quarta-feira, 23 de novembro de 2022

A Nova Razão do Mundo: 4 - O HOMEM EMPRESARIAL

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O HOMEM EMPRESARIAL

Não captaríamos a originalidade do neoliberalismo se não víssemos seu ponto focal na relação entre as instituições e a ação individual. De fato, quando se deixa de considerar natural a conduta econômica maximizadora, condição absoluta do equilíbrio geral, convém explicar os fatores que a influenciam, a maneira como ela se aproxima de certo grau de eficiência, sem nunca conseguir alcançar a perfeição. As diferenças entre os autores neoliberais estão ligadas, em parte, à solução que eles dão a esse problema. Enquanto os principais responsáveis pelo “renascimento neoliberal” – Rougier, Lippmann e os ordoliberais alemães – destacam a necessidade da intervenção governamental, Von Mises se recusa a definir a função das instituições em termos de intervencionismo. E até proclama em alto e bom som o apego que tem ao princípio do “laissez-faire”: “Dentro da economia de mercado, um tipo de organização social centrado no laissez-faire, existe um domínio no qual o indivíduo é livre para escolher entre diversos modos de agir, sem ser tolhido pela ameaça de ser punido”[1]. Lendo tais passagens, temos a impressão de que com Von Mises – como, aliás, observou Von Rüstow em 1938 – voltamos às apologias mais dogmáticas do laissez-faire como fonte de prosperidade para todos e cada um.

Seria precipitado concluir a partir daí que essa corrente de pensamento não traz nada de novo e contenta-se com um simples retorno ao liberalismo dogmático. Significaria, sobretudo, desprezar uma mudança importante na argumentação, que reside na valorização da concorrência e da empresa como forma geral da sociedade. Obviamente, o ponto comum com o liberalismo clássico é ainda a exigência de que se justifique a limitação do Estado em nome do mercado, sublinhando o papel da liberdade econômica na eficácia da máquina econômica e no prosseguimento do processo de mercado. Daí certa confusão que leva a entender que Von Mises ou Hayek são apenas “fantasmas” do velho liberalismo manchesteriano.

O que pode enganar na atitude austro-americana[2] é seu “subjetivismo”[3] mais ou menos pronunciado, que chegou a levar certos discípulos de Von Mises, como Murray Rothbard, ao “anarcocapitalismo”, isto é, à negação radical de qualquer legitimidade da entidade estatal. Sem ignorar o que resta ainda de bastante “clássico” nessa orientação, que a coloca longe da inspiração construtivista do neoliberalismo, é importante destacar a contribuição original do pensamento desses autores. Esse pensamento é inteiramente estruturado pela oposição de dois tipos de processo: um de destruição e outro de construção. O primeiro, que Von Mises chamou de “destrucionismo”, tem como agente principal o Estado. Repousa sobre o encadeamento perverso de ingerências do Estado que levam ao totalitarismo e à regressão econômica. O segundo, que corresponde ao capitalismo, tem como agente o empreendedor, isto é, potencialmente qualquer sujeito econômico.

Dando ênfase à ação individual e ao processo de mercado, os autores austro-americanos visam, em primeiro lugar, a produzir uma descrição realista de uma máquina econômica que tende ao equilíbrio, quando não é perturbada por moralismos ou intervenções políticas e sociais destruidoras. Em segundo lugar, visam a mostrar como se constrói na concorrência geral certa dimensão do homem, o entrepreneurship[4], que é o princípio de conduta potencialmente universal mais essencial à ordem capitalista. Desse modo, como diz muito apropriadamente Thomas Lemke em seu comentário sobre Michel Foucault, o neoliberalismo apresenta-se como um “projeto político que tenta criar uma realidade social que supostamente já existe”[5]. É precisamente essa dimensão antropológica do homem-empresa que, de um modo diferente daquele da sociologia ordoliberal, será a principal contribuição dessa corrente.

Os caminhos estratégicos promovidos pelo neoliberalismo – criação de situações de mercado e produção do sujeito empresarial – devem-se muito mais a ela do que à economia neoclássica. No programa neoclássico, a concorrência sempre remete a certo estado e, nesse sentido, tem muito mais a ver com uma estática do que com uma dinâmica. É, mais especificamente, um cânone pelo qual é possível julgar diversas situações em que se encontra um mercado e, ao mesmo tempo, o quadro em que a ação racional dos agentes pode idealmente conduzir ao equilíbrio. Toda situação que não corresponde às condições da concorrência pura e perfeita é considerada uma anomalia que impossibilita a realização da harmonia preconcebida entre os agentes econômicos. Desse modo, a teoria neoclássica é levada a prescrever um “retorno” às condições da concorrência estabelecidas a priori como “normais”. Se é certo que o programa neoclássico deu ao discurso do livre mercado uma firme caução acadêmica, em particular sob a forma do “mercado eficiente” das finanças globais, é errado pensar que a racionalidade neoliberal repousa exclusiva ou principalmente sobre o programa walrasiano-paretiano do equilíbrio geral. Uma concepção muito diferente da concorrência – que tem apenas o nome em comum com a versão neoclássica – constitui o fundamento específico do concorrencialismo neoliberal. O grande passo adiante dado pelos austríacos Von Mises e Hayek consiste em ver a concorrência no mercado como um processo de descoberta da informação pertinente, como certo modo de conduta do sujeito que tenta superar e ultrapassar os outros na descoberta de novas oportunidades de lucro. Em outras palavras, radicalizando e sistematizando numa teoria coerente da ação humana alguns aspectos já presentes no pensamento liberal clássico (desejo de melhorar a própria sorte, fazer melhor do que o outro etc.), a doutrina austríaca privilegia uma dimensão agonística: a da competição e da rivalidade. A partir da luta dos agentes é que se poderá descrever não a formação de um equilíbrio definido por condições formais, mas a própria vida econômica, cujo ator real é o empreendedor, movido pelo espírito empresarial que se encontra em graus diferentes em cada um de nós e cujo único freio é o Estado, quando este trava ou suprime a livre competição.

Essa revolução na maneira de pensar inspirou inúmeras pesquisas, como aquelas, em plena expansão, sobre inovação e informação. Mas, sobretudo, ela exige uma política que vai muito além dos mercados de bens e serviços e diz respeito à totalidade da ação humana. Embora se considere típica de uma política neoliberal a construção de uma situação econômica que a aproxime do cânone da concorrência pura e perfeita, há outra orientação, talvez mais disfarçada ou menos imediatamente perceptível, que visa a introduzir, restabelecer ou sustentar dimensões de rivalidade na ação e, mais fundamentalmente, moldar os sujeitos para torná-los empreendedores que saibam aproveitar as oportunidades de lucro e estejam dispostos a entrar no processo permanente da concorrência. Foi particularmente no campo do management que essa orientação encontrou sua expressão mais forte.

Crítica do intervencionismo

Recordamos que, durante o Colóquio Walter Lippmann, Von Mises foi um dos que mais vilipendiaram qualquer nova legitimação da intervenção do Estado, a ponto de ser visto por outros participantes como um old liberal bastante deslocado no encontro. De fato, ele não suporta o socialismo nem tolera a intervenção do Estado[6]. Aliás, para ele, esta é o germe daquele. A interferência do Estado pode destruir a economia de mercado e arruinar a prosperidade, alterando a informação transmitida pelo mercado. Os preços orientam temporalmente os projetos individuais e permitem coordenar suas ações. A manipulação dos preços ou da moeda perturba o conhecimento dos desejos dos consumidores e impede que as empresas deem uma resposta conveniente e a tempo. Esses efeitos negativos, resultado dos entraves à adaptação, desencadeiam um processo cada vez mais nefasto. Quanto mais o Estado intervém, mais provoca perturbações e mais intervém para eliminá-las, e assim sucessivamente até se instaurar um socialismo totalitário. Essa cadeia de reações é facilitada pela ideologia da democracia ilimitada, baseada no mito da soberania do povo e da justiça social.

Desse ponto de vista, não existe uma terceira via possível entre o free market e o controle do Estado. Para Von Mises, a intervenção é, por definição, um entrave à economia de mercado. Por isso, não poupa críticas aos ordoliberais, esses “intervencionistas que procuram soluções ‘em cima do muro’”[7]. Sem temer o exagero, Von Mises vê esses teóricos como capachos – involuntários, sem dúvida – da ditadura. Eles não se dão conta, segundo ele, que vão na direção do despotismo econômico absoluto do governo, não da soberania absoluta do consumidor sobre as escolhas de produção; e nisso são dignos herdeiros do “socialismo à alemã, modelo Hindenburg”[8]. O governo deve contentar-se em assegurar as condições da cooperação social, sem intervir. “O controle é indivisível”: ou é todo privado ou é todo estatal; ou ditadura do Estado ou soberania do consumidor. Não existe meio-termo entre o totalitarismo de Estado e o mercado definido como uma “democracia de consumidores”[9]. Essa posição radical, que proíbe qualquer tipo de intervenção, baseia-se na disjunção de dois processos autogeradores e de sentido contrário: o processo negativo do Estado que cria seres assistidos e o processo de mercado que cria empreendedores criativos.

O que perturba a perfeita democracia do consumidor e abre o caminho para o despotismo totalitário é a intrusão de princípios éticos, heterogêneos ao processo do mercado, que não sejam o do interesse.

"[A economia] não se interessa em saber se os lucros devem ser aprovados ou condenados do ponto de vista de uma pretensa lei natural ou de um pretenso código eterno e imutável da moralidade, a respeito do qual a intuição pessoal ou a revelação divina supostamente fornecem uma informação precisa. A economia simplesmente estabelece o fato de que os lucros e as perdas são fenômenos essenciais da economia de mercado.[10]"

O mesmo vale para os julgamentos de valor dos intelectuais: sendo heterogêneos à lógica econômica, não respeitam a democracia absoluta do consumidor e, portanto, o funcionamento do mercado.

"Os moralistas e os pregadores fazem críticas ao lucro que erram o alvo. Não é culpa dos empreendedores que os consumidores, o povo, o homem comum, prefiram o aperitivo à Bíblia e os romances policiais aos livros sérios nem que os governos prefiram os canhões à manteiga. O empreendedor não lucra mais vendendo coisas “ruins” em vez de coisas “boas”. Seus lucros são tanto maiores quanto mais consegue proporcionar aos consumidores o que estes exigem mais intensamente.[11]"

O exercício da autoridade chama seu próprio reforço. Diante do fracasso dessas intervenções, o Estado vai sempre mais longe nos atos de autoridade, questionando as liberdades individuais de forma cada vez mais patente.

"É importante lembrar que a intervenção do governo significa sempre ação violenta ou ameaça de recorrer a ela. [...] Em última análise, governar é servir-se de homens armados, policiais, guardas, soldados, carcereiros e executores. O aspecto fundamental do poder é que ele pode impor suas vontades usando o cassetete, prendendo e matando. Os que exigem mais governo exigem, no fim das contas, mais coerção e menos liberdade.[12]"

Essa condenação inapelável da intervenção repousa sobre uma acusação de usurpação. O Estado acredita saber, no lugar dos indivíduos, o que é bom para eles. Ora, para Von Mises e Hayek, a particularidade e a superioridade da economia de mercado é que o indivíduo deve ser o único a decidir a finalidade de suas ações, porque somente ele sabe o que é bom para ele.

"Na economia de mercado, o indivíduo é livre para agir dentro da órbita da propriedade privada e do mercado. Suas escolhas são inapeláveis. Para seus semelhantes, suas ações são fatos que devem ser levados em consideração por eles em sua própria atividade. A coordenação das ações autônomas de todos os indivíduos é assegurada pelo funcionamento do mercado. A sociedade não diz a alguém o que deve fazer. Não há necessidade de tornar a cooperação obrigatória por ordens e proibições. A não cooperação penaliza a si mesma. O ajustamento às exigências do esforço produtivo na sociedade e a busca dos objetivos próprios do indivíduo não conflitam. Isso, portanto, não requer arbitragem. O sistema pode funcionar e desempenhar seu papel sem intervenção de uma autoridade que emite ordens e interdições e pune os recalcitrantes.[13]"

Não se poderia ser mais explícito na exaltação das virtudes do livre mercado e do papel do interesse individual no funcionamento da economia capitalista. Isso significa que voltamos a Smith, ou até mesmo a Mandeville?

Uma nova concepção do mercado

Se o pensamento austro-americano atribui um papel central ao mercado, é porque o vê como um processo subjetivo. A palavra-chave, mercado, ainda é a mesma do pensamento liberal tradicional, mas o conceito que ela designa mudou. Não é mais o de Adam Smith ou o dos neoclássicos. É um processo de descoberta e aprendizado que modifica os sujeitos, ajustando-os uns aos outros. A coordenação não é estática, não une seres sempre iguais a si mesmos, mas produz uma realidade cambiante, um movimento que afeta os meios nos quais os sujeitos evoluem e os transforma também. O processo de mercado, uma vez instaurado, constitui um quadro de ação que não necessita mais de intervenções – estas só poderiam ser um entrave, uma fonte de destruição da economia. Contudo, o mercado não é mais o “ambiente” natural no qual as mercadorias circulam livremente. Não é um “meio” dado de uma vez por todas, regido por leis naturais, governado por um princípio misterioso do equilíbrio. É um processo regulado que utiliza motivações psicológicas e competências específicas. É um processo menos autorregulador (isto é, que conduz ao equilíbrio perfeito) do que autocriador, capaz de se autogerar no tempo. E, se não necessita de poderes reguladores externos, é porque tem sua própria dinâmica. Uma vez instaurado, poderia prosseguir em perfeito movimento perpétuo, autopropulsivo, se não fosse desacelerado ou pervertido por entraves éticos e estatais que constituem atritos nocivos.

O mercado é concebido, portanto, como um processo de autoformação do sujeito econômico, um processo subjetivo autoeducador e autodisciplinador, pelo qual o indivíduo aprende a se conduzir. O processo de mercado constrói seu próprio sujeito. Ele é autoconstrutivo.

Von Mises vê o homem como um ser ativo, um homo agens. O motor inicial é uma espécie de aspiração vaga a uma condição melhor, um impulso para agir a fim de melhorar a própria situação. Von Mises não define a ação humana por um cálculo de maximização propriamente dito, mas por uma racionalidade mínima que impele o homem a destinar recursos a um objetivo de melhoria da situação. A ação humana tem uma finalidade. Esse é o ponto de partida, e é essencial: a partir do impulso para realizar essa finalidade, ele não vai trocar aquilo que por acaso tem a mais - peles de coelho ou peixes com os quais não sabia o que fazer –, como supunham os primeiros teóricos da ordem do mercado, mas vai empreender e, ao empreender, vai aprender. Vai estabelecer um plano individual de ação e se lançar em empresas, vai eleger objetivos e destinar recursos a eles, vai construir, como diz o discípulo e continuador de Von Mises, Israel Kirzner, “sistemas fins-meios” em função de suas próprias aspirações, e estas orientarão sua energia. O ser referencial desse neoliberalismo não é primeiro e essencialmente o homem da troca que faz cálculos a partir dos dados disponíveis, mas o homem da empresa que escolhe um objetivo e pretende realizá-lo. Von Mises deu a fórmula desse homem: “Em toda economia real e viva, todo ator é sempre empreendedor”[14].

Com essa corrente de pensamento austro-americana, pode parecer que saímos da problemática da governamentalidade neoliberal. Não é nada disso. É como se ela atribuísse ao processo de mercado a responsabilidade exclusiva de construir o sujeito empresarial.

Ao contrário dos ordoliberais alemães, que deixam a cargo do quadro da sociedade o cuidado de limitar as ações humanas, os austro-americanos seguem o caminho do “subjetivismo”, isto é, do autogoverno do sujeito. O homem sabe se conduzir não por “natureza”, mas graças ao mercado, que constitui um processo de formação. Posto cada vez mais frequentemente em situação de mercado, o indivíduo pode aprender a conduzir-se racionalmente. Esboça-se assim, dessa vez de maneira indireta, o tipo de ação ligado à governamentalidade neoliberal: a criação de situações de mercado que permitem esse aprendizado constante e progressivo. Essa ciência da escolha em situação de concorrência é, na realidade, a teoria do modo como o indivíduo é conduzido a governar a si mesmo no mercado.

A economia é mais questão de escolha do que de cálculo de maximização; mais especificamente, este último é apenas um momento, ou uma dimensão da ação, que não é capaz de resumi-la inteiramente. O cálculo pressupõe dados, e pode-se considerar até que é determinado pelos dados, como é o caso nas doutrinas do equilíbrio geral. A escolha é mais dinâmica, implica criatividade e indeterminação. É o elemento propriamente humano da conduta econômica. Como diz Kirzner, uma máquina pode calcular, mas não pode escolher. A economia é uma teoria da escolha[15]. E, em primeiro lugar, a dos consumidores, novos soberanos ativos que procuram o melhor negócio, o melhor produto que corresponderá a sua própria construção de fins e meios, isto é, seu plano. A contribuição do subjetivismo para a qual apelam Von Mises e Kirzner é ter “transformado a teoria dos preços de mercado em uma teoria geral da escolha humana”[16].

Esse ponto é fundamental. Se o opus magnum de Von Mises intitula-se A ação humana, convém levar muito a sério o título. Trata-se de uma redefinição do homo oeconomicus sobre bases mais amplas:

"A teoria geral da escolha e da preferência [...] é muito mais do que uma simples teoria do “lado econômico” das iniciativas do homem, de seus esforços para proporcionar-se coisas úteis e aumentar seu bem-estar material. Ela é a ciência de todos os gêneros do agir humano. O ato de escolher determina todas as decisões do homem. Fazendo sua escolha, o homem não opta apenas entre os diversos objetos e serviços materiais. Todos os valores humanos oferecem-se a sua escolha. Todos os fins e os meios, as considerações tanto materiais como morais, o sublime e o ordinário, o nobre e o ignóbil, são ordenados numa série única e submetidos a uma decisão que pega uma coisa e descarta outra. Nada do que os homens desejam obter ou evitar fica fora desse ordenamento numa única gama de gradações e preferências. A teoria moderna do valor recua o horizonte científico e expande o campo dos estudos econômicos. Assim, da economia política da escola clássica emerge uma teoria geral do agir humano: a praxeologia. Os problemas econômicos ou catalácticos[17] estão enraizados numa ciência mais geral e não podem mais se separar dessa conexidade. Nenhum estudo de problemas propriamente econômicos pode dispensar-se de partir dos atos de escolha; a economia torna-se uma parte – ainda que a mais bem elaborada até o momento – de uma ciência mais universal, a praxeologia.[18]"

O mercado e o conhecimento

Não há meio-termo: ou democracia do consumidor ou ditadura do Estado. Os princípios éticos ou estéticos não valem nada na esfera do mercado, como dissemos. Não pode haver economia de mercado sem a primazia absoluta do interesse, excluídos quaisquer outros motivos da ação.

"A única razão por que economia de mercado pode funcionar sem que ordens governamentais digam a todos e qualquer um o que devem fazer, e como devem fazer, é que ela não pede a ninguém que se afaste das linhas de conduta mais convenientes aos próprios interesses. O que assegura a integração das ações individuais no conjunto do sistema social de produção é a busca de cada indivíduo por seus próprios objetivos. Seguindo sua “avidez”, cada ator dá sua contribuição para o melhor arranjo possível das atividades de produção. Assim, na esfera da propriedade privada e das leis que a protegem contra os ataques de ações violentas ou fraudulentas, não há nenhum antagonismo entre os interesses do indivíduo e os da sociedade.[19]"

A limitação do poder governamental encontra seu fundamento não nos “direitos naturais” nem na prosperidade gerada pela livre iniciativa privada, mas nas próprias condições de funcionamento da máquina econômica. Obviamente, há conciliações possíveis, mas a essência repousa na ideia de que a economia de mercado tem como condição a mais completa liberdade individual. Esse é um argumento mais funcional do que ético: a condição de funcionamento do mecanismo de mercado é a livre escolha nas decisões em função das informações que cada indivíduo possui. O mercado é um desses instrumentos que andam sozinhos, justamente porque coordena os trabalhos especializados utilizando otimamente os conhecimentos dispersos.

A teoria hayekiana do conhecimento é particularmente significativa a respeito desse ponto[20]. Hayek compartilha com Von Mises a ideia de que o indivíduo não é um ator onisciente. Talvez seja racional, como sustenta Von Mises, mas é, sobretudo, ignorante. É por isso, aliás, que existem regras que ele segue sem pensar. Ele sabe o que sabe por meio das regras, das normas de conduta, dos esquemas de percepção que a civilização desenvolveu progressivamente[21].

O problema do conhecimento não é periférico com relação à teoria econômica, ele é central, embora durante muito tempo tenha sido negligenciado em favor da análise da divisão do trabalho. O objeto econômico por excelência era o problema da coordenação das tarefas especializadas e da alocação dos recursos. Ora, diz Hayek, o problema da “divisão do conhecimento” é o “principal problema da economia e até mesmo das ciências sociais”[22]. Numa sociedade estruturada pela divisão do trabalho, ninguém sabe tudo. A informação é estruturalmente dispersa. No entanto, ainda que o primeiro reflexo seja querer “centralizar” a informação – que é o que tenta fazer o socialismo, como mostram os teóricos que elogiam a superioridade do “cálculo socialista” –, Hayek, seguindo Von Mises, mostra que essa tentativa está fadada ao fracasso, por causa da dispersão insuperável do saber.

Não se trata aqui de conhecimento científico. Para Hayek, que foi o primeiro a teorizá-lo, “knowledge” significa certo tipo de conhecimento diretamente utilizável no mercado, relacionado às circunstâncias de tempo e lugar – o conhecimento que se refere não ao porquê, mas ao quanto; o conhecimento que um indivíduo pode adquirir em sua prática, e cujo valor só ele pode avaliar; o conhecimento que ele pode utilizar de maneira proveitosa para vencer os outros na competição. Esse conhecimento específico e disperso, muito frequentemente desprezado e negligenciado, tem tanto valor quanto o conhecimento dos especialistas e dos administradores. Nesse sentido, para Hayek, é natural que um agente de câmbio ou um agente imobiliário ganhe muito mais que um engenheiro, um pesquisador ou um professor; todos ganham, inclusive essas últimas categorias, quando possibilidades de lucro são efetivamente realizadas no mercado.

Esses conhecimentos individuais e particulares são uns dos mais importantes ou, em todo caso, são mais eficazes que os dados estatísticos agregados, na medida em que permitem a realização de todas as pequenas mudanças permanentes às quais o indivíduo deve adaptar-se no mercado. Daí a importância de uma descentralização das decisões para que cada indivíduo possa agir com as informações que tem. É inútil e até perigoso exigir um “controle consciente” dos processos econômicos: a superioridade do mercado deve-se justamente ao fato de ele poder prescindir de qualquer tipo de controle. Em contrapartida, é preciso facilitar a comunicação das informações para completar os fragmentos cognitivos que cada indivíduo possui. O preço é um meio de comunicação de informação pelo qual os indivíduos vão poder coordenar suas ações. A economia de mercado é uma economia de informação que permite prescindir do controle centralizado. Apenas as motivações individuais impelem os indivíduos a fazer o que devem fazer, sem que ninguém tenha de lhes dizer para fazê-lo, utilizando conhecimentos que eles são os únicos a deter ou buscar.

O mercado é um mecanismo social que permite mobilizar essa informação e comunicá-la ao outro via preço. O problema da economia não é, pois, o do equilíbrio geral. É saber como os indivíduos vão poder tirar o melhor partido da informação fragmentária de que dispõem.

O empreendedorismo como modo do governo de si

Não se pode compreender essa defesa da liberdade de mercado sem a relacionar ao postulado que a acompanha necessariamente: não há necessidade de intervenção porque os indivíduos são os únicos capazes de fazer cálculos a partir das informações que possuem. É esse postulado da ação humana racional que arruína previamente as pretensões do dirigismo. Daí a importância do esforço de Von Mises para fazer a ciência econômica repousar sobre uma teoria geral da ação humana, a “praxeologia”.

A economia neoclássica padrão deixa aberta a possibilidade de uma intervenção corretiva do Estado. De fato, construindo modelos de equilíbrio sobre hipóteses irrealistas (como o conhecimento pleno dos dados), os marginalistas apenas mostraram, por seu próprio irrealismo, a irrealidade do mercado puro e perfeito. O subjetivismo reivindicado pelos austro-americanos lhes permite não pagar um preço politicamente alto por um resultado teórico tão duvidoso como o equilíbrio geral, que não é de grande interesse para o conhecimento do funcionamento das economias reais. Trata-se antes de compreender como o sujeito age realmente, como se conduz quando está numa situação de mercado. É a partir desse funcionamento que se poderá colocar a questão do modo de governo de si.

Esse autogoverno tem um nome: entrepreneurship. Essa dimensão prevalece sobre a capacidade calculadora e maximizadora da teoria econômica padrão. Todo indivíduo tem algo de empreendedorístico dentro dele, e é característica da economia de mercado liberar e estimular esse “empreendedorismo” humano. Kirzner define essa dimensão fundamental do seguinte modo: “O elemento empresarial do comportamento econômico dos participantes consiste [...] na vigilância das mudanças de circunstâncias, anteriormente despercebidas, que lhes permitem tornar a troca mais proveitosa do que era antes”[23].

O puro espírito de mercado não necessita de dotação inicial, porque se trata de explorar uma possibilidade de vender mais caro um bem já comprado: “Segue-se disso que cada um de nós é um empreendedor potencial, já que o papel empresarial puro não pressupõe uma boa sorte inicial, na forma de ativos de valor”[24]. O empreendedor não é um capitalista ou um produtor nem mesmo o inovador schumpeteriano que muda incessantemente as condições da produção e constitui o motor do crescimento. É um ser dotado de espírito comercial, à procura de qualquer oportunidade de lucro que se apresente e ele possa aproveitar, graças às informações que ele tem e os outros não. Ele se define unicamente por sua intervenção específica na circulação dos bens.

Para Von Mises, assim como para Kirzner, o empreendedorismo não é apenas um comportamento “economizante”, isto é, que visa à maximização dos lucros. Ele também comporta a dimensão “extraeconomizante” da atividade de descobrir, detectar “boas oportunidades”. A liberdade de ação é a possibilidade de testar suas faculdades, aprender, corrigir-se, adaptar-se. O mercado é um processo de formação de si.

Para Von Mises, o empreendedor é o homem que age para melhorar sua sorte, utilizando as diferenças de preço entre os fatores de produção e os produtos. O espírito que ele desenvolve é o da especulação, que mistura risco e previsão:

"Como todo homem na posição de ator, o empreendedor é sempre um especulador. Ele prevê agir em função de situações futuras e incertas. Seu sucesso ou seu fracasso dependem da exatidão com que prevê acontecimentos incertos. [...] A única fonte de onde saem os lucros do empreendedor é sua aptidão para prever melhor do que os outros qual será a demanda dos consumidores.[25]"

Ao contrário de Lionel Robbins, que pressupõe que o homem está sempre numa situação em que deve maximizar suas vantagens para atingir uma série de objetivos que lhe são dados não se sabe como, o homo agens de Von Mises e Kirzner, que deseja melhorar sua sorte, deve constituir os “quadros de fins e meios” em que deverá efetuar suas escolhas. Não é um maximizador passivo, mas um construtor de situações proveitosas, que ele descobre mediante vigilância (alertness) e poderá explorar. Porque o homem é um sujeito ativo, criativo, construtor, não se deve interferir em suas escolhas, ou se correria o risco de destruir essa capacidade de vigilância e esse espírito comercial tão essencial para o dinamismo da economia capitalista. Aprender a procurar informação torna-se uma competência vital no mundo competitivo descrito por esses autores. Se não podemos conhecer o futuro, podemos, graças ao processo concorrencial e empresarial, adquirir a informação que favorece a ação.

A pura dimensão do empreendedorismo, a vigilância em busca da oportunidade comercial, é uma relação de si para si mesmo que se encontra na base da crítica à interferência. Somos todos empreendedores, ou melhor, todos aprendemos a ser empreendedores. Apenas pelo jogo do mercado nós nos educamos a nos governar como empreendedores. Isso significa também que, se o mercado é visto como um livre espaço para os empreendedores, todas as relações humanas podem ser afetadas por essa dimensão empresarial, constitutiva do humano[26].

A coordenação do mercado tem como princípio a descoberta mútua dos planos individuais. O processo de mercado é como um cenário em que ignorantes isolados, ao interagir, pouco a pouco revelam uns aos outros as oportunidades que vão melhorar a situação de cada um. Se todo mundo soubesse tudo, haveria um ajuste imediato e tudo pararia[27]. O mercado é um processo de aprendizagem contínua e adaptação permanente.

O que importa nesse processo é a redução da ignorância, o learning by discovery, oposto tanto ao saber total do planejador como ao saber total do equilíbrio geral. Por ignorar as decisões do outro, os empreendedores nem sempre fazem as melhores escolhas. No entanto, podem conhecer a natureza dos planos do outro pelo confronto comercial, pelo próprio jogo da concorrência. Descobrir oportunidades de compra e venda é descobrir empresas rivais que possam perturbá-las. Portanto, é também adaptar a oferta ou a demanda aos concorrentes. O mercado define-se precisamente por seu caráter intrinsecamente concorrencial. Cada participante tenta superar os outros numa luta incessante para tornar-se líder e assim permanecer. Essa luta tem a virtude do contágio: todos imitam os melhores, tornam-se cada vez mais vigilantes e, progressivamente, adquirem entrepreneurship. O empreendedor que procura vender pelos métodos da persuasão moderna obtém os efeitos mais positivos sobre os consumidores. Conscientizando-os das possibilidades de compra, o esforço do empreendedor visa a “proporcionar aos consumidores o empreendedorismo do qual foram privados, ao menos parcialmente”[28].

Estamos muito distantes de Schumpeter, que acreditava única e exclusivamente no desequilíbrio introduzido pela inovação. A concorrência e o aprendizado que ela permite equilibra oferta e procura em razão da informação circulando[29].

O desequilíbrio econômico se deve à ignorância mútua dos participantes potenciais do mercado. Estes últimos não veem de saída as oportunidades de ganhos mútuos, mas uma hora ou outra acabam por descobri-las. Ignoram as oportunidades, mas estão dispostos a descobri-las. O processo de mercado não é nada mais do que a sequência de descobertas que os tiram desse estado de ignorância. Esse processo de descoberta é um processo de equilibração. No fim do processo, quando restam apenas bolsões residuais de ignorância, surge um novo estado de equilíbrio. Isso, claro, é um estado hipotético, na medida em que há incessantemente mudanças de todos os tipos que alteram as oportunidades: “As forças a favor da mútua descoberta e da eliminação da ignorância estão sempre em ação”[30].

O processo de descoberta no mercado altera o próprio conceito do que devemos entender por conhecimento e ignorância. A descoberta daquilo que não se sabia não se confunde com a busca deliberada de conhecimento, que pressupõe que se saiba previamente aquilo que não se sabe. A descoberta que nos permite experimentar o mercado repousa no fato de que não sabíamos que ignorávamos, ou ignorávamos que ignorávamos. Se a descoberta pertinente está ligada a uma ignorância que ignora a si mesma como tal, então podemos avaliar a dificuldade dos planejadores que, ignorando que ignoram, nada podem encontrar. Essa ignorância não sabida como tal é o ponto de partida da análise do mercado. A surpresa, a descoberta fortuita, desencadeia a reação dos mais “alertas”, isto é, os “empreendedores”. Se descobrimos por acaso, durante um passeio, que um comerciante vende a um dólar as frutas que compramos de outro a dois dólares, o espírito de empreendimento que nos mantém alertas fará com que nos desviemos do mais caro. O sujeito de mercado entra numa experiência de descoberta na qual o que ele descobre primeiro é que não sabia que ignorava.

Como vemos, Kirzner fez uma síntese entre a teoria hayekiana da informação e a teoria miseniana do empreendedor que renova a argumentação a favor do livre mercado. O mercado precisa da liberdade individual como um de seus componentes fundamentais[31]. Essa liberdade individual consiste menos em definir sua própria escala de preferências do que fazer suas próprias descobertas empresariais: “O indivíduo livre possui a liberdade de decidir o que quer”[32]. A liberdade sem objetivo não é nada, somente adquire valor pelo sistema que lhe dá objetivos concretos, isto é, oportunidades de lucro! O capitalismo não tira suas vantagens do livre contrato entre intercambiadores que sabem com antecedência o que querem. O que o move é o processo de descoberta “competitivo-empresarial”.

Formar o novo empreendedor de massa

Não há consciência espontânea da natureza do espírito humano para Von Mises, assim como para Hayek não há consciência das regras a que obedecemos. A ação humana desenrola-se sempre sob certa névoa. Essa é, sem dúvida, uma de suas qualidades mais eminentes e menos conhecidas. A racionalidade efetiva que ela atesta – a adaptação eficaz dos meios aos fins – exclui qualquer racionalismo que faça da reflexão sobre a ação uma condição do bem agir. Essa inconsciência é também uma fraqueza explorada pelos racionalistas demagogos, que pretendem substituir a coordenação do mercado – fonte de anarquia e injustiça para eles – pelo controle consciente da economia. Permitir que todos se tornem verdadeiros sujeitos de mercado pressupõe combater os que criticam o capitalismo. Essa batalha transferida aos intelectuais é indispensável na medida em que as ideologias têm uma enorme influência sobre as orientações da ação individual. Von Mises, Hayek e seus sucessores convenceram-se rapidamente disso. Em sua grande obra crítica, Le socialisme, Von Mises defende que não há nada mais importante do que a “batalha de ideias” entre capitalismo e socialismo[33]. Acreditando que o socialismo lhes garantirá um nível mais alto de bem-estar, as massas, que não pensam, aderem a ele[34].

Von Mises não esconde a influência possível e desejável da ciência econômica sobre as políticas econômicas. As políticas liberais nunca fizeram mais do que pôr em prática a ciência econômica. Aliás, foi esta última que conseguiu eliminar alguns entraves que impediam o desenvolvimento do capitalismo:

"Foram as ideias dos economistas clássicos que afastaram os obstáculos erguidos por leis seculares, preconceitos e hábitos contra as melhorias tecnológicas, libertaram o gênio dos reformadores e dos inovadores, presos até então na camisa de força das corporações, da tutela governamental e das pressões sociais de toda espécie. Foram essas ideias que diminuíram o prestígio dos conquistadores e dos espoliadores e demonstraram os benefícios sociais decorrentes da atividade econômica privada. Nenhuma das grandes invenções modernas teria sido posta em prática se a mentalidade da era pré-capitalista não tivesse sido inteiramente desmantelada pelos economistas. O que se denomina comumente “Revolução Industrial” foi um rebento da revolução ideológica realizada pelas doutrinas dos economistas.[35]"

É o que Von Mises e Hayek tentarão fazer, por sua vez, para combater os novos perigos que ameaçam a plena liberdade do mercado e criticar as diferentes formas de intervenção do Estado[36]. No caso de George Stigler e Milton Friedman, sabemos que eles foram não apenas economistas de renome, mas também “empreendedores ideológicos” temíveis, não se eximindo de militar da forma mais constante e declarada a favor do capitalismo de livre empresa contra todos os que, de um modo ou de outro, conformaram-se com a intervenção reformadora do Estado. Esses autores até mesmo teorizaram a luta ideológica: se as massas não pensam, como Von Mises gosta de dizer, cabe aos círculos estritos dos intelectuais travar frontalmente o combate contra todas as formas de progressismo e reforma social, germe do totalitarismo. Donde a extrema atenção que os neoliberais norte-americanos davam à difusão de suas ideias na mídia e ao ensino da economia nas escolas e faculdades dos Estados Unidos[37]. Se o mercado é um processo de aprendizado, se o fato de aprender é um fator fundamental do processo subjetivo de mercado, o trabalho de educação realizado por economistas pode e deve contribuir para a aceleração dessa autoformação do sujeito. A cultura de empresa e o espírito de empreendimento podem ser aprendidos desde a escola, do mesmo modo que as vantagens do capitalismo sobre qualquer outra organização econômica. O combate ideológico é parte integrante do bom funcionamento da máquina.

A universalidade do homem-empresa

Essa valorização do empreendedorismo e a ideia de que essa faculdade só pode se formar no meio mercantil são partes interessadas na redefinição do sujeito referencial da racionalidade neoliberal. Com Von Mises, ocorre um claro deslocamento do tema. Trata-se menos da função específica do empreendedor dentro do funcionamento econômico do que da faculdade empresarial tal como existe em todo sujeito, da capacidade de se tornar empreendedor nos diversos aspectos de sua vida ou até mesmo de ser o empreendedor de sua vida. Em resumo, trata-se de fazer com que cada indivíduo se torne o mais “enterprising” possível.

Essa proposição genérica, de natureza antropológica, de certo modo redesenha a figura do homem econômico, dá a ele uma allure ainda mais dinâmica e ativa do que no passado. A importância que é atribuída ao papel do empreendedor não é nova. Desde o século XVIII, o homem de projetos (projector) já aparece como o verdadeiro herói moderno para alguns, como Daniel Defoe. Segundo Richard Cantillon, que sublinhará a função econômica específica do empreendedor, foi sobretudo Jean-Baptiste Say que, querendo distinguir-se de Adam Smith, dividiu a noção de trabalho – homogênea demais em sua opinião – em três funções: a do especialista que produz os conhecimentos, a do empreendedor que põe os conhecimentos em prática para produzir novas utilidades e a do operário que executa a operação produtiva[38]. O empreendedor é um mediador entre o conhecimento e a execução: “O empreendedor aproveita as mais elevadas e as mais humildes faculdades da humanidade. Recebe as orientações do especialista e as transmite ao operário”[39]. O empreendedor que aplica os conhecimentos tem um papel importante. Repousa sobre ele o sucesso da empresa e, generalizando, a prosperidade de um país. Por mais que a França tivesse os melhores especialistas, a Inglaterra a superou na indústria pelo talento de seus empreendedores e pela habilidade de seus operários[40]. Em que essa função é tão importante?

"O empreendedor da indústria é o principal agente da produção. As outras operações são indispensáveis para a criação dos produtos, mas é o empreendedor que as implementa, que lhes dá um impulso útil e tira valor delas. É ele que julga as necessidades e, sobretudo, os meios de satisfazê-las e compara o objetivo com esses meios; assim, sua principal qualidade é o julgamento.[41]"

Para ter um julgamento correto, o empreendedor deve ter também a ciência da prática, que somente se aprende pela experiência. Além disso, deve ser dotado de certas virtudes que farão dele um verdadeiro chefe, capaz de manter o rumo: audácia criteriosa e perseverança tenaz[42]. Mas essas qualidades, tão necessárias nas incertezas dos negócios, não são igualmente distribuídas na população. São mérito dos empreendedores bem-sucedidos, que justificam seus lucros. Começa aqui a grande lenda dos empreendedores que acompanhará a Revolução Industrial, uma lenda para cuja propagação os saint-simonianos contribuíram enormemente na França[43].

A valorização teórica do empreendedor terá um novo impulso com Joseph Schumpeter e sua Teoria do desenvolvimento econômico (1911)[44]. Para o economista austríaco, o fato fundamental que a teoria deve levar em consideração é a mudança dos estados históricos, que impede que se raciocine como se o circuito fosse pura repetição. Em outras palavras, uma ciência econômica que privilegia a imobilidade em detrimento do movimento, o equilíbrio em detrimento do desequilíbrio, passa ao largo do essencial. A evolução econômica resulta de rompimentos ligados a novas combinações produtivas, técnicas e comerciais, a inovações de múltiplos tipos, desde a criação de novos produtos até a abertura de novos mercados, passando pelo aperfeiçoamento de novos procedimentos, utilização de novas matérias-primas e estabelecimento de modos diferentes de organização.

Esse ponto de vista dinâmico, que privilegia as descontinuidades, impõe uma redefinição de conceitos: a empresa é o lugar da execução dessas novas combinações, do mesmo modo que o empreendedor é o personagem ativo e criativo cuja função é pô-las em prática. Por definição, o empreendedor schumpeteriano é um inovador que se opõe ao personagem rotineiro que se contenta em explorar os métodos tradicionais[45]. Sua função é central na explicação da evolução econômica, a qual funciona por rompimentos sucessivos dos “estados econômicos”.

Para Schumpeter, nem todos são empreendedores. Apenas os “condutores” (Führer) são capazes de empreender. Sua tarefa, contudo, não é dominar, mas realizar possibilidades que existem em estado latente na situação[46]. O empreendedor é um chefe que possui vontade e autoridade e não tem medo de ir contra a corrente: cria, desarranja, rompe o curso ordinário das coisas[47]. É o homem do “plus ultra”, o homem da “destruição criadora”[48]. Não é um indivíduo calculador, hedonista; é um combatente, um competidor, que gosta de lutar e vencer, e cujo sucesso financeiro é apenas um símbolo de seu sucesso como criador. A atividade econômica deve ser entendida como um esporte, uma impiedosa e perpétua luta de boxe[49]. A inovação é inseparável da concorrência, é sua forma principal, porque a concorrência diz respeito não apenas aos preços, mas também, e sobretudo, a estruturas, estratégias, procedimentos e produtos.

Schumpeter não é um militante neoliberal. Numa obra escrita quase trinta anos depois, Capitalismo, socialismo e democracia, demonstrará seu pessimismo predizendo o “crepúsculo da função de empreendedor”[50], o que nos conduzirá a um estado estacionário. A inovação tornou-se rotina, não provoca mais rompimentos. Burocratiza-se, automatiza-se. De modo mais geral, o capitalismo, não tendo mais o benefício das condições sociais e políticas que o protegiam, está ameaçado.

Distante desse pessimismo, um neoschumpeterismo vai difundir-se nos anos 1970 e 1980, em consequência das crises do petróleo e das novas regras de funcionamento do capitalismo. A referência à figura do empreendedor-inovador delineada por Schumpeter ganhará um alcance nitidamente apologético, tornando-se até mesmo um dos elementos da vulgata gerencial. Mais importante ainda, esse neoschumpeterismo contribuirá para a concepção da “sociedade empresarial”. Peter Drucker, grande figura do management, vai reabilitar essa figura heroica, anunciando o advento da nova sociedade de empreendedores e fazendo votos pela difusão do espírito de empreendimento em toda a sociedade[51]. A gestão empresarial será a verdadeira fonte do progresso, a nova onda tecnológica que porá a economia novamente em movimento. Segundo Drucker, a grande inovação “schumpeteriana” foi, mais do que a informática, a gestão empresarial: “A gestão empresarial é a nova tecnologia que, melhor do que qualquer ciência ou invenção, fez a economia norte-americana passar para o estágio da economia de empreendedores, e está transformando os Estados Unidos numa sociedade de empreendedores”[52]. Essa sociedade é caracterizada por sua “adaptabilidade” e sua norma de funcionamento, a mudança perpétua: “O empreendedor vai buscar a mudança, ele sabe agir sobre ela e explorá-la como uma oportunidade”[53]. A nova “gestão de empreendedores”, tal como o define Drucker, pretende espalhar e sistematizar o espírito de empreendimento em todos os domínios da ação coletiva, em particular no serviço público, fazendo da inovação o princípio universal de organização. Todos os problemas são solucionáveis dentro do “espírito da gestão” e da “atitude gerencial”; todos os trabalhadores devem olhar para sua função e seu compromisso com a empresa com os olhos do gestor.

A concepção do indivíduo como um empreendedor inovador, que sabe explorar as oportunidades, é resultado, portanto, de várias linhas de pensamento, entre as quais a “praxeologia” de Von Mises e a difusão de um modelo de gestão empresarial que aspira a uma validade prática universal. Essa dimensão do discurso neoliberal se manifestará sob múltiplas formas, das quais trataremos na última parte desta obra. A educação e a imprensa serão requeridas para desempenhar um papel determinante na difusão desse novo modelo humano genérico. Vinte ou trinta anos depois, as grandes organizações internacionais e intergovernamentais terão um poderoso papel de estímulo nesse sentido. É interessante constatar que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a União Europeia, sem se referir explicitamente aos focos de elaboração desse discurso sobre o indivíduo-empresa universal, serão continuadoras poderosas deles, por exemplo, tornando a formação dentro do “espírito de empreendimento” uma prioridade dos sistemas educacionais nos países ocidentais. Que cada indivíduo seja empreendedor por si mesmo e dele mesmo, essa é a grande inflexão que a corrente austro-americana e o discurso gerencial neoschumpeteriano darão à figura do homem econômico. Obviamente, com respeito às formas contemporâneas da governamentalidade neoliberal, a principal limitação dessa corrente parece residir numa fobia do Estado que muito frequentemente a conduz a resumir a atividade de governar à imposição de uma vontade pela coerção. Essa atitude impede que se compreenda que o governo do Estado poderia articular-se positivamente com o governo de si do sujeito individual, em vez de contrariá-lo ou de algum modo criar-lhe obstáculos. Contudo, ater-se a isso seria desmerecer a originalidade de Hayek: ter legitimado abertamente o recurso à coerção do Estado quando se trata de fazer respeitar o direito do mercado ou o direito privado.

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[1] Ludwig von Mises, L’action humaine: traité d’économie (trad. Raoul Audouin, Paris, PUF, 1985), p. 297 [ed. bras.: A ação humana: um tratado de economia, 2. ed., Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1995].

[2] O adjetivo “austro-americano” designa aqui os economistas que imigraram para os Estados Unidos ou os norte-americanos que se alinharam à escola austríaca moderna, cujas duas figuras teóricas e ideológicas mais importantes são Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Além das teorias destes últimos, daremos realce mais particularmente aos desenvolvimentos da doutrina produzidos por Israel Kirzner.

[3] Em The Counter-Revolution of Science (Nova York, The Free Press, 1955, p. 31), Friedrich Hayek escreve que todo avanço importante na teoria econômica nos últimos cem anos foi um passo adiante na aplicação coerente do subjetivismo. Nesse ponto, faz uma homenagem clara a Von Mises, a quem considera seu mestre.

[4] Esse termo é traduzido em francês por entrepreneurialité. [Em português, traduz-se por “empreendedorismo” – N. T.]

[5] Thomas Lemke, “The Birth of Bio-Politics: Michel Foucault’s Lecture at the Collège de France on Neo-Liberal Governmentality”, Economy and Society, v. 30, n. 2, 2001, p. 203.

[6] Stéphane Longuet, Hayek et l’École autrichienne (Paris, Nathan, 1998).

[7] Ludwig von Mises, L’action humaine, cit., p. 858.

[8] Ibidem, p. 761. Von Mises acrescenta: “Os partidários da mais recente variante do intervencionismo, a Soziale Marktswirtschaft [economia social de mercado], afirmam em alto e bom som que consideram a economia de mercado o melhor e mais desejável dos sistemas de organização econômica da sociedade e rejeitam a onipotência governamental dos socialistas. Evidentemente, porém, todos esses defensores de uma política de terceira via frisam com o mesmo vigor a rejeição do liberalismo manchesteriano e do laissez-faire. Dizem que é necessário que o Estado intervenha nos fenômenos de mercado todas as vezes e em todos os lugares onde o ‘livre jogo das forças econômicas’ resulte em situações que pareçam ‘socialmente’ indesejáveis. Sustentando essa tese, consideram evidente que compete ao governo decidir, em cada caso particular, se tal ou qual fato econômico deve ser considerado repreensível do ponto de vista ‘social’ e, consequentemente, se a situação do mercado requer ou não, da parte do governo, um ato especial de intervenção”.

[9] Ibidem, p. 856.

[10] Ibidem, p. 315.

[11] Ibidem, p. 316.

[12] Ibidem, p. 756-7.

[13] Ibidem, p. 762.

[14] Ludwig von Mises citado em Israel Kirzner, The Meaning of Market Process: Essays in the Development of Modern Austrian Economics (Londres, Routledge, 1992), p. 30.

[15] Israel Kirzner, The Meaning of Market Process, cit., p. 123. A famosa definição de Lionel Robbins (“economia é o estudo do comportamento humano como uma relação entre fins e meios raros que têm usos mutuamente excludentes”) foi influenciada pelos economistas austríacos, segundo Israel Kirzner.

[16] Ludwig von Mises, L’action humaine, cit., p. 3.

[17] Sobre o sentido exato desse termo, ver o próximo capítulo.

[18] Ludwig von Mises, L’action humaine, cit., p. 3-4.

[19] Ibidem, p. 763.

[20] Essa teoria está contida, em essência, em dois textos importantes: o de 1935, intitulado “Economics and Knowledge”, e o de 1945, “The Use of Knowledge in Society”, ambos publicados em Friedrich Hayek, Individualism and Economic Order (Chicago, The University of Chicago Press, 1948).

[21] Ibidem, p. 88. Hayek cita Alfred Whitehead, para o qual “a civilização avança aumentando o número de operações importantes que podemos realizar sem ter de pensar nelas” (idem).

[22] Ibidem, p. 50.

[23] Israel Kirzner, Concurrence et esprit d’entreprise (trad. Raoul Audouin, Paris, Economica, 2005), p. 12 [ed. bras.: Competição e atividade empresarial, trad. Ana Maria Sarda, Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1986].

[24] Ibidem, p. 12; grifo nosso.

[25] Ludwig von Mises, L’action humaine, cit., p. 307.

[26] Israel Kirzner, Concurrence et esprit d’entreprise, cit., p. 12.

[27] Israel Kirzner, no prefácio à edição francesa de Concurrence et esprit d’entreprise (cit., p. ix), sublinha que a teoria padrão difere da abordagem miseniana na medida em que se concentra no equilíbrio de mercado, e não no processo de mercado, e ignora o papel do empreendedor no processo de concorrência composto de uma sucessão de descobertas empresariais, preferindo meditar sobre as condições hipotéticas do equilíbrio a estudar os processos reais do mercado.

[28] Ibidem, p. 117.

[29] Sobre todos esses pontos, ver Israel Kirzner, The Meaning of Market Process, cit.

[30] Ibidem, p. 45.

[31] Ibidem, p. 52.

[32] Ibidem, p. 53.

[33] Ludwig von Mises, Socialisme (trad. Paul Bastier et al., Paris, Librairie de Médicis, 1938), p. 507.

[34] Von Mises escreve o seguinte: “É fato que as massas não pensam. Mas é precisamente por essa razão que seguem os que pensam. A direção espiritual da humanidade pertence ao pequeno número de homens que pensam por si mesmos; esses homens exercem sua ação primeiro sobre o círculo capaz de acolher e compreender o pensamento elaborado por outros; por esse caminho, as ideias se espalham pelas massas, nas quais se condensam poupo a pouco para formar a opinião pública da época. O socialismo não se tornou a ideia dominante dos nossos tempos porque as massas elaboraram e depois transmitiram às camadas intelectuais superiores a ideia da socialização dos meios de produção; o próprio materialismo histórico, por mais impregnado que seja do ‘espírito popular’ do romantismo e da escola histórica, nunca ousou fazer tal afirmação. A alma das multidões nunca produziu por si mesma nada além de massacres coletivos, atos de devastação e destruição” (ibidem, p. 510).

[35] Ludwig von Mises, L’action humaine, cit., p. 9.

[36] A praxeologia é conscientemente destinada a servir de base teórica para as novas políticas liberais.

[37] Uma das principais mobilizações públicas dos autores neoliberais foi uma rigorosa contestação do relatório da Task Force, encarregada em 1961 de estabelecer um programa de ensino em economia para as high schools, descritivo demais para o gosto deles e muito pouco positivo em relação à economia capitalista. Ludwig von Mises, “The Objectives of Economic Education”, em Economic Freedom and Interventionism (Nova York, The Foundation for Economic Education, 1990), p. 167.

[38] Ver Jean-Baptiste Say, Traité d’économie politique (6. ed., Paris, Guillaumin, 1841), livro I, cap. 6, p. 78 e seg.; idem, Cours complet d’économie politique pratique (Paris, Guillaumin, 1848), parte 1, cap. 6, p. 93 e seg.

[39] Idem, Cours complet d’économie politique pratique, cit., p. 94.

[40] Idem, Traité d’économie politique, cit., p. 82.

[41] Idem, Cours complet d’économie politique pratique, cit., p. 97.

[42] Ibidem, cap. 12.

[43] Ver Dimitri Uzunidis, La légende de l’entrepreneur: le capital social, ou comment vient l’esprit d’entreprise (Paris, Syros, 1999).

[44] Joseph Alois Schumpeter, Théorie de l’évolution économique (trad. Jean-Jacques Anstett, Paris, Dalloz, 1999) [ed. bras.: Teoria do desenvolvimento econômico, trad. Maria Sílvia Possas, São Paulo, Nova Cultural, 1997].

[45] Ibidem, p. 106.

[46] Ibidem, p. 125.

[47] Ibidem, p. 126.

[48] Título do capítulo 7 de Joseph Alois Schumpeter, Capitalisme, socialisme et démocratie (trad. Gaël Fain, Paris, Payot, 1990) [ed. bras.: Capitalismo, socialismo e democracia, trad. Sérgio Góes de Paula, Rio de Janeiro, Zahar, 1984].

[49] Ibidem, p. 135.

[50] Ibidem, p. 179.

[51] Peter Drucker, Les entrepreneurs (Paris, Hachette, 1985) [ed. bras.: Inovação e espírito empreendedor, trad. Carlos J. Malferrari, 5. ed., São Paulo, Thompson Pioneira, 1998]. Drucker não concorda inteiramente com a visão romântica de Schumpeter. Ser empreendedor é uma profissão e pressupõe uma disciplina.

[52] Ibidem, p. 41.

[53] Ibidem, p. 53.

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