Tullock.

A Escola do Public Choice, cuja sede histórica é a Universidade de Virgínia, em Charlottesville, produziu uma análise do governo que focaliza não a natureza dos bens que ele produz, mas a forma como ele os produz. Aplicando a teoria econômica às instituições coletivas, a Escola do Public Choice considera que, se supomos em todos os domínios a unidade do funcionamento humano, não há razão para não realizarmos uma homogeneização a um só tempo teórica e prática do funcionamento do Estado e do mercado. O funcionário público é um homem igual aos outros, um indivíduo calculador, racional e egoísta, que procura maximizar seu interesse pessoal em detrimento do interesse geral. Apenas os interesses privados têm realidade e significado para os agentes públicos, apesar de seus protestos virtuosos. O Estado não maximiza o interesse geral, os agentes públicos é que buscam na maior parte do tempo seus interesses particulares à custa de um desperdício social considerável[35]:

"Enquanto homens comuns, semelhantes a todos os outros, os burocratas tomarão a maioria de suas decisões (porém nem todas) em função do que lhes favoreça pessoalmente, não considerando o benefício que terá com isso a sociedade como um todo. Podem ocasionalmente sacrificar seu bem-estar por um interesse mais geral, como faz às vezes qualquer mortal, mas devemos esperar que essa atitude seja excepcional.[36]"

O burocrata tenta aumentar os créditos de seu serviço, o número de seus subordinados ou subir no escalão[37]. Definindo grosseiramente uma repartição pública como uma organização que não visa ao lucro e cujos agentes não tiram seu sustento da venda de um produto, William Niskanen afirma que a função de utilidade do burocrata está ligada ao aumento do orçamento de sua repartição. Se a empresa privada procura maximizar o lucro, a repartição pública procura maximizar o orçamento[38]. Tullock diz a mesma coisa:

"Via de regra, o burocrata verá crescerem suas chances de promoção, seu poder, sua influência, o respeito público e até mesmo melhorarem as condições materiais de seu escritório, quando sua administração aumenta. [...]

Se a burocracia como um todo se expande, quase todo burocrata que faça parte dela ganhará alguma coisa com isso, mais ainda se a subdivisão em que trabalha se expande.[39]"

A essa tendência automática ao crescimento da oferta corresponde uma tendência à expansão da demanda. Como o Estado social suscita múltiplas demandas de intervenção, a burocracia parasitária incha. Cria-se uma espécie de grande aliança entre os funcionários públicos e os membros das classes médias, que são os que mais aproveitam os serviços públicos, acarretando uma inflação do pessoal e do gasto público. Os que se beneficiam disso organizam-se em grupos de pressão internos (os burocratas) ou externos (os lobbies), em detrimento dos contribuintes atomizados. Esse fenômeno é reforçado pelo comportamento dos parlamentares, que tentam “comprar” os votos decisivos das frações mobilizadas do eleitorado e tirar proveito do apoio de um funcionalismo cada vez mais numeroso. Quanto mais burocratas há entre os eleitores, mais há eleitores favoráveis aos impostos e às despesas públicas. O resultado é que a burocracia tende a “superproduzir” serviços em relação às necessidades reais da população. Aproveitando-se de recursos abundantes que não são devolvidos à coletividade, a administração pública os gasta custe o que custar para justificar sua existência e seu crescimento. Como dizia Jean-Jacques Rosa, “o mercado político é um lugar onde se trocam votos por promessas de intervenções públicas”[40]. Essa crítica da burocracia deduz do postulado do egoísmo racional dos agentes o conjunto dos efeitos negativos a que conduz a ausência de concorrência na produção de serviços públicos[41].

Niskanen propõe como principal alavanca da mudança estrutural a competição entre repartições na oferta de serviços semelhantes para quebrar o monopólio público e aumentar a eficiência da produção[42]. Também sugere modificações nos incentivos ao trabalho, como a introdução de um sistema de lucro pessoal baseado no pagamento aos chefes de departamento de uma parte da diferença entre o orçamento alocado e os custos efetivos ou, ainda, um sistema de promoções cuja rapidez seria proporcional à redução do orçamento gasto. Os objetivos normativos do Public Choice são explícitos:

"Em geral, as exigências que pesam sobre o comportamento de um indivíduo no mercado são mais “eficazes” do que as que os empregados do Estado enfrentam, de modo que os indivíduos no mercado, procurando a satisfação do próprio bem-estar, servem bem melhor ao bem-estar de seus concidadãos do que os homens que trabalham para o governo. Na verdade, um dos objetivos da “novidade econômica” é elevar o coeficiente de “eficácia” do governo por meio de reformas a fim de aproximá-lo do coeficiente do mercado.[43]"

Ainda que esse coeficiente nunca seja atingido, já que, “mesmo numa situação de concorrência, na prática as administrações públicas nunca se mostram tão eficazes quanto as sociedades privadas numa indústria competitiva”, é possível esperar uma melhora da situação por diferentes alavancas[44]. A primeira, evidentemente, é fazer serviços públicos e privados concorrerem entre si, dando a sociedades privadas contratadas a possibilidade de contribuir para o fornecimento de serviços que até então eram fornecidos exclusivamente pela administração pública. Mas isso também pode ser feito pela concorrência entre os próprios serviços burocráticos. Como explica Tullock, basta dividir a administração pública “em setores pequenos, com orçamentos separados”, e comparar os desempenhos[45].

Como se vê, a análise dos economistas da Escola de Virgínia concorda em muitos pontos com o diagnóstico e as soluções de Bentham. Em ambos os casos, trata-se de criar incentivos positivos ou negativos, similares aos do mercado, para guiar o interesse do funcionário. Contudo, há uma grande diferença quanto à concepção da democracia: no Bentham radical dos anos 1820, é pelo controle estrito dos eleitores sobre os representantes e os funcionários públicos que se poderá pôr em prática o “princípio de junção do interesse e do dever”; o Public Choice, recuperando as críticas de Hayek, é um movimento hostil à democracia representativa, que é vista como o principal fator de crescimento da burocracia. Num regime democrático, os cidadãos não podem exercer um controle real sobre os burocratas e tentam aliar-se a eles quando conseguem se organizar. De sua parte, os parlamentares incentivam a superprodução burocrática para serem reeleitos. E os pobres, que não pagam impostos, usam e abusam de um poder eleitoral maior do que os ricos, menos numerosos, para fazer estes últimos arcarem com a maior parte do peso dos impostos. É nesse sentido que James Buchanan, em Les limites de la liberté (1975), título sintomático, defende a supressão do Estado de bem-estar e sua substituição por um novo contrato social em que os ricos pagariam uma compensação financeira aos pobres em troca da supressão dos auxílios recebidos. Buchanan milita mais amplamente por uma “revolução constitucional” que obrigaria os governos a respeitar limites de endividamento, déficit e nível de impostos[46]: “A democracia pode se tornar seu próprio Leviatã se não lhe forem impostos limites constitucionais e se não se fizer com que estes sejam respeitados”[47]. O objetivo dessa revolução seria “reconstruir os fundamentos da própria ordem constitucional”, uma medida radical indispensável diante dos impasses do pragmatismo tradicional dos norte-americanos.

Tocamos aqui no cerne dos novos modos de governo da racionalidade neoliberal, e um de seus grandes princípios pode ser resumido pela frase benthamiana: “The more strictly we are watched, the better we behave” [“Quanto mais estritamente somos vigiados, melhor nos comportamos”][48]. O postulado da conduta inerentemente interesseira dos agentes públicos leva à reforma dos meios de controlá-los e guiá-los. Essa vigilância, que tomou o aspecto concreto e difuso de uma avaliação contábil de todos os atos dos agentes públicos e dos usuários, é o princípio implícito da reforma do setor público que é apresentada como a única possível. Essa reforma é inspirada em práticas de gestão privada baseada na eficiência[49]. Se é preciso privatizar tanto quanto possível, também é necessário interromper as lógicas que levaram ao aumento da burocracia e dos gastos públicos, isto é, as alianças de interesses entre grupos de pressão internos, lobbies externos e representantes eleitos. A empresa deve substituir a burocracia em tudo que for possível e, quando não o for, o burocrata deve conduzir-se o máximo possível como um empreendedor.

Vimos antes que, segundo os economistas do Public Choice, apenas os interesses privados possuem realidade e significado para os indivíduos maximizadores. A suposição de que todo agente público é calculista e oportunista encontra-se no princípio dos dispositivos de controle instaurados. Os modelos de referência da nova governança pública, procedentes da economia empresarial, trouxeram novamente à baila a questão da oposição e da conciliação entre os interesses do mandante e do executante. O modelo do principal-agent, surgido nos anos 1970, é empregado na literatura econômica para refletir sobre as relações entre níveis hierárquicos. Esse modelo se fundamenta em escolhas racionais: o principal é aquele que tem a autoridade, e o agente é aquele que se encarrega da execução. O problema é como assegurar, por dispositivos de vigilância e incentivo, que os mandatários (o agente) ajam de forma congruente com os interesses dos mandantes (o principal), sabendo que os indivíduos tentam maximizar sua utilidade e visam a tirar proveito do fato de que os contratos não especificam o conteúdo das tarefas que devem ser cumpridas (postulado da incompletude dos contratos). Esse modelo, utilizado inicialmente para análise das relações entre acionista e gerente, tornou-se o guia de leitura das relações entre o “centro de decisão” político e os órgãos de execução, que têm autonomia de gestão e estão sujeitos a avaliação. Hoje é a forma mais comum de pensar as relações entre níveis hierárquicos: presume-se que avaliações cada vez mais sofisticadas resolvem o “problema da agência”, isto é, o comportamento oportunista do executante que dispõe de uma informação que o decididor não tem.

Essa nova economia política serviu de “senso comum” a um vasto movimento de reorganização das administrações públicas, ao qual Christopher Hood deu o nome genérico de “nova gestão pública” (new public management) em 1991. Essa “nova gestão pública” visa a mudar o Estado e, para isso, inspira-se sistematicamente em lógicas de concorrência e métodos de governo empregados nas empresas privadas[50]. Sua intenção é “reinventar o governo” diante do que parece ser um fracasso das esperanças nos grandes programas dos anos 1950 e 1960, e isso num contexto político em que os governos desejam poder limitar os custos e, ao mesmo tempo, aumentar a satisfação dos usuários, vistos como clientes.

Esse “paradigma global” da reinvenção do governo apresentou várias faces, conforme o país, o governo ou o intérprete, os quais ressaltam ora a importação do modelo da empresa, ora a necessária participação democrática da população nas decisões – isso quando não misturam as duas coisas. Mas a principal tendência nos países desenvolvidos consistiu em impor um novo modo de racionalização às administrações públicas que obedece às lógicas empresariais. Concorrência, downsizing, outsourcing [terceirização], auditoria, regulação por agências especializadas, individualização das remunerações, flexibilização do pessoal, descentralização dos centros de lucro, indicadores de desempenho e benchmarking são todos instrumentos que administradores zelosos e decididores políticos em busca de legitimidade importam e difundem no setor público em nome da adaptação do Estado à “realidade do mercado e da globalização”.

A nova gestão pública consiste em fazer com que os agentes públicos não ajam mais por simples conformidade com as regras burocráticas, mas procurem maximizar os resultados e respeitar as expectativas dos clientes. Isso pressupõe que as unidades administrativas sejam responsáveis por sua produção específica e possuam certa autonomia na realização de seu projeto[51]. As técnicas de gestão baseiam-se no tripé objetivos-avaliação-sanção. Cada entidade (unidade de produção, coletivo ou indivíduo) passa a ser “autônoma” e “responsável” (no sentido de accountability). No âmbito de suas missões, recebe metas que deve atingir. A realização dessas metas é avaliada regularmente, e a unidade é sancionada positiva ou negativamente de acordo com seu desempenho. A eficácia deve aumentar em razão da pressão constante e objetivada que pesará sobre os agentes públicos, em todos os níveis, de tal modo que acabem artificialmente na mesma situação do assalariado do setor privado, que está sujeito às exigências dos clientes e às de seus superiores.

Um dos aspectos importantes dessa nova gestão, além da ênfase no “desempenho”, é a importação do “critério de qualidade” utilizado pelas empresas privadas que desejam subordinar sua atividade à satisfação do consumidor.

A concorrência no centro da ação pública

“Concorrência” é a palavra-chave dessa nova gestão pública. Nesse sentido, esta última traduz o dogma friedmaniano:

"O maior perigo para o consumidor é o monopólio, seja privado, seja governamental. A proteção mais eficaz do consumidor é a livre concorrência interna e o livre-câmbio em todo o mundo. O que protege o consumidor da exploração de um comerciante é a existência de outro comerciante, de quem ele pode comprar e cujo único desejo é vender. A possibilidade de escolha entre várias fontes de abastecimento defende o consumidor de forma muito mais eficaz do que todos os Ralph Nader do mundo.[52]"

Se a ação pública deve ser uma “política de concorrência”, o Estado deve ser um ator concorrendo com outros atores, em particular no plano mundial. Trata-se de executar simultaneamente duas operações que aparecem como homogêneas em virtude da unicidade das categorias em jogo: de um lado, construir mercados que sejam o mais concorrenciais possível no âmbito mercantil; de outro, fazer a lógica de concorrência intervir no próprio âmbito da ação pública. Assim, a concorrência está no princípio da liberalização das indústrias de redes, como telecomunicações, eletricidade, gás, ferrovias ou correios – uma liberalização que não se confunde com a privatização nem com a desregulamentação e mostra novas formas de intervenção pública pela criação de mercados, ou quasi-mercados, em setores que são considerados monopolistas ou respondem a critérios estranhos às considerações de custo. Para retomarmos o título da obra de Israel Kirzner, concorrência e espírito de empresa são as duas palavras-chave da prática governamental neoliberal[53].

Uma das primeiras medidas importantes do governo Thatcher foi a implantação do Compulsory Competitive Tendering (CCT), um sistema que tornava obrigatórias a chamada de ofertas para qualquer fornecimento de serviços locais e a escolha da oferta mais competitiva, de acordo com os critérios do “value for money”, o que significava fazer as empresas privadas e os governos locais concorrerem entre si[54].

Supostamente, essa institucionalização da competição favorece uma melhor realização das finalidades dos serviços públicos, dando maior satisfação aos clientes (que podem escolher livremente o prestador) e reduzindo custos. O que pressupõe que a forma da prestação do serviço, pública ou privada, não afeta o conteúdo e o efeito do serviço. Fortalecendo a eficácia dos serviços públicos, supostamente a política da escolha lhes dá uma nova legitimidade. Essa ideia é central na retórica da esquerda moderna, como sublinha Tony Blair:

"A escolha é um princípio importante de nosso programa. É preciso haver muito mais escolha, não apenas entre prestadores de serviços públicos, mas dentro de cada serviço. Onde é possível, a escolha melhora a qualidade do serviço prestado aos mais pobres e auxilia na luta contra as desigualdades, ao mesmo tempo que fortalece o apreço das classes médias pelo serviço coletivo. No campo da educação, isso significa escolha entre várias escolas, de modo que os pais possam optar com mais frequência por um estabelecimento que corresponda plenamente às necessidades dos filhos.[55]"

A realidade é um pouco diferente: essa “livre escolha” é muito desigual, porque as famílias não possuem a mesma capacidade de exercê-la com as mesmas vantagens, como mostraram numerosos estudos no campo escolar[56].

A concorrência deve ser também o princípio da “gestão dos recursos humanos”. A constituição de mercados internos de bens e serviços é acompanhada da criação de concorrência entre os próprios agentes, dentro do setor público. A nova gestão pública provoca uma mutação profunda dos antigos sistemas de classificação e remuneração, em proveito de avaliações baseadas no desempenho individual e nos incentivos financeiros personalizados. Desse modo, os gerentes à frente do serviço serão avaliados ex-post, não mais ex-ante, conforme o cumprimento das metas com as quais se comprometeram. Como eles próprios avaliam seus subordinados, administrações e serviços públicos se parecem cada vez mais com longas cadeias de vigilância e controle de desempenho individual[57].

Essa “gestão do desempenho” faz parte de uma espécie de “desfuncionalização” do serviço público. Alguns de seus aspectos são: flexibilização ou supressão das regras de direito público às quais os funcionários devem sujeitar-se; substituição dos concursos por contratos de direito privado; mobilidade entre serviços e entre os setores público e privado; e demissão de funcionários considerados incompetentes[58]. Embora esteja em questão a dimensão estatutária tradicional do emprego público, estamos longe de uma “desburocratização”, como veremos adiante.

Um novo modelo de condução dos agentes públicos tende a instaurar-se: o governo empresarial. Ele repousa sobre os princípios da “gestão do desempenho” e emprega ferramentas importadas do setor privado (indicadores de resultados e gestão de motivações mediante um sistema de incentivos que permitem um “governo a distância” dos comportamentos). Esse governo supõe um controle estrito do trabalho dos agentes públicos por meio de avaliações sistemáticas e a subordinação destes à demanda de “cidadãos-clientes” convidados a exercer sua capacidade de escolha diante de uma oferta diversificada, de acordo com o princípio do “controle pela demanda”. Essa estratégia tem uma natureza financeira e normativa. Permite fazer com que o usuário contribua diretamente com o custo do serviço, na medida em que o “responsabiliza” financeiramente – o que corresponde à busca de uma diminuição da pressão fiscal – e é uma maneira de mudar o comportamento do “consumidor” de serviços públicos, convidado a regular sua demanda. O livro que melhor reúne o conjunto de características dessa nova prática governamental é o best-seller de David Osborne e Ted Gaebler, Reinventando o governo, publicado em 1992[59]. Para esses dois autores, nenhum governo é fixo na história. Do mesmo modo que as formas de ação pública foram reinventadas pelo New Deal, devemos inventar um governo adaptado ao “novo mundo” da “era da informação”, da globalização e da “crise fiscal”[60]. A produção de serviços públicos deve obedecer à mesma regra que orientou a reorganização das empresas: redução de tamanho, foco num “ofício”, aumento da qualidade, descentralização da autoridade, horizontalização da linha hierárquica[61]. Trata-se menos de alterar o volume de despesas, para mais ou para menos, do que de reinventar as políticas e os organismos públicos. Segundo eles, estamos vivendo um período em que devemos abandonar o modelo burocrático weberiano e passar a um modelo pós-weberiano. O termo pelo qual pretendem resumir sua proposta é “governo empresarial”[62].

A intenção dos autores não é propor um novo modelo saído de sua imaginação, mas explicar o que está em andamento nos Estados Unidos. A reinvenção do governo empresarial é um processo que, segundo eles, começou quando os eleitores californianos votaram a famosa “Proposta 13”, em 6 de junho de 1978, diminuindo para a metade o imposto local sobre a propriedade. Essa “revolta fiscal” se estendeu a todos os estados norte-americanos, até que Reagan a transformou no eixo principal de sua política. Nos anos 1980, constatando a diminuição de recursos, prefeitos e governadores foram obrigados a desenvolver novas formas de organização e estimular as “parcerias público-privadas”. Foram essas novas práticas que permitiram a invenção, em nível local, dos “governos empresariais”.

Os governos empresariais obedecem a dez princípios analisados em detalhe pelos autores. A maioria desses governos promove a concorrência entre fornecedores de serviços; tira poder da burocracia para dá-lo aos cidadãos; mede o desempenho de suas agências focando não os recursos, mas os resultados; é guiada pela busca de seus objetivos, não pelo respeito de regras e regulações; considera que os usuários são consumidores e oferece a eles possibilidades de escolha entre escolas, programas de formação, tipos de habitação; previne os problemas antes que surjam, em vez de conformar-se em oferecer posteriormente o serviço; emprega sua energia a fim de evitar gastos, em vez de procurar fundos; descentraliza a autoridade, favorecendo a administração participativa; prefere os mecanismos do mercado aos mecanismos burocráticos; e concentram-se não só no fornecimento de serviços públicos, mas na mobilização de todos os setores – público, privado e associativo – para resolver os problemas da comunidade[63].

Segundo Osborne e Gaebler, não devemos confundir esse governo empresarial, resumido em seus diversos aspectos, com o free market dos conservadores: “Estruturar o mercado para realizar um objetivo público é, na verdade, o contrário de deixar ao ‘livre mercado’ a tarefa de regular as coisas; trata-se de uma forma de intervenção no mercado”[64]. De todo modo, acrescentam, não existe livre mercado se o entendemos como um mercado isento de qualquer intervenção governamental. Todos os mercados legais são estruturados por regras estabelecidas pelos governos, com exceção dos mercados negros, que são controlados pela força e regidos pela violência[65]. Segundo eles, essa governança empresarial que utiliza alavancas públicas para orientar as decisões privadas no sentido dos objetivos coletivos permite a definição de uma “terceira via” entre o free market dos conservadores e os programas burocráticos do big government dos “liberais” (no sentido norte-americano do termo).

O tema do governo empresarial não caiu no vazio. Foi no governo Bill Clinton que se lançou a National Performance Review, inspirada no livro de Osborne e Graeber. Após o relatório redigido em 1993 por Al Gore, em que ele estabelecia como programa “a criação de um governo que funcione melhor e custe menos”[66], o governo Clinton organizou uma vasta operação de propaganda e criou “equipes” e “laboratórios” para reinventar o governo[67]. Segundo Al Gore, a National Performance Review possibilitou o corte de 351 mil pessoas do funcionalismo público. Uma iniciativa semelhante no Canadá, em 1994, gerou um corte de 45 mil funcionários públicos. Esse procedimento de auditoria geral, fortemente encorajado pelas instituições de expertise internacionais, como a OCDE, espalhou-se por todo o mundo com nomes diferentes, mas seguindo a mesma lógica.

Uma política de esquerda?

Essa “reinvenção do governo” se apresenta com frequência como uma reinvenção da política de esquerda. Na verdade, isso é apenas o exemplo mais flagrante da dominação da nova razão neoliberal. A reforma dos instrumentos de intervenção pública tornou-se, no fim dos anos 1990, a base do acordo entre Bill Clinton, Tony Blair e outros dirigentes da esquerda europeia. O teórico da terceira via, Anthony Giddens, descreve nos seguintes termos as novas orientações da “reforma do Estado”:

"A maioria dos Estados ainda tem muito que aprender com as melhores técnicas de gestão empresarial. Eles deveriam buscar, em especial, controles de resultados, auditorias, implantar estruturas de decisão mais flexíveis ou garantir uma maior participação dos empregados.[68]"

Contudo, aquilo que se apresentava como uma “renovação” da esquerda tendia a obliterar o fato de que a mutação empresarial da ação pública era apenas o aprofundamento de uma política iniciada pelos governos neoliberais dos anos 1980. Os conservadores britânicos foram os pioneiros nessa estrada. Em 1980, uma série de dispositivos foi implantada para possibilitar a aplicação sistemática no setor público do princípio de eficiência, tão prezado pelos consultores das empresas de auditoria que orientavam o governo[69]: Efficiency Unit, Scrutinity Programme, Financial Management Initiative e National Audit Office.

Em 1988, um relatório ao primeiro-ministro britânico deu início à operação ambiciosa e sistemática dos next steps [próximos passos][70]. A administração pública era vista como um conjunto de “unidades de produção” ou “agências” com autonomia, que perseguia seus próprios objetivos e respondia a indicadores de desempenho. Várias opções foram apresentadas para melhorar a produtividade do serviço público: privatização, subcontratação no setor privado ou autonomização das agências[71]. Nesse último caso, tratava-se de fragmentar um serviço público unificado e normatizado em entidades descentralizadas e responsáveis perante o ministro em questão. Desse modo, a função pública britânica é progressivamente dividida em cerca de 110 agências autônomas, reunindo quase 80% dos agentes públicos. Cada agência é dirigida por um responsável selecionado por sua competência administrativa e remunerado de acordo com seu desempenho. Livre para gerir, ele pode subcontratar serviços no setor privado, caso julgue essa solução mais eficiente.

A Grã-Bretanha de Tony Blair segue as orientações do thatcherismo. A Private Finance Initiative, também denominada Public-Private Partnership (PPP), permite às empresas do setor privado financiar e gerir os serviços públicos ligados a saúde, educação e segurança. O contrato dá ao setor privado o direito de explorar um serviço durante longos períodos (vinte ou trinta anos), em troca do financiamento e da manutenção da infraestrutura. Mas as empresas privadas não fornecem necessariamente um serviço de qualidade equivalente e o Estado é obrigado a participar dos custos, subvencionando as empresas privadas[72].

O Canadá também implantou um programa de reestruturação do setor público a partir de 1988 (Public Service 2000), assim como a Austrália, a Nova Zelândia, a Dinamarca e a Suécia. Na França, Michel Rocard quis impulsionar esse tipo de orientação em 1991 (a “renovação do serviço público”). Em 1992, mandou publicar a “Carta dos Serviços Públicos”, introduzindo a lógica gerencial pela criação de “centros de responsabilidade” nos serviços descentralizados do Estado, os quais deveriam estabelecer “projetos de serviço” com seus respectivos ministérios. As duas categorias-chave dessa “renovação”, isto é, a “responsabilização” e a “avaliação”, não eram muito originais[73]. Esse primeiro enxerto da nova gestão pública não tomou a dimensão que teve em outros países, sem dúvida porque a relutância em ver o setor público como um produtor de serviços fornecidos a um cliente permaneceu cultural e politicamente forte na França.

A reforma administrativa, tema havia muito tempo defendido pelas elites modernizadoras à frente do Estado francês[74], foi relançada em fins dos anos 1990 e no início dos anos 2000, com a elaboração e a votação da Lei orgânica relativa às finanças (Lolf), em agosto de 2001. Essa lei pretendia introduzir uma obrigação de bom desempenho na gestão financeira do Estado. O financiamento orçamentário não poderia mais depender da natureza do gasto, mas dos resultados dos “programas”, dos quais se exigia que explicitassem objetivos precisos que seriam submetidos a avaliação. Como podemos ver, também não há nada muito original nessa nova prática que visa a “trocar uma lógica de meios por uma lógica de resultados”.

Uma segunda fase, chamada fase de aceleração, foi desencadeada em julho de 2007, pouco após a eleição de Nicolas Sarkozy, com o nome de Revisão Geral das Políticas Públicas (o que lembra de certo modo a National Performance Review, de Al Gore). Chegando a um balanço bastante mitigado das primeiras medidas de “modernização”, o governo tenciona operar um verdadeiro “rompimento”. Também nesse caso, a prática não é nova, em comparação com o que ocorreu em outros países, já que se trata de realizar uma auditoria sistemática de todas as políticas públicas e as despesas sociais para “diminuir o gasto público, melhorando ao mesmo tempo a eficácia e a qualidade do serviço prestado pela administração pública”. A medida deve consistir em determinar a “pertinência” de cada ação pública – “sem tabu nem a priori”– e, em seguida, fixar o nível de recursos materiais e humanos necessários ao cumprimento da tarefa, levando-se em consideração os meios de melhorar a produtividade dos serviços. A originalidade talvez resida nos procedimentos extremamente centralizados dessa “revisão geral”, comandada pelo círculo mais próximo do presidente da República, marginalizando dessa forma todas as instituições e as instâncias que até então tinham o papel de controlar o orçamento e a administração.

O novo modelo de governo conquistou muitos países. Os temas e os termos da “boa governança” e das “boas práticas” tornaram-se o mantra da ação governamental. As organizações internacionais propagaram amplamente as novas normas da ação pública, sobretudo nos países subdesenvolvidos. O Banco Mundial, no Relatório sobre o desenvolvimento mundial, de 1997, propôs a substituição do termo “Estado mínimo” por “Estado melhor”. Em vez de encorajar sistematicamente as privatizações, deseja ver o Estado como um “regulador” dos mercados. O Estado deve ter autoridade, deve concentrar-se no essencial, deve ser capaz de criar quadros regulamentares indispensáveis à economia. Segundo o Banco Mundial, o Estado eficaz é um Estado central forte, cuja prioridade é uma atividade reguladora que garanta o Estado de direito e facilite o mercado e seu funcionamento[75]. A OCDE não ficou atrás: desde meados dos anos 1990, multiplicou as recomendações de reforma da regulamentação e abertura dos serviços públicos à concorrência, por intermédio das atividades de seu departamento de gestão pública (Public Management Committee, ou Puma). A Comissão Europeia fez o mesmo com seu Livro Branco sobre a “governança europeia” em 2001, ainda que esta última misture o funcionamento das instituições com a promoção do modelo empresarial e concorrencial nos serviços públicos.

Essa reforma da administração pública é parte da globalização das formas da arte de governar. Em todo o mundo, seja qual for a situação local, os mesmos métodos são preconizados, e o mesmo léxico uniforme é empregado (competição, reengenharia de processos, benchmarking, best practice, indicadores de desempenho). Esses métodos e essas categorias são válidos para todos os problemas, todas as esferas de ação, da Defesa nacional à gestão dos hospitais, passando pela atividade judicial. Essa reforma “genérica” do Estado segundo os princípios do setor privado apresenta-se como ideologicamente neutra: visa somente à eficiência ou, como dizem os especialistas britânicos em auditoria, ao “value for money”, isto é, à otimização dos recursos utilizados. Vimos anteriormente que a adesão à nova gestão pública passou por cima das divisões partidárias, a ponto de constituir um dos eixos principais da “terceira via”, que supostamente reunia os novos democratas norte-americanos e a renovada social-democracia europeia. Na realidade, trata-se de uma racionalidade extremamente pregnante e, na medida em que tem poucos críticos e oponentes, ainda mais poderosa. Essa nova gestão pública, tão universalmente aceita, age de maneira muito mais eficaz do que qualquer discurso radical, enfraquecendo as resistências éticas e políticas dentro dos setores público e associativo. O fato é que com esse léxico, e com a racionalidade que ele contém, difunde-se uma concepção utilitarista do homem que não poupa nenhum campo de atividade. O funcionário público é um agente racional que reage apenas aos estímulos materiais. Os códigos de honra da profissão, a identidade profissional, os valores coletivos, o senso de dever e o interesse geral que movem alguns agentes públicos e dão sentido a seu compromisso são deliberadamente ignorados. Por toda parte, e em todos os setores, os motivos para agir são os mesmos, assim como os procedimentos de avaliação que condicionam as recompensas e as punições. Um enorme trabalho de redução do sentido da ação pública e do trabalho dos agentes públicos está em curso: têm pertinência apenas os motivos mais interesseiros de conduta, apenas os incentivos pecuniários que supostamente a orientam.

Com esse governo empresarial, o mercado não se impõe simplesmente porque “invade” os setores associativos e de Estado, mas porque se tornou um modelo universalmente válido para pensar a ação pública e social. Hospitais, escolas, universidades, tribunais e delegacias são considerados empresas da alçada das mesmas ferramentas e das mesmas categorias. Esse trabalho de redução típico da gestão pública tem a ver, naturalmente, com a mutação antropológica que caracteriza as sociedades ocidentais. Ele não é apenas o reflexo dessa mutação, mas, ao contrário, é um vetor particularmente eficaz dela quando diz respeito a domínios que podem parecer heterogêneos à lógica quantitativa dos desempenhos. Basta pensar na educação, na cultura, na saúde, na justiça ou na polícia[76]. Nesses domínios, as mutações não são menos patentes do que em outros. Noções como a de “gestão dos fluxos judiciários”, difundidas nos anos 1990, tendem a transformar o magistrado num administrador que todo ano é obrigado a aumentar seu “portfólio de processos”, e de forma imperativa, na medida em que seu salário e sua promoção vão depender cada vez mais do cumprimento dos indicadores. O entendimento maciçamente contábil da atividade judiciária, médica, social, cultural, educacional ou policial tem consequências consideráveis sobre a maneira como são considerados os “clientes” desses serviços regidos pelos novos princípios gerenciais, assim como sobre a forma como os agentes vivenciam a tensão entre essas lógicas contábeis e o significado que dão à profissão[77].

As normas contábeis constituem não tanto uma “ideologia”, mas uma forma específica de racionalidade importada do econômico. Nesse sentido, a “gestão pelo desempenho” gera problemas sérios, que em geral ela tende a evitar: a determinação dos indicadores de desempenho, a apresentação dos resultados, a circulação da informação entre “topo” e “base”. A questão é saber o que quer dizer “cultura de resultado” na justiça, na medicina, na cultura ou na educação, e sobre quais valores podemos julgá-lo. Na verdade, o ato de julgamento, que depende de critérios éticos e políticos, é substituído por uma medida de eficiência que se supõe ideologicamente neutra. Assim, tende-se a ocultar as finalidades próprias de cada instituição em benefício de uma norma contábil idêntica, como se cada instituição não tivesse valores constitutivos que lhe são próprios[78].

Uma tecnologia de controle

Essa refundação administrativa da ação pública apoia-se na crença das virtudes de uma avaliação geral e exaustiva, capaz de dar conta de forma “racional” e “científica” dos efeitos de um programa político, da atividade de um serviço ou do trabalho de cada agente[79]. Essa lógica de avaliação generalizada é sustentada por grupos sociais cujo poder efetivo e cuja legitimidade repousam cada vez mais sobre a concepção e o domínio das ferramentas práticas de observação, investigação e julgamento. A seleção, a formação e a socialização dos chefes de departamento adquiriram em toda a parte uma grande importância, ainda mais por serem consideradas os principais “agentes da modernização”. A alta administração, formada cada vez mais nas business schools, em simbiose cada vez maior com os meios empresariais privados, encontrou uma fonte suplementar de legitimidade misturando “modernidade” e “ciência”, e isso em detrimento das instituições democráticas, que foram privadas de seu papel de proposição e controle da administração pública por esse poder de expertise.

O objetivo dessa nova gestão pública é controlar estritamente os agentes públicos para aumentar seu comprometimento com o trabalho. Espera-se deles muito mais a obtenção de resultados (contabilizados como na empresa privada) do que o respeito aos procedimentos funcionais e às regras jurídicas. Essa mensuração do desempenho tornou-se a tecnologia elementar das relações de poder nos serviços públicos, uma verdadeira “obsessão pelo controle” dos agentes, uma fonte de burocratização e inflação normativa consideráveis[80]. Tende a moldar a própria atividade e visa a produzir transformações subjetivas nos “avaliados” para que se adequem a seus “compromissos contratuais” com as instâncias superiores. Trata-se de reduzir a autonomia adquirida por alguns grupos profissionais, como médicos, juízes e professores, considerados dispendiosos, permissivos ou pouco produtivos, impondo-lhes critérios de resultado constituídos por uma tecno-estrutura especializada proliferante. Idealmente, cada indivíduo deve ser seu próprio supervisor, mantendo atualizadas a contabilidade de seus resultados e a adequação às metas que lhe foram atribuídas. Um dos objetivos disso é fazer o indivíduo interiorizar as normas de desempenho e às vezes, mais do que isso, fazer com que o avaliado seja o produtor das normas que servirão para julgá-lo.

A avaliação é um processo de normatização que leva os indivíduos a adaptar-se aos novos critérios de desempenho e qualidade, a respeitar novos procedimentos que com frequência são tão formais quanto as regras burocráticas clássicas. No entanto, diferentemente destas últimas, os novos critérios podem atingir mais diretamente o “coração do ofício”, seu significado social, os valores sobre os quais repousa, como pode ser o caso nos mais diversos universos profissionais, de pesquisadores a policiais, passando por enfermeiras ou carteiros. Esses modos uniformes de medida de desempenho e incentivos típicos da nova gestão fazem dela uma máquina de guerra contra as formas de autonomia profissional e os sistemas de valor a que os assalariados obedecem[81].

O management repousa sobre uma ilusão de controle contábil dos efeitos da ação. A interpretação puramente numérica dos resultados de uma atividade, exigida pelo uso dos “painéis de gestão” que orientam o “comando” dos serviços, entra em contradição com a experiência e as dimensões não quantificáveis do ofício[82]. A eficácia buscada pode ser contrariada pelos conflitos de valor que essa “cultura gerencial” provoca em universos profissionais regidos por outros valores. Os efeitos de “desmoralização” acabam tendo consequências sobre a qualidade do serviço, já que a dedicação e a consciência profissional são vistas como uma ficção enganadora ou uma exceção na nova doxa.

Por outro lado, o paradoxo é que apenas a nova gestão pública escapa da avaliação desses efeitos. De fato, quem avalia a avaliação? Quando se apresenta como prova de maior produtividade o baixo número de funcionários públicos na Suécia ou no Canadá, ninguém pode dizer se o efeito sobre a sociedade é benéfico, se não existem custos não avaliados ou transferências de encargos sobre grupos sociais[83]. A diminuição do número de funcionários públicos e a redução da remuneração (como no caso dos funcionários públicos franceses após a desindexação dos salários em 1982) não são em si a condição necessária para um desempenho melhor.

Verifica-se apenas o que foi construído, mede-se apenas o que se pôde reduzir a algo mensurável[84]. A avaliação é um empreendimento de normatização em que as características da atividade desaparecem na uniformização dos padrões (do tipo ISO 9000)[85]. Com os novos dispositivos de controle, desenvolvem-se novas percepções das tarefas que devem ser cumpridas, novas relações com o trabalho e com os outros. Pela seleção de normas e critérios, a avaliação tem o efeito de tornar visíveis ou invisíveis certos aspectos do ofício, valorizá-los ou desvalorizá-los – adquire valor o que é visto na atividade, em detrimento do que não o é. A questão da “objetividade” da avaliação, frequentemente trazida à baila, não tem sentido. Essa tecnologia de poder visa a criar um tipo de relação que valida a si mesma pela conformidade dos sujeitos à definição da norma de conduta legítima. Portanto, é pela construção de um sujeito cuja conduta será guiada por procedimentos de avaliação e sanções ligadas a eles que se deve julgar esse modo de governo introduzido no serviço público.

A interiorização das normas de desempenho, a autovigilância constante para adequar-se aos indicadores e a competição com os outros são os ingredientes dessa “revolução das mentalidades” que os “modernizadores” desejam realizar. Esse regime geral de inspeção, que moderniza o velho sonho benthamiano, tem uma lógica própria, que pode se transformar num pesadelo burocrático, como sentiram na pele as autoridades locais britânicas, em especial sob os governos neotrabalhistas, quando estes quiseram aperfeiçoar o sistema de auditoria elevando os critérios e os objetivos que deveriam ser atingidos (Best Value for Money)[86].

Gerencialismo e democracia política

A nova gestão pública possui duas dimensões: ela introduz modos de controle mais refinados, que fazem parte de uma racionalização burocrática mais sofisticada, e embaralha as missões do serviço público, alinhando-as formalmente a uma produção do setor privado. De modo que podemos tanto ressaltar a continuidade com a antiga lógica burocrática como evidenciar alguns pontos de ruptura com ela.

Um dos aspectos principais é, sem dúvida, o aumento da centralização burocrática a que levou o novo regime de inspeção a partir de padrões nacionais e uniformes nos países em que havia uma forte liberdade local. Na Grã-Bretanha, por exemplo, o comando por indicadores de desempenho serviu para intensificar muito fortemente o controle das instâncias centrais sobre as coletividades locais a partir de 1982, graças à criação de uma comissão nacional de auditoria. A sujeição dos comportamentos a restrições impostas por instrumentos sofisticados, longe de dar mais liberdade aos atores em campo, tende a confiná-los numa hiperobjetivação da atividade. As normas estatísticas revelaram-se meios poderosos de padronização e normalização dos comportamentos, dentro da lógica da burocracia de tipo “weberiano”[87]. Assim, a tensão entre a centralização das instâncias de regulação e auditoria e a suposta autonomia dos serviços submetidos à concorrência acarreta efeitos perversos significativos, levando os serviços a concentrar-se obsessivamente nos indicadores de desempenho, sem se preocupar com o conteúdo real de sua missão: taxa de sucesso num exame, taxa de ocupação de leitos em hospitais, proporção entre fatos constatados e fatos elucidados podem significar resultados efetivos muito diferentes e até mesmo desvios muito graves com relação à realidade do serviço prestado. Essa fetichização do número conduz essa hiper-racionalização à “fabricação de resultados” que estão longe de traduzir as melhorias reais, tanto mais que os gerentes e seus subordinados são todos obrigados a “entrar no jogo” e contribuir para uma produção coletiva de números. Nada nos permite afirmar que a realidade coincide sempre com a retórica gerencial e comercial. Os critérios de avaliação quantitativa estão longe de concordar sempre com os critérios qualitativos de atenção ao cliente.

Essa nova etapa da racionalização burocrática vem acompanhada da perda de significado próprio dos serviços públicos. De fato, um dos efeitos da nova gestão pública é que os limites entre o setor público e o privado se embaralharam. Aliás, a própria ideia de um setor público cujos princípios transgridem a lógica mercantil é posta em questão com a multiplicação das relações contratuais e delegações, bem como com as transformações sofridas pelo emprego público no sentido de uma maior diversidade de formas e de uma precariedade mais desenvolvida[88]. A promoção da concorrência, por exemplo, não se concilia facilmente com a obrigação de serviços públicos aos quais um grande número de cidadãos e agentes públicos continua ligado. A nova gestão pública contrasta com os princípios da função pública tal como foram estabelecidos na França (primazia do direito público, igualdade de tratamento dos usuários, continuidade do serviço, laicidade e respeito da neutralidade política). A transformação do usuário em consumidor, ao qual convém vender o máximo possível de produtos para aumentar a rentabilidade, não é tão “neutra” como querem fazer parecer os especialistas. Quanto aos procedimentos de avaliação, eles tendem a confundir a medida dos resultados que pode ser feita internamente com os efeitos múltiplos e de longa duração que uma política pode ter sobre a sociedade como um todo.

A importação das lógicas contábeis, provenientes do mundo econômico mercantil, tende não apenas a “desligar” as atividades e seus resultados, como também a despolitizar as relações entre o Estado e os cidadãos. Estes são vistos como compradores de serviços que devem “receber pelo que pagam”. Essa prioridade que se dá à dimensão da eficiência e ao retorno financeiro elimina do espaço público qualquer concepção de justiça que não seja a de equivalência entre o que foi pago individualmente pelo contribuinte e o que foi recebido individualmente por ele.

A desconfiança como princípio e a vigilância avaliativa como método são os traços mais característicos da nova arte de governar os homens. O espírito gerencial que a anima impõe-se em detrimento dos valores hoje desqualificados do serviço público e da dedicação dos agentes a uma causa geral que está acima deles. Na antiga forma de governo, ligada ao ideal de soberania democrática, a autonomia relativa do funcionário público repousava sobre o compromisso de servir a uma causa que se impunha a ele e pela qual ele tinha de respeitar o direito público e os valores profissionais que compunham um “espírito de solidariedade”. Esse compromisso, simbolizado por um estatuto, tinha em troca certa confiança – evidentemente sempre ponderada por uma preocupação com as formas regulamentares – na conduta virtuosa do agente público. A partir do momento que o postulado da nova gestão especifica que não se pode mais confiar no “indivíduo comum”, intrinsecamente privado de qualquer apego a um “espírito” público e de qualquer adesão a valores que lhe seriam exteriores, a única solução é o controle e o “governo à distância” dos interesses particulares. Quer se trate de equipe hospitalar, juízes ou bombeiros, os motivos e os princípios de sua atividade profissional são concebidos apenas do ângulo dos interesses pessoais e corporativos, negando-se, assim, qualquer dimensão moral e política de seu compromisso com uma profissão que repousa sobre valores próprios. Os três “e” da gestão (“eficácia, economia, eficiência”) fizeram desaparecer da lógica do poder as categorias do dever e da consciência profissional.

A desconfiança caracteriza ainda a relação entre as instituições públicas e os sujeitos sociais e políticos, que também são vistos como “oportunistas” em busca da máxima vantagem pessoal, sem nenhuma consideração pelo interesse coletivo. A reestruturação neoliberal transforma os cidadãos em consumidores de serviços que nunca têm em vista nada além de sua satisfação egoísta, o que faz que sejam tratados como tais por procedimentos de vigilância, restrição, punição e “responsabilização”. É isso que leva a “envolver” os doentes, fazendo-os arcar com uma parte maior das despesas médicas, e os estudantes universitários, aumentando as taxas de inscrição. O “governo” das administrações públicas, de autoridades locais, dos hospitais e das escolas por indicadores sintéticos de desempenho, cujos resultados são largamente difundidos pela imprensa local e nacional na forma de ranking, convida o cidadão a basear seu julgamento apenas na relação de custo-benefício. A corrosão da confiança nas “virtudes” cívicas teve, sem dúvida, efeitos performativos sobre a maneira como os novos cidadãos-consumidores enxergam sua contribuição fiscal para os encargos coletivos e o “retorno” que têm individualmente. Eles não são chamados a julgar políticas e instituições do ponto de vista do interesse da comunidade política, mas somente em função de seu interesse pessoal. É a própria definição de sujeito político que é radicalmente alterada.

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[1] Walter Lippmann, “The Permanent New Deal”, em The New Imperative (Londres, Macmillan, 1935), p. 43-4.

[2] Ibidem, p. 47.

[3] James K. Galbraith, The Predator State. How Conservatives Abandonned the Free Market and Why Liberals Should Too (Nova York, The Free Press, 2008).

[4] Sobre esse ponto, ver as observações de Desmond King, “Une nouvelle conception de l’État: de l’étatisme au néolibéralisme”, em Vincent Wright e Sabino Cassese (orgs.), La recomposition de l’État en Europe (Paris, La Découverte, 1996); sobre a dimensão estruturante do instrumento, ver Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès (orgs.), Gouverner par les normes (Paris, Presses de Sciences Po, 2007).

[5] Ver Denis Saint-Martin, Building the New Managerialist State: Consultants and the Politics of Public Sector Reform in Comparative Perspective (Oxford, Oxford University Press, 2000).

[6] Léon Walras citado por Louis Franck, La libre concurrence (Paris, PUF, 1967).

[7] Ver Jean-Pierre Gaudin, Pourquoi la gouvernance? (Paris, Presses de Sciences Po, 2002).

[8] A Commission on Global Governance, criada em 1992 por iniciativa do ex-chanceler alemão Willy Brandt, define assim essa noção: “Trata-se da soma das diferentes formas pelas quais os indivíduos e as instituições públicas e privadas administram seus negócios comuns. É um processo contínuo de cooperação e acomodação entre interesses diversos e conflitantes. Inclui as instituições oficiais e os regimes dotados de poderes de execução, do mesmo modo que os arranjos informais sobre os quais os povos e as instituições estão de acordo ou entendem ser de seu interesse”. Citado em Jean-Christophe Graz, La gouvernance de la mondialisation (Paris, La Découverte, 2008), p. 41.

[9] Portanto, as noções de “governança” e “soberania” são, em parte, antinômicas. A governança pressupõe, antes de mais nada, obediência às injunções dos organismos que representam os grandes interesses comerciais e financeiros; ela também permite, em função das relações de força internacionais e dos interesses geoestratégicos, o direito de ingerência de ONGs, forças armadas estrangeiras ou credores, em nome dos direitos humanos ou das minorias, ou então, de forma mais prosaica, da “liberdade de mercado”.

[10] Ver, no capítulo 6 deste volume, “Disciplina (3): a gestão neoliberal da empresa”.

[a] International Accounting Standards Board. (N. T.)

[11] Ver Nicolas Véron, “Normalisation comptable internationale: une gouvernance en devenir”, em Conseil d’Analyse Économique, Les normes comptables et le monde post-Enron (Paris, La Documentation Française, 2003).

[12] Falência do banco Herstatt em 1974 e do Franklin National Bank nos Estados Unidos.

[13] O que Dominique Plihon, Jézabel Couppey-Soubeyran e Dhafer Saïdane escrevem a respeito da França vale também para o conjunto do sistema financeiro: “A desregulamentação e a privatização do setor bancário na França foram consideradas algumas vezes um sinal do desengajamento do Estado e o início de uma verdadeira desregulação do setor bancário. Frequentemente foram consideradas até mesmo responsáveis pelas dificuldades que os bancos enfrentaram ao longo dos anos 1990. No entanto, desregulamentação não significa desregulação. A regulamentação não desaparece, não muda de natureza. Trata-se de uma regulamentação prudencial, que visa não mais a administrar a atividade dos bancos, mas a orientá-la no sentido de uma maior prudência, ressaltando em especial as normas de solvabilidade. Surgem, assim, as condições para uma nova regulação. A regulamentação não exclui mais o mercado, ao mesmo tempo que o aumento dos riscos sensibilizava naturalmente os bancos para a gestão interna de seus riscos”, Dominique Plihon, Jézabel Couppey-Soubeyran e Dhafer Saïdane, Les banques, acteurs de la globalisation financière (Paris, La Documentation Française, 2006), p. 113; grifo nosso.

[14] Ibidem, p. 109.

[15] Ver Michel Aglietta, Macroéconomie financière (Paris, La Découverte, 2008), p. 96-7, sobre a análise técnica dos subterfúgios legais que permitiram aos bancos escapar das regras estabelecidas pelo Basileia II.

[16] Trata-se da teoria segundo a qual a venda dos próprios riscos mediante produtos financeiros sofisticados permite avaliá-los melhor. Supõe-se que, dando um valor mercantil aos riscos, o mercado financeiro gera mais eficiência na alocação dos financiamentos.

[17] Foi o que Alan Greenspan admitiu, muito tardiamente, em seu depoimento ao Congresso dos Estados Unidos em 23 de outubro de 2008: “Cometi o erro de pensar que o interesse bem compreendido das organizações e, em particular, dos bancos os tornava os mais capazes de proteger seus próprios acionistas e o capital das empresas. Minha experiência nos cargos que ocupei no FED durante dezoito anos e nas funções anteriores me levaram a pensar que os dirigentes dos estabelecimentos conheciam bem melhor os riscos de defaut que os melhores reguladores. O problema é que um pilar fundamental do que parecia ser um edifício particularmente sólido desmoronou. [...] Não sei exatamente o que aconteceu nem por quê. Mas não hesitaria em mudar minha visão, se os fatos exigissem isso”. Acrescentou, a propósito da “ideologia liberal”: “Fui muito afetado por [...] essa falha na estrutura fundamental que define aquilo que eu poderia chamar de maneira como o mundo funciona”.

[18] Ver Susan Strange, The Retreat of the State: The Diffusion of Power in the World Economy (Cambridge, Cambridge University Press, 1996).

[19] Ver, no capítulo 6 deste volume, “O crescimento do capitalismo financeiro”.

[20] Kenichi Ohmae, De l’État-nation aux États-régions (trad. Michel Le Seac’h, Paris, Dunod, 1996).

[21] A tese pós-moderna, tal como é apresentada, por exemplo, por Michael Hardt e Antonio Negri em Empire (trad. Denis-Armand Canal, Paris, Exils, 2000) [ed. bras.: Império, trad. Berilo Vargas, 10. ed., Rio de Janeiro, Record, 2012], é que a soberania do Estado foi substituída por novas formas de sujeição mais direta à ordem produtiva capitalista.

[22] Naomi Klein, La stratégie du choc. La montée d’un capitalisme du désastre (trad. Lori Saint-Martin e Paul Gagné, Arles, Leméac/Actes Sud, 2008), p. 22. A autora entende por “complexo” uma “entidade tentacular” muito mais vasta que o complexo militar-industrial. Os números dão por si sós uma ideia da dimensão da transformação: “Em 2003, o governo dos Estados Unidos firmou 3.512 contratos com sociedades encarregadas de executar funções ligadas à segurança; no período de 22 meses que se encerrou em agosto de 2006, somente o Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security) firmou mais de 115 mil contratos do mesmo tipo” (ibidem, p. 23).

[23] A expressão corporate state utilizada por Naomi Klein não significa nada além disso. A tradução francesa “État corporatiste” [Estado corporativista] introduz um contrassenso lastimável (ibidem, p. 26).

[24] Jack Hayward e Rudolf Klein, “Grande-Bretagne: de la gestion publique à la gestion privée du déclin économique”, em Bruno Jobert e Bruno Théret (orgs.), Le tournant néo-libéral en Europe. Idées et recettes dans les pratiques gouvernementales (Paris, L’Harmattan, 1994).

[25] Sobre esse ponto, ver Jean-Pierre Le Goff, Le mythe de l’entreprise (Paris, La Découverte, 1992).

[26] Christopher Pollitt, Managerialism and the Public Services: Cuts or Cultural Change in the 1990s? (Londres, Blackwell Business, 1990), p. 8.

[27] Segundo Luc Rouban, os “contratos, sejam firmados entre coletividades públicas ou com empresas do setor privado, oferecem o novo quadro normativo da ação pública”, Luc Rouban, “La réforme de l’appareil d’État”, em Vincent Wright e Sabino Cassese (orgs.), La recomposition de l’État en Europe, cit., p. 148.

[28] Christopher Pollitt, Managerialism and the Public Services, cit., p. 49.

[29] Numerosas análises de Bentham antecipam as críticas da expansão burocrática: “O interesse do ministro é ter muitos empregados, isto é, tantos dependentes quanto for possível: multiplicar os agentes é multiplicar suas criaturas; pagar grandes salários a eles é prendê-los ainda mais a seu protetor; e não há nenhum motivo para vigiá-los de muito perto, porque ele não perde nada com a negligência deles”, Jeremy ­Bentham, Théorie des peines et des récompenses, v. 1 (Londres, B. Dulau, 1811), p. 224. Para Bentham a solução é muito diferente das preconizadas pelos economistas neoclássicos. Ela repousa sobre a democracia mais radical e a vigilância contínua de representantes e funcionários públicos em dispositivos panópticos.

[30] Sobre esse ponto, ver a tese de Christophe Chauvet, Les apports de Jeremy Bentham à l’analyse économique de l’État (Tese de Doutorado em Ciências Econômicas e Gestão, Amiens, Universidade de Picardie, 2006).

[31] Ver Leonard J. Hume, Bentham and Bureaucracy (Cambridge, Cambridge University Press, 2004).

[32] Christophe Chauvet, Les apports de Jeremy Bentham à l’analyse économique de l’État, cit., p. 22.

[33] Jeremy Bentham, Constitutional Code, v. 1 (orgs. Frederick Rosen e James Henderson Burns, Oxford, Clarendon, 1983).

[34] Passaríamos do modelo burocrático como centro e organização da sociedade para um paradigma “pós-burocrático” (noção atribuída a Michael Barzelay, Breaking Through Bureaucracy: A New Vision for Managing in Government, Berkeley, University of California Press, 1992), baseado na nova economia política.

[35] Ver Xavier Greffe, Analyse économique de la bureaucratie (Paris, Economica, 1988), p. 13.

[36] Gordon Tullock, Le marché politique: analyse économique des processus politiques (Paris, Economica, 1978), p. 34.

[37] Idem, The Politics of Bureaucracy (Washington, Public Affairs Press, 1965); William Niskanen, Bureaucracy and Representative Government (Chicago, Aldine Publishing Company, 1971).

[38] William Niskanen, Bureaucracy and Representative Government, cit., p. 42.

[39] Gordon Tullock, Le marché politique, cit.

[40] “Face-à-face Attali-Rosa”, L’Express, 9 jun. 1979, citado em Henri Lepage, Demain le libéralisme (Paris, Hachette, 1980, Coleção Pluriel), p. 60 [ed. port.: Amanhã, o liberalismo, trad. Teresa Cardoso, Lisboa, Europa-América, 1988].

[41] Ver o resumo que Henri Lepage faz das teses da corrente do Public Choice em ibidem, p. 202-6.

[42] William Niskanen, Bureaucracy and Representative Government, cit., p. 195.

[43] Gordon Tullock, Le marché politique, cit., p. 15.

[44] Ibidem, p. 44.

[45] Ibidem, p. 46.

[46] James Buchanan, Les limites de la liberté, entre l’anarchie et le Léviathan (Paris, Litec, 1992), p. 42.

[47] Ibidem, p. 184.

[48] Jeremy Bentham citado em Florence Faucher-King e Patrick Le Galès, Tony Blair, 1997-2007 (Paris, Presses Sciences Po, 2007), p. 65.

[49] A eficácia tem como critério a melhor solução dada a um problema, já a eficiência pressupõe avaliar financeiramente a solução mais econômica.

[50] Pode-se dizer que as tentativas de melhorar a produtividade do setor público não são novas. Os Estados Unidos foram pioneiros nesse movimento, como mostra o trabalho da Comissão Hoover, que em 1949 preconizou a criação de “orçamentos por desempenho” que deu origem ao Budget and Accounting Procedures Act de 1950. Nos anos 1960, o Planning Programming Budgeting System (PPBS) deu continuidade a esse trabalho, fazendo surgir diversas modalidades de “racionalização das escolhas orçamentárias”. No entanto, essas tentativas não tinham o caráter sistemático e universal que o movimento de reforma da “nova gestão pública” adquiriu a partir do fim dos anos 1980 e do início dos anos 1990. Também não seguiam como modelo exclusivo a gestão do setor privado.

[51] Christian de Visscher e Frédéric Varone fazem uma excelente síntese: “A definição de objetivos quantitativos para a execução das políticas públicas, o foco nos auxílios fornecidos, em vez do procedimento que se deve seguir, a redução dos custos de produção dos serviços públicos, a gestão de uma unidade administrativa por um gerente que pode alocar livremente seus recursos, a motivação do pessoal por meio de incentivos pecuniários, a garantia aos usuários de uma liberdade de escolha etc. Em uma palavra, o objetivo da nova gestão pública é transformar as administrações públicas tradicionais em organizações voltadas para o desempenho. Dessa forma, o Estado asseguraria para si uma legitimação secundária através da qualidade dos serviços e do uso eficiente do dinheiro público. Esta reforçaria sua legitimidade primária, que se baseia no respeito das regras democráticas, enquadrando, a montante, os processos decisórios”, Christian de Visscher e Frédéric Varone, “La nouvelle gestion publique ‘en action’”, Revue Internationale de Politique Comparée, “La nouvelle gestion publique”, v. 11, n. 2, 2004, p. 79.

[52] Milton Friedman e Rose Friedman, La liberté du choix (Paris, Belfond, 1980), p. 217.

[53] Israel Kirzner, Concurrence et esprit d’entreprise (Paris, Economica, 2005).

[54] Para a análise do CCT, ver Patrick Le Galès, “Contrôle et surveillance. La restructuration de l’État en Grande-Bretagne”, em Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès (orgs.), Gouverner par les instruments (Paris, Presses de Sciences Po, 2004).

[55] Tony Blair, “Comment réformer les services publics?”, En Temps Réel – Les Cahiers, jun. 2003, p. 36.

[56] Não devemos nos esquecer também de que a “mercadorização” da prestação dos serviços na Grã-Bretanha foi concebida como um poderoso meio de controle sobre as autoridades locais, já que o governo central se dota de meios de sanção para fazer com que os novos procedimentos sejam aplicados.

[57] No Livro Branco de Jean-Ludovic Silicani (Livre blanc sur l’avenir de la fonction publique, faire des services publics et de la fonction publique des atouts pour la France, Paris, La Documentation Française, 2008), encontramos uma formulação particularmente apurada desse modo de concatenação avaliativa: “Se a cadeia gerencial não é mobilizada desde o topo até a base, sem descontinuidade, o resultado não é alcançado”, escreve Silicani. E acrescenta: “Assim, é fundamental que esses objetivos gerenciais sejam recordados na carta de compromissos que é dada a cada ministro e que este também seja julgado por seus resultados nesse domínio. Desse modo, ele será instigado a proceder da mesma forma com seus assessores, que farão o mesmo com seus colaboradores, e assim por diante. A primeira condição para que essa dinâmica gerencial virtuosa engrene, e gere rapidamente uma melhora considerável na eficácia da administração, é que se estabeleça uma relação direta de confiança entre o ministro e seus assessores na administração central”. Nesse pesadelo burocrático, do ministro até o mais modesto agente público, uma cadeia contínua de controle deve supostamente assegurar a eficácia da totalidade administrativa. Cada indivíduo é avaliador e avaliado. Talvez apenas o presidente, o avaliador supremo, seja exceção.

[58] B. Guy Peters, “Nouveau management public (New Public Management)”, em ­Dictionnaire des politiques publiques (Paris, Presses de Sciences Po, 2006).

[59] David Osborne e Ted Gaebler, Reinventing Government: How the Entrepreneurial Spirit is Transforming the Public Sector, from Schoolhouse to State House, from City Hall to the Pentagon (Reading, Addison-Wesley, 1992) [ed. bras.: Reinventando o governo: como o espírito empreendedor está transformando o setor público, trad. Sérgio Fernando Guarischi Bath e Ewandro Magalhães Júnior, 5. ed., Brasília, Mh Comunicação, 1995]. Osborne também é coautor de Banishing Bureaucracy: The Five Strategies for Reinventing Government e The Price of Government: Getting the Results We Need in An Age of Permanent Fiscal Crisis.

[60] David Osborne e Ted Gaebler, Reinventing Government, cit., p. xvii.

[61] Ibidem, p. 12.

[62] Para Osborne e Gaebler, a palavra “empreendedor” tem um sentido preciso, que eles tomam de Jean-Baptiste Say: empreendedor é aquele que, em qualquer campo em que se encontre, aumenta a eficácia e a produtividade.

[63] David Osborne e Ted Gaebler, Reinventing Government, cit., p. 20.

[64] Ibidem, p. 283.

[65] Ibidem, p. 284.

[66] Ver From Red Tape to Results: Creating a Government that Works Better and Costs Less (Washington DC, Government Printing Office, 2003). O termo “red tape” designa a fita vermelha que prende os documentos administrativos. O equivalente francês, apesar de um pouco familiar, seria paperasse [papelada]. Isso significa que devemos passar da regra burocrática aos resultados.

[67] Ver Xavier Greffe, Analyse économique de la bureaucratie, cit., p. 143.

[68] Anthony Giddens e Tony Blair, La troisième voie. Le renouveau de la social-démocratie (Paris, Seuil, 2002), p. 87.

[69] Ver Denis Saint-Martin, Building the New Managerialist State, cit.

[70] Cf. o relatório “Improving Management in Government – The Next Steps”, 1988. Ver Christopher Hood, “A Public Management for All Seasons?”, Public Administration, v. 69, n. 1, 1991, p. 3-19; Perry Anderson, “Histoire et leçons du néolibéralisme”, Page 2, nov. 1996, p. 2; Xavier Greffe, Gestion publique (Paris, Dalloz, 1999).

[71] Xavier Greffe cita o Livro Branco de 1991 (Competing for Quality), que faz do “teste de mercado” um desses métodos para abrir o fornecimento de serviços à concorrência: “A concorrência pela qualidade: se as soluções mercantis são melhores, privatizar; se não, introduzir o máximo possível mecanismos de mercado para aumentar o controle do cliente sobre o serviço”, citado em Xavier Greffe, Gestion publique, cit., p. 151.

[72] Philippe Marlière, Essais sur Tony Blair et le New Labour: la troisième voie dans l’impasse (Paris, Syllepse, 2003), p. 104.

[73] Nesse momento, foram criados um comitê interministerial de avaliação, um conselho científico de avaliação e um fundo nacional de desenvolvimento de avaliação.

[74] Ver o “Relatório Picq” sobre as responsabilidades e a organização do Estado (maio de 1994): Jean Picq, L’État en France: servir une nation ouverte sur le monde (Paris, La Documentation Française, 1995). Ver também Roger Fauroux e Bernard Spitz, Notre État: le livre-vérité de la fonction publique (Paris, Robert Laffont, 2000).

[75] O Banco Mundial escreveu no relatório de 1997: “Constatamos neste momento que o mercado e o Estado são complementares, já que cumpre a este instaurar as bases institucionais necessárias ao funcionamento daquele. Ademais, para atrair investimentos privados, a credibilidade do governo, isto é, a previsibilidade das regras e das políticas públicas e a constância de sua aplicação, pode ser tão importante quanto o conteúdo destas últimas”. Ver Banco Mundial, Rapport sur le développement dans le monde (Washington DC, 1997), p. 4, citado em Matthias Finger, “Néolibéralisme contre nouvelle gestion publique”, em Marc Hufty (org.), La pensée comptable: État, néolibéralisme, nouvelle gestion publique (Paris, PUF, 1998, Coleção Les Nouveaux Cahiers de l’Institut Universitaire d’Études du Développement), p. 62.

[76] Sobre a reforma empresarial dos hospitais públicos, ver Frédéric Pierru, Hippocrate malade de ses réformes (Bellecombe-en-Bauges, Éditions du Croquant, 2007). Para a análise da lei de reforma das universidades, a chamada Lei de Responsabilidade das Universidades, ver Annie Vinokur, “La loi relative aux libertés et responsabilités des universités: essai de mise en perspective”, Revue de la Régulation, n. 2, jan. 2008.

[77] Ver, por exemplo, sobre a nova “economia judiciária”, Gilles Sainati e Ulrich Schalchli, La décadence sécuritaire (Paris, La Fabrique, 2007).

[78] Em termos weberianos, o tipo ideal da “racionalidade com relação a fins”, regida por uma lógica de adaptação ótima dos meios a um objetivo, tende a ser confundida com a realidade. O que acontece é que nenhuma instituição pode privar-se completamente da “racionalidade com relação a valores”, que subordina a ação a princípios éticos, religiosos ou filosóficos.

[79] A ideia de que a ação dos ministros deveria sujeitar-se à lógica da auditoria e não mais ao julgamento público dos cidadãos, ideia que foi aplicada por decisão de Nicolas Sarkozy em dezembro de 2007, é apenas o resultado caricatural da dogmática mundial do “espírito gestor”.

[80] Michael Power, La société de l’audit: l’obsession du contrôle (Paris, La Découverte, 2005). Na prática, as novas técnicas de controle constituem um dispêndio de tempo, energia e dinheiro que levanta uma questão sobre o dogma da “eficácia”. Auditorias, avaliações, tempo de elaboração de “projetos” e procura de contratos podem ser particularmente caros em termos de tempo e podem desviar a atividade de seus objetivos principais. Tende a ser esse o caso quando esses métodos são aplicados, em especial, no ensino superior ou na pesquisa científica.

[81] Certos teóricos da organização, como Henry Mintzberg, mostraram a necessidade de se diferenciarem os modos de organização de acordo com o tipo de atividade. Ver Henry Mintzberg, Structure et dynamique des organisations (Paris, Éditions d’Organisation, 1982).

[82] A Grã-Bretanha levou muito longe essa ilusão com a criação de um indicador único de medida da gestão local, segundo uma escala de 1 a 4.

[83] Sobre esse ponto, ver as análises de Christopher Pollitt, Managerialism and the Public Services, cit.

[84] Michael Power observa que “a eficiência e a eficácia das empresas são construídas e verificadas no próprio curso do processo de auditoria”, La société de l’audit, cit., p. 111.

[85] A tese de Power é que a tecnologia de poder passa por uma transformação do olhar sobre a atividade a fim de torná-la “auditável”. Essa “auditabilidade” é uma construção social e política.

[86] Patrick Le Galès descreve a situação ubuesca das autoridades locais, que passam a maior parte do tempo redigindo relatórios complexos para atender aos controles da Audit Commission, que, num ímpeto inflacionista, começou a aumentar consideravelmente o número de inspeções repetitivas dos serviços locais. Ver Patrick Le Galès, “Contrôle et surveillance. La restructuration de l’État en Grande-Bretagne”, cit., p. 52 e seg.

[87] O que tenderia a mostrar que a análise econômica do Public Choice, concentrada nos custos da burocracia, deixou de lado um dos principais aspectos dos processos de racionalização evidenciados pela sociologia.

[88] Para Luc Rouban, “a mutação administrativa dos últimos anos tendeu a restringir não a ação pública, mas os meios públicos de ação governamental. Esse movimento leva ao fim da noção de ‘setor público’, entendido no sentido de que engloba atividades que se beneficiam de um regime jurídico e financeiro que transgride as regras do mercado”, “La réforme de l’appareil d’État”, cit., p. 147.


 

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