quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Uma Nova Razão do Mundo: I - A refundação intelectual - 1 Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo


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CRISE DO LIBERALISMO E NASCIMENTO DO NEOLIBERALISMO

O liberalismo é um mundo de tensões. Sua unidade, desde o princípio, é problemática. O direito natural, a liberdade de comércio, a propriedade privada e as virtudes do equilíbrio do mercado são certamente alguns dos dogmas do pensamento liberal dominante em meados do século XIX. Modificar os princípios seria quebrar a máquina do progresso e romper o equilíbrio social. Mas esse whiggismo triunfante não será o único a ocupar terreno nos países ocidentais. As críticas mais variadas florescerão, tanto no plano doutrinal como no político, ao longo do século XIX. Isso porque em nenhuma parte, e em nenhum dos domínio, a “sociedade” se deixa reduzir a uma soma de trocas contratuais entre indivíduos. A sociologia francesa não cansará de repetir isso, ao menos desde Auguste Comte, sem mencionar o socialismo que denuncia a mentira de uma igualdade apenas fictícia. Na Inglaterra, o radicalismo, depois de inspirar as reformas mais liberais de assistência aos pobres e ajuda à promoção do livre-câmbio, alimentará certa contestação dessa metafísica naturalista e até estimulará as reformas democráticas e sociais em favor da maioria.

A crise do liberalismo é também uma crise interna, o que é esquecido de bom grado quando se assume a tarefa de fazer a história do liberalismo como se se tratasse de um corpo unificado. A partir de meados do século XIX, o liberalismo expõe linhas de fratura que vão se aprofundando até a Primeira Guerra Mundial e o entre-guerras. A tensão entre dois tipos de liberalismo, o dos reformistas sociais que defendem um ideal de bem comum e o dos partidários da liberdade individual como fim absoluto, na realidade nunca cessou[1]. Essa dilaceração que reduz a unidade do liberalismo a um simples mito retroativo constitui propriamente essa longa “crise do liberalismo” que vai dos anos 1880 aos anos 1930 e que pouco a pouco vê a revisão dos dogmas em todos os países industrializados onde os reformistas sociais ganham terreno. Essa revisão, que às vezes parece conciliar-se com as ideias socialistas sobre a direção da economia, forma o contexto intelectual e político do nascimento do neoliberalismo na primeira metade do século XX.

Qual é a natureza dessa “crise do liberalismo”? Marcel Gauchet certamente tem razão de identificar entre seus aspectos um problema eminente: como a sociedade que se libertou dos deuses para descobrir-se plenamente histórica poderia abandonar-se a um curso fatal e, assim, perder o controle de seu futuro? Como a autonomia humana poderia ser sinônimo de impotência coletiva? Como pergunta Marcel Gauchet: “O que é uma autonomia que não se comanda?”. O sucesso do socialismo se deveria precisamente ao fato de que ele soube aparecer, sendo nisso um digno sucessor do liberalismo, como a encarnação da vontade otimista de construir o futuro[2]. Mas isso somente é verdade se reduzirmos o liberalismo à crença nas virtudes do equilíbrio espontâneo dos mercados e situarmos as contradições na esfera das ideias. Ora, já no século XVIII, a questão da ação governamental apresentou-se de forma muito mais complexa. Na realidade, o que se costuma chamar de “crise do liberalismo” é uma crise da governamentalidade liberal, segundo o termo de Michel Foucault, isto é, uma crise que apresenta essencialmente o problema prático da intervenção política em matéria econômica e social e o da justificação doutrinal dessa intervenção[3].

O que era posto como uma limitação externa a essa ação, em particular os direitos invioláveis do indivíduo, tornou-se um puro e simples fator de bloqueio da “arte do governo”, num momento em que este último se vê confrontado precisamente com questões econômicas e sociais novas e ao mesmo tempo prementes. A necessidade prática da intervenção governamental para fazer frente às mutações organizacionais do capitalismo, aos conflitos de classe que ameaçam a “propriedade privada” e às novas relações de força internacionais é que põe “em crise” o liberalismo dogmático[4]. Solidarismo e radicalismo na França, fabianismo e liberalismo social na Inglaterra, nascimento do “liberalismo” no sentido norte-americano do termo são tanto os sintomas dessa crise do modo de governo como algumas das respostas que foram dadas para enfrentá-la.

Uma ideologia muito estreita

Muito antes da Grande Depressão dos anos 1930, a doutrina do livre mercado não conseguia incorporar os novos dados do capitalismo tal como este se desenvolvera durante a longa fase de industrialização e urbanização, ainda que alguns “velhos liberais” não quisesse desistir de suas proposições mais dogmáticas.

A constatação da “débâcle do liberalismo” ia muito além dos meios socialistas ou reacionários mais hostis ao capitalismo. Todo um conjunto de tendências e realidades novas exigiram uma revisão a fundo da representação da economia e da política. O “capitalismo histórico” correspondia cada vez menos aos esquemas teóricos das escolas liberais, quando elas inventavam histórias em torno da idealização das “harmonias econômicas”. Em outras palavras, o triunfo liberal de meados do século XIX não durou. Os capitalismos norte-americano e alemão, as duas potências emergentes da segunda metade do século XIX, demonstravam que o modelo atomístico de agentes econômicos independentes, isolados, guiados pela preocupação com seus próprios interesses, é claro, e cujas decisões eram coordenadas pelo mercado concorrencial quase não correspondia mais às estruturas e às práticas do sistema industrial e financeiro realmente existente. Este último, cada vez mais concentrado nos ramos principais da economia, dominado por uma oligarquia estreitamente imbricada com os dirigentes políticos, era regido por “regras do jogo” que não tinham nada a ver com as concepções rudimentares da “lei da oferta e da procura” dos teóricos da economia ortodoxa. O reinado de uns poucos autocratas à frente de empresas gigantescas, controlando o setor das ferrovias, do petróleo, dos bancos, do aço e da química nos Estados Unidos – os que foram qualificados na época de “barões ladrões” (robber barons) – fez surgir talvez a mitologia do self-made man, mas ao mesmo tempo desacreditava a ideia de uma coordenação harmoniosa de interesses particulares[5]. Muito antes da elaboração da “concorrência imperfeita”, da análise das estratégias de empresa e da teoria dos jogos, o ideal do mercado perfeitamente concorrencial já parecia muito longe das realidades do novo capitalismo de grande escala.

O que o liberalismo clássico não incorporou adequadamente foi precisamente o fenômeno da empresa, sua organização, suas formas jurídicas, a concentração de seus recursos, as novas formas de competição. As novas necessidades da produção e de vendas exigiam uma “gestão científica”, que mobilizasse exércitos industriais enquadrados num modelo hierárquico de tipo militar por pessoal qualificado e dedicado. A empresa moderna, integrando múltiplas divisões, gerida por especialistas em organização, tornara-se uma realidade que a ciência econômica dominante ainda não conseguia compreender, mas que muitos espíritos menos preocupados com os dogmas, em particular entre os economistas “institucionalistas”, começaram a examinar.

O surgimento dos grandes grupos cartelizados marginalizava o capitalismo de pequenas unidades; o desenvolvimento das técnicas de venda debilitava a fé na soberania do consumidor; e os acordos e as práticas dominadoras e manipuladoras dos oligopólios e dos monopólios sobre os preços destruíam as representações de uma concorrência leal, que beneficiava a todos. Parte da opinião pública começava a ver os homens de negócios como escroques de alto gabarito, não como heróis do progresso. A democracia política parecia definitivamente comprometida pelos fenômenos maciços de corrupção em todos os escalões da vida política. Os políticos faziam sobretudo o papel de marionetes nas mãos dos que detinham o poder do dinheiro. A “mão visível” dos empresários, dos financistas e dos políticos ligados a eles enfraqueceu formidavelmente a crença na “mão invisível” do mercado.

A inadequação das fórmulas liberais às necessidades de regulação da condição salarial e sua própria incompatibilidade com as tentativas de reformas sociais realizadas aqui ou ali constituíram outro fator de crise no liberalismo dogmático. Desde meados do século XIX, com certa intensificação a partir das primeiras reformas de Bismarck, no fim dos anos 1870 e início dos anos 1880, assistiu-se na Europa a um movimento ascendente de dispositivos, regulamentações, leis destinadas a consolidar a condição dos assalariados e a evitar tanto quanto possível que eles continuassem a cair no pauperismo que afligiu todo o século XIX: legislação sobre o trabalho infantil, limitação da jornada de trabalho, direito de greve e associação, indenização por acidente, aposentadoria para operários. Essa pobreza nova, gerada no ciclo dos negócios, deveria ser baldada por medidas de proteção coletiva e segurança social. Cada vez mais, a ideia de que a relação salarial era um contrato entre duas vontades independentes e iguais aparecia como uma ficção absolutamente distante das realidades sociais naquela época de grandes concentrações industriais e urbanas. O movimento operário, em pleno desenvolvimento tanto no plano sindical como no plano político, constituía nesse sentido uma advertência constante da dimensão coletiva e ao mesmo tempo conflituosa da relação salarial, um desafio à concepção estritamente individual e “harmônica” do contrato de trabalho tal como o pensava a dogmática liberal.

No plano internacional, o fim do século XIX não se parecia muito com essa grande sociedade universal e pacífica, organizada segundo os princípios racionais da divisão do trabalho, que Ricardo imaginava no início do século. Proteção alfandegária e crescimento dos nacionalismos, imperialismos rivais e crise do sistema monetário internacional apareciam como violações da ordem liberal. Nem parecia mais verdade que o livre-câmbio deveria ser a fórmula da prosperidade universal. As teses de Friedrich List sobre a “proteção educadora” pareciam ser mais confiáveis e corresponder melhor às novas realidades: tanto a Alemanha como os Estados Unidos ofereciam igualmente a face de um capitalismo de grandes unidades protegidas por barreiras alfandegárias elevadas, enquanto a Inglaterra via serem postas em questão suas próprias posições industriais.

A concepção do Estado “vigia noturno”, difundida na Inglaterra pela Escola de Manchester e na França pelos economistas doutrinários que sucederam a Jean-Baptiste Say, dava uma visão singularmente estreita das funções governamentais (manutenção da ordem, cumprimento dos contratos, eliminação da violência, proteção dos bens e das pessoas, defesa do território contra os inimigos externos, concepção individualista da vida social e econômica). O que no século XVIII constituía uma crítica às diferentes formas possíveis do “despotismo” tornara-se progressivamente uma defesa conservadora dos direitos de propriedade. Essa concepção, fortemente restritiva até mesmo em relação aos campos de intervenção das “leis de polícia” imaginadas por Adam Smith e aos domínios de administração do Estado benthamiano, parecia cada vez mais defasada em relação às necessidades de organização e regulação da nova sociedade urbana e industrial do fim do século XIX. Em outras palavras, os liberais não dispunham de uma teoria das práticas governamentais que haviam se desenvolvido desde meados do século. Pior, eles se isolavam, parecendo conservadores obtusos e incapazes de compreender a sociedade de seu tempo, embora pretendessem encarnar seu movimento.

A preocupação precoce de Tocqueville e Mill

Essa “crise do liberalismo” no fim do século, que foi chamada por alguns de sentimento de “paraíso perdido do liberalismo”, não estourou de repente. À parte socialistas ou defensores declarados do conservadorismo, houve, no próprio interior da grande corrente liberal, espíritos suficientemente preocupados para desde cedo pôr em dúvida a crença nas virtudes da harmonia natural dos interesses e no livre desabrochar das ações e das faculdades individuais.

A correspondência intelectual entre Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill, para citar apenas um exemplo, ilustram essa lúcida preocupação. Entre 1835 e 1840, esses dois homens conversaram sobre as tendências profundas das sociedades modernas e, em particular, a tendência de o governo intervir de forma mais extensa e detalhada na vida social. Mais talvez do que a viagem aos Estados Unidos, foram os contatos que Tocqueville fez na viagem à Inglaterra em 1835 que lhe permitiram estabelecer a relação entre democracia, centralização e uniformidade[6]. 

Para ele, essa relação está ligada à sociedade democrática, ainda que, em sua opinião, certos países como Inglaterra ou Estados Unidos pudessem resistir melhor em razão da vitalidade das liberdades locais[7].

Essas ideias, elaboradas por Tocqueville durante a viagem à Inglaterra, encontram-se desenvolvidas no segundo volume de A democracia na América, de 1840, e em particular no capítulo 2 do Livro IV: “Que as ideias dos povos democráticos em matéria de governo são naturalmente favoráveis à concentração dos poderes”. Partindo da constatação de que os povos democráticos apreciam as “ideias simples e gerais”, ele deduz a preferência por um poder único e central e uma legislação uniforme. A igualdade das condições leva os indivíduos a querer um poder central forte, oriundo da força do povo, que os conduza pela mão em todas as circunstâncias. Uma das características dos poderes políticos modernos é, portanto, a ausência de limite da ação governamental, é o “direito de fazer tudo”. A sociedade, representada pelo Estado, é todo-poderosa, em detrimento dos direitos do indivíduo. Os próprios soberanos acabam compreendendo que “a força central que representam pode e deve administrar por si mesma, e num plano uniforme, todos os assuntos e todos os homens”. É assim que, sejam quais forem suas oposições políticas, “todos concebem o governo sob a imagem de um poder único, simples, providencial e criador”[8].

Essa força secreta impele o Estado a apoderar-se de todos os domínios, aproveitando-se do recolhimento dos indivíduos a seus negócios privados. Consequentemente, aumenta a demanda de cada um por proteção, educação, auxílios, administração da justiça, do mesmo modo que com a indústria crescem a regulamentação das trocas e das atividades e a necessidade de produzir obras públicas. Esse novo despotismo, como o denomina Tocqueville, esse “poder imenso e tutelar”, mais amplo e mais brando ao mesmo tempo, é tolerável do ponto de vista do indivíduo, porque é exercido em nome de todos e provém da soberania do povo. Esse instinto da centralização e esse avanço do domínio da administração à custa da esfera da liberdade individual não derivam de uma perversão ideológica qualquer, mas dizem respeito a uma tendência inscrita no movimento geral das sociedades rumo à igualdade.

É sobre esse ponto que John Stuart Mill manifesta sua concordância, embora formule algumas objeções. A reação de J.S. Mill marca certa inflexão em relação às perspectivas utilitaristas de seu pai, James Mill, e do próprio Jeremy Bentham quando imaginavam uma democracia representativa capaz de corrigir a si mesma[9]. Ele sustenta ainda, obviamente, que os perigos concebidos por Tocqueville encontram fundamento numa ideia errônea da democracia. Esta não é o governo direto do povo, mas a garantia de que o povo será governado em conformidade com o bem de todos, o que supõe o controle dos governantes por eleitores capazes de julgar sua ação. Mas acusa Tocqueville sobretudo de ter confundido a igualdade das condições e a marcha para uma “civilização mercantil”, na qual a aspiração à igualdade é apenas um dos aspectos. Para Mill, é em primeiro lugar o progresso econômico e a “multiplicação dos que ocupam as posições intermediárias” que constituem a tendência fundamental[10].

"Mas essa igualdade crescente é somente um dos elementos do movimento da civilização; um dos efeitos acidentais do progresso da indústria e da riqueza: um efeito dos mais importantes, e que, como mostra nosso autor, age de volta sobre os outros de mil maneiras, mas não deve ser confundido com a causa.[11]"

Para Mill, a principal transformação reside na predominância da busca da riqueza[12], princípio do declínio de certos valores intelectuais e morais. Fazendo eco de certo modo às preocupações de um Thomas Carlyle, ele deplora o esmagamento do indivíduo de valor sob o peso da opinião pública, descreve a charlatanice generalizada que toma o comércio, denuncia a desvalorização de tudo que há de mais elevado e nobre na arte e na literatura. Se o novo estado da sociedade é marcado pelo irreversível poder das massas e pela extensão das interferências políticas, então é preciso examinar quais poderiam ser os meios de remediar a impotência do indivíduo. Ele vislumbra dois meios principais: um, já promovido por Tocqueville, é a “combinação” dos indivíduos formando associações para adquirir a força que falta a cada átomo isolado; o outro é uma educação concebida para revigorar o caráter pessoal a fim de resistir à opinião da massa[13].

Com Tocqueville e Mill, concebe-se melhor a dúvida que tomou conta do campo liberal desde cedo e, sobretudo, a partir de dentro. Que os poderes governamentais aumentem com a civilização mercantil, essa é uma observação que atesta o fato de que os dogmas do laissez-faire não eram objeto de uma crença unânime. Muito pelo contrário, não entenderíamos nada do século XIX se nos contentássemos preguiçosamente em ler apenas a triunfante história intelectual e política das virtudes do livre-câmbio e da propriedade privada absoluta. Foi precocemente que o otimismo no advento da sociedade da liberdade individual, do progresso e da paz foi objeto de grandes ressalvas. Mas foi desde cedo também que a tradição do radicalismo abriu brechas no dogma da não intervenção. A trajetória de Mill é em si mesma significativa dessa evolução.

Mill, em On Socialism, texto tardio de 1869, publicado postumamente, embora fizesse uma crítica severa ao ideal socialista do controle total da economia, sustentava igualmente, num capítulo com um título muito fiel ao espírito de Bentham (“The Idea of Private Property not Fixed but Variable” [A ideia da propriedade privada não fixa, mas variável]), que “as leis de propriedade devem depender de considerações de natureza pública”[14]. Para ele, a sociedade tem plena justificação para mudar ou até mesmo anular direitos de propriedade que, após o devido exame, não sejam favoráveis ao bem público[15]. Encontramos o que, desde o fim do século XVIII, já era motivo debate. Deve-se considerar o direito de propriedade como um direito natural sagrado ou é preciso vê-lo de acordo com os efeitos que tem sobre a felicidade do maior número de indivíduos, isto é, segundo sua utilidade relativa?

O fato de que o utilitarismo tenha podido desembocar numa justificação da intervenção política e até numa relativização do direito de propriedade foi logo ressaltado, e de forma polêmica, por Herbert Spencer. Sua violenta reação, no fim do século XIX, contra o intervencionismo econômico e social, e contra o “utilitarismo empírico” que, segundo ele, era seu fundamento doutrinal, é um sintoma maior dessa crise da governamentalidade liberal. Seu evolucionismo é também uma primeira tentativa de refundação filosófica do liberalismo que não poderia ser negligenciada, apesar do esquecimento em que soçobrou. O “spencerismo” introduziu alguns dos temas mais importantes do neoliberalismo, em particular a primazia da concorrência nas relações sociais. 

A defesa do livre mercado

O spencerismo faz parte de uma contraofensiva dos “individualistas” que denunciam como traidores e acusam de “socialismo” os defensores das reformas sociais que visam ao bem-estar da população[16]. Por volta de 1880, os velhos liberais sentem que o triunfo de 1860 ficou para trás, levado por um vasto movimento contra o laissez-faire. Reunidos na Liberty and Property Defence League, fundada em 1882, perderam muito da influência intelectual e política que tinham em meados da era vitoriana.

Spencer acredita ser necessário refundar o utilitarismo sobre novas bases para enfrentar os desvios do “utilitarismo empírico”. É sabido que a filosofia spenceriana foi extremamente popular na Inglaterra e nos Estados Unidos no fim do século XIX[17]. Para Émile Durkheim, Spencer, que foi seu grande adversário nos planos teórico e político, é o protótipo do utilitarista. Mas de qual utilitarismo se trata? Spencer reivindica um utilitarismo muito mais evolucionista e biológico do que jurídico e econômico[18]. Suas consequências políticas são explícitas: trata-se de mudar as bases teóricas do utilitarismo para opor-se à tendência reformadora do benthamismo. Spencer procura, na verdade, baldar a “traição” dos reformadores que querem tomar medidas coercitivas cada vez mais numerosas apelando para o bem do povo. Esses falsos liberais apenas atravancam a marcha da história rumo a uma sociedade em que deveria prevalecer a cooperação voluntária de tipo contratualista, em detrimento das formas militares de coordenação.

É em função de uma “lei de evolução” que Spencer se ergue contra toda intervenção do Estado, mesmo quando feita por responsáveis do Estado que proclamam seu liberalismo. Ele vê as disposições legislativas e as instituições públicas que estendem as proteções da lei aos mais fracos apenas como “ingerências” e “restrições” que atravancam a vida dos cidadãos. As leis que limitam o trabalho de mulheres e crianças nas manufaturas de tingimento ou nas lavanderias, as que impõem a vacinação obrigatória, as que estabelecem corpos de inspetores e controles nas usinas de gás, as que sancionam proprietários de minas que empregam crianças com menos de doze anos, as que ajudam rendeiros irlandeses a comprar sementes, todas essas leis que ele considera exemplos do que não se deve fazer têm de ser revogadas, porque querem fazer o bem diretamente, organizando a cooperação de maneira coerciva. Seu caráter obrigatório é retrógrado e insuportável[19]. A lista das “leis de coerção” denunciadas por ele é em si muito significativa, já que se refere aos domínios sociais, médicos e educacionais: trabalho, moradia, saúde, higiene, educação, pesquisa científica, museus, bibliotecas etc.[20].

Spencer explica essa traição pela infeliz precipitação em querer socorrer os pobres. Tomaram o caminho errado. De fato, há duas maneiras de obter um bem: ou pela diminuição da coerção, isto é, indiretamente, ou pela coerção, ou seja, diretamente.

"Sendo a aquisição de um bem para o povo o traço externo visível comum nas medidas liberais nos tempos antigos (e esse bem consistia essencialmente numa diminuição da coerção), resultou que os liberais viram o bem do povo não como um objetivo que era necessário atingir indiretamente pela diminuição da coerção, mas como o objetivo que era necessário atingir diretamente. E, procurando atingi-lo diretamente, empregaram métodos intrinsecamente contrários aos que haviam sido empregados originalmente. [21]"

Respondendo à demanda de melhoria social das populações necessitadas, esses liberais reformistas destruíram o sistema de liberdade e responsabilidade que os old whigs quiseram implantar[22]. Isso é particularmente visível no que diz respeito ao auxílio aos pobres, contra o qual Spencer não poderia ter sido mais duro.

Ele retoma os argumentos malthusianos contra esse tipo de auxílio: querem lastimar “as misérias dos pobres meritórios, em vez de representá-las – o que na maioria dos casos seria mais correto – como as misérias dos pobres demeritórios”[23]. Ele propõe, ainda, como regra de conduta, um ditado “cristão” que tem apenas uma relação distante com o dever de caridade:

"Em minha opinião, pode-se considerar que um ditado cuja verdade é aceita igualmente pela crença comum e pela crença da ciência goza de uma autoridade incontestável. Pois bem! O mandamento: “Se uma pessoa não deseja trabalhar, não deve comer” é simplesmente o enunciado cristão dessa lei da natureza sob império da qual a vida atingiu seu grau atual, a lei segundo a qual uma criatura que não é suficientemente enérgica para se bastar deve perecer."

Mas essa assistência aos pobres é apenas um aspecto dos malefícios da ingerência do Estado sem limites, se ela tenciona remediar todos os males da sociedade. Essa tendência quase automática à ilimitação da intervenção do Estado é reforçada pela educação, que intensifica os desejos inacessíveis à grande massa, e pelo sufrágio universal, que impele às promessas políticas. Spencer quer ser o profeta da desgraça dessa “escravidão futura” que é o socialismo. Tenciona impedir seu advento por uma obra de sociologia científica que exporá as verdadeiras leis da sociedade. Porque a sociedade tem leis fundamentais, como tudo na natureza. Os utilitaristas, ou melhor, os “falsos utilitaristas”, ignoram as leis do contrato, da divisão do trabalho, da limitação ética da ação. Por ignorância e superstição, tomam a via do socialismo sem saber. Esses falsos utilitaristas conservaram-se empiristas de visão muito curta. Sua compreensão empírica da utilidade “impede que partam dos fatos fundamentais que ditam os limites da legislação”. A ciência sociológica, ao contrário, poderá dizer o que é a verdadeira utilidade, isto é, fundamentada em leis exatas: “Assim, a utilidade, não avaliada empiricamente, mas, determinada racionalmente, prescreve a manutenção dos direitos individuais e, por implicação, proíbe tudo que lhes pode ser contrário”[24].

Contra a superstição do Estado

Uma das fontes da deriva socialista do utilitarismo empírico é a crença metafísica na instância soberana. O Estado e as categorias políticas que fundam sua legitimidade são uma “grande superstição política”. Assim, Spencer mostra o quanto Hobbes e, depois, Austin tentaram justificar a soberania sobre a base do direito divino. O que significa que esses filósofos foram incapazes de fundar a soberania sobre si mesma, isto é, sobre a função que ela deveria cumprir. Todavia, é toda a teoria política que visa a fundar a democracia moderna que deve ser revisada. A onipotência governamental, que a caracteriza, repousa sobre a superstição de um direito divino dos parlamentos que é também um direito divino das maiorias, o qual somente prolonga o direito divino dos reis[25].

Não nos causará surpresa, portanto, ver Spencer atacar Bentham e seus discípulos a propósito da criação dos direitos pelo Estado. Spencer lembra o teor dessa teoria, mostrando que ela implica uma criação ex nihilo de direitos, a não ser que ela apenas queira dizer que, antes da formação do governo, o povo não possuía a totalidade dos direitos de forma indivisa. Para Spencer, a teoria benthamiana e austiniana da criação dos direitos é falsa, ilógica e perigosa, porque utiliza uma fallacy[26]. O Estado, na verdade, apenas molda o que já existe. 

A referência ao “direito natural”, portanto, não tem mais o sentido que tinha no jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII. Como vimos, o direito é fundado, a partir de então, tanto nas condições da vida individual como nas condições da vida social, que dependem da mesma necessidade vital. Com respeito a estas últimas, lembramos que é a “experiência das vantagens possíveis da cooperação” que impele os primeiros homens a viver em grupos. Ora, essa cooperação, atestada por Spencer pelos costumes das sociedades selvagens, tem como condição de existência contratos tácitos que a partes se comprometem a respeitar. A “evolução” testemunha aqui a favor da anterioridade imemorial do direito dos contratos em relação a toda legislação positiva. A missão do Estado é, por isso, estreitamente circunscrita: ele apenas garante a execução de contratos livremente consentidos; não cria de modo algum novos direitos ex nihilo. 

A função do liberalismo no passado foi pôr um limite aos poderes dos reis. A função do liberalismo no futuro será limitar o poder de parlamentos submetidos à pressão impaciente das massas incultas[27]. Atacando Bentham, Spencer vai à raiz teórica das tendências intervencionistas do liberalismo e do radicalismo inglês oriundo do utilitarismo. Ele ataca uma interpretação que consiste em fazer do bem-estar do povo o fim supremo da intervenção do Estado, sem levar suficientemente em conta as leis naturais, isto é, as relações de causalidade entre os fatos.

"A questão essencial levantada diz respeito à verdade da teoria utilitária, tal como é geralmente recebida, e a resposta a contrapor aqui é que, tal como é geralmente recebida, ela não é verdadeira. Pelos tratados dos moralistas utilitários, e pelos atos dos homens políticos que consciente ou inconscientemente seguem a orientação deles, está implicado que a utilidade deve ser determinada diretamente pela simples inspeção dos fatos presentes e pela avaliação dos resultados prováveis; ao passo que o utilitarismo, se bem compreendido, implica que nos guiemos pelas conclusões gerais fornecidas pela análise experimental dos fatos já observados.[28]"

Essa correta compreensão da utilidade no âmbito de uma sociologia evolucionista permitirá evitar a escravidão socialista, que nunca é mais do que um retrocesso a um estado anterior da evolução, a era militar. Para evitá-la, o liberalismo deve afastar-se da lógica mortal das leis sociais à qual o levou um reformismo benthamiano cientificamente inepto.

O nascimento do concorrencialismo fin-de-siècle

O evolucionismo biológico de Spencer, embora pareça muito datado a certos neoliberais, a ponto de frequentemente “se esquecerem” de mencioná-lo entre suas fontes de referência, exceto para rejeitá-lo, deixou uma marca profunda no curso posterior da doutrina liberal. Podemos até mesmo dizer que o spencerismo representa uma verdadeira virada. Dissemos antes o quanto Spencer, por intermédio de Comte, fez da divisão fisiológica do trabalho uma das peças principais de sua “síntese filosófica”. Num primeiro momento, a evolução é explicada como um fenômeno geral que obedece a dois processos: a integração a um “aglomerado” e a diferenciação das partes mutuamente dependentes. Com essa última ideia da passagem observável por toda parte do homogêneo para o heterogêneo[29], Spencer estende o princípio da divisão do trabalho ao conjunto das realidades físicas, biológicas e humanas; ele o transforma num princípio da marcha universal da matéria e da própria vida.

Comte, assim como mais tarde Darwin, ressaltou a especificidade da espécie humana, e ambos demostraram, por caminhos diferentes, o que Comte chamou de “inversão radical da economia individual”, que fazia prevalecer os motivos simpáticos sobre o instinto egoísta. Embora retome a ideia da diferenciação das funções econômicas, Spencer recusa-se a admitir a necessidade, para a espécie humana, de um centro político dedicado à regulação das atividades diferenciadas. É claro que, quando examina a evolução do espírito humano, comparando as “raças superiores” e as “raças inferiores”, ele não se esquece da lição comtiana que fazia do altruísmo uma reação ao avanço egoísta da economia liberal[30], mas se nega a tirar disso a conclusão de que o governo tem certo dever regulador. Parece-lhe, ao contrário de Comte e mais tarde de Durkheim, que a “cooperação voluntária”, tal como se desenvolve nas sociedades mais evoluídas sob a forma do contrato, assegura uma dependência mútua entre as unidades suficientemente consistente para manter o “superorganismo social”. Essa premissa vai levá-lo a reinterpretar, à própria maneira, a teoria darwiniana da seleção natural e integrá-la a sua síntese evolucionista[31].

Darwin publicara em 1859 A origem das espécies[a], fazendo da seleção natural, como todos sabemos, o princípio da transformação das espécies. Alguns anos depois, prestando homenagem a Darwin, Spencer criará em seus Principles of Biology [Princípios de biologia] (1864) a famosa expressão “sobrevivência dos mais aptos” (survival of the fittest)[32], que será retomada por Darwin na quinta edição de A origem das espécies, na qual ele a apresenta como equivalente da expressão “seleção natural”. Sem detalhar as razões desses cruzamentos e dos mal-entendidos mútuos que os caracterizam, notaremos que, para Spencer, a teoria darwiniana parecia corroborar a teoria do laissez-faire da qual ele se fez arauto, como indica o paralelo entre a evolução econômica e a evolução das espécies em geral que ele estabelece em seus Princípios de biologia. Para ele, a primeira é apenas uma variedade da “luta pela vida”, que faz prevalecer as espécies mais bem adaptadas a seu meio. Esse paralelo conduzia diretamente a uma deformação profunda da teoria da seleção, na medida em que não era mais a herança seletiva das características mais adaptadas à sobrevivência da espécie que importava, mas a luta direta entre raças e entre classes que era interpretada em termos biológicos. A problemática da competição levava a melhor sobre a da reprodução, dando origem, assim, ao que foi chamado de maneira muito imprópria de “darwinismo social”. Como mostrou Patrick Tort, Darwin, de sua parte, sustentava que a civilização se caracterizava sobretudo pela prevalência de “instintos sociais” capazes de neutralizar os aspectos eliminatórios da seleção natural e acreditava que o sentimento de simpatia estava destinado a estender-se indefinidamente[33].

Convém sublinhar a virada que o pensamento de Spencer representa na história do liberalismo. O ponto decisivo que permite a passagem da lei da evolução biológica para suas consequências políticas é a prevalência na vida social da luta pela sobrevivência. Sem dúvida, a referência a Malthus ainda é muito importante em Spencer: nem todos os homens são convidados para o grande “banquete da natureza”. À essa influência, porém, somou-se a ideia de que a competição entre os indivíduos constituía para a espécie humana, que nisso é assimilável às outras espécies, o próprio princípio do progresso da humanidade. Daí a assimilação da concorrência econômica a uma luta vital geral, que é preciso deixar que se desenvolva para que a evolução não seja interrompida; daí as principais consequências que examinamos antes, em especial as que condenavam a ajuda aos mais necessitados, que deveriam ser abandonados à própria sorte.

Spencer vai deslocar, assim, o centro de gravidade do pensamento liberal, passando do modelo da divisão do trabalho para o da concorrência como necessidade vital. Esse naturalismo extremo, além de satisfazer interesses ideológicos e explicar lutas comerciais ferozes entre empresas e entre economias nacionais, faz a concepção do motor do progresso passar da especialização para a seleção, que não têm as mesmas consequências, como bem podemos imaginar.

No primeiro modelo, que encontramos de forma exemplar em Smith e Ricardo, mas é muito anterior a eles, a livre troca favorece a especialização das atividades, a divisão das tarefas nas oficinas, assim como a orientação da produção nacional. O mercado, nacional ou internacional, com seu jogo próprio, é a mediação necessária entre as atividades, o mecanismo de sua coordenação. A consequência primeira desse modelo comercial e mercantil é que, pelo aumento geral da produtividade média que decorre da especialização, todo mundo ganha na troca. Essa não é uma lógica eliminatória do pior dos sujeitos econômicos, mas uma lógica de complementaridade que melhora a eficácia e o bem-estar do pior dos produtores. É claro que aquele que não quiser obedecer a essa “regra do jogo” deve ser entregue à própria sorte, mas aquele que participa do jogo não pode perder. No segundo modelo, ao contrário, nada garante que aquele que participa da grande luta da seleção natural irá sobreviver, apesar de seus esforços, de sua boa vontade, de suas capacidades. Os menos aptos, os mais fracos, serão eliminados por aqueles que são mais adaptados, mais fortes na luta. Não se trata mais de uma lógica de promoção geral, mas de um processo de eliminação seletiva. Esse modelo não faz mais da troca um meio de se fortalecer, de melhorar; ele faz dela uma prova constante de confronto e sobrevivência. A concorrência não é considerada, então, como na economia ortodoxa, clássica ou neoclássica, uma condição para o bom funcionamento das trocas no mercado; ela é a lei implacável da vida e o mecanismo do progresso por eliminação dos mais fracos. Profundamente marcado pela “lei da população” de Malthus, o evolucionismo spenceriano conclui bruscamente que o progresso da sociedade e, mais amplamente, da humanidade supõe a destruição de alguns de seus componentes.

Sem dúvida, esses dois modelos continuarão a sobrepor-se nas argumentações do liberalismo ulterior. No próprio Spencer, a delimitação entre a cooperação voluntária que caracteriza a sociedade industrial e a lei da seleção não é simples. De todo modo, a “reação” de Spencer à crise do liberalismo, com o deslocamento que ele faz do modelo da troca para o da concorrência, constitui um evento teórico que terá efeitos múltiplos e duradouros. O neoliberalismo, em seus diferentes ramos, será profundamente marcado por esse evento, mesmo quando o evolucionismo biológico for abandonado. Será evidente que a concorrência é, como luta entre rivais, o motor do progresso das sociedades e que todo entrave que se coloca a ele, em particular pelo amparo às empresas, aos indivíduos ou mesmo aos países mais fracos, deve ser considerado um obstáculo à marcha contínua da vida. Infelizes dos vencidos na competição econômica!

O tão mal denominado “darwinismo social” está mais para um “concorrencialismo social”[34], que institui a competição como norma geral da existência individual e coletiva, tanto da vida nacional como da vida internacional[35]. A adaptação a uma situação de concorrência vista como natural tornou-se, assim, a palavra de ordem da conduta individual, assimilada a um combate pela sobrevivência. Prolongando o malthusianismo que, na grande época vitoriana, fazia da pobreza um efeito fatal da fecundidade irresponsável das classes populares, esse concorrencialismo fez muito sucesso na Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos. Respondendo às acusações de predação e pilhagem, grandes industriais norte-americanos como Andrew Carnegie ou John D. Rockefeller usaram essa retórica selecionista para justificar o crescimento dos grupos capitalistas gigantes que vinham construindo. Rockefeller resumiu a ideologia, declarando:

"A variedade de rosa “American Beauty” só pode ser produzida com o esplendor e o perfume que entusiasmam quem a contempla sacrificando-se os primeiros botões que brotam em torno dela. O mesmo acontece na vida econômica. Isso é apenas a aplicação de uma lei da natureza e de uma lei de Deus.[36]"

Essa ideologia concorrencialista renovou o dogmatismo do laissez-faire, com prolongamentos políticos significativos nos Estados Unidos, que puseram em questão algumas leis de proteção dos assalariados.

No plano teórico, foi o sociólogo norte-americano e professor do Yale College William Graham Sumner (1840-1910) quem estabeleceu mais explicitamente as bases desse concorrencialismo [37]. No ensaio The Challenge of Facts [O desafio dos fatos], dirigido contra o socialismo e todas as tentações do pensamento social “sentimental”, Sumner tenciona lembrar que o homem, desde o princípio dos tempos, está em luta por sua existência e pela existência de sua mulher e seus filhos. Essa luta vital contra uma natureza que distribui com parcimônia os meios de subsistência obriga os homens a trabalhar, a disciplinar-se, a moderar-se sexualmente, a fabricar ferramentas, a constituir um capital. A escassez é a grande educadora da humanidade. Mas a humanidade tem tendência a reproduzir-se além de suas capacidades de subsistência. A luta contra a natureza é ao mesmo tempo, e inevitavelmente, uma luta dos homens entre si. Essa tendência está na origem do progresso. É próprio da sociedade civilizada, caracterizada pelo reino das liberdades civis e da propriedade privada, transformar essa luta numa competição livre e pacífica, da qual resulta uma distribuição desigual das riquezas, que, por sua vez, produz necessariamente ganhadores e perdedores. Não há razão para deplorar as consequências desigualitárias dessa luta, como fazem desde Rousseau os filósofos sentimentais, sublinha Sumner. A justiça nada mais é do que a justa recompensa do mérito e da habilidade na luta. Os que fracassam devem isso apenas a sua fraqueza e a seu vício. Um dos ensaios mais significativos de Sumner afirma que:

"a propriedade privada, que como vimos é característica de uma sociedade organizada segundo as condições naturais da luta pela existência, também produz desigualdades entre os homens. A luta pela existência é dirigida contra a natureza. Devemos conseguir os meios de satisfazer nossas necessidades a despeito de sua avareza, mas nossos companheiros são nossos competidores no dispor dos parcos recursos que ela nos oferece. A competição, por consequência, é uma lei da natureza. A natureza é inteiramente neutra, submete-se àquele que a ataca de forma mais enérgica e resoluta. Ela concede suas recompensas aos mais aptos, logo, sem atentar para outras considerações de qualquer espécie que sejam. Portanto, se existe liberdade, o que os homens obtêm dela está na exata proporção de seus trabalhos, e aquilo de que têm a posse e o gozo está na exata proporção do que são e fazem. Tal é o sistema da natureza. Se não a amamos e se tentamos corrigi-la, existe apenas um meio de fazê-lo. Podemos tomar do melhor e dar ao pior. Podemos desviar as punições dos que fizeram mal para os que fizeram bem. Podemos tomar as recompensas dos que fizeram bem e dá-las aos que fizeram menos bem. Desse modo, diminuiremos as desigualdades. Favoreceremos a sobrevivência dos mais inaptos [the survival of the unfittest] e faremos isso destruindo a liberdade. É preciso compreender que não podemos escapar da alternativa: liberdade, igualdade, sobrevivência dos mais aptos [survival of the fittest]; não liberdade, igualdade, sobrevivência dos mais inaptos [survival of the unfittest]. O primeiro caminho leva a sociedade para a frente e favorece seus melhores membros. O segundo caminho leva a sociedade para trás e favorece seus piores membros."

Temos aqui uma síntese perfeita desse “darwinismo social”, que de darwiniano só tem o nome que atribuíram a ele. Mas não foi apenas nesse sentido que o liberalismo mudou para sair da crise.

O “novo liberalismo” e o “progresso social”

Por mais importante que tenha sido essa reação violenta do spencerismo, significativa por si mesma das mudanças em curso e prenhe das transformações ulteriores do liberalismo, na segunda metade do século XIX muitos deram razão às observações de Tocqueville quando ele descreveu o crescimento da intervenção governamental e aos argumentos econômicos e sociológicos de John Stuart Mill. Muitos também, inclusive nas fileiras dos que reivindicavam o liberalismo, fizeram dos instintos de simpatia e solidariedade a mais alta expressão da civilização, prolongando Comte ou Darwin. Num livro famoso na época, John Atkinson Hobson fez do crescimento das funções governamentais um dos temas principais de sua reflexão, assim como, na Alemanha, o “socialista de cátedra” Adolf Wagner [38]. Para muitos, o Estado aparecia como um interventor não somente legítimo, mas também necessário na economia e na sociedade. Em todo caso, a questão da “organização” do capitalismo e da melhoria da condição dos pobres, que não eram todos preguiçosos e cheios de vícios, tornara-se uma questão central desde o fim do século XIX.

A Primeira Guerra Mundial e as crises que vieram depois dela apenas aceleraram uma revisão geral dos dogmas liberais do século XIX. O que fazer com as velhas imagens idealizadas da livre troca, quando todo o equilíbrio social e econômico parece abalado? As repetidas crises econômicas, os fenômenos especulativos e as desordens sociais e políticas revelavam a fragilidade das democracias liberais. O período de crises múltiplas gerava uma ampla desconfiança em relação a uma doutrina econômica que pregava liberdade total aos atores no mercado. O laissez-faire foi considerado ultrapassado, até mesmo no campo dos que reivindicavam o liberalismo. Afora um núcleo de economistas universitários irredutíveis, aferrados à doutrina clássica e essencialmente hostis à intervenção do Estado, cada vez mais autores esperavam uma transformação do sistema liberal capitalista, não para destruí-lo, mas para salvá-lo. O Estado parecia o único em condições de recuperar uma situação econômica e social dramática. De acordo com a fórmula proposta por Karl Polanyi, a crise dos anos 1930 soou a hora de um “reencastramento” do mercado em disciplinas regulamentares, quadros legislativos e princípios morais.

Se a Grande Depressão foi ocasião para uma revisão mais radical da representação liberal, nos países anglo-saxões, como vimos, a dúvida já era oportuna muito antes. O New Deal foi preparado por um trabalho crítico considerável, que foi muito além dos meios tradicionalmente hostis ao capitalismo. Aliás, desde o fim do século XIX, nos Estados Unidos, o significado das palavras liberalism e liberal começava a mudar para designar uma doutrina que rejeitava o laissez-faire e visava a reformar o capitalismo [39]. Um “novo liberalismo” mais consciente das realidades sociais e econômicas procurava definir havia muito tempo uma nova maneira de compreender os princípios do liberalismo, que emprestaria certas críticas do socialismo, mas para melhor realizar os fins da civilização liberal.

O “novo liberalismo” repousa sobre a constatação da incapacidade dos dogmas liberais de definir novos limites para a intervenção governamental. Em nenhum outro lugar lê-se melhor essa incapacidade dos dogmas antigos do que no pequeno ensaio de John Maynard Keynes cujo título já é por si só uma indicação do espírito da época: O fim do “laissez-faire” [b] (1926). Se Keynes se tornará mais tarde o alvo preferido dos neoliberais, não devemos nos esquecer de que keynesianismo e neoliberalismo compartilharam as mesmas preocupações durante algum tempo: como salvar do próprio liberalismo o que é possível do sistema capitalista? Esse questionamento interessa a todos os países, com variações notáveis conforme o peso da tradição do liberalismo econômico. Obviamente, a moda estava à procura de uma terceira via entre o puro liberalismo do século anterior e o socialismo, mas seria um engano imaginar essa “terceira via” como o “justo meio”. Na realidade, essa procura adquire todo sentido quando a reinserimos no âmbito da questão central da época: sobre que fundamentos deve-se repensar a intervenção governamental [40]?

Toda a força de Keynes proveio justamente de ter sabido colocar esse problema da época em termos de governamentalidade, como fará pouco depois, aliás, seu amigo Walter Lippmann, embora num sentido diferente. Após lembrar as palavras de Edmund Burke[41] e a distinção de Bentham entre agenda e não agenda, Keynes escreve o seguinte:

"A tarefa essencial dos economistas hoje, sem dúvida, é repensar a distinção entre agenda do governo e não agenda. O complemento político dessa tarefa seria conceber, dentro do quadro democrático, formas de governo que fossem capazes de pôr as agendas em execução. [42]"

Keynes não deseja pôr em questão todo o liberalismo, mas sua deriva dogmática. Assim, quando propõe que “o essencial para um governo não é fazer um pouco melhor ou um pouco pior o que os indivíduos já fazem, mas fazer o que atualmente não é feito de maneira alguma”[43], não se poderia ser mais claro sobre a natureza da “crise do liberalismo”: como reformular teórica, moral e politicamente a distinção entre agenda e não agenda? Isso significava retomar uma questão antiga, sabendo que a resposta não poderia mais ser a dos fundadores da economia liberal, em particular a de Adam Smith.

Keynes quer estabelecer a distinção entre o que os economistas disseram de fato e o que a propaganda respondeu. Para ele, o laissez-faire é um dogma social simplista que amalgamou tradições e épocas diferentes, sobretudo a apologia da livre concorrência do século XVIII e o “darwinismo social” do século XIX.

"Os economistas ensinavam que a riqueza, o comércio e a indústria eram fruto da livre concorrência – que a livre concorrência fundara Londres. Mas os darwinistas iam mais longe: a livre concorrência criara o homem. A humanidade não era mais fruto da Criação, ordenando milagrosamente todas as coisas para o melhor, mas fruto, supremo, do acaso submetido às condições da livre concorrência e do laissez-faire. O princípio mesmo da sobrevivência do mais bem adaptado podia ser considerado, assim, uma vasta generalização dos princípios econômicos ricardianos. [44]"

Keynes sublinha que essa crença dogmática é largamente rejeitada pela maioria dos economistas desde meados do século XIX, embora continue a ser apresentada aos estudantes como propedêutica. Ainda que talvez exagere a extensão da revisão, omitindo a constituição da economia de inspiração “marginalista” que faz da concorrência a condição mais perfeita do funcionamento ideal dos mercados, ele aponta um momento de refundação da doutrina que foi chamada de “novo liberalismo” e que ele próprio reivindica para si. Esse novo liberalismo visava a controlar as forças econômicas para evitar a anarquia social e política, reapresentando a questão da agenda e da não agenda em sentido favorável à intervenção política. O Estado se vê encarregado de um papel regulador e redistribuidor fundamental naquilo que se apresenta também como um “socialismo liberal” [45].

Como mostra Gilles Dostaler, isso significava sobretudo reatar com o radicalismo inglês, que sempre defendeu a intervenção do Estado quando esta era necessária. É nessa tradição que se inseriam, no fim do século XIX e no início do século XX, autores como John Hobson e Leonard Hobhouse. Estes últimos defendiam uma democracia social, vista como o prolongamento normal da democracia política. Na pluma desses partidários das reformas sociais, os princípios da liberdade de comércio e de propriedade tornavam-se um meio como outro qualquer, e não mais um fim em si, o que evidentemente não deixa de lembrar Bentham e Mill. Mais ainda, esse movimento pretendia travar uma luta doutrinal contra o individualismo na compreensão dos mecanismos econômicos e sociais, criticando frontalmente a ingenuidade dogmática do velho liberalismo, que conduzia à confusão do Estado moderno com o Estado monárquico despótico.

Hobhouse propôs em 1911 uma releitura sistemática da história do liberalismo[46]. Esse movimento lento e progressivo de libertação do indivíduo em relação às dependências pessoais era, para ele, um fenômeno eminentemente histórico e social. Este levou a certa forma de organização que é irredutível à reunião imaginária de indivíduos inteiramente formados fora da sociedade. Essa organização social visa a produzir coletivamente as condições de pleno desabrochar da personalidade, inclusive no plano econômico. Isso somente é possível se as relações múltiplas que cada indivíduo mantém com os outros obedecem a regras coletivamente estabelecidas. A democracia mais completa, baseada na proporcionalidade da representação, é necessária para que essa realização pessoal seja efetiva: cada indivíduo deve ter condições de participar da instauração das regras que assegurarão sua liberdade efetiva[47]. É que a liberdade ganha uma concepção nova e mais concreta com a legislação protetora dos trabalhadores. Segundo Hobhouse, no século XIX pareceu necessário reequilibrar as trocas sociais em benefício dos mais fracos mediante uma intervenção da legislação: “O verdadeiro consentimento é um consentimento livre, e a plena liberdade do consentimento implica igualdade das duas partes comprometidas na transação”[48]. Cabe ao Estado assegurar essa forma real de liberdade que o velho liberalismo não concebera; cabe a ele garantir essa “liberdade social” (social freedom), que ele opõe à “liberdade não social” (unsocial freedom) dos mais fortes. Ainda de forma benthamiana, Hobhouse explica que a liberdade real somente pode ser assegurada pela coerção exercida sobre aquele que é mais ameaçador para a liberdade dos outros. Essa coerção, longe de ser atentatória à liberdade, proporciona à comunidade um ganho de liberdade em todas as condutas, evitando a desarmonia social[49]. Liberdade não é o contrário de coerção, antes é a combinação das coerções exercidas sobre os que são fortes com as proteções dos que são mais fracos.

Dessa perspectiva, a lógica liberal autêntica pode ser facilmente resumida: a sociedade moderna multiplica as relações contratuais, não apenas no campo econômico, mas em toda a vida social. Portanto, convém multiplicar as ações de reequilíbrio e proteção para garantir a liberdade de todos, sobretudo dos mais fracos. O liberalismo social assegura, assim, por sua legislação, uma extensão máxima da liberdade ao maior número de indivíduos. Filosofia plenamente individualista, esse liberalismo dá ao Estado o papel essencial de assegurar a cada indivíduo os meios de realizar seu próprio projeto [50].

No entre-guerras, esse novo liberalismo terá desdobramentos importantes nos Estados Unidos[51]. John Dewey, nas conferências que fez em 1935, reunidas em Liberalismo e ação social, mostrou a impotência do liberalismo clássico para realizar seu projeto de liberdade pessoal no século XIX, sendo incapaz de passar da crítica das formas antigas de dependência para uma organização social inteiramente fundada sobre os princípios liberais. Reconhece em Bentham o mérito de ter visto a grande ameaça que pesava sobre a vida política nas sociedades modernas. A democracia que ele queria implantar era pensada como forma de impedir os políticos de usar seu poder em interesse próprio. Mas Dewey acusa-o, a ele e ao conjunto dos liberais, de não ter reconhecido que o mesmo mecanismo agiria na economia e, consequentemente, de não ter previsto “travas” para evitar esse desvirtuamento[52]. Em suma, para Dewey, assim como anos antes para Hobhouse, o liberalismo do século XX não poderia mais contentar-se com os dogmas que permitiram a crítica da ordem antiga, mas deve colocar-se imperativamente o problema da construção da ordem social e da ordem econômica. É exatamente a isso que se dedicarão – em sentido oposto – os neoliberais modernos. Hobhouse, Keynes ou Dewey encarnam uma corrente, ou melhor, um meio difuso do fim do século XIX e início do século XX, no cruzamento do radicalismo com o socialismo, que se empenha em pensar a reforma do capitalismo[53]. A ideia de que a política é guiada por um bem comum e deve ser submetida a finalidades morais coletivas é fundamental nessa corrente, o que explica as intersecções possíveis com o movimento socialista. O fabianismo, por intermédio de círculos e revistas, constitui um dos polos desses encontros. Mas esse novo liberalismo deve ser situado sobretudo na história do radicalismo inglês. Hobson deve ser levado a sério quando declara que queria “um novo utilitarismo em que as satisfações físicas, intelectuais e morais terão seu lugar justo”[54].

Ver nisso um “desvirtuamento” do verdadeiro liberalismo seria, evidentemente, um erro baseado no postulado de uma identidade fundamental do liberalismo[55]. É esquecer que, desde o início do século XIX, o radicalismo benthamiano teve suas zonas de contato com o movimento socialista nascente, tanto na Inglaterra como na França. É esquecer que, anos depois, o utilitarismo doutrinal foi progressivamente conduzido a opor uma lógica hedonista pura a uma ética da maior felicidade para o maior número de pessoas, como em Henry Sidgwick. Mas também é desconhecer o sentido das inflexões aparentes dadas por John Stuart Mill a sua própria doutrina, como lembramos antes.

A dupla ação do Estado segundo Karl Polanyi

A questão da natureza da intervenção governamental deve ser distinguida da questão das fronteiras entre o Estado e o mercado. Essa distinção permite apreender melhor um problema apresentado em A grande transformação, livro em que Karl Polanyi afirma que o Estado liberal conduziu uma dupla ação com sentidos contrários no século XIX. De um lado, agiu em favor da criação dos mecanismos de mercado e, de outro, implantou mecanismos que o limitaram; de um lado, apoiou o “movimento” na direção da sociedade de mercado e, de outro, levou em consideração e reforçou o “contramovimento” de resistência da sociedade aos mecanismos de mercado.

Polanyi mostra que a entrada no mercado dos fatores econômicos é a condição para o crescimento capitalista. A Revolução Industrial teve como condição a constituição de um sistema mercantil em que os homens devem conceber-se, “sob o aguilhão da fome”, como vendedores de serviços para poder adquirir recursos vitais para a troca monetária. Para tanto, é necessário que a natureza e o trabalho se tornem mercadorias, que as relações que o homem mantém com seus semelhantes e com a natureza tomem a forma da relação mercantil. Para que a sociedade inteira se organize de acordo com a ficção da mercadoria, para que se constitua como uma grande máquina de produção e troca, a intervenção do Estado é indispensável, não apenas no plano legislativo, para fixar o direito de propriedade e contrato, mas também no plano administrativo, para instaurar nas relações sociais regras múltiplas necessárias ao funcionamento do mercado concorrencial e fazer com que sejam respeitadas. O mercado autorregulador é fruto de uma ação política deliberada, da qual um dos principais teóricos foi, segundo Polanyi, precisamente Bentham. Citamos aqui um trecho decisivo de A grande transformação:

"O laissez-faire não tinha nada de natural; os mercados livres nunca poderiam ter nascido se as coisas tivessem sido simplesmente abandonadas a si mesmas. […] Entre 1830 e 1850, viu-se não apenas uma explosão de leis ab-rogando regulamentos restritivos, mas também um enorme aumento das funções administrativas do Estado, que é então dotado de uma burocracia central capaz de cumprir as tarefas estabelecidas pelos partidários do liberalismo. Para o utilitarista típico, o liberalismo econômico é um projeto social que deve ser posto em ação para a maior felicidade do maior número de pessoas; o laissez-faire não é um método que permite realizar uma coisa, ele é a coisa que se deve realizar.[56]"

Esse Estado administrativo, criador e regulador da economia e da sociedade de mercado, é imediatamente, sem que se possa distinguir bem o alcance das intervenções, um Estado administrativo que reprime a dinâmica espontânea do mercado e protege a sociedade. Esse é o segundo paradoxo da demonstração de Karl Polanyi, formulado da seguinte maneira por ele: “Enquanto a economia do laissez-faire era produzida pela ação deliberada do Estado, as restrições posteriores principiaram espontaneamente. O laissez-faire era planejado, a planificação não” [57]. Após 1860, e para o pesar de Herbert Spencer, um “contra-movimento” generalizou-se em todos os países capitalistas, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Inspirando-se nas ideologias mais diversas, ele respondia a uma lógica de “proteção da sociedade”. Esse movimento de reação contra as tendências destruidoras do mercado autorregulador tomou duas formas: o protecionismo comercial nacional e o protecionismo social que se instalou no fim do século XIX. Portanto, a história deve ser lida segundo um “duplo movimento” de sentido contrário: o que leva à criação do mercado e o que tende a resistir a ele. Esse movimento de autodefesa espontânea, como diz Polanyi, prova que a sociedade de mercado total é impossível, que os sofrimentos que acarreta são tais que os poderes públicos são obrigados a estabelecer “diques” e “muralhas”.

Todo desequilíbrio ligado ao funcionamento do mercado ameaça a sociedade submetida a ele. Inflação, desemprego, crise de crédito internacional, crash financeiro, todos esses fenômenos econômicos atingem diretamente a sociedade e, portanto, exigem defesas políticas. Porque não compreenderam essa lição que poderia ter sido tirada do período anterior à Primeira Guerra Mundial, os responsáveis políticos que surgiram após o fim das hostilidades quiseram reconstruir uma ordem liberal mundial muito frágil, acumulando tensões entre o movimento de reconstrução do mercado (em particular no nível mundial, com o desejo de restauração do sistema do padrão-ouro) e o movimento de autodefesa social. Essas tensões, que têm a ver com a contradição interna à “sociedade de mercado”, passaram da esfera econômica para a social, e desta para a política, da cena nacional para a internacional e vice-versa, o que, por fim, provocou a reação fascista e a Segunda Guerra Mundial.

A “grande transformação” que caracteriza os anos 1930 e 1940 é uma resposta de grande envergadura ao “desaparecimento da civilização de mercado” [58] e, mais precisamente, uma reação à tentativa derradeira e desesperada de restabelecer o mercado autorregulador nos anos 1920: “O liberalismo econômico fez um lance alto para restabelecer a autorregulação do sistema, eliminando todas as políticas intervencionistas que comprometiam a liberdade dos mercados de terra, trabalho e moeda” [59]. Desse lance alto, em que a moeda desempenhou o papel principal, à grande transformação, a consequência é direta. O imperativo da estabilidade monetária e da liberdade do comércio mundial levou a melhor sobre a preservação das liberdades públicas e da vida democrática. O fascismo foi o sintoma de uma “sociedade de mercado que se recusava a funcionar”[60] e o sinal do fim do capitalismo liberal tal como fora inventado no século XIX. A grande reviravolta política dos anos 1930 manifesta-se como uma ressocialização violenta da economia[61]. Por toda parte, a tendência é a mesma: subtraem-se do mercado concorrencial as regras de fixação dos preços do trabalho, da terra e da moeda para submetê-las a lógicas políticas que visam à “defesa da sociedade”. O que Polanyi chama de “grande transformação” é, para ele, o fim da civilização do século XIX, a morte do liberalismo econômico e de sua utopia.

Polanyi, todavia, precipitou-se acreditando na morte definitiva do liberalismo. Por que cometeu esse erro de diagnóstico? Podemos avançar a hipótese de que subestimou um dos principais aspectos do liberalismo, embora ele mesmo o tenha posto em evidência. Vimos antes que, entre as diferentes formas de intervencionismo do Estado, havia duas que se contrariavam: as intervenções de criação do mercado e as de proteção da sociedade, o “movimento” e o “contra-movimento”. Mas existe um terceiro tipo, do qual ele fala mais brevemente: as intervenções de funcionamento do mercado. Embora indique que estas não são facilmente distinguíveis das outras, ele as menciona como uma constante da ação do governo liberal. Essas intervenções destinadas a assegurar a autorregulação do mercado tentam fazer com que o princípio de concorrência que deve regê-lo seja respeitado. Polanyi cita como exemplos as leis antitrustes e a regulamentação das associações sindicais. Nos dois casos, trata-se de ir contra a liberdade (na situação em questão, a liberdade de coalizão) para fazer funcionar melhor as regras concorrenciais. Polanyi cita, aliás, esses “liberais consequentes com eles mesmos”, entre os quais Walter Lippmann, que não hesitam em sacrificar o laissez-faire em benefício do mercado concorrencial[62]. Isso porque estes últimos termos não são sinônimos, apesar da linguagem comum que os confunde. Citamos uma passagem particularmente eloquente:

"Estritamente falando, o liberalismo econômico é o princípio diretor de uma sociedade em que a indústria é baseada na instituição de um mercado autorregulador. É verdade que, uma vez que esse sistema esteja mais ou menos realizado, necessita-se de menos intervenção de certo tipo. Contudo, isso não quer dizer, longe disso, que o sistema de mercado e a intervenção sejam termos que se excluam mutuamente. Pois, enquanto esse sistema não é implantado, os partidários da economia liberal devem exigir – e não hesitarão em fazê-lo – que o Estado intervenha para estabelecê-lo e, uma vez estabelecido, que intervenha para mantê-lo. O partidário da economia liberal pode portanto, sem nenhuma incoerência, pedir ao Estado que utilize a força da lei, ele pode até mesmo recorrer à violência, à guerra civil, para instaurar as condições prévias para um mercado autorregulador.[63]"

Essa passagem muito pouco citada, notável pelo fato de antecipar certas “cruzadas” recentes, distancia-nos da “disjunção” entre Estado e mercado que é vista como típica do liberalismo. A realidade histórica é muito diferente, como mostra Polanyi quando cita a guerra que o Norte travou contra o Sul para unificar as regras de funcionamento do capitalismo norte-americano.

Essa forma constante de intervenção para “manutenção” do mercado lança uma nova luz sobre o erro de Polanyi, bem como sobre os que vieram depois dele. Ela é apenas a presunção otimista de um fim ardentemente desejado ou apenas o resultado de uma confusão de pensamento, cujo risco foi identificado pelo próprio Polanyi[64]. O liberalismo econômico não se confunde com o laissez-faire, não é contrário ao “intervencionismo”, como ainda se pensa com frequência.

Na realidade, é entre os diferentes tipos de intervenções do Estado que é preciso fazer uma distinção. Elas podem dizer respeito a princípios heterônomos à mercantilização e obedecer a princípios de solidariedade, compartilhamento, respeito a tradições ou normas religiosas. Nesse sentido, participam do “contra-movimento” à tendência principal do grande mercado. Mas também podem ser da ordem de um programa que visa a estender a inserção no mercado (ou quasi-mercado) de setores inteiros da produção e da vida social, mediante certas políticas públicas ou certas despesas sociais que vêm proteger ou apoiar o desenvolvimento das empresas capitalistas. Polanyi, quando se quis “profeta”, ficou como que fascinado com a contradição entre esse movimento mercantil e esse contra-movimento social, contradição que, para ele, levou afinal à “explosão” do sistema. Mas esse fascínio, explicável tanto pelo contexto como pelas intenções demonstrativas de sua obra, fez com que ele se esquecesse das intervenções públicas para o funcionamento do mercado autorregulador que, no entanto, ele pusera em evidência.

Esse erro de Polanyi é importante porque tende a obscurecer a natureza específica do neoliberalismo, que não é simplesmente uma nova reação à “grande transformação”, uma “redução do Estado” que precederia um “retorno do Estado”. Ele se define melhor como certo tipo de intervencionismo destinado a moldar politicamente relações econômicas e sociais regidas pela concorrência.

O neoliberalismo e as discordâncias do liberalismo

A “crise do liberalismo” revelou a insuficiência do princípio dogmático do laissez-faire para a condução dos negócios governamentais. O caráter fixo das “leis naturais” tornou-as incapazes de guiar um governo cujo objetivo declarado é assegurar a maior prosperidade possível e, ao mesmo tempo, a ordem social.

Entre os que permanecem apegados aos ideais do liberalismo clássico, foram formulados dois tipos de resposta que devem-se distinguir, ainda que, historicamente, elas tenham se misturado algumas vezes. A primeira em ordem cronológica é a do “novo liberalismo”, a segunda é a do “neoliberalismo”. Os nomes dados a essas duas vias não se impuseram de imediato, como se pode imaginar. Foi o uso que se fez delas, os conteúdos que foram elaborados, as linhas políticas que se destacaram pouco a pouco que nos permitem distingui-las retroativamente. A proximidade dos nomes traduz, em primeiro lugar, uma comunidade de projeto: trata-se nos dois casos de responder a uma crise do modo de governo liberal, de superar as dificuldades de todos os tipos que surgiram das mutações do capitalismo, dos conflitos sociais, dos confrontos internacionais. Trata-se até, mais fundamentalmente, de fazer frente ao que apareceu em dado momento como o “fim do capitalismo”, fim esse que foi encarnado pela ascensão dos “totalitarismos” após a Primeira Guerra Mundial. Essas duas correntes descobriram progressivamente que tinham em comum, dito brutalmente, um inimigo: o totalitarismo, isto é, a destruição da sociedade liberal. Sem dúvida, foi isso que as levou a criar um discurso ao mesmo tempo teórico e político que dá razão, forma e sentido à intervenção governamental, um discurso novo, que produz uma nova racionalidade governamental. O que supunha revisar, de um lado e de outro, o naturalismo liberal tal como fora transmitido ao longo do século XIX. 

A distinção dos nomes, “novo liberalismo” e “neoliberalismo”, por mais discreta que seja na aparência, traduz uma oposição que não foi percebida de imediato, às vezes nem mesmo pelos atores dessas formas de renovação da arte do governo. O “novo liberalismo”, do qual uma das expressões tardias e mais elaboradas no plano da teoria econômica foi a de Keynes, consistiu em reexaminar o conjunto dos meios jurídicos, morais, políticos, econômicos e sociais que permitiam a realização de uma “sociedade de liberdade individual”, em proveito de todos. Duas propostas poderiam resumi-lo: 1) as agendas do Estado devem ir além dos limites que o dogmatismo do laissez-faire impôs a elas, se se deseja salvaguardar o essencial dos benefícios de uma sociedade liberal; 2) essas novas agendas devem pôr em questão, na prática, a confiança que se depositou até então nos mecanismos autorreguladores do mercado e a fé na justiça dos contratos entre indivíduos supostos iguais. Em outras palavras, a realização dos ideais do liberalismo exige que se saiba utilizar meios aparentemente alheios ou opostos aos princípios liberais para defender sua implementação: leis de proteção do trabalho, impostos progressivos sobre a renda, auxílios sociais obrigatórios, despesas orçamentárias ativas, nacionalizações. Mas, se esse reformismo aceita restringir os interesses individuais para proteger o interesse coletivo, ele o faz apenas para garantir as condições reais de realização dos fins individuais. 

O “neoliberalismo” vem mais tarde. Em certos aspectos, aparece como uma decantação do “novo liberalismo” e, em outros, como uma alternativa aos tipos de intervenção econômica e reformismo social pregados pelo “novo liberalismo”. Ele compartilhará amplamente a primeira proposição com este último. Mas, ainda que admitam a necessidade de uma intervenção do Estado e rejeitem a pura passividade governamental, os neoliberais opõem-se a qualquer ação que entrave o jogo da concorrência entre interesses privados. A intervenção do Estado tem até um sentido contrário: trata-se não de limitar o mercado por uma ação de correção ou compensação do Estado, mas de desenvolver e purificar o mercado concorrencial por um enquadramento jurídico cuidadosamente ajustado. Não se trata mais de postular um acordo espontâneo entre os interesses individuais, mas de produzir as condições ótimas para que o jogo de rivalidade satisfaça o interesse coletivo. A esse respeito, rejeitando a segunda das duas proposições mencionadas antes, o neoliberalismo combina a reabilitação da intervenção pública com uma concepção do mercado centrada na concorrência, cuja fonte, como vimos, encontra-se no spencerismo da segunda metade do século XIX[65]. Ele prolonga a virada que deslocou o eixo do liberalismo, fazendo da concorrência o princípio central da vida social e individual, mas, em oposição à fobia spenceriana de Estado, reconhece que a ordem de mercado não é um dado da natureza, mas um produto artificial de uma história e de uma construção política.

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[1] Para a apresentação dessas duas formas de liberalismo, ver Michael Freeden, Liberalism Divided: A Study in British Political Thought 1914 -1939 (Oxford, Clarendon, 1986).

[2] Ver Marcel Gauchet, La crise du libéralisme: l’avènement de la démocratie, v. 2 (Paris, Gallimard, 2007), p. 64 e seg. e 306.

[3] Ver Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard, 2004), p. 71.

[4] Cada país teve, segundo suas tradições políticas, seu próprio modo de restauração do liberalismo. A França certamente tomou do republicanismo fin-de-siècle e das doutrinas solidaristas sua forma singular de repensar as tarefas governamentais.

[5] Ver sobre esse ponto Marianne Debouzy, Le capitalisme “sauvage” aux États-Unis, 1860-1900 (Paris, Seuil, 1991) [ed. port.: O capitalismo “selvagem” nos Estados Unidos, 1860-1900, trad. Maria de Lurdes Almeida Melo, Lisboa, Estudios Cor, 1972].

[6] Ver Alexis de Tocqueville, Voyage en Angleterre et en Irlande de 1835, em Œuvres I (Paris, Gallimard, 1991, Coleção La Pléiade), p. 466 e seg. 

[7] Aliás, Tocqueville apela para um jogo de ponderação entre o centro e o local, para uma neutralização recíproca dos dois princípios opostos, o da centralização dos Estados modernos e o da liberdade local. A lei inglesa de 14 de agosto de 1834 sobre os pobres é precisamente, para ele, um modelo dessa ponderação entre o Estado e as comunas (ibidem, apêndice II, p. 597).

[8] Alexis de Tocqueville, De la démocratie en Amérique, v. 2, livro IV, cap. 2, em Œuvres II (Paris, Gallimard, 1992, Coleção La Pléiade), p. 810 e seg. [ed. bras.: A democracia na América, trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes, 2000].

[9] Ver John Stuart Mill, Essais sur Tocqueville et la société américaine (Paris, Vrin, 1994).

[10] Ibidem, p. 195.

[11] Idem.

[12] John Stuart Mill, “Civilization”, em Essays on Politics and Culture (Gloucester, Peter Smith, 1973), p. 45 e seg. 

[13] Ibidem, p. 63.

[14] John Stuart Mill, On Socialism (Buffalo, Prometheus Books, 1987), p. 56.

[15] Ibidem, p. 145-6.

[16] Michael W. Taylor, Men versus the State: Herbert Spencer and Late Victorian Individ ualism (Oxford, Clarendon, 1992), p. 13. 

[17] Ver Patrick Tort, Spencer et l’évolutionnisme philosophique (Paris, PUF, 1996).

[18] Aliás, o próprio Spencer observa como ele “evoluiu” em relação a Bentham, por efeito dos progressos da ciência da natureza. Poderíamos acrescentar que a doutrina de Spencer deve muito a Saint-Simon e Comte, ainda que tenha mudado suas doutrinas e invertido as consequências políticas que eles tiravam delas.

[19] Patrick Tort, Spencer et l’évolutionnisme philosophique, cit., p. 13. 

[20] Ibidem, p. 13-9. Karl Polanyi dará grande importância a essa lista, julgando-a particularmente indicativa do “contramovimento” que se desenhou a partir de 1860 (La grande transformation, Paris, Gallimard, 1983, p. 197) [ed. bras.: A grande transformação: as origens da nossa época, trad. Fanny Wrobel, 2. ed., Rio de Janeiro, Elsevier, 2012]. Esse ponto é desenvolvido adiante, p. 64.

[21] Herbert Spencer, L’individu contre l’État (Paris, Alcan, 1885), p. 10. Distinção que confirma amplamente a diferença entre liberdade positiva e liberdade negativa que Isaiah Berlin popularizará e que vimos em ação na obra do próprio Bentham.

[22] Encontramos o mesmo esquema de explicação (“a impaciência das massas”) em Friedrich Hayek, O caminho da servidão (trad. Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro, Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército/Instituto Liberal, 1994).

[23] Herbert Spencer, L’individu contre l’État, cit., p. 26 (em edição mais recente: Le droit d’ignorer l’État, Paris, Les Belles Lettres, 1993, p. 43-4).

[24] Ibidem, p. 156 (ibidem, p. 201).

[25] Ibidem, p. 116 e 122 (ibidem, p. 121 e 132).

[26] Ibidem, p. 132 (ibidem, p. 153).

[27] Ibidem, p. 158 (ibidem, p. 206).

[28] Ibidem, p. 154 (ibidem, p. 198).

[29] Ver Herbert Spencer, “Progress: Its Law and Causes”, The Westminster Review, v. 67, 1857.

[30] Idem, “Esquisse d’une psychologie comparée de l’homme”, Revue Philosophique de la France et de l’Étranger, t. 1, 1876.

[31] Sobre todos esses pontos, ver a tese clássica do historiador norte-americano Richard Hofstadter, escrita em 1944, Social Darwinism in American Thought (Boston, Beacon, 1992). Foi essa obra que popularizou o termo “darwinismo social”, raramente utilizado até então. Notemos que essa expressão surgiu em 1879 num artigo da revista Popular Science, sob a pluma de Oscar Schmidt, e foi utilizado por um anarquista, Émile Gautier, num texto publicado em Paris, em 1880, intitulado Le darwinisme social.

[a] Trad. Aulyde Soares, São Paulo/Brasília, Melhoramentos/Editora da UnB, 1982. (N. E.)

[32] Na parte 3, capítulo 12, de Principles of Biology, v. 1 (Londres/Edimburgo, Williams/Northgate, 1864), § 165, p. 445, Spencer escreve que: “This survival of the fittest […] is that which Mr. Darwin has called ‘natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life’” [“Essa sobrevivência dos mais aptos (...) é o que o sr. Darwin chamou de ‘seleção natural, ou preservação das raças favorecidas na luta pela vida’”] (ed. fr.: Principes de biologie, Paris, Germer Baillière, 1880, t. 1, p. 539).

[33] Ver Patrick Tort, Spencer et l’évolutionnisme philosophique, cit. Remeto o leitor ao esclarecimento completo dessa questão em Patrick Tort, L’effet Darwin: sélection naturelle et naissance de la civilisation (Paris, Seuil, 2008).

[34] Patrick Tort mostrou de maneira definitiva que a teoria darwiniana era o oposto exato desse concorrencialismo, uma vez que, para o homem social, a seleção biológica é substituída por “tecnologias de compensação” que reduzem artificialmente as causas de debilidade dos indivíduos menos favorecidos (Patrick Tort, L’effet Darwin, cit., p. 110). O polêmico termo “darwinismo social”, empregado por seus oponentes, contém em si uma falsificação. A repetição das expressões “luta pela vida” ou “sobrevivência dos mais aptos” não é suficiente para lhe garantir um fundamento sólido na teoria de Darwin.

[35] Mike Hawkins, Social Darwinism in European and American Thought, 1860-1945: Nature as Model and Nature as Threat (Cambridge, Cambridge University Press, 1997).

[36] Rockefeller citado em John Kenneth Galbraith, “Derrière la fatalité, l’épuration social. L’art d’ignorer les pauvres”, Le Monde Diplomatique, Paris, out. 2005.

[37] Ver William Graham Sumner, The Challenge of Facts and Other Essays (org. Albert Galloway Keller, New Haven, Yale University Press, 1914).

[38] Ver John Atkinson Hobson, The Evolution of Modern Capitalism (Londres, The Walter Scott Publishing Co., 1894).

[39] Alguns autores veem esse deslocamento como uma traição ou um “desvirtuamento” do liberalismo. É o caso de Alain Laurent, Le libéralisme américain: histoire d’un détournement (Paris, Les Belles Lettres, 2006).

[b] Em John Maynard Keynes, Keynes (org. Tamás Szmrecsányi, 2. ed., São Paulo, Ática, 1984, Coleção Economia). (N. E.)

[40] Gilles Dostaler apresenta da seguinte maneira a visão política de Keynes: “A visão política de Keynes se delineia, num primeiro momento, em termos negativos. Ela é mais clara naquilo que rejeita do que no que prega. De um lado, Keynes trava uma luta contra o liberalismo clássico, que se tornou apanágio de um conservadorismo e que, em sua forma extrema, pode transformar-se em fascismo. Por outro, ele rejeita as formas radicais do socialismo, que ele denomina ora leninismo, ora bolchevismo, ora comunismo. Trata-se, portanto, de navegar entre a reação e a revolução. Essa é a missão de uma ‘terceira via’, alternadamente denominada novo liberalismo, liberalismo social e socialismo liberal, do qual ele se faz propagandista”. Gilles Dostaler, Keynes et ses combats (Paris, Albin Michel, 2005), p. 166. 

[41] Edmund Burke considerava que “um dos problemas mais sutis do direito” era “a definição exata do que o Estado deve tomar a seu encargo e gerir segundo o desejo da opinião pública e do que deve ser deixado para a iniciativa privada, resguardado, tanto quanto possível, de qualquer ingerência”.

[42] John Maynard Keynes, The End of Laisser-faire (Marselha, Agone, 1999), p. 26.

[43] Ibidem, p. 31.

[44] Ibidem, p. 9.

[45] Gilles Dostaler descreve esse “novo liberalismo” da seguinte maneira: “Trata-se, em última análise, de transformar profundamente um liberalismo econômico que havia custado socialmente muito caro no período vitoriano e corria o risco de provocar uma revolta da classe operária. O novo liberalismo apresenta-se como uma alternativa ao socialismo coletivista e marxista. Os novos liberais rejeitam a luta de classes como motor de transformação social.

Aderem de preferência a uma forma de socialismo liberal que podemos qualificar de social-democrata, ao menos no sentido que tomará a expressão após as cisões nos partidos operários no início da Segunda Guerra Mundial.

Naturalmente, esse novo liberalismo é o exato oposto daquilo que hoje chamamos de neoliberalismo, que é, em primeiro lugar, uma reação ultraliberal contra o intervencionismo keynesiano”. Gilles Dostaler, Keynes et ses combats, cit., p. 179.

[46] Ver Leonard Hobhouse, Liberalism and Other Writings (org. James Meadowcroft, Cambridge, Cambridge University Press, 1994).

[47] Pode-se notar que esse novo liberalismo é um movimento fundamentalmente democrático, que deixa de lado a desconfiança que ainda se encontrava em Mill acerca da “tirania da maioria”. Mais próximo de Bentham nesse aspecto, ele tem mais receio da reconstituição das oligarquias do que do poder das massas.

[48] Leonard Hobhouse, Liberalism and Other Writings, cit., p. 43.

[49] Ibidem, p. 44.

[50] Evidentemente, essa “retomada” liberal deve ser articulada à tradição republicana no mundo euro-atlântico. Seu equivalente na França é o projeto republicano moderno, estudado por Jean-Fabien Spitz, Le moment républicain en France (Paris, Gallimard, 2005, Coleção NRF Essais).

[51] Segundo Alain Laurent, os “liberais modernos” conduzidos por John Dewey teriam realizado uma operação muito semelhante nos anos 1920 nos Estados Unidos, o que teria sido determinante para o significado que adquiriu o termo “liberal” no léxico político norte-americano.

[52] Ver John Dewey, “Liberalism and Social Action”, em The Later Works (1935-1937), v. 11 (Carbondale, Southern Illinois University Press, 1987), p. 28 [ed. bras.: “Liberalismo e ação social”, em Liberalismo, liberdade e cultura, trad. Anísio Teixeira, São Paulo, Editora Nacional, 1970].

[53] Ver Peter Clarke, Liberals and Social Democrats (Cambridge, Cambridge University Press, 1978).

[54] John A. Hobson, Wealth and Life, citado em Michael Freeden, Liberalism Divided, cit., extraído de John A. Hobson, Wealth and Life (Londres, Macmillan, 1929).

[55] Ver Alain Laurent, Le libéralisme américain, cit.

[56] Karl Polanyi, La grande transformation, cit., p. 189; grifo nosso.

[57] Ibidem, p. 191; grifo nosso.

[58] Ibidem, p. 285.

[59] Ibidem, p. 299.

[60] Ibidem, p. 308.

[61] Ver Prefácio de Louis Dumont, em ibidem, p. 1.

[62] Ibidem, p. 200.

[63] Ibidem, p. 201.

[64] Idem.

[65] Michel Foucault apontou essa passagem da troca para a concorrência, que caracteriza o neoliberalismo em relação ao liberalismo clássico. Ver Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 121-2. 
 

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