sexta-feira, 25 de novembro de 2022

A Nova Razão do Mundo: CONCLUSÃO - O ESGOTAMENTO DA DEMOCRACIA LIBERAL

CONCLUSÃO

O ESGOTAMENTO DA DEMOCRACIA LIBERAL

Quais traços caracterizam a razão neoliberal? Ao fim deste estudo, podemos destacar quatro.

Em primeiro lugar, ao contrário do que pensavam os economistas clássicos, o mercado apresenta-se não como um dado natural, mas como uma realidade construída que, como tal, requer a intervenção ativa do Estado, assim como a instauração de um sistema de direito específico. Nesse sentido, o discurso neoliberal não é diretamente articulado a uma ontologia da ordem mercantil, pois, longe de buscar em algum “curso natural das coisas” o fundamento de sua própria legitimidade, ele assume deliberada e explicitamente seu caráter de “projeto construtivista”[1].

Em segundo lugar, a essência da ordem de mercado reside não na troca, mas na concorrência, definida como relação de desigualdade entre diferentes unidades de produção ou “empresas”. Por conseguinte, construir o mercado implica fazer valer a concorrência como norma geral das práticas econômicas[2]. Nesse sentido, é forçoso reconhecer que a principal lição dos ordoliberais prevaleceu: a missão dada ao Estado, que vai muito além do tradicional papel de “vigia noturno”, é instaurar a “ordem-quadro” a partir do princípio “constituinte” da concorrência, “supervisionar o quadro geral”[3] e zelar para que este seja respeitado por todos os agentes econômicos.

Em terceiro lugar, o que é ainda mais novo, tanto relativamente ao primeiro liberalismo quanto ao liberalismo “reformador” dos anos 1890-1920, o Estado não é simplesmente o guardião vigilante desse quadro; ele próprio, em sua ação, é submetido à norma da concorrência. Segundo esse ideal de uma “sociedade de direito privado”[4], não existe nenhuma razão para que o Estado seja exceção às regras de direito que ele próprio é encarregado de fazer aplicar. Muito pelo contrário, toda forma de autoisenção ou autodispensa de sua parte apenas o desqualificaria em seu papel de guardião inflexível dessas mesmas regras. Resulta dessa primazia absoluta do direito privado um esvaziamento progressivo de todas as categorias do direito público que vai no sentido não de uma ab-rogação formal destas últimas, mas de uma desativação de sua validade operatória. O Estado é obrigado a ver a si mesmo como uma empresa, tanto em seu funcionamento interno como em sua relação com os outros Estados. Assim, o Estado, ao qual compete construir o mercado, tem ao mesmo tempo de construir-se de acordo com as normas do mercado.

Em quarto lugar, a exigência de uma universalização da norma da concorrência ultrapassa largamente as fronteiras do Estado, atingindo diretamente até mesmo os indivíduos em sua relação consigo mesmos. De fato, a “governamentalidade empresarial” que deve prevalecer no plano da ação do Estado tem um modo de prolongar-se no governo de si do “indivíduo-empresa” ou, mais exatamente, o Estado empreendedor deve, como os atores privados da “governança”, conduzir indiretamente os indivíduos a conduzir-se como empreendedores. Portanto, o modo de governamentalidade própria do neoliberalismo cobre o “conjunto das técnicas de governo que ultrapassam a estrita ação de Estado e orquestram a forma como os sujeitos se conduzem por si mesmos”[5]. A empresa é promovida a modelo de subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar.

Uma racionalidade ademocrática

Da construção do mercado à concorrência como norma dessa construção, da concorrência como norma da atividade dos agentes econômicos à concorrência como norma da construção do Estado e de sua ação e, por fim, da concorrência como norma do Estado-empresa à concorrência como norma da conduta do sujeito-empresa, essas são as etapas pelas quais se realiza a extensão da racionalidade mercantil a todas as esferas da existência humana e que fazem da razão neoliberal uma verdadeira razão-mundo.

Mas que o leitor não se engane: não se trata aqui de voltar ao tema habermasiano da “colonização do mundo vivido”, simplesmente porque jamais existiu um “mundo da vida” (Lebenswelt) que não fosse sempre já pego em discursos ou invadido por dispositivos de poder. Trata-se de mostrar a que ponto essa extensão, fazendo desaparecer a separação entre esfera privada e esfera pública, corrói até os fundamentos da própria democracia liberal. De fato, esta última pressupunha certa irredutibilidade da política e da moral ao econômico, algo de que se encontra eco direto na obra de Adam Smith e Adam Ferguson. Além do mais, pressupunha certa primazia da lei como ato do Legislativo e, nessa medida, certa forma de subordinação do poder Executivo ao poder Legislativo[6]. Também implicava, se não uma preeminência do direito público sobre o direito privado, ao menos uma consciência aguda da necessária delimitação de suas respectivas esferas. Correlativamente, vivia de certa relação do cidadão com o “bem comum”, ou “bem público”. Por isso mesmo, pressupunha uma valorização da participação direta do cidadão nas questões públicas, em particular nos momentos em que está em jogo a própria existência da comunidade política.

A racionalidade neoliberal, ao mesmo tempo que se adapta perfeitamente ao que restou dessas distinções no plano da ideologia, opera uma desativação sem precedentes do caráter normativo destas últimas. Diluição do direito público em benefício do direito privado, conformação da ação pública aos critérios da rentabilidade e da produtividade, depreciação simbólica da lei como ato próprio do Legislativo, fortalecimento do Executivo, valorização dos procedimentos, tendência dos poderes de polícia a isentar-se de todo controle judicial, promoção do “cidadão-consumidor” encarregado de arbitrar entre “ofertas políticas” concorrentes, todas são tendências comprovadas que mostram o esgotamento da democracia liberal como norma política.

Um dos principais sintomas dessa desativação é a importância que o tema da “boa governança” ganhou no discurso de gestão. Toda a reflexão sobre a administração pública adquire um caráter técnico, em detrimento das considerações políticas e sociais que permitiriam evidenciar tanto o contexto da ação pública como a pluralidade das opções possíveis[7]. A concepção dos bens públicos, assim como os princípios de sua distribuição, é profundamente afetada. A igualdade de tratamento e a universalidade dos benefícios são questionadas tanto pela individualização do auxílio e pela seleção dos beneficiados, na qualidade de amostras de um “público-alvo”, quanto pela concepção consumista do serviço público. As categorias da gestão tendem, nesse sentido, a ocupar o lugar dos princípios simbólicos comuns que até então se encontravam no fundamento da cidadania[8]. A única questão autorizada no debate público é a da capacidade de levar a cabo “reformas” cujo sentido não é explicitado, sem que se saiba muito bem quais resultados se tenta obter por essa ação sobre a sociedade.

Além do modo de gestão e suas ferramentas técnicas, a relação entre governantes e governados é radicalmente subvertida. De fato, é toda a cidadania, tal como se construiu nos países ocidentais desde o século XVIII, que é questionada até em suas raízes. É o que se vê em especial pelo questionamento prático de direitos até então ligados à cidadania, a começar pelo direito à proteção social, que foi historicamente estabelecido como consequência lógica da democracia política. “Nada de direitos se não houver contrapartidas” é o refrão para obrigar os desempregados a aceitar um emprego inferior, para fazer os doentes ou os estudantes pagarem por um serviço cujo benefício é visto estritamente como individual, para condicionar os auxílios concedidos à família às formas desejáveis de educação parental. O acesso a certos bens e serviços não é mais considerado ligado a um status que abre portas para direitos, mas o resultado de uma transação entre um subsídio e um comportamento esperado ou um custo direto para o usuário. A figura do “cidadão” investido de uma responsabilidade coletiva desaparece pouco a pouco e dá lugar ao homem empreendedor. Este não é apenas o “consumidor soberano” da retórica neoliberal, mas o sujeito ao qual a sociedade não deve nada, aquele que “tem de se esforçar para conseguir o que quer” e deve “trabalhar mais para ganhar mais”, para retomarmos alguns dos clichês do novo modo de governo. A referência da ação pública não é mais o sujeito de direitos, mas um ator autoempreendedor que faz os mais variados contratos privados com outros atores autoempreendedores. Dessa forma, os modos de transação negociados caso a caso para “resolver os problemas” tendem a substituir as regras de direito público e os processos de decisão política legitimados pelo sufrágio universal. Longe de ser “neutra”, a reforma gerencial da ação pública atenta diretamente contra a lógica democrática da cidadania social; reforçando as desigualdades sociais na distribuição dos auxílios e no acesso aos recursos em matéria de emprego, saúde e educação[9], ela reforça as lógicas sociais de exclusão que fabricam um número crescente de “subcidadãos” e “não cidadãos”.

Seria um erro, porém, ver a racionalidade neoliberal somente como uma contestação da “terceira fase” da democratização, a que presenciou a instauração de uma “cidadania social” no século XX, completando a “cidadania civil” do século XVIII e a “cidadania política” do século XIX[10]. O welfarismo não foi apenas uma simples gestão biopolítica das populações, tampouco teve como consequência apenas o consumo de massa na regulação fordista do pós-guerra; como bem sublinhou Robert Castel, a razão do welfarismo era a integração dos assalariados no espaço político mediante o estabelecimento das condições concretas da cidadania[11]. Portanto, a corrosão progressiva dos direitos sociais do cidadão não afeta apenas a chamada cidadania “social”, ela abre caminho para uma contestação geral dos fundamentos da cidadania como tal, na medida em que a história tornou esses fundamentos solidários uns com os outros. Com isso, ela leva a uma nova fase da história das sociedades ocidentais[12].

Sob esse aspecto, é espantoso constatar a que ponto a contestação dos direitos sociais está intimamente ligada à contestação prática dos fundamentos culturais e morais, e não só políticos, das democracias liberais. O cinismo, a mentira, o menosprezo, a aversão à arte e à cultura, o desleixo da linguagem e dos modos, a ignorância, a arrogância do dinheiro e a brutalidade da dominação valem como títulos para governar em nome apenas da “eficácia”. Quando o desempenho é o único critério de uma política, que importância tem o respeito à consciência e à liberdade de pensamento e expressão? Que importância tem o respeito às formas legais e aos procedimentos democráticos? A nova racionalidade promove seus próprios critérios de validação, que não têm mais nada a ver com os princípios morais e jurídicos da democracia liberal. Sendo uma racionalidade estritamente gerencial, vê as leis e as normas simplesmente como instrumentos cujo valor relativo depende exclusivamente da realização dos objetivos. Nesse sentido, não estamos lidando com um simples “desencantamento democrático” passageiro, mas com uma mutação muito mais radical, cuja extensão é revelada, a sua maneira, pela dessimbolização que afeta a política.

É nesse sentido que Wendy Brown tem sólidas razões para utilizar o neologismo “desdemocratização”: a inutilização prática das categorias fundadoras da democracia liberal, tal como se manifesta em especial na suspensão da lei e na transformação do estado de exceção em estado permanente, tão bem analisadas por Giorgio Agamben[13], não equivale a nem prenuncia a instauração de um novo regime político[14]. Ao contrário, é a tradução de uma propensão acentuada da nova lógica normativa a apagar as diferenças entre regimes políticos, a ponto de relegá-los a uma relativa indiferenciação, a qual in fine ameaça até mesmo a pertinência da noção de “regime político” herdada da tradição clássica.

Contudo, devemos notar que essa indiferença, longe de ser um simples “acidente de percurso”, está inscrita desde o princípio no projeto intelectual e político do neoliberalismo. A oposição “democracia versus totalitarismo”, contemporânea da Guerra Fria, cuja melhor formulação foi dada por ­Raymond Aron[15], ocultou outra oposição igualmente importante entre duas formas de democracia. De fato, para Friedrich Hayek, a única oposição pertinente é entre liberalismo e totalitarismo, não entre democracia e totalitarismo. Fundamentar essa nova oposição exigiria, em primeiro lugar, reduzir a democracia a um procedimento de seleção dos dirigentes que deve ser julgado, antes de tudo, por seu resultado prático, e não pelos valores que pretensamente o fundamentam[16]. Enquanto a democracia diz respeito apenas à maneira de escolher os dirigentes (por eleição), o liberalismo define-se essencialmente pela exigência de uma limitação do poder (ainda que seja o da maioria). Consequentemente, mesmo que os dirigentes sejam eleitos pela maioria, basta que o poder exercido por essa maioria seja ilimitado para que haja uma “democracia totalitária”. Inversamente, o liberalismo pode ser democrático ou autoritário, conforme o modo de designação dos dirigentes. No entanto, seja democrático, seja autoritário, o liberalismo é sempre preferível à “tirania da maioria”[17].

O que está em questão aqui é a ideia de que a democracia se identifica com a soberania do povo. Para Hayek, há aí uma confusão tipicamente “construtivista” entre a origem da escolha dos representantes e o campo legítimo de exercício do poder – a doutrina da soberania do povo, na realidade, só pode resultar no reconhecimento do direito do governo de intervir de forma ilimitada nos negócios da coletividade, ao capricho das maiorias eleitorais. Não surpreende, portanto, que a atribuição direta da liberdade a um povo, tão essencial à especificidade do conceito de liberdade política, pareça suspeita enquanto tal a Hayek. Dizer de um povo que ele é livre é simplesmente operar uma “transposição do conceito de liberdade individual a grupos de homens considerados como um todo”. Ora, como observa ainda Hayek, “um povo livre nesse sentido não é necessariamente um povo de homens livres”[18]: um indivíduo pode ser oprimido num sistema democrático, assim como pode ser livre num sistema ditatorial. O valor supremo, portanto, é a liberdade individual, compreendida como a faculdade dada aos indivíduos de criar para si mesmos um domínio protegido (a “propriedade”)[19], e não a liberdade política, como participação direta dos homens na escolha de seus dirigentes. O essencial aqui é que a redução da democracia a um modo técnico de designação dos governantes permite que ela não seja mais vista como um regime político distinto dos outros e, nesse sentido, já abre caminho para a relativização dos critérios de diferenciação comumente admitidos na classificação dos regimes políticos. Se, ao contrário, sustentarmos que a democracia repousa sobre a soberania de um povo, o que aparece então é que, enquanto doutrina, o neoliberalismo é, não acidentalmente, mas essencialmente, um antidemocratismo. É isso, em particular, que o separa irredutivelmente do liberalismo de um Bentham, que, como sabemos, é favorável à democracia radical.

Um dispositivo de natureza estratégica

O fato fundamental é que o neoliberalismo se tornou hoje a racionalidade dominante, não deixando da democracia liberal nada além de um envelope vazio, condenada a sobreviver na forma degradada de uma retórica ora “comemorativa”, ora “marcial”. Enquanto tal, essa racionalidade tomou corpo num conjunto de dispositivos discursivos, institucionais, políticos, jurídicos e econômicos que formam uma rede complexa e movediça, sujeita a retomadas e ajustes em função do surgimento de efeitos não desejados, às vezes contraditórios com o que se buscava inicialmente. Podemos falar, nesse sentido, de um dispositivo global que, como qualquer dispositivo, é de natureza essencialmente “estratégica”, para empregarmos um dos termos preferidos de Foucault[20]. Isso quer dizer que esse dispositivo se constituiu a partir de uma intervenção concertada em determinadas relações de força, com o intuito de modificá-las em certa direção de acordo com um “objetivo estratégico”[21]. Esse objetivo não diz respeito a um estratagema urdido por um sujeito coletivo especializado em manipulação, mas impôs-se aos atores e, desse modo, produziu seu próprio sujeito. Como vimos antes[22], foi exatamente isso que aconteceu nos anos 1970 e 1980 com a vinculação de um projeto político a uma dinâmica endógena de regulação, vinculação entre duas lógicas cujo efeito foi a imposição do objetivo estratégico da concorrência generalizada. Apesar disso, não houve um projeto consciente de passagem do modelo fordista de regulação para outro modelo que teria primeiro de ser concebido intelectualmente para depois, numa segunda fase, ser posto em prática de forma planejada.

O caráter estratégico do dispositivo, como podemos ver, pressupõe que sejam levadas em consideração as situações históricas que permitem seu desenvolvimento e explicam a série de reajustes que o alteram no tempo e a variedade de formas que ele assume no espaço. Apenas desse modo é que se pode compreender a “virada” imposta pela extensão da crise financeira aos dirigentes dos países capitalistas dominantes. Como vimos, essa crise financeira inicia uma crise na governamentalidade neoliberal. O que temos diante de nós, além do primeiro “reparo” de emergência (implantação de novas normas contábeis, controle a minima dos paraísos fiscais, reforma das agências de classificação de riscos etc.), é muito provavelmente um reajuste de conjunto do dispositivo Estado/mercado. Questionar-se, como certos economistas, sobre a eventualidade de um novo “regime de acumulação do capital”, substituindo o regime financeiro baseado no endividamento excessivo das famílias, é absolutamente natural. Em compensação, aventurar-se a deduzir daí que esse novo regime de crescimento, valendo-se de outros mecanismos além da inflação dos ativos imobiliários e financeiros, coincidirá ­espontaneamente com uma contestação direta da racionalidade neoliberal é algo muito imprudente. Mas prognosticar o advento iminente de um “capitalismo bom”, com normas de funcionamento saneadas, ancorado duradouramente na “economia real”, que respeita o meio ambiente, preocupa-se com as necessidades das populações e – por que não? – zela pelo bem comum da humanidade, isso é, com toda a certeza, se não uma história edificante, ao menos uma ilusão tão nociva quanto a utopia de um mercado autorregulador. É mais certo que estejamos entrando em uma nova fase do neoliberalismo.

Pode ocorrer que, no plano da ideologia, essa nova fase seja acompanhada de certa forma de “retorno às fontes”. Afinal, o apelo à “refundação do capitalismo regulado” não recupera as tônicas dos refundadores dos anos 1930, opondo o bom “código de trânsito” das regras do direito à “lei natural” cega dos velhos adeptos do laissez-faire? Talvez venhamos a assistir, quem sabe, por um desses movimentos pendulares cujo segredo só a ideologia possui, a um vigoroso retorno da variante especificamente ordoliberal. Essa possibilidade não está excluída, sobretudo porque durante muito tempo a variante ordoliberal foi relegada por sua concorrente austro-americana a uma posição subordinada, se não pura e simplesmente ignorada[23].

Também não reconheceríamos o caráter estratégico do dispositivo neoliberal se o assimilássemos ao Gestell do último Heidegger ou à oikonomia da teologia cristã do século II de nossa era, como Agamben sugere indiretamente em O que é um dispositivo?[24]. Falar como ele de uma “genealogia teológica” dos “dispositivos” de Foucault é não compreender que, embora os dispositivos não tenham efetivamente “nenhum fundamento no ser” e, consequentemente, estejam fadados a “produzir seu próprio sujeito”, nem por isso repetem a “cesura que em Deus separa ser e ação, ontologia e práxis”[25]: ao contrário do governo dos homens por Deus, que remete ao problema teológico da encarnação, eles se constituem a partir de condições históricas sempre singulares e contingentes e, portanto, possuem um caráter exclusivamente “estratégico”, e não “destinal” ou “epocal”. Sobre esse ponto, convém recordar a observação de Foucault sobre a especificidade da nova problematização do governo, tal como ela aparece entre 1580 e 1660: se nessa ocasião a ação de governar dá lugar à tematização, é porque não conseguiu encontrar um modelo “nem da parte de Deus nem da parte da natureza”[26]. Em outras palavras, não é a “herança teológica” do governo dos homens e do mundo por Deus que explica o fato de o governo dos homens pelos homens ter se tornado um problema, mas é, na verdade, a crise do modelo do “governo pastoral” do mundo por Deus que libera a reflexão sobre a arte de governar os homens. O que é verdadeiro para o surgimento do problema geral do governo é verdadeiro também para a constituição da forma especificamente neoliberal da governamentalidade. Esta última não é a sequência necessária do regime de acumulação do capital nem um avatar da lógica geral da encarnação nem um misterioso “envio do Ser”, do mesmo modo que não é uma simples doutrina intelectual ou uma forma efêmera de “falsa consciência”.

No entanto, a racionalidade neoliberal pode articular-se a ideologias estranhas à pura lógica mercantil sem deixar de ser a racionalidade dominante. Como diz muito acertadamente Wendy Brown, “o neoliberalismo pode impor-se como governamentalidade sem ser a ideologia dominante”[27]. Mas não há dúvida de que isso não acontece sem tensões ou contradições. Nesse sentido, o exemplo norte-americano é cheio de ensinamentos. O neoconservadorismo se impôs nos Estados Unidos como a ideologia de referência da nova direita, embora o “teor altamente moralizador” dessa ideologia pareça incompatível com o caráter “amoral” da racionalidade neoliberal[28]. Uma análise superficial poderia nos levar a pensar que estamos diante de um “jogo duplo”. Na realidade, entre neoliberalismo e neoconservadorismo existe uma concordância que não é nada fortuita: se a racionalidade neoliberal eleva a empresa a modelo de subjetivação, é simplesmente porque a forma-empresa é a “forma celular” de moralização do indivíduo trabalhador, do mesmo modo que a família é a “forma celular” da moralização da criança[29]. Daí a exaltação incessante do indivíduo calculador e responsável, na maior parte das vezes pela figura do pai de família trabalhador, econômico e previdente, que acompanha o desmantelamento dos sistemas de aposentadoria, educação pública e saúde. Muito mais do que uma simples “zona de contato”, a articulação da empresa com a família é o ponto de convergência ou intersecção entre normatividade neoliberal e moralismo neoconservador. Por isso, é sempre perigoso criticar o conservadorismo moral e cultural em nome do pretenso “liberalismo” de seus partidários no campo da política econômica, porque, ao tentarmos mostrar a “incoerência” destes últimos, revelamos sobretudo nossa incompreensão da diferença que separa o neoliberalismo do “laissez-faire” e, ainda por cima, corremos o risco de ter de assumir uma espécie de laissez-faire integral e sistemático para salvar a coerência de nossa própria crítica.

Mas a concordância entre neoconservadorismo e neoliberalismo não significa que um amálgama ideológico, combinando ingredientes de procedências diversas, não possa tomar o lugar de uma corrente de ideias que hoje se apresenta largamente anêmica. A esquerda de inspiração blairista já mostrou no passado que a celebração lírica da modernidade em todos os seus aspectos, inclusive o da liberalização dos costumes, poderia perfeitamente articular-se à racionalidade neoliberal. Não é impossível que em outro plano, o da política econômica, certos elementos da doutrina keynesiana venham prestar apoio à prática do governo empresarial – retomada orçamentária temporária, suspensão provisória dos critérios de estabilidade monetária, medidas para conter a especulação dos mercados etc., todos elementos que não implicam uma mudança na divisão fundamental dos rendimentos entre capital e trabalho, ou seja, a reativação de um compromisso salarial comparável ao que se instaurou no pós-guerra. Por si só, no entanto, esse apoio puramente circunstancial e “pragmático” não é capaz de afetar a lógica normativa do neoliberalismo, uma vez que esta só poderia ser derrotada por revoltas de grandes extensões.

Inventar outra governamentalidade

A nova racionalidade propõe um tremendo desafio à esquerda: não podendo contentar-se com uma crítica incisiva à “mercantilização generalizada”, ela tem de inventar uma resposta política “à altura” do que o regime normativo dominante tem de inédito. Na medida em que este último implica o definhamento irreversível da democracia liberal, a esquerda não pode contentar-se em defender a democracia liberal, como tende a fazer. Não que ela não deva mais defender as liberdades públicas, mas deve evitar fazê-lo em nome dessa democracia, por exemplo, opondo “autoritarismo neoliberal” e “democracia liberal”. Para citar mais uma vez Wendy Brown:

"Defender a democracia liberal em termos liberais é não só sacrificar uma visão de esquerda, mas é também, por esse sacrifício, desacreditar a esquerda, reduzindo-a tacitamente a nada mais do que uma objeção permanente ao regime estabelecido: um partido de reclamações, em vez de um partido com visão política, social e econômica alternativa.[30]"

Por essa mesma razão, não poderíamos retomar a crítica marxista da “democracia formal”, porque seria ignorar que o esgotamento da democracia liberal priva essa crítica de qualquer fundamento: a governamentalidade neoliberal não é democrática na forma e antidemocrática nos fatos; ela simplesmente não é mais democrática, nem mesmo no sentido formal, mas nem por isso identifica-se com um exercício ditatorial ou autoritário do poder. Ela é ademocrática. A cisão entre o “cidadão” e o “burguês” é coisa do passado, assim como o apelo a uma reunificação do homem com ele próprio. Ainda pela mesma razão, a esquerda não pode propor-se a “dar novo fôlego a sistemas decadentes”, amparando a combalida democracia representativa com as escoras bambas da “democracia participativa”[31]. Também não pode estacionar numa linha de recuo que consiste em opor “liberalismo político” e “liberalismo econômico”, pois tal posição equivaleria a desconhecer que as próprias bases do liberalismo “puramente político” foram minadas por um neoliberalismo que é tudo, menos “puramente econômico”. De modo mais amplo, todo o espaço ocupado por aquilo que se convencionava chamar “social-democracia” é direta e radicalmente contestado, já que essa denominação devia seu sentido à possibilidade de estender a democracia política mediante o reconhecimento de direitos sociais que definem certa cidadania social, como complemento e reforço da cidadania política clássica.

A esse respeito, devemos dizer a que ponto certo léxico contribui para obscurecer as coisas. Não há e não poderia haver “social-liberalismo”, simplesmente porque o neoliberalismo, sendo uma racionalidade global que invade todas as dimensões da existência humana, veda qualquer possibilidade de prolongamento de si mesmo no plano social. Portanto, é enganadora a analogia que sugere que o “social-liberalismo” é para o neoliberalismo o que a “social-democracia” foi para democracia política. Por outro lado, o que existe realmente é um neoliberalismo de esquerda que não tem mais nada a ver com a social-democracia ou com a democracia política liberal[32]. Na verdade, o que o prefixo “social” dissimula mal é a equação sumária pela qual o liberalismo é abusivamente identificado com o laissez-faire econômico. O mesmo pode ser dito da etiqueta de “ultraliberalismo”, distribuída generosamente por grande parte da esquerda – mais generosamente ainda, aliás, porque ela se sente tentada a aproximar-se vergonhosamente da ortodoxia neoliberal ambiente[33]. Também nesse caso, devemos recordar que o neoliberalismo não se confunde com o todo-mercado, de modo que não há sentido algum em designá-lo como “ultraliberalismo” para dar a entender que existiria um liberalismo “respeitável”, que não renunciaria aos instrumentos de intervenção de Estado. Nunca é demais repetir: Hayek não é um “ultraliberal”, mas um “neoliberal” partidário de um Estado forte, como muitos outros neoliberais[34]. Quanto ao libertarismo, quer defenda o Estado mínimo, quer exija a abolição do Estado, ele não é um “ultraliberalismo”, mas outro liberalismo, cuja relação com o neoliberalismo não pode ser reduzida a uma simples diferença de grau.

A única pergunta que vale a pena fazer, na realidade, é se a esquerda pode opor uma governamentalidade alternativa à governamentalidade ­neoliberal. Ao final de sua aula de 31 de janeiro de 1979 sobre o Nascimento da biopolítica, Foucault se pergunta se existiu algum dia algo como uma “governamentalidade socialista autônoma”. Sua resposta é inequívoca: sempre faltou tal governamentalidade. O que a experiência histórica revela é que o socialismo sempre esteve “associado” a outras governamentalidades. Assim, pôde associar-se a uma governamentalidade “liberal” ou, ainda, a uma governamentalidade “administrativa”. Daí a questão: o que seria uma governamentalidade intrinsecamente socialista? O que Foucault afirma é que essa governamentalidade é inencontrável no socialismo e em seus textos. E, como não se pode encontrá-la, “é preciso inventá-la”[35].

Para compreender a necessidade dessa invenção, devemos retornar um breve instante à própria ideia de “governo”. Segundo Foucault, governar ­consiste em “dispor as coisas”, estando entendido que “coisas” não são as coisas por oposição aos homens, mas todos os “intricamentos entre os homens e as coisas”[36]. De certo modo, portanto, a ideia de governamentalidade une a ideia do governo dos homens à ideia da administração das coisas, ao passo que o paradigma da soberania faz prevalecer a relação direta do soberano com esses homens que são sujeitos dele[37].

Essa correlação entre um governo dos homens preocupado em não contrariar a natureza das coisas e uma administração das coisas que se vale da liberdade dos homens é que vai dar um impulso decisivo à reflexão sobre a arte de governar, permitindo que ela se liberte do antigo quadro jurídico da soberania. Porque, no interior desse quadro, a primazia da lei não faz mais do que refletir a relação direta da vontade do soberano com a vontade dos súditos, esta última sempre suspeita de tentar desobedecer e sempre chamada ao dever de obedecer. Assim, todas as tentativas de refundar a teoria da soberania sobre novas bases estavam fadadas a conservar essa primazia, ou até mesmo a acentuá-la, a ponto de torná-la uma verdadeira sacralização da lei. Isso vale em particular para a tentativa de Jean-Jacques Rousseau: ao mesmo tempo que tenta construir um espaço para a administração das coisas e para o governo dos homens, ele se empenha em subsumir estes últimos ao princípio da soberania. Assim, no verbete “economia política” da Enciclopédia, distingue “economia pública”, ou “governo”, de “autoridade suprema”, ou “soberania”. O governo, do qual dependem tanto o governo das pessoas quanto a administração dos bens, deve ser estritamente subordinado ao soberano, que é o único a deter o poder de fazer as leis. Daí o problema que, segundo ele, é para a política o que o problema da “quadratura do círculo” é para geometria: “pôr a lei acima do homem”[38]. Há somente uma maneira de fazer isso: “substituir o homem pela lei”[39]. O ideal, portanto, seria que as leis políticas adquirissem a mesma inflexibilidade e a mesma imutabilidade das leis da natureza, de modo que seja impossível aos homens desobedecê-las, já que então a dependência em relação às leis se identificaria pura e simplesmente com a dependência em relação às coisas[40]. O princípio da soberania da lei, elevado a absoluto por uma espécie de cruzamento do limite, tende a tornar o governo dos homens totalmente supérfluo; na medida em que, nesse caso, governar consiste em assegurar a execução das leis, temos o direito de nos perguntar que tipo de atividade restaria a um governo que não teme mais que as leis sejam violadas. O ideal seria, no fim das contas, que a invencibilidade das leis permitisse aos homens prescindir de qualquer governo.

Alguns se perguntarão, sem dúvida, o que esse reconhecimento-denegação da governamentalidade por parte de Rousseau tem a ver com a necessidade de inventar uma governamentalidade de esquerda. Essa relação é indireta, mas nem por isso é menos real. A esquerda se construiu historicamente em torno da referência ao marxismo. Ora, este último deve a Saint-Simon certa concepção de governo. Em Do socialismo utópico ao socialismo científico (1883), Engels refere-se em termos elogiosos a uma obra de Saint-Simon intitulada L’industrie: “A passagem do governo político dos homens a uma administração das coisas e a uma direção das operações de produção, portanto a ‘abolição do Estado’ acerca da qual se fez tanto barulho ultimamente, encontra-se já claramente enunciada aqui”[41]. De fato, foi Saint-Simon que elaborou a distinção fundamental entre governo e administração. Essa distinção coincide com uma verdadeira oposição entre dois tipos de regime: o “governamental ou militar”, de um lado, e o “administrativo ou industrial”, de outro[42]. Nas sociedades pré-industriais, também chamadas sociedade “militares”, a ordem social procede inteiramente do comando, o que explica a predominância do governo: a ação de governar consiste no exercício do poder de comandar outros homens por parte de certos homens e, como tal, é necessariamente arbitrária. Isso não se deve em absoluto à forma do governo (monarquia absoluta ou parlamentarismo), mas à essência dessa ação – a arbitrariedade encontra-se na própria essência de toda vontade, e a ação de governar consiste em homens dar ordens a outros homens[43].

Nas sociedades industriais modernas, as coisas são muito diferentes. Os cientistas e os industriais é que são investidos das funções de direção, não em razão de sua aptidão para conseguir que os outros obedeçam a sua vontade, isto é, em razão de seu poder, mas unicamente porque sabem mais do que os outros. Nessas condições, não são mais os homens que dirigem os homens, mas é a verdade que fala diretamente pela boca dos cientistas e dos industriais, e é sabido que nada é menos arbitrário do que a verdade. É impossível resistir à verdade, só se pode tender a ela, porque ela não comanda, mas impõe-se por si mesma, fazendo-se reconhecer. Portanto, a coerção governamental está fadada a desaparecer, da mesma forma que a arbitrariedade. Na sociedade industrial, a ação governamental é reduzida ao mínimo e tende a zero, de modo que o governo orientado pela verdade é o governo que governa o mínimo possível e tende à própria supressão. O ideal saint-simoniano é precisamente o da substituição total do governo baseado na arbitrariedade do comando pela administração baseada no conhecimento da verdade.

Esse ideal, retomado pelo marxismo, pressupõe uma dissociação radical entre a ação dos homens sobre as coisas, ou “administração”, e a ação dos homens sobre os homens, ou “governo”: “Nunca é demais repetir que não há ação útil exercida pelo homem, senão a do homem sobre as coisas. A ação do homem sobre o homem é sempre, em si mesma, prejudicial à espécie, pela dupla destruição de forças que acarreta”[44]. Como vemos, essa concepção absolutamente negativa do governo só quer desfazer o nó que a própria ideia de governamentalidade deu entre ação sobre os homens e ação sobre as coisas, reduzindo a ação de governar a coerção e comando.

Como em Rousseau, aqui também a especificidade da arte de governar é escamoteada. Obviamente, Saint-Simon não cochila em atacar Rousseau, que para ele é mais um daqueles “legistas” que submetem a sociedade à arbitrariedade das leis. A seu ver, na nova ordem das coisas “não há mais lugar para a arbitrariedade dos homens, nem mesmo para a arbitrariedade das leis, porque uma e outra somente podem exercer-se no vago que é, por assim dizer, seu elemento natural”[45]. É justamente esse “vago” que a ­verdade da ciência vence, e é por isso que “a ação de governar é nula, ou quase nula, enquanto ‘ação de comandar’”. Portanto, se existe soberania, ela só pode consistir “num princípio derivado da própria natureza das coisas”, não “numa opinião arbitrária alçada a lei pela massa”[46]. Em todo caso, tanto no rousseaunismo como no saint-simonismo, a atividade do governo é subalterna, seja porque a soberania pertence às leis oriundas da vontade, seja porque equivale à própria verdade. No saint-simonismo, o marxismo retomará duas ideias-chave: primeiro, que o governo tem, antes de tudo, uma função de polícia que repousa essencialmente sobre a violência e a coerção; segundo, que o governo regulado pela verdade é aquele que tende a sua própria supressão na administração das coisas. Mas ele entenderá por verdade não mais aquele “princípio imutável derivado da natureza das coisas”, mas a verdade que a história faz advir e que sua racionalidade manifesta. Seja como for, soberania das leis ou administração científica das coisas têm em comum o fato de retirar da ação de governar qualquer justificação. Conduzir os homens não é curvá-los sob o jugo inflexível da lei nem fazê-los reconhecer a força de uma verdade. É por nunca ter sabido reconhecer isso que a esquerda esteve sempre condenada a regular-se por governamentalidades emprestadas. É precisamente nisso que a governamentalidade de esquerda ainda está por se inventar.

As “contracondutas” como práticas de subjetivação

Contudo, a governamentalidade não poderia ser reduzida ao governo dos outros. Em sua outra faceta, ela compreende o governo de si. O tour de force do neoliberalismo foi unir essas duas facetas de maneira singular, fazendo do governo de si o ponto de aplicação e o objetivo do governo dos outros. O efeito desse dispositivo foi, e ainda é, a produção do sujeito neoliberal, ou neossujeito. A esquerda não pode ignorar essa realidade; ao contrário, deve reconhecê-la para melhor enfrentá-la. A pior das atitudes de sua parte seria preconizar um retorno ao compromisso social-democrata, keynesiano e fordista, em âmbito nacional ou europeu, sem se dar conta de que a ­dimensão dos problemas mudou, as forças presentes não são mais as mesmas e a globalização do capital destruiu até as bases de tal compromisso. No entanto, é essa atitude que se vê com frequência despontar por trás da redução do neoliberalismo a uma regressão ao “capitalismo puro” das origens. Sem ousar regozijar-se abertamente, a esquerda pega-se espreitando os sinais precursores de um retorno do pêndulo a uma regulação direta da parte dos governos. Presta pouca atenção ao fato de que esse “retorno” se opera em benefício de um Estado empresarial. De bom grado, contrapõe a “boa” racionalidade da regulação do Estado à “má” racionalidade da concorrência. Fazendo isso, negligencia o fato de que a racionalidade do capitalismo neoliberal não é uma racionalidade puramente econômica e, ao mesmo tempo, perde de vista a diferença das condições históricas, que impede qualquer retorno a uma racionalidade econômica administrativa e planificadora (supondo-se que esse retorno seja desejável, o que no mínimo é contestável). A questão não é como impor ao capital um retorno ao compromisso anterior ao neoliberalismo, mas como sair da racionalidade neoliberal.

Sabemos, porém, que é mais fácil fugir de uma prisão do que sair de uma racionalidade, porque isso significa livrar-se de um sistema de normas instaurado por meio de todo um trabalho de interiorização. Isso vale em particular para a racionalidade neoliberal, na medida em que esta tende a trancar o sujeito na pequena “jaula de aço” que ele próprio construiu para si. Assim, a questão é, primeiro e acima de tudo, como preparar o caminho para essa saída, isto é, como resistir aqui e agora à racionalidade dominante. O único caminho praticável é promover desde já formas de subjetivação alternativas ao modelo da empresa de si. A esquerda poderá argumentar que o neossujeito se formou a partir de condições que foram criadas em grande parte por uma reorientação radical da política governamental. Portanto, pode ceder à tentação, caindo na armadilha de uma analogia enganosa, de esperar que uma mudança de política consecutiva a uma mudança de governo crie as condições da construção desse outro sujeito. Isso seria ignorar que a reorientação operada pelo neoliberalismo, sendo voluntarista, não teve nada de criação ex nihilo. Ela se apoiou num movimento da economia mundial alinhado à nova norma da concorrência, de modo que os sujeitos foram como que internamente “vergados” a essa norma por múltiplas técnicas de poder. Além do mais, significaria esquecer que não se sai de uma racionalidade ou um dispositivo por uma simples mudança de política, assim como não se inventa outra maneira de governar os homens mudando de governo. Isso não significa que devemos ser indiferentes às mudanças de governo ou à política de qualquer novo governo. Seguramente, significa que a atitude que se deve adotar em tal circunstância deve obedecer a um único critério: em que medida os atos desse governo favorecem ou, ao contrário, entravam a resistência à racionalidade neoliberal? Consequentemente, nesse caso a questão do governo enquanto instituição é secundária em relação à questão do governo como atividade que estabelece uma relação consigo mesmo e, ao mesmo tempo, uma relação com os outros. Ora, essa relação dupla diz respeito precisamente à constituição do sujeito ou, em outras palavras, às práticas de subjetivação.

Compreender isso requer desfazer-se da ilusão de que o sujeito alternativo poderia ser encontrado de uma forma ou de outra como “já aí”, à maneira de um dado que quando muito se deve ativar ou estimular. Uma primeira forma dessa ilusão, da qual o marxismo sofreu no passado, é a de uma localização ontológica do sujeito da emancipação humana: haveria no ser social um local determinado que levaria a opressão a seu cúmulo, ou seja, uma classe que seria ao mesmo tempo uma “não classe”, uma “classe universal” que realizaria em suas condições de existência a “perda total do homem” e à qual caberia, por consequência, realizar a “reconquista total” do homem[47]. Essa ilusão se apoia na ideia de um privilégio ontológico de exterioridade, em virtude do qual esse sujeito social estaria situado num “fora” radical relativamente às relações de poder em que sempre são pegos os atores de uma sociedade. Encontramos semelhante ilusão de exterioridade na tese de uma “autonomia ontológica da multidão”, defendida por Michael Hardt e Antonio Negri[48]. Obviamente, esses autores repetem que nenhum lugar dentro do espaço do “Império” escapa à investida do biopoder, mas isso é para conferir à multidão um lugar ontológico próprio, que lhe permite subtrair-se – ao menos em parte – ao controle imperial[49]. O desconhecimento do processo de subjetivação posto em prática pelo neoliberalismo é tal que Negri chega a afirmar que os “homens novos” do comunismo já estão aí, produzidos pela própria dinâmica do novo “capitalismo cognitivo”[50].

Outra forma dessa mesma ilusão de um sujeito pré-dado encontrou uma formulação precisa na renovação da “teoria crítica” tentada por Axel Honneth em sua análise da “reificação”[51]. No capítulo 5 de seu tratado, ele analisa o fenômeno da autorreificação. Sob esse termo, devemos pensar uma conduta reificante de si mesmo que seria uma “espécie de engano” da relação de reconhecimento que teríamos de imediato com nós mesmos. O que está em questão aqui, portanto, não é nada mais do que a primazia dessa relação consigo mesmo “do ponto de vista da ontologia social”[52]. A afirmação dessa primazia encontra-se no fundamento de toda a análise: “nós sempre já nos reconhecemos”[53]. Certamente não se trata mais de fundamentar essa primazia na posição privilegiada de uma classe social qualquer. A questão ainda é saber se “é preciso supor previamente uma forma de relação consigo mesmo ‘originária’, normal, que permitiria descrever a reificação como um desvio problemático”[54]. Referindo-se à temática heideggeriana da “preocupação”, Honneth nos remete para além da reelaboração de Foucault do conceito de “cuidado de si”[55]. Isso significa ignorar que, para Heidegger, a “preocupação” não é o equivalente de uma relação originária de familiaridade consigo mesmo, mas antes um modo de dispersão e imersão no mundo que faz da apropriação de si mesmo uma tarefa atribuída ao Dasein. “Primeiro e no mais das vezes”, para falarmos como Heidegger, em Honneth o que predomina é o esquecimento de si, não o reconhecimento de si. A mesma observação vale mais ainda para Foucault. O volume 3 de História da sexua­lidade, intitulado O cuidado de si (1984), bem como o curso do Collège de France dedicado à Hermenêutica do sujeito (1981-1982), insistem num mesmo ponto: o cuidado de si está ligado não a uma relação primordial consigo mesmo, mas com uma verdadeira tekhné, a tekhné tou biou [arte da vida], que faz do “si” o término de toda uma ascese (askésis).

Isso mostra a que ponto devemos assimilar a nossa maneira a lição do neoliberalismo: o sujeito está sempre por construir. A questão se resume, então, em saber como articular a subjetivação à resistência ao poder. Ora, essa questão está precisamente no centro de todo o pensamento de Foucault. Mas, como mostrou Jeffrey T. Nealon, parte da literatura secundária norte-americana deu ênfase, ao contrário, à fratura que existiria entre as pesquisas de Foucault sobre o poder e as do último período, que tratam da história da subjetividade[56]. Segundo esse “Foucault consensus”, como jovialmente o batizou Nealon, os sucessivos impasses do neoestruturalismo dos primórdios e da análise totalizante do poder panóptico teriam levado o “último Foucault” a abandonar a questão do poder e a interessar-se exclusivamente pela invenção estética de um estilo de existência desprovido de qualquer dimensão política. Mais ainda, se seguirmos essa leitura despolitizante de Foucault, essa estetização da ética teria antecipado a mutação neoliberal, fazendo precisamente da invenção de si uma nova norma. Na realidade, longe de ser ignoradas, essas questões acerca do poder e do sujeito sempre estiveram intimamente articuladas, mesmo nos últimos trabalhos de Foucault sobre os modos de subjetivação.

Se há um conceito que teve papel decisivo a esse respeito, foi o da “contraconduta”, tal como elaborado na aula de 1º de março de 1978[57]. Essa aula trata, em grande parte, da crise do pastorado. Tenta precisar a especificidade das “revoltas”, ou “resistências de conduta”, que são como o correlato do modo de poder pastoral: se tais resistências são denominadas “resistências de conduta”, é porque são resistências ao poder enquanto conduta e, como tais, elas próprias são formas de conduta, contrárias a esse “poder-conduta”.

O termo “conduta” admite dois sentidos: o de uma atividade que consiste em conduzir os outros, ou “condução”, e o que remete à maneira como o indivíduo conduz a si mesmo sob o efeito dessa atividade de condução[58]. A ideia de “contraconduta” apresenta a vantagem, portanto, de significar diretamente uma “luta contra os procedimentos postos em ação para conduzir os outros”, ao contrário do termo “inconduta”, que se refere apenas ao sentido passivo da palavra[59]. Pela contraconduta, tenta-se tanto escapar da conduta dos outros como definir para si mesmo a maneira de se conduzir com relação aos outros.

Que interesse pode ter essa observação para uma reflexão sobre a resistência à governamentalidade neoliberal? Pode-se argumentar que esse conceito é introduzido no âmbito de uma análise do pastorado, não da governamentalidade. Precisamente, a governamentalidade, ao menos em sua forma especificamente neoliberal, faz da conduta dos outros pela conduta deles para com eles mesmos o verdadeiro objetivo que se deseja alcançar. A característica própria dessa conduta para consigo mesmo, isto é, conduzir-se como uma empresa de si mesmo, é induzir imediata e diretamente certa conduta com relação aos outros: a da concorrência com os outros, vistos como empresas de si mesmos. A consequência disso é que a contraconduta como forma de resistência a essa governamentalidade deve corresponder a uma conduta que seja indissociavelmente uma conduta para consigo mesmo e uma conduta para com os outros. Não se poderia lutar contra um modo de condução tão indireto por uma conclamação à revolta contra uma autoridade que supostamente se exerce por uma coerção externa aos indivíduos. Se “a política não é nada mais, nada menos do que aquilo que nasce com a resistência à governamentalidade, a primeira sublevação, o primeiro confronto” [60], isso quer dizer que ética e política são absolutamente inseparáveis.

À subjetivação-sujeição constituída pela ultrassubjetivação, devemos opor uma subjetivação pelas contracondutas; à governamentalidade neoliberal como maneira específica de conduzir a conduta dos outros, devemos opor, portanto, uma dupla recusa não menos específica: a recusa de se conduzir em relação a si mesmo como uma empresa de si e a recusa de se conduzir em relação aos outros de acordo com a norma da concorrência. Nisso, essa dupla recusa não está ligada a uma “desobediência passiva”[61]. Porque, se é verdade que a relação consigo da empresa de si determina imediata e diretamente certo tipo de relação com os outros (a concorrência generalizada), inversamente a recusa de funcionar como uma empresa de si, que é distanciamento de si mesmo e recusa do total autoengajamento na corrida ao bom desempenho, na prática só pode valer se forem estabelecidas, com relação aos outros, relações de cooperação, compartilhamento e comunhão. De fato, que sentido teria um distanciamento de si mesmo que não tivesse nenhuma ligação com a prática cooperativa? Na pior das hipóteses, o de um cinismo misturado ao desprezo pelos trouxas; na melhor, o de uma simulação ou um jogo duplo, talvez ditado por uma preocupação plenamente justificada de preservação pessoal, porém extenuante em longo prazo para o sujeito; seguramente, não o de uma contraconduta. Sobretudo porque esse jogo poderia levar o sujeito a refugiar-se – na falta de coisa melhor – numa identidade de compensação, que ao menos tem a vantagem de certa estabilidade, em contraste com o imperativo de superação infinita de si mesmo. Ora, a fixação da identidade, seja de que natureza for, longe de ameaçar a ordem neoliberal, aparece, ao contrário, como bater em retirada para os sujeitos cansados de si mesmos, para todos os que abandonaram a corrida ou foram excluídos dela logo de saída; pior, ela reproduz a lógica da concorrência no nível das relações entre as “pequenas comunidades”. Longe de valer por si mesma, independentemente de qualquer articulação com a política, a subjetivação individual está ligada no mais profundo de si mesma à subjetivação coletiva. Pura estetização da ética é, nesse sentido, pura e simples renúncia a uma verdadeira atitude ética. A invenção de novas formas de vida somente pode ser uma invenção coletiva, devida à multiplicação e à intensificação das contracondutas de cooperação. A recusa coletiva de “trabalhar mais”, ainda que seja apenas local, constitui um bom exemplo de atitude que pode abrir o caminho para essas contracondutas: ela rompe o que o saudoso André Gorz denominava com muita justiça “cumplicidade estrutural” que une o trabalhador ao capital, na medida em que “ganhar dinheiro”, cada vez mais dinheiro, é o objetivo determinante de ambos. Ela abre uma primeira brecha na “coerção imanente do ‘sempre mais’, ‘sempre mais rápido’”[62].

A genealogia do neoliberalismo que ensaiamos nesta obra ensina que a nova razão do mundo não é um destino necessário que subjuga a ­humanidade. Ao contrário da Razão hegeliana, ela não é a razão da história humana; ela é, de ponta a ponta, histórica, isto é, relativa a condições estritamente singulares que nada permite que sejam pensadas como insuperáveis. O fundamental é compreender que nada pode nos eximir da tarefa de promover outra racionalidade. É por isso que a crença de que a crise financeira anuncia por si só o fim do capitalismo neoliberal é a pior das crenças. Talvez agrade aos que pensam ver a realidade antecipar-se a seus desejos sem que precisem mexer um único dedo. Seguramente conforta os que encontram motivo nisso para congratular-se por sua “clarividência” passada. No fundo, é a forma menos aceitável de renúncia intelectual e política. O capitalismo neoliberal não cairá como uma “fruta madura” por suas contradições internas, e os traders não serão a contragosto os “coveiros” inopinados desse capitalismo. Marx já dizia com força: “A história não faz nada”[63]. Existem apenas homens que agem em condições dadas e, por sua ação, tentam abrir um futuro para eles. Cabe a nós permitir que um novo sentido do possível abra caminho. O governo dos homens pode alinhar-se a outros horizontes, além daqueles da maximização do desempenho, da produção ilimitada, do controle generalizado. Ele pode sustentar-se num governo de si mesmo que leva a outras relações com os outros, além daquelas da concorrência entre “atores autoempreendedores”. As práticas de “comunização” do saber, de assistência mútua, de trabalho cooperativo podem indicar os traços de outra razão do mundo. Não saberíamos designar melhor essa razão alternativa senão pela razão do comum.

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[1] Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale. Néolibéralisme et néoconservatisme (Paris, Les Prairies ordinaires, 2007), p. 51 e 97.

[2] Essa norma não exclui, mas, ao contrário, implica estratégias de “alianças” praticadas pelas empresas para reforçar suas “vantagens concorrenciais”. Daí a voga do termo “cooperação” no vocabulário gerencial, evidenciando o recurso a uma combinação flexível de “cooperação” e “concorrência”. Contudo, assim como a “cooperação voluntária”, exaltada por Spencer sob a forma de contrato, as relações informais pelas quais se opera a “troca de saber” entre empresas concorrentes não se referem a uma cooperação genuína, no sentido de um compartilhamento não transacional.

[3] Sobre o sentido dessas expressões, ver, para a primeira, o capítulo 3 e, para a segunda, o capítulo 6 deste volume.

[4] Sobre essa expressão de Franz Böhm, ver capítulo 3; sobre sua retomada e aprofundamento por Friedrich Hayek, ver capítulo 5 deste volume.

[5] Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, cit., p. 56.

[6] Como pode ser verificado em Locke (ver capítulo 5 deste volume).

[7] Ver Patrick Le Galès, “Gouvernance”, em Laurie Boussaguet, Sophie Jacquot e Pauline Ravinet (orgs.), Dictionnaire des politiques publiques (Paris, Presses de Sciences Po, 2004), p. 244.

[8] Marc Hufty (org.), La pensée comptable. État, néolibéralisme, nouvelle gestion publique (Paris, Presses Universitaires de France, 1998), p. 19.

[9] Ver Sharon Gewirtz, The Managerial School: Post-Welfarism and Social Justice in Education (Londres, Routledge, 2002). Todas as pesquisas sobre os efeitos da “escola gerencial” realizadas nos países mais adiantados nessa via mostram o crescimento das desigualdades escolares e a marginalização da fração mais pobre da população em estabelecimentos de tipo gueto.

[10] Esse esquema histórico foi apresentado pelo sociólogo Thomas Humphrey Marshall em 1949, durante uma conferência intitulada “Citizenship and Social Class”, citada por Albert O. Hirschmann, Deux siècles de rhétorique réactionnaire (Paris, Fayard, 1995), p. 14 e seg.

[11] Robert Castel, Les métamorphoses de la question sociale (Paris, Fayard, 1995; reed., Paris, Gallimard, 1999, Coleção Folio) [ed. bras.: As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, trad. Iraci D. Poleti, 23. ed., Petrópolis, Vozes, 2013].

[12] Fase que Crouch propôs denominar “pós-democracia”. Ver Colin Crouch, Post-Democracy (Cambridge, Polity Press, 2004).

[13] Giorgio Agamben, État d’exception: homo sacer (Paris, Seuil, 2003) [ed. bras.: Estado de exceção, homo sacer, II, 1, trad. Iraci D. Poleti, 2. ed. rev., São Paulo, Boitempo, 2011].

[14] Ao contrário do que pensa Jean-Claude Paye, que defende que a suspensão do direito significa a constituição de uma “ditadura soberana” no sentido de Carl Schmitt, isto é, uma ditadura fundadora de uma nova ordem de direito; ver Jean-Claude Paye, La fin de l’État de droit: la lutte antiterroriste, de l’état d’exception à la dictature (Paris, La Dispute, 2004), p. 197 e seg. Wendy Brown é mais prudente e fala de uma “nova configuração política” ou de uma “forma política e social para a qual ainda não temos um nome”, Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, cit., p. 69-70.

[15] Raymon Aron, Démocratie et totalitarisme (Paris, Gallimard, 1987, Coleção Folio). Lembramos que, segundo essa oposição, a democracia repousa sobre o pluralismo político, ao passo que o totalitarismo remete ao monopólio do partido único.

[16] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté (Paris, Litec, 1994), p. 104.

[17] Isso esclarece mais uma vez a atitude de Hayek e Friedman diante da ditadura de Pinochet (ver capítulo 5 deste volume).

[18] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 13.

[19] Idem, Droit, législation et liberté, v. III (Paris, PUF, 1981), p. 181.

[20] Sobre o conceito ampliado de “dispositivo” como rede de elementos heterogêneos que pertencem tanto ao discursivo como ao “social não discursivo”, ver Michel Foucault, Dits et écrits II, 1976-1988 (Paris, Gallimard, 2001), p. 299-301.

[21] Idem.

[22] Ver capítulo 6 deste volume.

[23] Com toda a certeza, essa ignorância, que pode chegar à pura e simples denegação (o ordoliberalismo não é neoliberalismo), é uma das razões da redução do neoliberalismo à ideologia do livre mercado; a outra é a inversão da relação de causalidade entre globalização das finanças e razão neoliberal à qual fizemos alusão no capítulo 8. Desse modo, instaurou-se uma dupla identificação: o neoliberalismo nada mais é do que o mercado autorregulador acarretado pelas finanças. Daí a conclusão precipitada de que a crise financeira assina o atestado de óbito do neoliberalismo.

[24] Giorgio Agamben, Qu’est-ce qu’un dispositif? (Paris, Rivages, 2007), p. 22-8 [ed. bras.: O amigo & O que é um dispositivo?, trad. Vinicius Nicastro Honesko, Chapecó, Argos, 2014]. O termo Gestell significa o arranjo que dispõe do homem obrigando-o a desvelar o real “no modo do comando”, o que para Heidegger define a essência da técnica moderna. Quanto à oikonomia dos teólogos, ela permite pensar o governo dos homens e do mundo como aquele que Deus confia a seu Filho. É significativo que Agamben dê ao conceito de “dispositivo” uma extensão dificilmente compatível com a preocupação foucaultiana da singularidade histórica (ibidem, p. 31).

[25] Ibidem, p. 25. Essa ideia é retomada e aprofundada em Giorgio Agamben, “Être et agir”, em Le règne et la gloire: homo sacer, II, 2 (Paris, Seuil, 2008), cap. 3, p. 93-109 [ed. bras.: O reino e a glória: homo sacer, II, 2, trad. Selvino J. Assmann, São Paulo, Boitempo, 2011].

[26] Michel Foucault, Sécurité, territoire, population (Paris, Gallimard/Seuil, 2004, Coleção Hautes Études), p. 242.

[27] A autora acrescenta logo em seguida: “A primeira remete ao exercício do poder, a segunda, a uma ordem de crenças populares que pode ou não ser perfeitamente conforme com a primeira e que pode até mesmo oferecer um lugar de resistência à governamentalidade”, Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, cit., p. 67.

[28] Ibidem, p. 86, nota 6. Devemos observar que, na mesma nota, a autora trata o neoconservadorismo como uma “ideologia”: “Neoliberalismo e neoconservadorismo diferem sensivelmente, em especial porque o primeiro funciona como racionalidade política, enquanto o segundo permanece uma ideologia”. No prefácio da edição francesa e no segundo ensaio (“Le cauchemar américain”), ela fala do neoliberalismo e do neoconservadorismo como duas “racionalidades políticas”. De nossa parte, acreditamos que não há simetria possível entre a racionalidade neoliberal e a ideologia neoconservadora.

[29] A empresa constitui a “base ético-política” do neoliberalismo. Na realidade, desde as origens do neoliberalismo em Wilhelm Röpke, a forma-empresa é pensada como forma de “moralização-responsabilização” do indivíduo (ver capítulo 3 deste volume).

[30] Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, cit., p. 78.

[31] Como sugere Loïc Blondiaux em Le nouvel esprit de la démocratie (Paris, Seuil, 2008), p. 100.

[32] Ver capítulo 6 deste volume.

[33] Como observam com razão Gérard Desportes e Laurent Mauduit em L’adieu au socialisme (Paris, Grasset, 2002), p. 290. A atitude adotada por Michel Rocard diante da crise financeira é muito esclarecedora nesse sentido: “A crise atual não põe o ­liberalismo em questão. Em compensação, anuncia o fim do ultraliberalismo, essa escola de pensamento criminosa fundada por Milton Friedman” (entrevista publicada no jornal Le Monde, 2-3 nov. 2008). A “criminalização” da Escola de Chicago apresenta duas vantagens. Em primeiro lugar, permite fingir que não existiu nada entre Adam Smith e Milton Friedman, portanto, permite resumir o neoliberalismo a sua versão friedmaniana! Em segundo lugar, tem a função de acobertar a direita francesa, considerada “ainda muito gaullista” (sic), o que indiretamente diz muito sobre as razões íntimas da impotência da esquerda francesa com respeito a essa direita.

[34] Ver capítulo 9 deste volume. Serge Audier não se esforça muito para evitar essa simplificação, fazendo de Friedrich Hayek o autor de uma “nova utopia ultraliberal” para melhor opô-lo ao liberalismo “anticapitalista” de Wilhelm Röpke. Ver Serge Audier, Le Colloque Walter Lippmann. Aux origines du néolibéralisme (Latresne, Le Bord de l’Eau, 2008), p. 234.

[35] Sobre todo esse desenvolvimento, ver Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Gallimard/Seuil, 2004), p. 93-5.

[36] Idem, Dits et écrits II, cit., p. 643-4.

[37] Idem, Sécurité, territoire, population, cit., p. 50.

[38] Jean-Jacques Rousseau, “Considérations sur le gouvernement de Pologne”, em Œuvres complètes (Paris, Gallimard, 1995, Coleção La Pléiade), t. III, p. 955.

[39] Idem, “Émile”, em Œuvres complètes, cit., t. IV, p. 311.

[40] Idem.

[41] Friedrich Engels, Socialisme utopique et socialisme scientifique (Paris, Éditions Sociales, 1977), p. 99 [ed. bras.: Do socialismo utópico ao socialismo científico, trad. Rubens Eduardo Frias, 2. ed., São Paulo, Centauro, 2005].

[42] Saint-Simon diz, em essência, que a espécie humana “está destinada a passar do regime governamental ou militar para o regime administrativo ou industrial”. Citado em Émile Durkheim, Le socialisme (Paris, PUF, 1992, Coleção Quadrige), p. 179.

[43] Retomamos aqui a argumentação de Durkheim (ibidem, p. 177-8).

[44] Saint-Simon, Écrits politiques et économiques (Paris, Pocket, 2005, Coleção Agora), p. 327.

[45] Ibidem, p. 330; grifo nosso.

[46] Idem.

[47] Reconhece-se aqui a tese enunciada por Marx a respeito do proletariado em Crítica da filosofia do direito de Hegel [trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus, 3. ed., São Paulo, Boitempo, 2013] e A ideologia alemã [trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano, 1. ed. rev., São Paulo, Boitempo, 2011].

[48] Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (Paris, Exils, 2000) e Multitude (Paris, 10/18, 2006) [ed. bras.: Multidão: guerra e democracia na era do império, trad. Clóvis Marques, Rio de Janeiro, Record, 2005].

[49] Para uma crítica a essa tese, ver Pierre Dardot, Christian Laval e El Mouhoub ­Mouhoud, Sauver Marx? (Paris, La Découverte, 2007).

[50] “Nous sommes déjà des hommes nouveaux”, entrevista de Jean Birnbaum com Antonio Negri, Le Monde, 13 jul. 2007.

[51] Axel Honneth, La réification: petit traité de théorie critique (Paris, Gallimard, 2007).

[52] Ibidem, p. 93.

[53] Ibidem, p. 105.

[54] Ibidem, p. 94. Essa pretensa “originalidade” tem certa relação com a pressuposição de uma exterioridade da liberdade no que diz respeito às relações de poder contra a qual se construiu a noção foucaultiana de governamentalidade. Ver a Introdução deste volume.

[55] Ibidem, p. 101-2 e p. 136, nota 17.

[56] Jeffrey T. Nealon, Foucault Beyond Foucault: Power and its Intensifications Since 1984 (Stanford, Stanford University Press, 2008).

[57] Michel Foucault, Sécurité, territoire, population, cit., p. 195-232 (sobre a etapa fundamental constituída por esse conceito, ver p. 221, nota 5).

[58] Ibidem, p. 196-7.

[59] Ibidem, p. 205.

[60] Ibidem, p. 221, nota 5.

[61] Atitude que seria como que o puro negativo da “obediência passiva” aos poderes estabelecidos preconizada por Berkeley (De l’obéissance passive, Paris, Vrin, 1983).

[62] André Gorz, Ecologica (Paris, Galilée, 2008), p. 115 e 133 [ed. bras.: Ecológica, trad. Celso Azzan Júnior, São Paulo, Annablume, 2010].

[63] Karl Marx, Œuvres III (Paris, Gallimard, 1982, Coleção La Pléiade), p. 526

A Nova Razão do Mundo: 9 - A FÁBRICA DO SUJEITO NEOLIBERAL

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A FÁBRICA DO SUJEITO NEOLIBERAL

A concepção que vê a sociedade como uma empresa constituída de empresas necessita de uma nova norma subjetiva, que não é mais exatamente aquela do sujeito produtivo das sociedades industriais. O sujeito neoliberal em formação, do qual gostaríamos de delinear aqui algumas das características principais, é correlato de um dispositivo de desempenho e gozo que foi objeto de inúmeros trabalhos. Não faltam hoje descrições do homem “hipermoderno”, “impreciso”, “flexível”, “precário”, “fluido”, “sem gravidade”. Esses trabalhos preciosos, e muitas vezes convergentes, no cruzamento da psicanálise com a sociologia, revelam uma condição nova do homem, a qual, para alguns, afetaria a própria economia psíquica.

De um lado, muitos psicanalistas dizem receber no consultório pacientes que sofrem de sintomas que revelam uma nova era do sujeito. Esse novo estado subjetivo é frequentemente referido na literatura clínica a amplas categorias, como a “era da ciência” ou o “discurso capitalista”. O fato de o histórico apropriar-se do estrutural não deveria surpreender os leitores de Lacan, para quem o sujeito da psicanálise não é uma substância eterna nem uma invariante trans-histórica, mas efeito de discursos que se inserem na história e na sociedade[1]. De outro lado, no campo sociológico, a transformação do “indivíduo” é um fato inegável. O que se designa no mais das vezes com o termo equívoco de “individualismo” é remetido ora a mutações morfológicas, segundo a tradição durkheimiana, ora à expansão das relações mercantis, segundo a tradição marxista, ora à extensão da racionalização a todos os domínios da existência, segundo uma linha mais weberiana.

Portanto, cada uma a sua maneira, psicanálise e sociologia registram uma mutação do discurso sobre o homem que pode ser reportado, como em Lacan, à ciência de um lado e ao capitalismo de outro: trata-se precisamente de um discurso científico que, a partir do século XVII, começa a enunciar o que o homem é e o que ele deve fazer; e é para fazer do homem esse animal produtivo e consumidor, esse ser de labor e necessidade, que um novo discurso científico se propôs redefinir a medida humana. Mas esse quadro muito geral é ainda insuficiente para identificar como uma nova lógica normativa se impôs nas sociedades ocidentais. Em particular, não permite apontar as inflexões que a história do sujeito ocidental sofreu nos últimos três séculos e, menos ainda, as transformações em curso que podem ser reportadas à racionalidade neoliberal.

Se existe um novo sujeito, ele deve ser distinguido nas práticas discursivas e institucionais que, no fim do século XX, engendraram a figura do homem-empresa ou do “sujeito empresarial”, favorecendo a instauração de uma rede de sanções, estímulos e comprometimentos que tem o efeito de produzir funcionamentos psíquicos de um novo tipo. Alcançar o objetivo de reorganizar completamente a sociedade, as empresas e as instituições pela multiplicação e pela intensificação dos mecanismos, das relações e dos comportamentos de mercado implica necessariamente um devir-outro dos sujeitos. O homem benthamiano era o homem calculador do mercado e o homem produtivo das organizações industriais. O homem neoliberal é o homem competitivo, inteiramente imerso na competição mundial. Foi dessa transformação que se falou nas páginas precedentes. Trataremos agora de descrever mais sistematicamente suas múltiplas formas.

O sujeito plural e a separação das esferas

De onde devemos partir? Durante muito tempo, o sujeito ocidental dito “moderno” pertenceu a regimes normativos e registros políticos que eram ao mesmo tempo heterogêneos e conflituosos: a esfera consuetudinária e religiosa das sociedades antigas, a esfera da soberania política, a esfera da troca mercantil. Esse sujeito ocidental vivia, portanto, em três espaços diferentes: o dos serviços e das crenças de uma sociedade ainda ruralizada e cristianizada; o dos Estados-nações e da comunidade política; e o do mercado monetário do trabalho e da produção. Desde o início, essa divisão foi movediça, e o desafio das relações de força e das estratégias políticas era precisamente fixar e mudar suas fronteiras. As grandes lutas acerca da própria natureza do regime político dão uma expressão singularmente condensada disso. Mais importantes, porém mais difíceis de captar, são a mudança progressiva das relações humanas, a transformação das práticas cotidianas induzidas pela nova economia, os efeitos subjetivos das novas relações sociais no espaço mercantil e das novas relações políticas no espaço da soberania.

As democracias liberais eram universos de tensões múltiplas e impulsos disjuntivos. Sem entrar em considerações que vão além de nosso propósito, podemos descrevê-las como regimes que, dentro de certos limites, permitiam e respeitavam um funcionamento heterogêneo do sujeito, no sentido de que asseguravam tanto a separação quanto a articulação das diferentes esferas da vida. Essa heterogeneidade se traduzia na independência relativa das instituições, das regras, das normas morais, religiosas, políticas, econômicas, estéticas e intelectuais. O que não quer dizer que, por essa característica de equilíbrio e “tolerância”, esgotamos a natureza do movimento que as animava. Ocorreram dois grandes impulsos paralelos: a democracia política e o capitalismo. O homem moderno se dividiu em dois: o cidadão dotado de direitos inalienáveis e o homem econômico guiado por seus interesses, o homem como “fim” e o homem como “instrumento”. A história dessa “modernidade” consagrou um desequilíbrio a favor do segundo polo. Se quiséssemos privilegiar o desenvolvimento da democracia, mesmo que irregular, como fazem certos autores[2], perderíamos o eixo principal evidenciado, de maneiras diferentes, por Marx, Weber ou Polanyi: o desenvolvimento de uma lógica geral das relações humanas submetido à regra do lucro máximo.

Não serão ignoradas aqui todas as mudanças que a relação mercantil engendrou no sujeito. Marx, como outros, mas talvez melhor do que outros, apontou os efeitos de dissolução que o mercado exerce sobre os vínculos humanos. A mercantilização das relações sociais, juntamente com a urbanização, foi um dos fatores mais poderosos da “emancipação” do indivíduo com relação a tradições, raízes, apegos familiares e fidelidades pessoais. A grandeza de Marx foi ter mostrado que o preço dessa liberdade subjetiva foi uma nova forma de sujeição às leis impessoais e incontroláveis da valorização do capital. O indivíduo liberal, a exemplo do sujeito lockiano proprietário de si mesmo, podia acreditar que gozava de todas as suas faculdades naturais, do livre exercício de sua razão e vontade, podia proclamar ao mundo sua autonomia irredutível, mas continuava a ser uma engrenagem dos grandes mecanismos que a economia política clássica começava a analisar.

Nas relações humanas, essa mercantilização expansiva tomou a forma geral da contratualização. Os contratos voluntários entre pessoas livres – obviamente sempre garantidos pela instância soberana – substituíram as formas institucionais da aliança e da filiação e, mais em geral, as formas antigas da reciprocidade simbólica. O contrato tornou-se mais do que nunca a medida de todas as relações humanas, de modo que o indivíduo passou a experimentar cada vez mais na relação com o outro sua plena e total liberdade de compromisso voluntário e a perceber a “sociedade” como um conjunto de relações de associação entre pessoas dotadas de direitos sagrados. Esse é o cerne do que se convencionou chamar “individualismo” moderno.

Como mostrou Émile Durkheim, havia nisso uma ilusão singular, na medida em que, no contrato, há sempre mais do que o contrato: sem o Estado garantidor, não existiria liberdade pessoal. Mas também podemos dizer, como Michel Foucault, que, sob o contrato, há algo diferente do contrato ou ainda que, sob a liberdade subjetiva, há algo diferente da liberdade subjetiva. Há um arranjo de processos de normatização e técnicas disciplinares que constituem o que podemos chamar de dispositivo de eficácia. Os sujeitos nunca teriam se “convertido” de forma voluntária ou espontânea à sociedade industrial e mercantil apenas por causa da propaganda do livre-câmbio ou dos atrativos do enriquecimento privado. Era preciso pensar e implantar, “por uma estratégia sem estrategistas”, os tipos de educação da mente, de controle do corpo, de organização do trabalho, moradia, descanso e lazer que seriam a forma institucional do novo ideal de homem, a um só tempo indivíduo calculador e trabalhador produtivo. Foi esse dispositivo de eficácia que forneceu à atividade econômica os “recursos humanos” necessários, foi ele que produziu incessantemente as mentes e os corpos aptos a funcionar no grande circuito da produção e do consumo. Em uma palavra, a nova normatividade das sociedades capitalistas impôs-se por uma normatização subjetiva de um tipo particular.

Foucault forneceu uma primeira cartografia desse processo – aliás, uma cartografia problemática. O princípio geral do dispositivo de eficácia não é tanto, como se disse muitas vezes, um “adestramento dos corpos”, mas uma “gestão das mentes”. Ou antes deveríamos dizer que a ação disciplinar sobre os corpos foi apenas um momento e um aspecto da elaboração de certo modo de funcionamento da subjetividade. O panóptico de Bentham é particularmente emblemático dessa moldagem subjetiva. O novo governo dos homens penetra até em seu pensamento, acompanha, orienta, estimula, educa esse pensamento. O poder já não é somente a vontade soberana, mas, como Bentham diz tão bem, torna-se “método oblíquo” ou “legislação indireta”, destinada a conduzir os interesses. Postular a liberdade de escolha, suscitar e constituir na prática essa liberdade, pressupõe que os sujeitos sejam conduzidos por uma “mão invisível” a fazer as escolhas que serão proveitosas a todos e cada um. Por trás dessa representação encontra-se não tanto um grande engenheiro, como no modelo do grande Relojoeiro, mas uma máquina que funciona idealmente por si só e encontra em cada sujeito uma engrenagem pronta a responder às necessidades de arranjo do conjunto. Contudo, é preciso fabricar e manter essa engrenagem.

O sujeito produtivo foi a grande obra da sociedade industrial. Não se tratava apenas de aumentar a produção material; era preciso também que o poder se redefinisse como essencialmente produtivo, como um estimulante da produção cujos limites seriam determinados apenas pelos efeitos de sua ação sobre a produção. Esse poder essencialmente produtivo tinha como correlato o sujeito produtivo, não só o trabalhador, mas o sujeito que, em todos os domínios de sua vida, produz bem-estar, prazer e felicidade. Desde cedo, a economia política teve como fiadora uma psicologia científica que descrevia uma economia psíquica homogênea a ela. Já no século XVIII, iniciam-se as bodas da mecânica econômica com a psicofisiologia das sensações. Esse é, sem dúvida, o cruzamento decisivo que vai definir a nova economia do homem governado pelos prazeres e pelas dores. Governado e governável pelas sensações: se o indivíduo deve ser considerado em sua liberdade, ele também é um rematado patife, um “delinquente em potencial”, um ser movido antes de tudo por seu próprio interesse. A nova política inaugura-se com o monumento panóptico erguido em glória da vigilância de todos por cada um e de cada um por todos.

Mas, podemos nos perguntar, por que vigiar os sujeitos e maximizar o poder? A resposta impõe-se por si só: para produzir a maior felicidade. A lei da eficácia é intensificar os esforços e os resultados e minimizar os gastos inúteis. Fabricar homens úteis, dóceis ao trabalho, dispostos ao consumo, fabricar o homem eficaz é o que já começa a se delinear, e de que maneira, na obra benthamiana. Mas o utilitarismo clássico, apesar de seu enorme trabalho de pulverização das categorias antigas, não conseguiu explicar a pluralidade interna do sujeito[3] nem a separação das esferas a que correspondia essa pluralidade. O princípio de utilidade, cuja vocação homogeneizante era clara, não conseguiu abranger todos os discursos e as instituições, do mesmo modo que o equivalente geral da moeda não conseguiu subordinar todas as atividades sociais. Precisamente esse caráter plural do sujeito e essa separação das esferas práticas é que estão em questão hoje.

A modelagem da sociedade pela empresa

O passo inaugural, como dissemos, consistiu em inventar o homem do cálculo, que exerce sobre si mesmo o esforço de maximização dos prazeres e das dores requeridos pela existência de relações de interesse entre os indivíduos. As instituições eram feitas para formar e enquadrar os sujeitos rebeldes a essa existência e fazer convergir interesses diversos. Mas os discursos das instituições, a começar pelo político, estavam longe de ser unívocos. O utilitarismo não se impôs como a única doutrina legítima, muito pelo contrário. Os princípios continuaram misturados e, no fim do século XIX, surgiram considerações “sociais”, direitos “sociais” e políticas “sociais” nas relações econômicas que limitaram seriamente a lógica acumuladora do capital e contrariaram a concepção estritamente contratualista das trocas sociais. A construção dos Estados-nações continuou a ser escrita com as antigas palavras da tradição dos juristas e a ser inserida em formas políticas estranhas à ordem da produção. Em resumo, a norma de eficácia econômica continuou a ser contida por discursos heterogêneos a ela, a nova racionalidade do homem econômico continuou mascarada e embaralhada pela confusão de teorias.

Por oposição, o momento neoliberal caracteriza-se por uma homogeneização do discurso do homem em torno da figura da empresa. Essa nova figura do sujeito opera uma unificação sem precedentes das formas plurais da subjetividade que a democracia liberal permitiu que se conservassem e das quais sabia aproveitar-se para perpetuar sua existência.

A partir de então, diversas técnicas contribuem para a fabricação desse novo sujeito unitário, que chamaremos indiferentemente de “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal” ou, simplesmente, neossujeito[4]. Não estamos mais falando das antigas disciplinas que se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis – metodologia institucional que se encontrava em crise havia muito tempo. Trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. Para isso, deve-se reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui. As grandes proclamações a respeito da importância do “fator humano” que pululam na literatura da neogestão devem ser lidas à luz de um novo tipo de poder; não se trata mais de reconhecer que o homem no trabalho continua a ser um homem, que ele nunca se reduz ao status de objeto passivo; trata-se de ver nele o sujeito ativo que deve participar inteiramente, engajar-se plenamente, entregar-se por completo a sua atividade profissional. O sujeito unitário é o sujeito do envolvimento total de si mesmo. A vontade de realização pessoal, o projeto que se quer levar a cabo, a motivação que anima o “colaborador” da empresa, enfim, o desejo com todos os nomes que se queira dar a ele é o alvo do novo poder. O ser desejante não é apenas o ponto de aplicação desse poder; ele é o substituto dos dispositivos de direção das condutas. Porque o efeito procurado pelas novas práticas de fabricação e gestão do novo sujeito é fazer com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se trabalhasse para si mesmo e, assim, eliminar qualquer sentimento de alienação e até mesmo qualquer distância entre o indivíduo e a empresa que o emprega. Ele deve trabalhar para sua própria eficácia, para a intensificação de seu esforço, como se essa conduta viesse dele próprio, como se esta lhe fosse comandada de dentro por uma ordem imperiosa de seu próprio desejo, à qual ele não pode resistir.

As novas técnicas da “empresa pessoal” chegam ao cúmulo da alienação ao pretender suprimir qualquer sentimento de alienação: obedecer ao próprio desejo ou ao Outro que fala em voz baixa dentro de nós dá no mesmo. Nesse sentido, a gestão moderna é um governo “lacaniano”: o desejo do sujeito é o desejo do Outro. Desde que o poder moderno se torne o Outro do sujeito. A construção das figuras tutelares do mercado, da empresa e do dinheiro tende exatamente a isso. Mas é isso sobretudo que se consegue obter com as técnicas refinadas de motivação, estímulo e incentivo.

A “cultura de empresa” e a nova subjetividade

A governamentalidade empresarial está ligada a uma racionalidade de conjunto que tira força de seu próprio caráter abrangente, já que permite descrever as novas aspirações e as novas condutas dos sujeitos, prescrever os modos de controle e influência que devem ser exercidos sobre eles em seus comportamentos e redefinir as missões e as formas da ação pública. Do sujeito ao Estado, passando pela empresa, um mesmo discurso permite articular uma definição do homem pela maneira como ele quer ser “bem-sucedido”, assim como pelo modo como deve ser “guiado”, “estimulado”, “formado”, “empoderado” (empowered) para cumprir seus “objetivos”. Em outras palavras, a racionalidade neoliberal produz o sujeito de que necessita ordenando os meios de governá-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos. “Empresa” é também o nome que se deve dar ao governo de si na era neoliberal. O que quer dizer que esse “governo de si empresarial” é diferente e muito mais do que a “cultura de empresa” da qual falamos acima. É claro que a valorização ideológica do modelo da empresa faz parte dele; é claro que a empresa é considerada em toda parte um lugar de realização pessoal, a instância onde finalmente se podem conjugar o desejo de realização pessoal dos indivíduos, seu bem-estar material, o sucesso comercial e financeiro da “comunidade” de trabalho e sua contribuição para a prosperidade geral da população. A nova gestão ambiciona superar no plano imaginário a contradição que Daniel Bell encontrou entre os valores hedonistas do consumo e os valores ascéticos do trabalho[5].

Todavia, cometeríamos um grave erro se nos deixássemos seduzir por esse novo management. Da mesma forma que a filantropia do século XVIII acompanhava a implantação das novas tecnologias de poder com uma música suave, os propósitos humanistas e hedonistas da gestão moderna dos homens acompanham a implantação de técnicas que visam a produzir formas mais eficazes de sujeição. Estas, por mais novas que sejam, têm a marca da mais inflexível e mais clássica das violências sociais típicas do capitalismo: a tendência a transformar o trabalhador em uma simples mercadoria. A corrosão progressiva dos direitos ligados ao status de trabalhador, a insegurança instilada pouco a pouco em todos os assalariados pelas “novas formas de emprego” precárias, provisórias e temporárias, as facilidades cada vez maiores para demitir e a diminuição do poder de compra até o empobrecimento de frações inteiras das classes populares são elementos que produziram um aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com relação aos empregadores. Foi esse contexto de medo social que facilitou a implantação da neogestão nas empresas. Nesse sentido, a “naturalização” do risco no discurso neoliberal e a exposição cada vez mais direta dos assalariados às flutuações do mercado, pela diminuição das proteções e das solidariedades coletivas, são apenas duas faces de uma mesma moeda. Transferindo os riscos para os assalariados, produzindo o aumento da sensação de risco, as empresas puderam exigir deles disponibilidade e comprometimento muito maiores.

Isso não significa que a neogestão não seja novidade e o capitalismo no fundo seja sempre o mesmo. Ao contrário, a grande novidade reside na modelagem que torna os indivíduos aptos a suportar as novas condições que lhe são impostas, enquanto por seu próprio comportamento contribuem para tornar essas condições cada vez mais duras e mais perenes. Em uma palavra, a novidade consiste em promover uma “reação em cadeia”, produzindo “sujeitos empreendedores” que, por sua vez, reproduzirão, ampliarão e reforçarão as relações de competição entre eles, o que exigirá, segundo a lógica do processo autorrealizador, que eles se adaptem subjetivamente às condições cada vez mais duras que eles mesmos produziram.

É isso que escapa a Luc Boltanski e Ève Chiapello em O novo espírito do capitalismo[6]. Tomando como objeto a ideologia que, segundo a definição que dão do espírito do capitalismo, “justifica o engajamento no capitalismo”[7], eles tendem a acreditar piamente no que o novo capitalismo diz de si mesmo na literatura gerencial dos anos 1990. Sem dúvida é importante destacar que essa literatura recuperou certo tipo de crítica da burocracia, da organização e da hierarquia para melhor desacreditar o modelo antigo de poder baseado na gestão dos diplomas, dos status e das carreiras. Também é importante mostrar a que ponto a apologia da incerteza, da reatividade, da flexibilidade, da criatividade e da rede de contatos constitui uma representação coerente, cheia de promessas, que favorece a adesão dos assalariados ao modelo “conexionista” do capitalismo.

Isso, porém, é ressaltar apenas a face sedutora e estritamente retórica dos novos modos de poder. É esquecer que estes últimos tiveram como efeito a constituição de uma subjetividade particular por meio de técnicas específicas. Em suma, é subestimar o aspecto propriamente disciplinar do discurso gerencial, tomando sua argumentação muito ao pé da letra. Essa subestimação é a contrapartida da superestimação da ideologia da “realização” pessoal numa tese absolutamente unilateral que deriva o “novo espírito do capitalismo” da “crítica artista” de Maio de 1968. Ora, o que as evoluções do “mundo do trabalho” mostram de modo cada vez mais claro é justamente a importância decisiva das técnicas de controle no governo das condutas. A neogestão não é “antiburocrática”. Ela corresponde a uma nova fase, mais sofisticada, mais “individualizada”, mais “competitiva” da racionalização burocrática, e é apenas em consequência de uma ilusão que ele se apoiou na “crítica artista” de 1968 para assegurar a mutação de uma forma de poder organizacional em outra. Nós não saímos da “jaula de aço” da economia capitalista a que se referia Weber. Em certos aspectos, seria melhor dizer que cada indivíduo é obrigado a construir, por conta própria, sua “jaula de aço” individual.

Com efeito, o novo governo dos sujeitos pressupõe que a empresa não seja uma “comunidade” ou um lugar de realização pessoal, mas um instrumento e um espaço de competição. Ela é apresentada idealmente, acima de tudo, como o lugar de todas as inovações, da mudança permanente, da adaptação contínua às variações da demanda do mercado, da busca de excelência, da “falha zero”. Desse modo, injunge-se o sujeito a conformar-se intimamente, por um trabalho interior constante, à seguinte imagem: ele deve cuidar constantemente para ser o mais eficaz possível, mostrar-se inteiramente envolvido no trabalho, aperfeiçoar-se por uma aprendizagem contínua, aceitar a grande flexibilidade exigida pelas mudanças incessantes impostas pelo mercado. Especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição. Todas as suas atividades devem assemelhar-se a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custos. A economia torna-se uma disciplina pessoal. Foi Margaret Thatcher quem deu a formulação mais clara dessa racionalidade: “Economics are the method. The object is to change the soul” [A economia é o método. O objetivo é mudar a alma][8].

As técnicas de gestão (avaliação, projeto, normatização dos procedimentos, descentralização) supostamente permitem objetivar a adesão do indivíduo à norma de conduta que se espera dele, avaliar por tabelas e outras ferramentas de registro do “painel de gestão” seu comprometimento subjetivo, sob pena de sofrer sanções no emprego, no salário e no desenvolvimento de sua carreira[9]. O que não ocorre, como bem podemos imaginar, sem uma grande arbitrariedade da parte de uma hierarquia impelida a manipular categorias psicológicas que deveriam garantir a “objetividade” da medição de competências e desempenhos. No entanto, o essencial não é a verdade dessa medição, mas o tipo de poder que é exercido “profundamente” sobre o sujeito impelido a “entregar-se completamente”, a “transcender-se” pela empresa, a “motivar-se” cada vez mais para satisfazer o cliente, isto é, intimado pelo tipo de contrato que o vincula à empresa e pelo modo de avaliação que lhe é aplicado a provar seu comprometimento pessoal com o trabalho.

A racionalidade empresarial apresenta a vantagem incomparável de unir todas as relações de poder na trama de um mesmo discurso. Nesse sentido, o léxico da empresa contém um potencial de unificação dos diferentes “regimes de existência”, o que explica os governos terem recorrido largamente a ele. Em particular, permite articular os objetivos da política adotada a todos os componentes da vida social e individual[10]. Dessa forma, a empresa torna-se não apenas um modelo geral que deve ser imitado, como também uma atitude que deve ser valorizada na criança e no aluno, uma energia potencial que deve ser solicitada no assalariado, uma maneira de ser que é produzida pelas mudanças institucionais e ao mesmo tempo produz melhorias em todos os domínios. Estabelecendo uma correspondência íntima entre o governo de si e o governo das sociedades, a empresa define uma nova ética, isto é, certa disposição interior, certo ethos que deve ser encarnado com um trabalho de vigilância sobre si mesmo e que os procedimentos de avaliação se encarregam de reforçar e verificar.

Nessas condições, pode-se dizer que o primeiro mandamento da ética do empreendedor é “ajuda-te a ti mesmo” e que, nesse sentido, ela é a ética do self-help [autoajuda]. Pode-se alegar, com toda a razão, que essa ética não é nova, que faz parte do espírito do capitalismo original. Sua formulação já se encontrava em Benjamin Franklin e, melhor ainda, um século depois, em Samuel Smiles, autor de um best-seller mundial publicado em 1859 e intitulado Self-Help. Smiles apostava inteiramente na energia dos indivíduos, que devia ser deixada o mais à vontade possível; contudo, ele se limitava à ética individual, a qual considerava a determinante única. Em nenhum momento lhe passou pela cabeça que o self-help pudesse ser mais do que uma força moral pessoal, que cada indivíduo deveria desenvolver por si mesmo e, sobretudo, que pudesse ser um modo de governo político[11]. Pensava o contrário até, baseado numa delimitação estrita da esfera privada e da esfera pública: “A maneira como um homem é governado pode não ter grande importância, ao passo que tudo depende da maneira como ele próprio se governa”[12]. Precisamente, a grande inovação da tecnologia neoliberal é vincular diretamente a maneira como um homem “é governado” à maneira como ele próprio “se governa”.

A empresa de si mesmo como ethos da autovalorização

Isso pressupõe todo um trabalho de racionalização até o mais íntimo do sujeito: uma racionalização do desejo. Esta está no centro da norma da empresa de si mesmo. Como ressalta um de seus tecnólogos, Bob Aubrey, consultor internacional californiano, “falar em empresa de si mesmo é traduzir a ideia de que cada indivíduo pode ter domínio sobre sua vida: conduzi-la, geri-la e controlá-la em função de seus desejos e necessidades, elaborando estratégias adequadas”[13]. Enquanto maneira de ser do eu humano, a empresa de si mesmo constitui um modo de governar-se de acordo com valores e princípios. Nikolas Rose destaca alguns: “Energia, iniciativa, ambição, cálculo e responsabilidade pessoal”[14]. Trata-se do indivíduo competente e competitivo, que procura maximizar seu capital humano em todos os campos, que não procura apenas projetar-se no futuro e calcular ganhos e custos como o velho homem econômico, mas que procura sobretudo trabalhar a si mesmo com o intuito de transformar-se continuamente, aprimorar-se, tornar-se sempre mais eficaz. O que distingue esse sujeito é o próprio processo de aprimoramento que ele realiza sobre si mesmo, levando-o a melhorar incessantemente seus resultados e seus desempenhos. Os novos paradigmas que englobam tanto o mercado de trabalho como o da educação e da formação, “formação por toda a vida” (long life training) e “empregabilidade”, são modalidades estratégicas significativas.

Seria um erro denegrir essa dimensão da ética empresarial como se fosse apenas engodo e usurpação. Essa é a ética do nosso tempo. Mas não devemos confundi-la com um existencialismo fraco nem com um hedonismo fácil. A ética empresarial encerra, é claro, essas formas éticas, exaltando o “homem que faz a si mesmo” e a “realização plena”, mas é por outros aspectos que ela se singulariza. A ética da empresa tem um teor mais guerreiro: exalta o combate, a força, o vigor e o sucesso. Ela transforma o trabalho no veículo privilegiado da realização pessoal: sendo bem-sucedidos profissionalmente, fazemos da nossa vida um “sucesso”. O trabalho garante autonomia e liberdade, na medida em que é a maneira mais benéfica de exercermos nossas faculdades, empregarmos nossa energia criativa e provarmos nosso valor. Essa ética do trabalho não é uma ética da abnegação, não transforma em virtude a obediência às ordens de um superior.

Nesse sentido, ela é o oposto da ética da “conversão” (metanoia) do ascetismo cristão dos séculos III e IV, que era precisamente uma ética do rompimento com o eu[15]. É profundamente distinta até da ética do trabalho que marcou o protestantismo dos primórdios – embora aparentemente incite o sujeito a uma autoinquisição permanente e a um “controle sistemático de si mesmo”, ela não vê mais o sucesso no trabalho como o “sinal da eleição divina” que supostamente dá ao sujeito a certeza de sua salvação[16]. Se aqui o trabalho se torna espaço de liberdade, isso só acontece se o indivíduo souber ultrapassar o estatuto passivo do assalariado de antigamente, isto é, se ele se tornar uma empresa de si mesmo. O grande princípio dessa nova ética do trabalho é a ideia de que a conjunção entre as aspirações individuais e os objetivos de excelência da empresa, entre o projeto pessoal e o projeto da empresa, somente é possível se cada indivíduo se tornar uma pequena empresa. Em outras palavras, isso pressupõe conceber a empresa como uma entidade composta de pequenas empresas de si mesmo.

"A empresa no sentido econômico do termo é um conjunto de empresas das pessoas que a compõem. Hoje, os indivíduos que trabalham não devem ser considerados exclusivamente empregados, mas pessoas que têm dentro delas estratégias, objetivos de vida.[17]"

É no mesmo sentido que devemos entender a afirmação:

"A empresa no sentido clássico e econômico do termo repousa, acima de tudo, sobre a justaposição das “empresas de si mesmo” de todos os seus membros e até mesmo de todas as suas partes interessadas (englobando, por exemplo, os empregados dos clientes e dos fornecedores e o entorno).[18]"

Preocupado em dar uma caução teórica a essa nova ética, Aubrey afirma ter tomado a expressão “empresa de si mesmo” de Foucault para transformá-la num método de formação profissional[19]. Apesar de ser bastante curioso ver a analítica crítica do poder se transformar num conjunto de propostas prescritivas e performativas aos assalariados, o discurso é revelador. No novo mundo da “sociedade em desenvolvimento”, o indivíduo não deve mais se ver como um trabalhador, mas como uma empresa que vende um serviço em um mercado.

"Todo trabalhador deve procurar um cliente, posicionar-se no mercado, fixar um preço, gerir seus custos, fazer pesquisa-desenvolvimento e formar-se. Enfim, considero que, do ponto de vista do indivíduo, seu trabalho é sua empresa, e seu desenvolvimento define-se como uma empresa de si mesmo.[20]"

O que devemos entender por essa afirmação? A empresa de si mesmo é uma “entidade psicológica e social, e mesmo espiritual”, ativa em todos os domínios e presente em todas as relações[21]. É sobretudo a resposta a uma nova regra do jogo que muda radicalmente o contrato de trabalho, a ponto de aboli-lo como relação salarial. A responsabilidade do indivíduo pela valorização de seu trabalho no mercado tornou-se um princípio absoluto. Essa relação de cada um com o valor de seu trabalho é “objeto de gestão, investimento e desenvolvimento num mercado de trabalho aberto e cada vez mais mundial”[22]. Em outras palavras, como o trabalho se tornou um “produto” cujo valor mercantil pode ser medido de forma cada vez mais precisa, chegou a hora de substituir o contrato salarial por uma relação contratual entre “empresas de si mesmo”. Desse ponto de vista, o uso da palavra “empresa” não é uma simples metáfora, porque toda a atividade do indivíduo é concebida como um processo de valorização do eu. O termo significa que a:

"atividade do indivíduo, sob suas diferentes facetas (trabalho remunerado, trabalho beneficente para uma associação, gestão do lar familiar, aquisição de competências, desenvolvimento de uma rede de contatos, preparação para uma mudança de atividade etc.), é pensada em sua essência como empresarial.[23]"

É essa equivalência entre a valorização mercantil do trabalho e a valorização de si próprio que leva Aubrey a comparar a empresa de si mesmo a uma forma moderna de “cuidado de si”, a uma versão contemporânea da epimeleia[24]. Hoje, a epimeleia consistiria em “gerir um portfólio de atividades”, desenvolver estratégias de aprendizagem, casamento, amizade, educação dos filhos, a administrar o “capital da empresa de si mesmo”[25]. Inspirando-se em Gary Becker, Aubrey tenta abranger tudo que venha a engordar um capital que é tanto familiar como individual: experiências, formação, sabedoria e contatos, mas também energia e saúde, “carteira de clientes”, “rendimentos e bens”. A noção de “empresa de si mesmo” supõe uma “integração da vida pessoal e profissional”, uma gestão familiar do portfólio de atividades, uma mudança da relação com o tempo, que não é mais determinada pelo contrato salarial, mas por projetos que são levados a cabo com diversos empregadores. E isso vai muito além do mundo profissional; trata-se de uma ética pessoal em tempos de incerteza. “A empresa de si mesmo é encontrar um sentido, um compromisso na globalidade da vida”, o que começa cedo – com quinze anos, somos empreendedores de nós mesmos assim que nos perguntamos o que queremos fazer da vida. Toda atividade é empresarial, porque nada mais é garantido para toda a vida. Tudo deve ser conquistado e defendido a todo momento. A criança mesmo deve ser “empreendedora de seu saber”. Desse ponto de vista, tudo se torna empresa: o trabalho, mas também o consumo e o lazer, já que “se procura tirar deste o máximo de riquezas, utilizá-lo para a realização de si mesmo como maneira de criar”[26].

Daí certa forma de redefinição do “domínio de si mesmo”:

"Hoje, uma nova ideia está surgindo: somos confrontados com escolhas, possibilidades, oportunidades cada vez mais numerosas, cada vez mais rápidas. Portanto, o domínio de si mesmo não consiste mais em levar a vida de forma linear, rígida e dentro de certos limites, mas, sim, em se mostrar capaz de flexibilidade, de empreendedorismo."

Quanto mais escolhas há, mais há obrigação de se valorizar no mercado. Ora, acrescenta Aubrey, o valor do indivíduo não vem mais dos direitos que ele adquire milagrosamente ao nascer, mas é conquistado pela:

"empresa que se tem, pela vontade de não se contentar com esse mundo do direito em que tudo é dado, determinado, registrado, mas de entrar num mundo que muda, um mundo social em que é preciso se valorizar pela troca. O mercado de trabalho faz parte desse mundo.[27]"

O interesse do discurso de Aubrey é o fato de referir essa nova figura do homem a um conjunto de técnicas práticas que os indivíduos têm à disposição para chegar a essa nova forma de sabedoria que é o “desenvolvimento autogerado da empresa de si mesmo”[28]. Se “a empresa de si mesmo não é imediatamente evidente”, novos exercícios devem substituir “a abordagem terapêutica de suporte individual e familiar, fornecendo ferramentas e estratégias pragmáticas”[29]. Porque se trata realmente de uma ascese: “O verdadeiro trabalho da empresa de si mesmo é um trabalho que se faz sobre si mesmo e a serviço dos outros”[30]. Aubrey esclarece:

"A empresa de si mesmo não é uma filosofia ou uma ideologia: é um movimento que fornece experiências e ferramentas que levam as pessoas a evoluir em seus contextos de vida (empresas, bairros, associações, família, rede de contatos etc.). É uma técnica de desenvolvimento para toda a vida.[31]"

Isso significa que cada indivíduo deve aprender a ser um sujeito “ativo” e “autônomo” na e pela ação que ele deve operar sobre si mesmo. Dessa forma, ele aprenderá por si mesmo a desenvolver “estratégias de vida” para aumentar seu capital humano e valorizá-lo da melhor maneira. “A criação e o desenvolvimento de si mesmo” são uma “atitude social” que deve ser adquirida, um “modo de agir” que deve ser desenvolvido, “para enfrentar a tripla necessidade do posicionamento da identidade, do desenvolvimento de seu próprio capital humano e da gestão de um portfólio de atividades”[32]. Essa atitude empresarial deve valer para todos, não apenas para empresários ou autônomos. Todos, com a ajuda de “consultores em estratégias de vida”, dependem dessa formação especializada em empresa de si mesmo, uma formação que permitirá um “autodiagnóstico” em congressos modulares sobre diferentes aspectos do procedimento: “Eu e minhas competências”, “Eu e minha maneira de agir”, “Eu e meu cenário de sucesso” etc.[33]

As “asceses do desempenho” e suas técnicas

Se essa ética neoliberal do eu não se restringe aos limites da empresa, é não só porque o ser bem-sucedido na carreira confunde-se com o ser bem-sucedido na vida, mas, ainda mais fundamentalmente, porque a gestão moderna tenta “aliciar as subjetividades” com a ajuda de controles e avaliações de personalidade, inclinações de caráter, maneiras de ser, falar e mover-se, quando não de motivações inconscientes[34].

O discurso gerencial envolve múltiplas técnicas que propõem um trabalho do eu para facilitar a “eclosão do homem-ator de sua vida”. A vida na empresa é considerada em si mesma uma “formação”, o lugar onde se adquire certa sabedoria prática, o que explica o fato de as autoridades políticas e econômicas enfatizarem tanto a participação de todos na vida da empresa, desde a mais tenra idade. Nesse sentido, Aubrey sustentou que a empresa constitui um percurso educativo que dá legitimidade aos que são bem-sucedidos, de modo que os managers podem ser considerados “o equivalente aos sábios ou aos mestres”[35].

Essa temática é conscientemente retomada dos trabalhos de Foucault e Pierre Hadot sobre os exercícios ou as asceses da sabedoria antiga. Como bem recordamos, essas práticas consistem em produzir um eu que se aproxima de um ideal proposto no discurso, o que pressupõe consultar seus deveres em cada circunstância. Foucault ampliou a análise estabelecendo que certo governo de si, certa subjetivação, era a própria condição para o exercício de um governo político e religioso. Isso vale em particular para a relação entre o governo de si e o governo dos outros na pólis, tal como pensada na ética grega clássica: aquele que é incapaz de se governar é incapaz de governar os outros[36]. A assimilação das práticas de gestão às práticas antigas é, evidentemente, um procedimento falacioso, que visa a dar-lhes um forte valor simbólico no mercado da formação dos assalariados. O que é suficiente estabelecer aqui é que a ascese da empresa de si mesmo termina com a identificação do sujeito com a empresa, deve produzir o que chamamos antes de sujeito do envolvimento total, ao contrário dos exercícios da “cultura de si mesmo” dos quais trata Foucault, cujo objetivo é estabelecer uma distância ética em relação a si mesmo, uma distância em relação a todo papel social. No entanto, lidamos aqui com o que Éric Pezet denominou judiciosamente “asceses do desempenho”, as quais constituem um mercado em plena expansão[37].

Diferentes técnicas, como coaching, programação neurolinguística (PNL), análise transacional (AT) e múltiplos procedimentos ligados a uma “escola” ou um “guru” visam a um melhor “domínio de si mesmo”, das emoções, do estresse, das relações com clientes ou colaboradores, chefes ou subordinados. Todos têm como objetivo fortalecer o eu, adaptá-lo melhor à realidade, torná-lo mais operacional em situações difíceis. Todos têm sua história, suas teorias, suas instituições correspondentes. O que nos interessa são os pontos que os unem. O primeiro aspecto é que todos se apresentam como saberes psicológicos, com um léxico especial, autores de referência, metodologias particulares, modos de argumentação de feição empírica e racional. O segundo aspecto é que se apresentam como técnicas de transformação dos indivíduos que podem ser utilizadas tanto dentro como fora da empresa, a partir de um conjunto de princípios básicos.

Cada método possui seus instrumentos, suas modalidades, sua hierarquia de técnicos[38]. É importante notar, sobretudo, que são técnicas que visam à “conduta de si e dos outros” ou, em outras palavras, técnicas de governamentalidade que visam essencialmente a aumentar a eficácia da relação com o outro. Assim, podemos ler numa apresentação pedagógica da PNL: “Não se trata de dizer o que é verdadeiro e o que não é. Trata-se de perguntar qual é a forma mais eficaz e mais construtiva de se comunicar com alguém”[39]. A ênfase é dada ao domínio da “comunicação” através de um melhor conhecimento prático das regras da comunicação, quer se trate de PNL, quer se tarte da AT. Esses métodos vinculam-se intimamente às exigências do bom desempenho individual, o qual depende da força de persuasão na venda, na direção dos subordinados, no êxito de uma busca de emprego ou pedido de promoção.

Conhecer melhor a nós mesmos, por meditação, autorreflexão ou autodiagnóstico, com a ajuda ou não de um coach, sozinhos ou em grupo, dentro ou fora da empresa, somente tem sentido para compreendermos melhor o que nós fazemos e o que faz o outro num “processo de comunicação”. A AT apresenta-se como uma teoria e uma prática cujo intuito é ensinar a construir uma comunicação de igual para igual, isto é, entre indivíduos que estão num mesmo “estado do eu”, para evitar “comunicações arrevesadas, em que os interlocutores não têm consciência das motivações profundas que guiam suas palavras”[40]. Estar em um estado de espírito apropriado, decodificar e transmitir sinais de reconhecimento, mas sobretudo controlar as “transações”, as unidades elementares da comunicação, para se certificar dos “estados do eu” que entram na comunicação. Conhecer melhor os “estados” do nosso eu, nosso “cenário de vida”, as regras dos diferentes “jogos sociais”, é compreender como nos comunicamos e, portanto, controlar a própria comunicação. Da mesma forma, a PNL propõe exercícios de “sincronização” com o outro, uma técnica cujo intuito é estabelecer uma relação mediante a consonância de diferentes parâmetros verbais e não verbais a fim de “conduzir” o outro de acordo com o princípio do “pacing and leading” [acompanhar e conduzir].

As iniciativas propostas são “pragmáticas”; segundo os termos da vulgata predominante, são “orientadas para a solução”. Não visam tanto ao porquê, mas ao “como isso funciona”. Para seguirmos o estilo das fórmulas encontradas nesse tipo de discurso, “o fato de encontrar o prego responsável pelo furo não diz nada sobre a maneira como se deve trocar o pneu”. Segundo outra fórmula em voga, o ponto forte dessas iniciativas é “fazer o que for preciso para conseguir o que realmente se quer. Desde que se saiba o que se quer”[41]. Uma das definições mais elaboradas da PNL resume bem o que está em jogo:

"A PNL é uma abordagem de ciências humanas que visa à eficácia de nosso desempenho nos diferentes domínios em que decidimos aplicá-la. Essencialmente pragmática, ela nos fornece meios concretos tanto para nos comunicarmos de maneira eficaz como para elaborarmos objetivos claros e alcançá-los.[42]"

A teoria psicológica empregada é sempre determinada pelo uso prático, de modo que podemos falar aqui de uma pragmática da eficácia comunicacional, pela qual o domínio dos efeitos pelo eu nunca é um simples meio (o que, diga-se de passagem, devolve ao devido lugar a referência ao ideal do “domínio de si mesmo” que abunda nesses discursos)[43]. Todos os princípios da PNL visam a tornar o indivíduo mais eficaz, a começar pelo trabalho de autopersuasão pelo qual ele deve acreditar que os “recursos” são ele próprio: “Postular que cada um de nós possui os recursos necessários para evoluir, atingir seus objetivos ou resolver problemas estimula a responsabilidade e a autonomia e constitui um vetor fundamental do desenvolvimento da autoestima”[44].

Essas técnicas de governamentalidade encontram seu campo de aplicação mais vasto e, sem dúvida, mais lucrativo no mundo profissional. A relação “aberta” e “positiva” com os outros é condição necessária à produtividade. As relações na empresa, das quais tudo depende, são consideradas em sua dimensão exclusivamente psicológica. O postulado fundamental é que o “desenvolvimento pessoal”, uma melhor comunicação no trabalho e o desempenho global da empresa estão intimamente ligados. O “desenvolvimento do potencial pessoal” é visto como o melhor meio de melhorar a qualidade e satisfazer o cliente. A PNL apresenta-se como um “modelo de adaptação e condução da mudança” da empresa num contexto de concorrência mundial, em que a mudança é obrigatória. Dirigidas aos administradores, essas técnicas visam a ajudá-los a conduzir os outros, fortalecendo seu “potencial”, a “confiança em si mesmos”, a “autoestima”. A PNL promete aos dirigentes de empresa “aumentar seu carisma e estimular seu leadership”. Acima de tudo, permite compreender como funcionam “as pessoas que cercam o manager e, com esse conhecimento, orientar a energia na direção do objetivo comum”; “A PNL, por sua eficácia em termos de comunicação, dará ferramentas eficazes ao manager para que ele possa motivar sua equipe com o intuito de satisfazer o cliente”. Estabelecer objetivos claros, compreender a relação humana e “ativar os mecanismos da motivação”, melhorar a comunicação interpessoal dentro da empresa, “pedra angular do sucesso” (“uma comunicação ruim na empresa dispersa as energias”), “gerir bem o feedback” para “esclarecer uma pessoa sobre o que ela faz e para que essa pessoa melhore o que ela faz”, essas são algumas das contribuições da PNL para uma gestão eficaz[45].

A “gestão da alma” e a gestão da empresa

Todos esses exercícios práticos de transformação de si mesmo tendem a jogar o peso da complexidade e da competição exclusivamente sobre o indivíduo. Os “gerentes da alma”, segundo expressão lacaniana retomada por Valérie Brunel, introduzem uma nova forma de governo que consiste em guiar os sujeitos fazendo-os assumir plenamente a expectativa de certo comportamento e certa subjetividade no trabalho[46]. Se todo indivíduo deve desenvolver suas qualidades pessoais para reagir rápido, inovar, criar, “gerir a complexidade numa economia globalizada”, como dizem as expressões estereotipadas em voga, é porque todo indivíduo é idealmente um gerente com o qual se deve contar para resolver os problemas. O domínio de si mesmo e das relações comunicacionais aparece como contrapartida de uma situação global que ninguém consegue mais controlar. Se não há mais domínio global dos processos econômicos e tecnológicos, o comportamento dos indivíduos não é mais programável, não é mais inteiramente descritível e prescritível. O domínio de si mesmo coloca-se como uma espécie de compensação ao domínio impossível do mundo. O indivíduo é o melhor, senão o único “integrador” da complexidade e o melhor ator da incerteza.

Se, portanto, trata-se de “trabalho de si mesmo”, “realização de si mesmo”, “responsabilidade por si mesmo”, isso não significa reclusão do sujeito, que toma a si mesmo por um objeto sem nenhuma relação com qualquer instância ou ordem que lhe sejam externas. Para falarmos como Foucault, o “cuidado de si” – se é que existe um “cuidado de si” –, nesse caso, não é um fim em si mesmo, porque o si não é objeto e fim desse cuidado[47] – não se trabalha a si mesmo com a finalidade única de produzir certa relação consigo mesmo, isto é, unicamente para si.

Pierre Hadot ressaltou, aliás, que, ao contrário do que podia dar a entender a interpretação foucaultiana, a “cultura de si” da época helenística (séculos I e II) remetia a certa ordem do mundo, a uma razão universal imanente do cosmo, de modo que o movimento de interiorização era ao mesmo tempo autossuperação e universalização[48]. De certa forma, as “asceses do desempenho” não escapam a essa lógica. Obviamente, essa ordem não é mais a ordem da “Natureza” estoica ou a ordem desejada pelo Criador à qual a “ascese intramundana” da ética protestante se atrelava. No entanto, essa “ascética” encontra sua justificação última numa ordem econômica que ultrapassa o indivíduo, uma vez que é expressamente concebida para conformar a conduta do indivíduo à “ordem cosmológica” da competição mundial que o envolve. É claro que o indivíduo trabalha a si mesmo para se tornar mais produtivo; contudo, ele trabalha para se tornar mais produtivo a fim de tornar a empresa – que é a entidade de referência – mais produtiva. Mais do que isso: os exercícios que supostamente melhoram a conduta do sujeito visam a transformá-lo num “microcosmo” em perfeita harmonia com o mundo da empresa e, para além dele, com o “macrocosmo” do mercado mundial.

No fim das contas, trata-se de fazer com que a norma geral de eficácia que se aplica à empresa seja substituída, no nível individual, por um uso da subjetividade destinado a melhorar o desempenho do indivíduo – seu bem-estar e sua gratificação profissional são dados apenas como consequência dessa melhoria. Portanto, as qualidades que devem ser desenvolvidas pelo sujeito remetem a um universo social em que a “apresentação de si mesmo” é um desafio estratégico para a empresa. Se o indivíduo deve ser “aberto”, “síncrono”, “positivo”, “empático”, “cooperativo”, não é para a felicidade dele, mas sobretudo e em primeiro lugar para obter do “colaborador” o desempenho que se espera dele.

Pode parecer que há algo de perverso na manipulação de temas que são ao mesmo tempo morais e psicológicos. Porque é exatamente como instrumento eficaz que o sujeito interessa e que se quer impor a ele certa conduta “correta” em relação aos outros. A despeito das aparências – que, aliás, participam plenamente da gestão das subjetividades –, não se trata de aplicar conhecimentos psicológicos ou problemáticas éticas ao mundo da empresa; ao contrário, trata-se de construir, com o auxílio da psicologia e da ética, técnicas de governo de si que são parte interessada do governo da empresa.

Esse é o fundamento da teoria de Will Schutz, psicólogo norte-americano e autor de uma teoria intitulada Orientações Fundamentais das Relações Interpessoais (Firo, em inglês). Em Human Element: Self-Esteem, Productivity and the Bottom Line, ele escreve: “Eu escolho minha vida – meus comportamentos, pensamentos, sentimentos, sensações, recordações, fraquezas, doenças, corpo, tudo – ou, então, escolho não saber que tenho escolha. Sou autônomo quando escolho a totalidade da minha vida”[49]. Em outras palavras, quando não se pode mudar o mundo, resta inventar-se a si mesmo. Nem a empresa nem o mundo podem ser mudados, eles são dados intangíveis. Tudo é questão de interpretação e reação do sujeito. Schutz escreve ainda: “O estresse não resulta dos ‘estressores’, mas da maneira como interpreto e reajo a suas injunções”[50]. Técnica do si mesmo e técnica da escolha misturam-se completamente. A partir do momento que o sujeito é plenamente consciente e mestre de suas escolhas, ele é também plenamente responsável por aquilo que lhe acontece: a “irresponsabilidade” de um mundo que se tornou ingovernável em virtude de seu próprio caráter global tem como correlato a infinita responsabilidade do indivíduo por seu próprio destino, por sua capacidade de ser bem-sucedido e feliz. Não se atravancar com as coisas do passado, cultivar previsões positivas, ter relações eficazes com o outro: a gestão neoliberal de si mesmo consiste em fabricar para si mesmo um eu produtivo, que exige sempre mais de si mesmo e cuja autoestima cresce, paradoxalmente, com a insatisfação que se sente por desempenhos passados. Os problemas econômicos são vistos como problemas organizacionais, e estes se resumem, por sua vez, a problemas psíquicos relacionados a um domínio insuficiente de si e da relação com os outros. A fonte da eficácia está no indivíduo: ela não pode mais vir de uma autoridade externa. É necessário fazer um trabalho intrapsíquico para procurar a motivação profunda. O chefe não pode mais impor: ele deve vigiar, fortalecer, apoiar a motivação. Dessa forma, a coerção econômica e financeira transforma-se em autocoerção e autoculpabilização, já que somos os únicos responsáveis por aquilo que nos acontece.

Sem dúvida, a nova norma de si é a da realização pessoal: temos de nos conhecer e nos amar para sermos bem-sucedidos. Daí a ênfase na palavra mágica: “autoestima”, chave de todo sucesso. Contudo, essas afirmações paradoxais sobre a injunção de sermos nós mesmos e nos amarmos como somos estão inseridas num discurso que coloca o desejo legítimo como uma ordem. O management é um discurso ferrenho que usa palavras de veludo. Sua eficácia deve-se à racionalização lexical, metodológica, relacional, na qual o sujeito é intimado a entrar. Com esses métodos que afirmam “desenvolver a pessoa”, temos de lidar com procedimentos essencialmente gerenciais e produtos plenamente comerciais, como ressalta Valérie Brunel. Seus procedimentos técnicos, seus esquemas de apresentação, sua divisão do trabalho entre técnicos e práticos, seus códigos padronizados e transferíveis, seus “modos de usar”, seus argumentos de venda, seus métodos de persuasão são diferentes aspectos de uma “tecnologia” humana pensada como tal e vendida como produto de marca de consumo em grande escala. Produtos intelectuais sofisticados para dar a entender que se trata de produtos de alto valor agregado, que fazem jus ao preço que têm, são também ferramentas de uso simples e resultados rápidos.

Aliás, essa gestão de si é objeto de um comércio intenso, que mobiliza grandes máquinas oligopolistas e pequenos artesãos em busca de um lugar no mercado do “desenvolvimento pessoal”. Essa expansão comercial não é motivo para espanto. Não devemos nos esquecer de que essas técnicas de gestão de si visam a uma “transformação” de toda a pessoa, em todos os domínios de sua vida. E isso por pelo menos duas razões complementares. Todos os domínios da vida individual tornam-se potencialmente “recursos” indiretos para a empresa, já que são uma oportunidade para o indivíduo melhorar seu desempenho pessoal; todos os domínios da existência são da competência da gestão de si. Portanto, toda a subjetividade, e não apenas o “homem no trabalho”, é convocada para esse modo de gestão, mais ainda na medida em que a empresa seleciona e avalia de acordo com critérios cada vez mais “pessoais”, físicos, estéticos, relacionais e comportamentais.

Risco: uma dimensão de existência e um estilo de vida imposto

O novo sujeito é visto como proprietário de “capital humano”, capital que ele precisa acumular por escolhas esclarecidas, amadurecidas por um cálculo responsável de custos e benefícios. Os resultados obtidos na vida são fruto de uma série de decisões e esforços que dependem apenas do indivíduo e não implicam nenhuma compensação em caso de fracasso, exceto as previstas nos contratos de seguro privado facultativo. A distribuição dos recursos econômicos e das posições sociais é vista exclusivamente como consequência de percursos, bem-sucedidos ou não, de realização pessoal. Em todas as esferas de sua existência, o sujeito empresarial é exposto a riscos vitais, dos quais ele não pode se esquivar, e a gestão desses riscos está ligada a decisões estritamente privadas. Ser empresa de si mesmo pressupõe viver inteiramente em risco. Aubrey estabelece uma correlação estreita entre ambos: “O risco faz parte da noção de empresa de si mesmo”; “a empresa de si mesmo é reatividade e criatividade num universo em que não se sabe como será o dia de amanhã”[51].

Essa dimensão não é nova. Há muito tempo a lógica de mercado foi associada ao perigo das vendas fracas, das perdas, da falência. A problemática do risco é inseparável dos “riscos do mercado”, dos quais desde a Idade Média era necessário saber se proteger por meio de técnicas de garantia. A novidade reside na universalização de um estilo de existência econômica que era reservado aos empreendedores. No alvorecer do século XVIII, o financista e fisiocrata Richard Cantillon estabeleceu como princípio “antropológico” a necessidade de distinguir os “homens de renda certa” dos “homens de renda incerta”, isto é, os “empreendedores”:

"Por todas essas induções e uma infinidade de outras que se poderia fazer sobre uma matéria que tem como objeto todos os habitantes de um Estado, pode-se estabelecer que, exceto o príncipe e os proprietários de terra, todos os habitantes de um Estado são dependentes; que estes podem dividir-se em duas classes, a saber, empreendedores e empregados; e que os empreendedores têm renda incerta, e todos os outros têm renda certa, enquanto gozarem dela, embora suas funções e suas posições sejam muito desproporcionais. O general que tem uma remuneração, o cortesão que tem uma pensão e o criado que tem um salário entram todos nessa última categoria. Todos os outros são empreendedores, quer por se estabelecerem com um fundo para tocar sua empresa, quer por serem empreendedores de seu próprio trabalho sem nenhum fundo, e por se poder considerar que vivem na incerteza; mesmo os patifes e os ladrões são empreendedores dessa classe.[52]"

Hoje, todos os indivíduos deveriam ter “renda incerta”, inclusive “patifes e ladrões”. Esse é o teor das estratégias políticas ativamente encorajadas pelo patronato. Aliás, a oposição entre dois tipos de homens, os “riscófilos”, dominantes corajosos, e os “riscófobos”, dominados temerosos, foi consagrada por dois teóricos ligados ao patronato francês: François Ewald e Denis Kessler [53]. Esses autores afirmavam que toda “refundação social” pressupunha a transformação do maior número de indivíduos em “riscófilos”. Alguns anos mais tarde, Laurence Parisot, líder do patronato francês, diria de maneira mais direta: “A vida, a saúde e o amor são precários, por que o trabalho escaparia dessa lei?”[54]. Devemos entender por essa declaração que as leis positivas deveriam curvar-se a essa nova “lei natural” da precariedade. Esse discurso dá ao risco uma dimensão ontológica, gêmea do desejo que move cada um de nós. Obedecer ao próprio desejo é correr riscos[55].

No entanto, se desse ponto de vista “viver na incerteza” aparece como um estado natural, as coisas aparecem com uma feição muito diferente quando são situadas no terreno das práticas efetivas. Quando se fala em “sociedades de risco”, é preciso esclarecer do que se trata. O Estado social tratou sob a forma de seguro social obrigatório alguns riscos profissionais ligados à condição de assalariado. Hoje, a produção e a gestão dos riscos obedecem a uma lógica muito diferente. Trata-se, na realidade, de uma criação social e política de riscos individualizados que podem ser geridos não pelo Estado social, mas por empresas – cada vez mais poderosas e numerosas – que propõem serviços estritamente individuais de “gestão de riscos”. O “risco” tornou-se um setor comercial, na medida em que se trata de produzir indivíduos que poderão contar cada vez menos com formas de ajuda mútua de seus meios de pertencimento e com os mecanismos públicos de solidariedade. Do mesmo modo e ao mesmo tempo que se produz o sujeito de risco, produz-se o sujeito da assistência privada. A maneira como os governos reduzem a cobertura socializada dos gastos com doenças ou aposentadoria, transferindo sua gestão para empresas de seguro privado, fundos comuns e associações mutualistas intimados a funcionar segundo uma lógica individualizada, permite estabelecer que se trata de uma verdadeira estratégia.

Aliás, a nosso ver, é isso que deve ser retido dos trabalhos de Ulrich Beck e da Sociedade de risco. Para ele, o capitalismo avançado destrói a dimensão coletiva da existência: destrói não só as estruturas tradicionais que o precederam, sobretudo a família, mas também as estruturas que ajudou a criar, como as classes sociais. Assistimos a uma individualização radical que faz com que todas as formas de crise social sejam percebidas como crises individuais, todas as desigualdades sejam atribuídas a uma responsabilidade individual. A maquinaria instaurada “transforma as causas externas em responsabilidades individuais e os problemas ligados ao sistema em fracassos pessoais”[56]. O que Beck chama de “agentes de sua própria subsistência mediada pelo mercado” são os indivíduos “liberados” da tradição e das estruturas coletivas, liberados dos estatutos que lhes atribuíam um lugar. Hoje, esses seres “livres” devem “autorreferenciar-se”, isto é, dar-se referências sociais e adquirir um valor social à custa de uma mobilidade social e geográfica sem limite determinado. Apesar de essa individualização pelo mercado não ser novidade, Beck mostra que ela se radicalizou. O “Estado de bem-estar” teve um papel ambíguo nisso, contribuindo para a substituição das estruturas comunitárias por “guichês” de auxílio social. Seus dispositivos tiveram um papel importante na constituição de “riscos sociais” cuja cobertura, logicamente, era “socializada”. No entanto, seus modos de financiamento, assim como seus princípios de distribuição, registravam factualmente que esses “riscos sociais” estavam ligados ao funcionamento da economia e da sociedade, tanto em suas causas (o desemprego) como em seus possíveis efeitos (o estado de saúde da mão de obra).

A nova norma em matéria de risco é a da “individualização do destino”. A extensão do “risco” coincide com uma mudança em sua natureza. Esse risco é cada vez menos “risco social”, assumido por determinada política do Estado social, e cada vez mais “risco ligado à existência”. Em virtude do pressuposto da responsabilidade ilimitada do indivíduo, da qual se falou antes, o sujeito é considerado responsável tanto por esse risco como pela escolha de sua cobertura. Encontramos aqui a ideia de que o indivíduo deve mostrar-se “ativo”, ser “gestor” de seus riscos; assim, consequentemente convém que suscite e alimente uma atitude ativa em questão de emprego, saúde e educação. Para certos teóricos do novo rumo, como Ewald, essa sociedade do risco individual pressupõe uma “sociedade de informação” – o papel dos poderes públicos e das empresas deveria consistir em fornecer informações confiáveis sobre o mercado de trabalho, o sistema educacional, os direitos dos doentes etc.[57].

Isso significa ver uma complementaridade ideológica entre a norma de mercado baseada na “livre escolha” do sujeito racional e a “transparência” do funcionamento social, condição necessária para uma escolha ótima. Mas significa, sobretudo, instaurar um mecanismo que identifica o compartilhamento da informação e o compartilhamento do risco: a partir do momento que se supõe que o indivíduo tem condições de acessar as informações necessárias para sua escolha, deve-se supor que ele se torna plenamente responsável pelos riscos envolvidos. Em outras palavras, a implantação de um dispositivo informacional de tipo comercial ou legal permite uma transferência do risco para o doente que “escolhe” determinado tratamento ou operação, para o estudante ou o “desempregado” que “escolhem” certo curso de formação, o futuro aposentado que “escolhe” uma modalidade de poupança, o turista que aceita as condições do percurso etc. Compreende-se, então, como a instauração de indicadores e “rankings” faz parte da ampliação do modo de subjetivação neoliberal: qualquer decisão, seja médica, escolar, seja profissional, pertence de pleno direito ao indivíduo. O que, devemos lembrar, tem certa ressonância no indivíduo, na medida em que ele aspira controlar o curso de sua vida, suas uniões, sua reprodução e sua morte. Mas essa ética “individualista” é tratada como uma oportunidade de jogar todos os custos nas costas do sujeito, por mecanismos de transferência do risco que não têm nada de “natural”. No fundo, a estratégia consiste em partir da aspiração à decisão pessoal na questão da escolha de vida e reinterpretar o conjunto dos riscos como escolhas de vida. Aubrey formulou bem esse desvio: “O risco tornou-se um microrrisco personalizado: a partir do momento que tenho um trabalho, esse trabalho tem riscos; a partir do momento que tenho saúde, essa saúde tem riscos; a partir do momento que tenho relações conjugais, esse casamento tem riscos”[58].

“Accountability”

A novidade do governo empresarial reside no caráter geral, transversal e sistemático do modo de direção baseado na responsabilidade individual e no autocontrole. A responsabilidade não é considerada uma faculdade adquirida de uma vez por todas, mas vista como resultado de uma interiorização de coerções. O indivíduo deve governar-se a partir de dentro por uma racionalização técnica de sua relação consigo mesmo. Ser “empreendedor de si mesmo” significa conseguir ser o instrumento ótimo de seu próprio sucesso social e profissional. Mas contar apenas com a tecnologia do “training” e do “coaching” não é suficiente. A instauração de técnicas de auditoria, vigilância e avaliação visa a aumentar essa exigência de controle de si mesmo e bom desempenho individual. Embora os coachs de subjetividades eficazes visem a fazer de cada indivíduo um “especialista de si mesmo”[59], o essencial, como bem notou Éric Pezet, é fabricar o homem accountable [responsável]. As técnicas de produção do eu produtivo estão intimamente ligadas a esse modo de controle como momentos preparatórios ou sequências reparadoras.

Se seguirmos os diferentes sentidos do termo inglês em uso, significa que o indivíduo deve ser responsável por si mesmo, responder por seus atos diante dos outros e ser inteiramente calculável. Como diz Pezet: “a ‘responsabilização’ dos indivíduos não os torna apenas responsáveis: eles devem responder por seu comportamento a partir de escalas de medida dadas pelos serviços de gestão de recursos humanos e pelos administradores” [60]. A “avaliação” tornou-se o primeiro meio de orientar a conduta pelo estímulo ao “bom desempenho” individual. Ela pode ser definida como uma relação de poder exercida por superiores hierárquicos encarregados da expertise dos resultados, uma relação cujo efeito é uma subjetivação contábil dos avaliados. Uma vez que o sujeito aceita ser julgado com base nessas avaliações e sofrer as consequências, ele se torna constantemente avaliável, isto é, um sujeito que sabe que depende de um avaliador e das ferramentas empregadas por ele, sobretudo porque ele mesmo foi educado para reconhecer de antemão a competência do avaliador e a validade das ferramentas.

O sujeito neoliberal, portanto, não é o sujeito benthamiano. Este último, como sabemos, é governável pelo cálculo, porque é calculista. Ora, não se trata mais, como no utilitarismo clássico, de dispor de um quadro legal e de um conjunto de medidas de “legislação indireta” conhecidos de todos para que o indivíduo calcule melhor; trata-se de empregar instrumentos muito mais próximos do indivíduo (superior imediato), mais constantes (resultados contínuos da atividade) e mais objetiváveis (medidas quantitativas levantadas por registro informatizado).

O sujeito neoliberal não é mais exatamente aquele homem situável nos sistemas administrativos de classificação, distribuível em categorias de acordo com critérios qualitativos, repartível nas células das tabelas exaustivas da burocracia industrial pública e privada. O antigo “homem da organização” era guiado pelo cálculo que fazia de seus interesses de acordo com um plano de carreira relativamente previsível, em função de seu status, de seus diplomas e de seu lugar numa grade de qualificações. O antigo sistema de julgamento burocrático baseava-se na probabilidade estatística de um elo entre a posição do indivíduo na classificação e sua eficácia pessoal. Tudo isso muda quando se deixa de querer prejulgar a eficácia do sujeito por títulos, diplomas, status, experiência acumulada, ou seja, a posição que ele ocupa numa classificação, porque passa-se a confiar na avaliação mais fina e regular de suas competências postas efetivamente em prática a todo instante. O sujeito não vale mais pelas qualidades estatutárias que lhe foram reconhecidas durante sua trajetória escolar e profissional, mas pelo valor de uso diretamente mensurável de sua força de trabalho. Vemos, então, que o modelo humano da empresa de si mesmo é requerido nesse modo de poder que deseja impor um regime de sanção homólogo ao do mercado.

O ideal – que constitui como que o modelo dessa atividade de avaliação, inclusive nos setores mais distantes da prática financeira, como saúde mental, educação, serviços de cuidado à pessoa e justiça – consistiria em poder avaliar os ganhos produzidos por cada equipe ou indivíduo considerados responsáveis pelo valor acionário produzido pela atividade que realizam[61]. A transposição da auditoria a que estão sujeitos os “centros de resultados” da empresa ao conjunto das atividades econômicas, sociais, culturais e políticas envolve uma verdadeira lógica de subjetivação financeira dos assalariados. Todo produto torna-se um “objeto financeiro”, e o próprio sujeito é instituído como um criador de valor acionário, responsável perante os acionistas[62].

Tudo indica que a principal mudança introduzida pela avaliação é de ordem subjetiva. Enquanto as novas tecnologias orientadas para a produção da “empresa de si mesmo” pareciam responder a uma aspiração dos assalariados a mais autonomia no trabalho, a tecnologia avaliativa aumenta a dependência em relação à “cadeia administrativa”. Obrigado a realizar “seu” objetivo, o sujeito da avaliação é igualmente constrangido a impor ao outro (subordinado, cliente, paciente ou aluno) as prioridades da empresa. É o atendente dos Correios que tem de aumentar as vendas de determinado “produto”, exatamente do mesmo modo que qualquer consultor financeiro bancário, mas é também o médico que deve ora prescrever “ações” rentáveis, ora liberar leitos o mais rápido possível. Uma das consequências mais seguras é, sem dúvida, que as “transações” ganham cada vez mais espaço em detrimento das “relações”, a instrumentalização do outro ganha importância em detrimento de todos os outros modos possíveis de relação com o outro. Contudo, mais fundamentalmente, essa mudança se deve à forma como os sujeitos são intimados a participar ativamente de um dispositivo muito diferente do dispositivo característico da era industrial. A técnica de si mesmo é uma técnica de bom desempenho num campo concorrencial. Ela não visa apenas à adaptação e à integração, ela visa à intensificação do desempenho.

O novo dispositivo “desempenho/gozo”

Não compreenderíamos a extensão do desdobramento da racionalidade neoliberal, ou as formas de resistência encontradas por ela, se a víssemos como imposição de uma força mecânica sobre uma sociedade e indivíduos da qual eles seriam pontos de aplicação externos. O poder dessa racionalidade, como vimos, deve-se à instauração de situações que forçam os sujeitos a funcionar de acordo com os termos do jogo imposto a eles. Mas o que é funcionar como uma empresa num contexto de situação de concorrência? Em que medida isso nos leva a um “novo sujeito”? Abordaremos aqui apenas alguns dos elementos que compõem o dispositivo de desempenho/gozo e mostram diretamente sua novidade em relação ao dispositivo industrial de eficácia.

O novo sujeito é o homem da competição e do desempenho. O empreendedor de si é um ser feito para “ganhar”, ser “bem-sucedido”. O esporte de competição, mais ainda que as figuras idealizadas dos dirigentes de empresa, continua a ser o grande teatro social que revela os deuses, os semideuses e os heróis modernos[63]. Embora date do início do século XX e tenha se mostrado perfeitamente compatível tanto com o fascismo e o comunismo soviético como com o fordismo, o culto ao esporte sofreu uma mudança importante quando se introduziu a partir de dentro nas práticas mais diversas, não só por empréstimo de determinado léxico, mas também, de forma ainda mais decisiva, pela lógica do desempenho, que altera seu significado subjetivo. Isso é verdadeiro para o mundo profissional, mas é verdadeiro também para muitos outros campos, como, por exemplo, a sexualidade. As práticas sexuais, no imenso discurso “psicológico” que hoje as analisa, estimula e enche de conselhos de todos os tipos, tornam-se exercícios pelos quais cada um de nós é levado a confrontar-se com a norma do desempenho socialmente exigido: número e duração das relações, qualidade e intensidade dos orgasmos, variedade e atributos dos parceiros, número e tipos de posições, estimulação e conservação da libido em todas as idades tornam-se objeto de pesquisas detalhadas e recomendações precisas. Como mostrou Alain Ehrenberg, o esporte tornou-se, sobretudo a partir dos anos 1980, um “princípio de ação para todos os lados”, e a competição, um modelo de relação social[64]. O “coaching” é a marca e ao mesmo tempo o meio dessa analogia constante entre esporte, sexualidade e trabalho[65]. Foi esse modelo, talvez mais do que o discurso econômico sobre a competitividade, que permitiu “naturalizar” esse dever de bom desempenho e difundiu nas massas certa normatividade centrada na concorrência generalizada. No dispositivo em questão, a empresa se identifica com os campeões, os quais patrocina e dos quais explora a imagem, e o mundo do esporte, como bem sabemos, torna-se um laboratório do business sem constrangimentos. Os esportistas são encarnações perfeitas do empreendedor de si, que não hesitam um instante sequer em se vender a quem pagar mais, sem muitas considerações a respeito da lealdade e da fidelidade. Mais ainda, o cuidado com o corpo, o aprimoramento de si mesmo, a procura de sensações fortes, o fascínio pelo “extremo”, a preferência pelo lazer ativo e a superação idealizada dos “limites” indicam que o modelo esportivo não se reduz ao espetáculo recreativo de “poderosos” devorando uns aos outros. Alguns jogos televisivos, os chamados “reality TV”, também ilustram essa “luta pela vida”, em que apenas os mais espertos e, com frequência, os mais cínicos conseguem “sobreviver” (Survivor, e sua versão francesa Koh Lanta), reativando num contexto muito diferente o mito de Robinson Crusoé e a “sobrevivência dos mais aptos” em situações de perigo extraordinárias. Esse tipo de “robinsonada” contemporânea radicaliza a nova norma social, mas mostra à perfeição um imaginário em que desempenho e gozo são indissociáveis.

O sujeito neoliberal é produzido pelo dispositivo “desempenho/gozo”. Inúmeros trabalhos enfatizam o caráter paradoxal da situação subjetiva. Os sociólogos multiplicam os “oximoros” para tentar dizer do que se trata: “autonomia controlada”, “comprometimento coagido”[66]. No entanto, todas essas expressões pressupõem um sujeito exterior e anterior à relação ­ específica de poder que o constitui precisamente como sujeito governado. Quando poder e liberdade subjetiva não são mais contrapostos, quando se estabelece que a arte de governar não consiste em transformar um sujeito em puro objeto passivo, mas conduzir um sujeito a fazer o que aceita querer fazer, a questão se apresenta sob uma nova luz. O novo sujeito não é mais apenas o do circuito produção/poupança/consumo, típico de um período consumado do capitalismo. O antigo modelo industrial associava – não sem tensão – o ascetismo puritano do trabalho, a satisfação do consumo e a esperança de um gozo tranquilo dos bens acumulados. Os sacrifícios aceitos no trabalho (a “desutilidade”) eram comparados com os bens que poderiam ser adquiridos graças à renda (a “utilidade”). Como lembramos antes, Daniel Bell mostrou a tensão cada vez mais forte entre essa tendência ascética e esse hedonismo do consumo, uma tensão que, segundo ele, chegou ao ápice nos anos 1960. Ele entreviu, sem ter ainda condições de observar, a resolução dessa tensão num dispositivo que ia identificar o desempenho ao gozo e cujo princípio é o do “excesso” e da “autossuperação”. Não se trata mais de fazer o que se sabe fazer e consumir o que é necessário, numa espécie de equilíbrio entre desutilidade e utilidade. Exige-se do novo sujeito que produza “sempre mais” e goze “sempre mais” e, desse modo, conecte-se diretamente com um “mais-de-gozar” que se tornou sistêmico[67]. A própria vida, em todos os seus aspectos, torna-se objeto dos dispositivos de desempenho e gozo.

Esse é o duplo sentido de um discurso gerencial que faz do bom desempenho um dever e de um discurso publicitário que faz do gozo um imperativo. Ressaltar apenas a tensão entre ambos seria esquecer tudo o que estabelece certa equivalência entre o dever do bom desempenho e o dever do gozo, seria subestimar o imperativo do “sempre mais” que visa a intensificar a eficácia de cada sujeito em todos os domínios: escolar e profissional, mas também relacional, sexual etc. “We are the champions” [Nós somos os campeões] – esse é o hino do novo sujeito empresarial. Da letra da música, que a sua maneira anuncia o novo curso subjetivo, devemos guardar sobretudo esta advertência: “No time for losers” [Não há tempo para perdedores]. A novidade é justamente que o loser é o homem comum, aquele que perde por essência.

De fato, a norma social do sujeito mudou. Não é mais o equilíbrio, a média, mas o desempenho máximo que se torna o alvo da “reestruturação” que cada indivíduo deve realizar em si mesmo. Não se pede mais do sujeito que seja simplesmente “conformado”, que vista sem reclamar a indumentária ordinária dos agentes da produção econômica e da reprodução social. Não só o conformismo não é mais suficiente, como se torna suspeito, na medida em que se ordena ao sujeito que “se transcenda”, que “leve os limites além”, como dizem os gerentes e os treinadores. A máquina econômica, mais do que nunca, não pode funcionar em equilíbrio e, menos ainda, com perda. Ela tem de mirar um “além”, um “mais”, que Marx identificou como “mais-valor”. Até então, essa exigência própria do regime de acumulação do capital não havia desdobrado todos os seus efeitos. Isso aconteceu quando o comprometimento subjetivo foi tal que a procura desse “além de si mesmo” tornou-se a condição de funcionamento tanto dos sujeitos como das empresas. Daí o interesse da identificação do sujeito como empresa de si mesmo e capital humano: a extração de um “mais-de-gozar”, tirado de si mesmo, do prazer de viver, do simples fato de viver, é que faz funcionar o novo sujeito e o novo sistema de concorrência. Em última análise, subjetivação “contábil” e subjetivação “financeira” definem uma subjetivação pelo excesso de si em si ou, ainda, pela superação indefinida de si. Consequentemente, aparece uma figura inédita da subjetivação. Não uma “trans-subjetivação”, o que implicaria mirar um além de si mesmo que consagraria um rompimento consigo mesmo e uma renúncia de si mesmo. Tampouco uma “autossubjetivação” pela qual se procuraria alcançar uma relação ética consigo mesmo, independentemente de qualquer outra finalidade, de tipo político ou econômico[68]. De certa forma, trata-se de uma “ultrassubjetivação”[69], cujo objetivo não é um estado último e estável de “posse de si”, mas um além de si sempre repelido e, além do mais, constitucionalmente ordenado, em seu próprio regime, segundo a lógica da empresa e, para além, segundo o “cosmo” do mercado mundial.

Da eficácia ao desempenho

Qual é a diferença em relação ao homem econômico clássico? A alma continuou a depender do corpo, esse fundamento material de sensações, ideias, esperanças e motivações. Se pareceu por um momento que Foucault restringia o campo da disciplina ao adestramento e à gestão dos corpos, é porque os traços corporais eram os primeiros na classificação e na distribuição dos indivíduos, assim como em seu modo de gestão. A divisão do trabalho, que repartia os corpos e distribuía os gestos, de certo modo era o paradigma da gestão dos sujeitos. Todo o utilitarismo clássico era comandado por essa prevalência, até na ideia de que, pelas palavras, podia-se chegar aos móbiles das motivações. O próprio princípio de utilidade repousava na ideia de que tudo que dizia respeito à força corporal e, portanto, psíquica deveria servir ao máximo, sem nenhum resto. O corpo como dado principal deveria tornar-se integralmente útil por intermédio das disciplinas clássicas. “As disciplinas funcionam como técnicas que fabricam indivíduos úteis”, sublinha Foucault[70].

As coisas mudaram desde então. Esse “quadro natural do corpo humano” impunha limites ao gozo e ao desempenho que hoje são inaceitáveis. O corpo é produto de uma escolha, de um estilo, de uma modelagem. Cada indivíduo é responsável por seu corpo, reinventado e transformado à própria vontade. Esse é o novo discurso do gozo e do desempenho que obriga o indivíduo a dar-se um corpo tal que ele possa ir sempre além de suas capacidades atuais de produção e prazer. Esse é o mesmo discurso que iguala cada um de nós diante das novas obrigações: nenhuma deficiência de nascença ou de ambiente pode ser obstáculo intransponível ao comprometimento pessoal com o dispositivo geral. Por isso, essa virada somente foi possível a partir do momento em que a função “psi”, apoiada pelo discurso “psi”, foi identificada como o motor da conduta e o objeto-alvo de uma transformação possível por técnicas “psi”. Não que o sujeito neoliberal seja produto direto dessa construção, mas o discurso sobre o sujeito aproximou os enunciados psicológicos e os enunciados econômicos até quase fundi-los. Esse sujeito é, na realidade, um efeito compósito, como era o indivíduo do liberalismo clássico. Vimos que este último era produto combinado de considerações múltiplas, de diferentes ordens (a anatomia e a fisiologia combinaram-se com a economia política e a ciência moral para lhe dar um fundamento intelectual sólido). Da mesma maneira, é pela combinação da concepção psicológica do ser humano, da nova norma econômica da concorrência, da representação do indivíduo como “capital humano”, da coesão da organização pela “comunicação”, do vínculo social como “rede”, que se construiu pouco a pouco essa figura da “empresa de si”.

Nikolas Rose mostrou em seus trabalhos, muito inspirado nas pesquisas de Foucault, que o discurso “psi”, com seu poder de expertise e sua legitimidade científica, contribuiu largamente para a definição do indivíduo governável moderno[71]. O discurso “psi”, entendido como “tecnologia intelectual”, permitiu que os indivíduos fossem conduzidos a partir de um saber relativo a sua constituição interna. Fazendo isso, formou indivíduos que aprenderam a conceber-se como seres psicológicos, a julgar-se e modificar-se por um trabalho em si mesmos, ao mesmo tempo que deu às instituições e aos governantes meios de dirigir a conduta desses indivíduos. Concebendo o sujeito como lugar de paixões, desejos e interesses, mas também de normas e julgamentos morais, pôde-se compreender como as forças psicológicas são móbiles de conduta, e como agir tecnicamente no campo psíquico por meio de sistemas adaptados de estímulo, incentivo, recompensa, punição. Todo um conjunto de técnicas de diagnóstico e “ortopedia psíquica”, no campo educacional, profissional e familiar, foi integrado ao grande dispositivo de eficácia das sociedades industriais. A ideia diretriz era a da adaptação mútua dos móbiles psicológicos e das coerções sociais e econômicas, o que nos ensinou a ver a “personalidade” e o “fator humano” como um recurso econômico pelo qual se deve “zelar”.

A psicologização das relações sociais e a humanização do trabalho caminharam durante muito tempo de mãos dadas, com as melhores das intenções. Ergonomistas, sociólogos e psicossociólogos quiseram dar uma resposta à aspiração dos trabalhadores a viver melhor no trabalho e até mesmo a encontrar prazer nele. Ao mesmo tempo, a dimensão subjetiva tornou-se tanto uma realidade em si como um instrumento objetivo de sucesso da empresa. A “motivação” no trabalho apareceu, então, como o princípio de uma nova maneira de conduzir os homens no trabalho, mas também os alunos nas escolas, os doentes nos hospitais e os soldados no campo de batalha. A subjetividade, feita de emoções e desejos, paixões e sentimentos, crenças e atitudes, foi vista como a chave do bom desempenho das empresas. Departamentos de recursos humanos, empresas de seleção e recrutamento e especialistas em formação puseram em ação um trabalho específico de conciliação entre a subjetividade desejante e os objetivos da empresa. Esse “humanismo” empresarial foi apoiado de fora por todos os reformistas bem-intencionados, que acreditavam que um trabalhador seguro e realizado era um trabalhador mais motivado, logo, mais eficaz. Daí a ênfase na harmonia do grupo, no “sentimento de pertencimento” e na “comunicação”, com suas virtudes terapêuticas e seu alcance persuasivo. Como observa Rose, “a democracia caminhava de mãos dadas com a produtividade industrial e a satisfação humana”[72]. Inúmeras considerações, no cruzamento da psicossociologia com o engajamento sindical e político, chegaram a ver nos efeitos do “estilo democrático da liderança” sobre a “subjetividade coletiva” argumentos científicos a favor do socialismo autogestor.

O discurso “psi”, quando cruzou com o discurso econômico, teve outros efeitos sobre a cultura cotidiana, dando uma forma científica à ideologia da escolha. Numa “sociedade aberta”, todo indivíduo tem o direito de viver como bem entende, escolher o que quiser, seguir as modas que preferir. A livre escolha não foi recebida inicialmente como uma ideologia econômica de “direita”, mas como uma norma de conduta de “esquerda”, segundo a qual ninguém pode opor-se à realização de seus desejos. Enunciados econômicos e enunciados do tipo “psi” juntaram-se para dar ao novo sujeito a forma do arbítrio supremo entre “produtos” e estilos diferentes no grande mercado dos códigos e dos valores. Foi ainda essa conjunção que deu origem a essas técnicas de si que visam ao desempenho individual por meio de uma racionalização gerencial do desejo. Mas foi outra modalidade dessa conjunção que permitiu o desenvolvimento do dispositivo de desempenho/gozo, uma modalidade que consiste não em perguntar em que medida o indivíduo e a empresa, cada qual com suas exigências próprias, podem adaptar-se um ao outro, mas como o sujeito psicológico e o sujeito da produção podem identificar-se. Para falar em termos freudianos, a questão não é mais fazer com que os indivíduos passem do princípio do prazer ao princípio da realidade – objetivo terapêutico dos partidários de uma psicanálise “adaptativa” que promete um acréscimo de “felicidade” para os mais bem adaptados[73]; a questão agora é fazer os indivíduos passarem do princípio do prazer ao além do princípio do prazer. A identificação entre os dois sujeitos distancia-se do horizonte homeostático do equilíbrio para operar na lógica da intensificação e da ilimitação. Sem dúvida, alguns dirão que a ilusão do gozo, da adaptação do sujeito e do objeto, sob a forma da “realização” e do “domínio de si mesmo”, foi mantida.

Mas o essencial não reside nisso. Desse ponto de vista, embora Rose tenha razão em propor que as técnicas “psi” e a governamentalidade própria das democracias liberais se copertençam, ele não percebe que o ideal de domínio de si mesmo não caracteriza mais a subjetividade propriamente neoliberal[74]. A liberdade tornou-se uma obrigação de desempenho. O normal não é mais o domínio e a regulação das pulsões, mas sua estimulação intensiva como principal fonte de energia. É em torno da norma da competição entre empresas de si mesmo que a fusão do discurso “psi” com o discurso econômico se opera, que as aspirações individuais e os objetivos de excelência da empresa se identificam, que, em suma, o “microcosmo” e o “macrocosmo” se harmonizam.

Evidentemente, a gestão não é a única a assegurar essa conjunção. O marketing é empuxo-ao-gozo [pousse-à-jouir] incessante e onipresente, ainda mais eficaz na medida em que promete, pela simples posse dos signos e dos objetos do “sucesso”, o impossível gozo último. Uma imensa literatura de revistas, uma enxurrada de programas de televisão, um teatro político e mediático non stop e um imenso discurso publicitário e propagandista exibem incessantemente o “sucesso” como valor supremo, sejam quais forem os meios para consegui-lo. Esse “sucesso” como espetáculo vale por si mesmo. O que ele atesta é apenas uma vontade de ser bem-sucedido, apesar dos fracassos inevitáveis, e um contentamento por tê-lo conseguido, ao menos por um breve momento da vida. Essa é a própria imagem em que se resume o dispositivo de desempenho/gozo. Desse ângulo, autoridades políticas de um tipo novo, como Silvio Berlusconi ou Nicolas Sarkozy, simbolizam o novo curso subjetivo[75].

Diagnósticos clínicos do neossujeito

Tal sujeito encontra sua verdade no veredito do sucesso, submete-se a um “jogo da verdade” em que prova seu ser e seu valor. O desempenho é, muito precisamente, a verdade tal como o poder gerencial a define. Esse dispositivo de conjunto produz efeitos patológicos aos quais ninguém escapa completamente. Através da abundante literatura clínica contemporânea, podemos distinguir alguns sintomas. Eles têm um ponto em comum: podem se referir ao definhamento dos quadros institucionais e das estruturas simbólicas nos quais os sujeitos encontravam seu lugar e sua identidade. Esse definhamento é uma consequência direta da substituição manifesta e geral da instituição pela empresa ou, mais exatamente, da mutação da instituição em empresa. Hoje é a empresa que tende a ser a principal instituição distribuidora de regras, categorias e proibições legítimas; é também como empresa que qualquer instituição tem legitimidade para estabelecer regras e identidades sociais; enfim, é à maneira da empresa, segundo a lógica da eficácia e da competição, que toda instituição participa da normatividade.

O paradoxo em torno do qual gira o diagnóstico clínico é que as instituições que distribuem os lugares, determinam as identidades, estabilizam as relações e impõem os limites são cada vez mais regidas por um princípio de superação contínua dos limites, um princípio que a neogestão tem o encargo de pôr em prática. O “mundo sem limites” não está ligado a um retorno à “natureza”: ele tem o efeito de um regime institucional particular que vê todo limite como potencialmente já superado. Longe do modelo de um poder central que comandaria remotamente os sujeitos, o dispositivo de desempenho/gozo distribui-se em mecanismos diversificados de controle, avaliação e incentivo e participa de todas as engrenagens da produção, de todos os modos de consumo, de todas as formas de relações sociais.

Nós nos propomos estabelecer aqui um quadro de conjunto dos diagnósticos feitos pela clínica médica ainda em desenvolvimento.

Sofrimento no trabalho e autonomia contrariada

Os efeitos da gestão por meio de objetivos e projetos foram objeto de numerosas análises sociológicas e psicológicas, algumas das quais com ampla repercussão[76]. Hoje, o “estresse” e o “assédio” no trabalho são reconhecidos, em relação ao aumento dos casos de suicídio no local de trabalho, como “riscos psicossociais” dolorosos, perigosos e especialmente onerosos para os seguros coletivos[77].

Se esses sintomas se referem com frequência à intensificação do trabalho, ela mesma ligada aos fluxos tensos e às consequências perversas da redução do tempo de trabalho sob exigências de produtividade, patologias mentais como o estresse têm relação com a individualização da responsabilidade na realização dos objetivos. Hoje, mais do que antes, o assalariado, sozinho diante de tarefas impossíveis ou duplas injunções, corre o risco de perder a consideração de chefes ou colegas. O enfraquecimento dos coletivos de trabalho reforça esse isolamento. A intensificação dos controles põe em questão o “jogo social” dentro da organização, isto é, a margem de liberdade que é dada pela relação salarial e que dá sentido ao trabalho, da mesma forma que contraria a aspiração dos assalariados a uma maior autonomia real[78]. O risco profissional, hoje normal, põe o indivíduo numa situação de vulnerabilidade constante, que os manuais de gestão interpretam positivamente como um estado de exaltação e enriquecimento (“uma prova que nos faz crescer”). Quando o sujeito empresarial vincula seu narcisismo ao sucesso de si mesmo conjugado com o da empresa, num clima de guerra concorrencial, o menor “revés do destino” pode ter efeitos extremamente violentos. A gestão neoliberal da empresa, interiorizando a coerção de mercado, introduz a incerteza e a brutalidade da competição e faz os sujeitos assumi-las como um fracasso pessoal, uma vergonha, uma desvalorização.

As contradições da nova organização do trabalho, atestadas pelos oximoros sociológicos citados anteriormente (“comprometimento coagido”, “coerção flexível” etc.), apenas reforçam as decepções profissionais e impedem qualquer possibilidade de conflito aberto e coletivo. Uma vez que a equipe e o indivíduo aceitam entrar na lógica da avaliação e da responsabilidade, não pode mais haver contestação legítima, pelo próprio fato de que é por autocoerção que o sujeito realiza o que se espera dele[79]. Em todo caso, o sujeito no trabalho parece mais vulnerável na medida em que a gestão exige dele um comprometimento integral de sua subjetividade[80]. Um dos paradoxos do novo poder gerencial, que exige esse comprometimento, é, sem dúvida, a deslegitimação do conflito acarretado pelo próprio fato de que as exigências são “sem sujeito”, não têm autor ou fonte identificável, são consideradas integralmente objetivas. O conflito social é impedido porque o poder é ilegível. É isso, sem dúvida, que explica uma parte dos novos sintomas de “sofrimento psíquico”.

Corrosão da personalidade

Na linha direta das observações de Marcel Mauss sobre o caráter histórico e cultural da pessoa, muitos sociólogos deram ênfase à “liquidez”, à “fluidez” ou à “evanescência” das personalidades contemporâneas. Para Richard Sennett, a organização flexível, apresentada às vezes como uma oportunidade para o indivíduo moldar livremente sua vida, na realidade abala o “caráter” e corrói tudo que existe de estável na personalidade: os laços com os outros, os valores e as referências[81]. O tempo da vida é cada vez menos linear, cada vez menos programável. Sob esse ponto de vista, o sinal mais tangível da nova normatividade é que “em longo prazo não existe”[82]. O trabalho não oferece mais um quadro estável, uma carreira previsível, um conjunto de relações pessoais sólido. Instabilidade dos “projetos” e das “missões”, variação contínua das “redes de contatos” e das “equipes” – o mundo profissional torna-se uma soma de “transações” pontuais, em vez de relações sociais implicando um mínimo de lealdade e fidelidade. O que tem necessariamente um impacto sobre a vida privada, a organização familiar, a representação de si mesmo: “O capitalismo do curto prazo ameaça corroer [...] o caráter, em particular os traços de caráter que unem os seres humanos uns aos outros e dão a cada indivíduo um sentimento durável de seu eu”[83]. Em especial, o assalariado não encontra mais apoio na experiência que acumulou durante a sua vida profissional.

Essa tendência a considerar somente as competências imediatamente utilizáveis explica sua rápida obsolescência, como a exclusão dos “seniors” da vida profissional. Ela tem uma relação complexa com a representação da vida como “capital humano” que se preserva através dos tempos. Na realidade, esse capital humano está sujeito ao mesmo risco de desvalorização que o capital técnico, o que acaba afetando profundamente os indivíduos que, com a idade, veem-se confrontados com o sentimento deprimente de sua inutilidade social e econômica. Os princípios práticos são claramente enunciados na pesquisa que Sennett realizou com os assalariados: “A gente tem de começar sempre tudo de novo”, “a gente tem sempre de mostrar nosso valor”, de “começar sempre do zero”. O efeito é múltiplo: uma usura profissional acelerada e um “caos” relacional e psíquico. A nova personalidade? “Um eu maleável, uma colagem de fragmentos em perpétuo devir, sempre aberto à experiência nova”, segundo Sennett[84].

Desmoralização

Vimos antes que a neogestão tende a controlar comportamentos e atitudes, solicitando um esforço constante de autocoerção[85]. Essa “ascese” a serviço do desempenho da empresa, combinada com uma avaliação regular dos assalariados dentro da “cadeia gerencial”, normatiza as condutas, ao mesmo tempo que demole os engajamentos dos sujeitos uns com os outros. Relações, sentimentos e afetos positivos são mobilizados em nome da eficácia. Eva Illouz ressalta como o espaço da empresa e do consumo é saturado de sentimentos instrumentalizados pelas estratégias econômicas[86]. A importância do tema das “emoções” em cursos e testes (capital emocional, inteligência emocional, competências emocionais) remete a essa obrigação de bem-estar e amor, que necessariamente introduz uma dúvida permanente sobre a sinceridade dos sentimentos demonstrados.

A corrosão dos laços sociais traduz-se pelo questionamento da generosidade, da fidelidade, da lealdade, da solidariedade, de tudo o que faz parte da reciprocidade social e simbólica nos locais de trabalho. Como a principal qualidade que se espera do indivíduo contemporâneo é a “mobilidade”, a tendência ao desapego, e à indiferença que dele resulta, isso acaba contrariando os esforços para exaltar o “espírito de equipe” e fortalecer a “comunidade da empresa”. Mas essa valorização do teamwork dentro da nova organização do trabalho não tem nada a ver com a constituição de uma solidariedade coletiva: equipes de geometria variável são estritamente operacionais e funcionam em relação a seus membros como uma alavanca para levar a contento os objetivos determinados. Mais amplamente, a ideologia do sucesso do indivíduo “que não deve nada a ninguém”, a ideologia do self-help, destrói o vínculo social, na medida em que este repousa sobre deveres de reciprocidade para com o outro. Como manter juntos sujeitos que não devem nada a ninguém? Provavelmente a desconfiança, ou mesmo o rancor, em relação aos maus pobres, aos preguiçosos, aos velhos dependentes e aos imigrantes, tem um efeito de “cola” social. Mas ela também tem seu reverso, se todos se sentem ameaçados de um dia se tornarem ineficazes e inúteis.

Depressão generalizada

O homem de fluxos tensos, que vive no ritmo da economia financeira, está sujeito a crashes pessoais[87]. Para Alain Ehrenberg, o culto do desempenho leva a maioria das pessoas a provar sua insuficiência e conduz a formas depressivas em grande escala. É notório que o diagnóstico de “depressão” se multiplicou por sete de 1979 a 1996, uma verdadeira doença de “fin-de-siècle”, como foi a “neurastenia”[88]. A depressão é, na verdade, o outro lado do desempenho, uma resposta do sujeito à injunção de se realizar e ser responsável por si mesmo, de se superar cada vez mais na aventura empresarial[89]. “O indivíduo é confrontado mais com uma patologia da insuficiência do que com uma doença da falta, mais com o universo da disfunção do que com o da lei: o depressivo é um homem em pane”[90]. O sintoma depressivo já faz parte da normatividade como elemento negativo desta última – o sujeito que não aguenta a concorrência pela qual pode entrar em contato com os outros é um ser fraco, dependente, que se suspeita não estar “à altura do desafio”. O discurso da “realização de si mesmo” e do “sucesso de vida” leva a uma estigmatização dos “fracassados”, dos “perdidos” e dos infelizes, isto é, dos incapazes de aquiescer à norma social de felicidade. O “fracasso social” é visto, em última instância, como uma patologia[91].

Quando a empresa se torna uma forma de vida – uma Lebensführung, como diria Max Weber –, a multiplicidade de escolhas que se devem fazer dia a dia, o encorajamento a assumir riscos continuamente, a incitação permanente à capitalização pessoal podem causar com o tempo um “cansaço do si mesmo”. Um universo comercial cada vez mais complexo faz potencialmente de cada ato o resultado de uma coleta de informações e de uma deliberação que tomam tempo e exigem esforço: o sujeito neoliberal deve ser previdente em todos os domínios (seguros de todos os tipos), deve fazer escolhas em tudo como se se tratasse de um investimento (“fundo de educação”, “fundo de saúde”, “fundo de aposentadoria”), deve optar de forma racional, dentro de uma ampla gama de ofertas comerciais, ao contratar os serviços mais simples (a hora e a data da viagem que fará de trem, a forma de encaminhamento de sua correspondência, seu acesso à internet, seu fornecimento de gás e eletricidade).

O remédio mais propalado para essa “doença da responsabilidade”, essa usura provocada pela escolha permanente, é uma dopagem generalizada. O medicamento faz as vezes da instituição que não apoia mais, não reconhece mais, não protege mais os indivíduos isolados. Vícios diversos e dependências às mídias visuais são alguns desses estados artificiais. O consumo de mercadorias também faria parte dessa medicação social, como suplemento de instituições debilitadas.

Essa sintomatologia depressiva é associada com frequência a uma demanda não satisfeita de reconhecimento dirigida aos empregadores. No entanto, longe de ser ignorada, essa dimensão da dignidade, da autoestima e do reconhecimento é, como vimos, onipresente na retórica gerencial. Sem dúvida, devemos ver essa demanda como tradução de um fenômeno importante: o da relação do sujeito com instituições que não têm mais condições de dotá-lo das identidades e dos ideais que o fariam duvidar menos de seu próprio valor.

Dessimbolização

O enfraquecimento de qualquer ideal encarnado pelas instituições, essa “dessimbolização” de que falam os psicanalistas, gera, segundo alguns, uma “nova economia psíquica” que tem cada vez menos a ver com o diagnóstico clínico da época de Freud[92].

A relação entre gerações, assim como a relação entre sexos, estruturadas e transformadas em narrativas por uma cultura que distribuía os diferentes lugares, tornaram-se vagas, para dizer o mínimo. Nenhum princípio ético, nenhuma proibição parece resistir à exaltação de uma escolha infinita e ilimitada. Posto em estado de “antigravidade simbólica”, o neossujeito é obrigado a fundamentar-se em si mesmo, em nome da livre escolha, para conduzir-se na vida. Essa intimação à escolha permanente, essa solicitação de desejos pretensamente ilimitados, faz do sujeito um joguete flutuante: num dia ele é convidado a trocar de carro; no outro, de parceiro; no outro, de identidade; e no outro, de sexo, ao sabor de suas satisfações e suas insatisfações. Devemos concluir, com isso, que há uma “dessimbolização do mundo”[93]? Provavelmente seria melhor dizer que a estrutura simbólica é alvo de uma instrumentalização por parte da lógica econômica capitalista. Esse é o sentido que podemos dar ao que que Lacan chamou de “discurso capitalista”. As identificações com cargos, funções, competências próprias da empresa, assim como a identificação com grupos de consumo, sinais e marcas da moda e da publicidade, funcionam como submissões substitutivas em relação aos lugares ocupados na família ou ao status na cidade. A manipulação dessas identificações pelo aparato econômico faz delas “ideais voláteis do eu, em constante remodelação”[94]. Em outras palavras, a identidade tornou-se um produto consumível. Se, como indicava Lacan, o discurso capitalista consome tudo, e se consome tanto os recursos naturais como o material humano, também consome formas institucionais e simbólicas, como Marx já observava no Manifesto Comunista[a]. Não para fazê-las desaparecer, mas para substituí-las por aquelas que lhe copertencem: as empresas e os mercados[95].

Essa instrumentalização do simbólico pelas instituições econômicas introduz no sujeito não apenas essa “fluidez” dos ideais, mas também uma fantasia de onipotência sobre as coisas e os seres. Pelas palavras-ferramenta à disposição dos indivíduos e de seus interesses, palavras que se confundem com as próprias coisas, eles têm poder sobre tudo. O mundo das interdições e das barreiras – que instituíam a separação dos lugares sexuais e geracionais – foi substituído por um universo da quantidade – o da ciência e da mercadoria. Discurso mercantil e discurso da ciência complementam-se para constituir o que o psicanalista Jean-Pierre Lebrun chama de o “mundo sem limite”[96]. Desse modo, o sujeito é constantemente remetido a ele mesmo, levado a oscilar entre as perpétuas tentações da cobiça encorajadas pelas instâncias sociais e as interdições que ele ergue para si, na ausência de uma instância interditora confiável, amparada num ideal social. A formação do novo sujeito não toma mais os caminhos normativos da família edipiana. O pai muitas vezes não passa de um estranho, desautorizado por não estar antenado à última tendência do mercado ou não ganhar o suficiente.

Para os psicanalistas, o ponto nevrálgico é ainda o do caráter indisponível de uma figura do Outro – o plano simbólico – a fim de desligar o pequeno ser humano do desejo da mãe e fazê-lo ascender ao status de um sujeito da lei e do desejo pela mediação do Nome-do-Pai. Ora, com o enfraquecimento das instâncias religiosas e políticas, não existem mais no social outras referências comuns, a não ser o mercado e suas promessas. Em muitos aspectos, o discurso capitalista acarretaria uma psicotização de massa pela destruição das formas simbólicas. Essa era a tese de Gilles Deleuze e Félix Guattari, como lembramos anteriormente. O que é menos sabido, porém, é que essa era a tese também de Lacan. “O que distingue o discurso do capitalista é o seguinte: a Verwerfung, a rejeição, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico com aquilo que eu disse que isso tem como consequência. Rejeição de quê? Da castração.”[97] Esse mundo da onipotência, em que o sujeito sem limite é pego violentamente, já é caracterizado pela psicose de massa, com seus extremos esquizofrênicos e paranoicos? Ou ainda é preservado por modos de defesa pertencentes a outro registro, por exemplo, por uma perversão sistêmica[98]?

“Perversão comum”[99]

Para alguns psicanalistas, favorecidos por uma distância de cerca de trinta anos em relação a Lacan, nós entramos num universo em que a decepção típica do neurótico, exposto à inadequação da coisa ao desejo, é substituída por uma relação perversa com o objeto baseada na ilusão imaginária do gozo total. Tudo se equivale, tem preço e se negocia. Mas, se tudo parece possível, tudo é duvidoso, tudo é suspeito, porque nada é lei para ninguém. O fato de que tudo é transformado em negócio[100] ou a propensão à apologia constante da transgressão como nova norma seriam alguns dos indícios dessa equivalência geral. Charles Melman mostrou que o questionamento de todas as representações que impediam o trabalho da perversão manipuladora direta tem interesses comuns com uma expansão econômica que, “para se alimentar, precisa ver rompidos a timidez, o pudor, as barreiras morais, as proibições. E isso a fim de criar populações de consumidores ávidos de gozo perfeito, sem limite e viciante”[101]. A debilitação do ideal afundaria o desejo na mera inveja dos bens dos outros, na pleonexia que Hobbes já designava como a marca da sociedade de sua época. No entanto, quanto mais o ser humano envereda por esse vício em objetos mercantis, mais tende a tornar-se ele próprio um objeto que vale apenas pelo que produz no campo econômico, um objeto que será posto de lado quando tiver perdido a “performance”, quando não tiver mais uso.

Na verdade, a subjetivação neoliberal institui cada vez mais explicitamente uma relação de gozo obrigatório com todo outro indivíduo, uma relação que poderíamos chamar também de relação de objetalização. Nesse caso, não se trata simplesmente de transformar o outro em coisa – segundo um mecanismo de “reificação” ou “coisificação”, para retomarmos um tema recorrente da Escola de Frankfurt –, mas de não poder mais conceder ao outro, nem a si mesmo enquanto outro, nada além de seu valor de gozo, isto é, sua capacidade de “render” um plus. Assim definida, a objetalização apresenta-se sob um triplo registro: os sujeitos, por intermédio das técnicas gerenciais, provam seu ser enquanto “recurso humano” consumido pelas empresas para a produção de lucro; submetidos à norma do desempenho, tomam uns aos outros, na diversidade de suas relações, por objetos que devem ser possuídos, moldados e transformados para melhor alcançar sua própria satisfação; alvo das técnicas de marketing, os sujeitos buscam no consumo das mercadorias um gozo último que se afasta enquanto eles se esfalfam para alcançá-lo.

Essa lógica implacável tem um “custo” subjetivo muito alto. Se o derrotado sofre por suas insuficiências, o vencedor tende a fazer os outros sofrerem como objetos sobre os quais ele assegura seu domínio. Isso não é novidade. Contudo, uma vez instaurado um “mundo sem limite”, a pequena perversão cotidiana – ou, mais exatamente, o que existe de incentivo à perversão na situação de concorrência geral – encontra um campo inédito de expansão. A perversão que se distingue clinicamente pelo consumo de parceiros como objetos que são jogados fora assim que são considerados insuficientes teria se tornado a nova norma das relações sociais[102]. Dessa forma, o imperativo categórico do desempenho concilia-se com as fantasias de onipotência, com a ilusão socialmente difundida de um gozo total e sem limite. Segundo Melman, passaríamos, assim, de uma economia psíquica organizada pelo recalque para uma “economia organizada pela exibição do gozo”[103].

O gozo de si do neossujeito

A psicanálise pode nos ajudar a refletir sobre a maneira como funcionam os neossujeitos de acordo com o regime do gozo de si. Segundo Lacan, esse gozo de si, entendido como aspiração à plenitude impossível – nesse sentido, muito diferente do simples prazer –, apresenta-se na ordem social como sempre limitado e parcial. A instituição é, de certo modo, aquilo que tem a responsabilidade de limitar o gozo e dar sentido a esse limite. A empresa, forma geral da instituição humana nas sociedades capitalistas ocidentais, não foge a essa regra, salvo por fazer isso hoje de maneira denegada. Ela limita o gozo de si pela coerção do trabalho, da disciplina, da hierarquia, por todas as renúncias que fazem parte de certa ascese laboriosa. A perda de gozo não é menos pronunciada do que nas sociedades religiosas, mas é diferente. Os sacrifícios não são mais administrados e justificados por uma lei dada como inerente à condição humana, sob suas diferentes variedades locais e históricas, mas pela reivindicação de uma decisão individual “que não deve nada a ninguém”.

Todo um discurso social de valorização exagerada do indivíduo autoconstruído[104], funcionando como uma denegação, torna possível tal pretensão subjetiva: a perda não é realmente uma perda, uma vez que é decidida pelo próprio sujeito. Mas esse mito social, cujos efeitos sobre a educação familiar e escolar não podem mais ser negligenciados, é apenas um dos aspectos do funcionamento do neossujeito. Ele tem de concordar em entregar-se ao trabalho, em curvar-se às exigências mundanas da vida. Se é exigido dele que o faça, é enquanto empresa de si mesmo, de modo que o eu pode apoiar-se num gozo imaginário pleno num mundo completo. Cada um de nós é mestre ou, ao menos, acredita que pode sê-lo. Desse modo, gozo de si na ordem do imaginário e denegação do limite aparecem como lei da ultrassubjetivação.

Nas sociedades antigas, o sacrifício de uma parte de gozo era produtivo. As grandes construções religiosas e políticas, seus edifícios dogmáticos e arquiteturais atestam essa produção. No primeiro capitalismo, o capital acumulado era ainda um produto desse tipo, fruto das restrições impostas ao consumo tanto das classes populares como da burguesia. Para a economia política clássica, a perda era interpretada como um custo tendo em vista um benefício.

Hoje é diferente. Se a perda é denegada, a ilimitação do gozo pode ser mobilizada no plano imaginário a serviço da empresa, pega ela mesma em lógicas imaginárias de expansão infinita, de valorização sem limites na bolsa. Para isso, é claro, é necessário passar por uma racionalização técnica da subjetividade, mas será sempre para que ela “se realize”. O trabalho não é castigo, é gozo de si por intermédio do desempenho que se deve ter. Não há perda, porque é imediatamente “para si” que o indivíduo trabalha. Portanto, o objeto da denegação é o caráter heteronômico da ultrassubjetivação, isto é, o fato de que a ilimitação do gozo no além de si seja alinhada à ilimitação da acumulação mercantil.

O que distingue a nova lógica normativa é que ela não exige uma renúncia total do indivíduo em proveito de uma força coletiva invencível e de um futuro radioso, mas deseja obter uma sujeição não menos total de sua participação num jogo “ganha-ganha”, segundo a fórmula eloquente que supostamente explica a vida profissional e social. Enquanto no velho capitalismo todo mundo perdia alguma coisa (o capitalista perdia o gozo garantido de seus bens pelo risco assumido, e o proletário, a livre disposição de seu tempo e força), no novo capitalismo ninguém perde, todos ganham. O sujeito neoliberal não pode perder, porque é a um só tempo o trabalhador que acumula capital e o acionista que desfruta dele. Ser seu próprio trabalhador e seu próprio acionista, ter um desempenho sem limites e gozar sem obstáculos os frutos de sua acumulação, esse é o imaginário da condição neossubjetiva.

A espécie de desacoplamento verificado pelo diagnóstico clínico dos neossujeitos – o estado de suspensão fora dos quadros simbólicos, a relação flutuante com o tempo, as relações com os outros reduzidas a transações pontuais – não é disfuncional com relação aos imperativos do desempenho ou às novas tecnologias de rede. O essencial aqui é compreender que a ilimitação do gozo de si é, na ordem do imaginário, o exato oposto da dessimbolização. O sentimento de si é dado no excesso, na rapidez, na sensação bruta proporcionada pela agitação, o que certamente expõe o neossujeito à depressão e à dependência, mas também possibilita aquele estado “conexionista” do qual ele tira, na falta de um vínculo legítimo com uma instância outra, um apoio frágil e uma eficácia esperada. O diagnóstico clínico da subjetividade neoliberal nunca deve perder de vista que o “patológico” é parte da mesma normatividade que o “normal”.

O governo do sujeito neoliberal

Seguindo o quadro clínico do neossujeito, vemos que a empresa de si mesmo tem dois rostos: o rosto triunfante do sucesso sem pudor e o rosto deprimido do fracasso diante dos processos incontroláveis e das técnicas de normalização[105]. Oscilando entre depressão e perversão, o neossujeito é condenado a ser duplo: mestre em desempenhos admiráveis e objeto de gozo descartável.

À luz dessa análise, a apresentação cansativa que se faz repetidamente de um “individualismo hedonista” ou de um “narcisismo de massa” aparece como modo disfarçado de apelar para a restauração das formas tradicionais da autoridade. Ora, é um equívoco considerar o neossujeito à maneira dos conservadores. Ele não é em absoluto o homem do gozo anárquico “que não respeita mais nada”. É um equívoco equivalente e simétrico denunciar apenas a reificação mercantil, a alienação do consumo de massa. Obviamente, a injunção publicitária ao gozo faz parte desse universo de objetos eletivos que, pela estetização-erotização da “coisa” e pela magia da marca, constituem-se em “objetos de desejo” e promessas de gozo. Mas também convém considerar a maneira como esse neossujeito, longe de ser deixado unicamente a seus caprichos, é governado no dispositivo de desempenho/gozo.

Portanto, ver na situação presente das sociedades apenas o gozo sem obstáculos, que é identificado ora com a “interiorização dos valores de mercado”, ora com a “expansão ilimitada da democracia”, é esquecer a face sombria da normatividade neoliberal: a vigilância cada vez mais densa do espaço público e privado, a rastreabilidade cada vez mais precisa dos movimentos dos indivíduos na internet, a avaliação cada vez mais minuciosa e mesquinha da atividade dos indivíduos, a ação cada vez mais pregnante dos sistemas conjuntos de informação e publicidade e, talvez sobretudo, as formas cada vez mais insidiosas de autocontrole dos próprios sujeitos. Em resumo, é esquecer o caráter de conjunto do governo dos neossujeitos que articula, pela diversidade de seus vetores, a exposição obscena do gozo, a injunção empresarial do desempenho e da reticulação da vigilância generalizada.

Do ponto de vista das antigas estruturas, certamente pode parecer que nada mais “segura” o sujeito. Esse erro de perspectiva já era cometido pelos conservadores do século XIX. Eles viam os “direitos do homem” apenas como advento da anarquia social. A mutação das sociedades ocidentais era interpretada como uma crise das autoridades tradicionais, que só poderia ser superada pela restauração dos valores do Antigo Regime. Significava desconhecer as novas formas de coerção que cerceavam os sujeitos das sociedades industriais, ligadas ao trabalho e a sua divisão técnica e social. Em uma palavra, significava desconhecer o novo regime moral e político das sociedades capitalistas da época.

Um desconhecimento análogo está em curso hoje, impedindo a compreensão da relação entre as condutas dos neossujeitos (inclusive as manifestações de comportamento desviante e mal-estar, os modos de resistência e fuga) e todas as formas de controle e vigilância que são exercidas sobre eles. Assim, é inútil lamentar a crise das instituições de enquadramento, como família, escola, organizações sindicais ou políticas, ou chorar a decadência da cultura e do saber ou o declínio da vida democrática. É melhor tentar compreender como todas essas instituições, valores e atividades são hoje incorporados e transformados no dispositivo de desempenho/gozo, em nome de sua necessária “modernização”; é melhor examinar de perto todas as tecnologias de controle e vigilância de indivíduos e populações, sua medicalização, o fichar, o registro de seus comportamentos, inclusive os mais precoces; é melhor analisar como disciplinas médicas e psicológicas se articulam com o discurso econômico e com o discurso sobre segurança pública para reforçar os instrumentos da gestão social. Porque, do dispositivo de governo dos neossujeitos, nada ainda foi definitivamente estabelecido. Os impulsos são diversos, não faltam ciências candidatas e suas fusões estão em curso ou se farão no futuro[106]. A questão central que se coloca ao governo dos indivíduos é saber como programar os indivíduos o quanto antes para que essa injunção à superação ilimitada de si mesmo não descambe em comportamentos excessivamente violentos e explicitamente delituosos; é saber como manter uma “ordem pública” quando é preciso incitar os indivíduos ao gozo, evitando ao mesmo tempo a explosão da desmedida. A “gestão social do desempenho” corresponde precisamente a esse imperativo governamental.

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[1] Se nos detivéssemos no assunto, poderíamos mostrar que Lacan indicou várias vezes em seus escritos e seminários a importância da virada utilitarista na história ocidental. Ver, por exemplo, Jacques Lacan, Écrits (Paris, Seuil, 1966), p. 122 [ed. bras.: Escritos, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1998].

[2] Ver a discussão do ponto de vista de Marcel Gauchet no capítulo 1 deste volume.

[3] O pensamento de Locke reflete, de certo modo, essa diferenciação do sujeito em sujeito de interesse, sujeito jurídico, sujeito religioso etc. À sua maneira, a influência persistente desse pensamento, apesar da hegemonia do utilitarismo, atesta certa forma de resistência à subsunção do sujeito no regime exclusivo do interesse.

[4] Fazemos nosso o neologismo proposto por Jean-Pierre Lebrun em sua obra La perversion ordinaire: vivre ensemble sans autrui (Paris, Denoël, 2007) [ed. bras.: A perversão comum, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2008].

[5] Daniel Bell, Les contradictions culturelles du capitalisme (Paris, PUF, 1977).

[6] Luc Boltanski e Ève Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme (Paris, Gallimard, 1999, Coleção NRF Essais) [ed. bras.: O novo espírito do capitalismo, trad. Ivone C. Benedetti, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009].

[7] Ibidem, p. 42.

[8] Margaret Thatcher em Sunday Times, 7 maio 1988; grifo nosso.

[9] Alguns trabalhos deram ênfase aos instrumentos de gestão que visam a fazer com que a obediência dos assalariados às exigências da empresa repouse sobre mecanismos de identificação, interiorização e culpabilização. A gestão por projeto é uma maneira de impor com “suavidade” ao executivo e ao assalariado em geral que provem constantemente fidelidade e respeito à expectativa de bom desempenho. Ver, por exemplo, David Courpasson, “Régulation et gouvernement des organisations: pour une sociologie de l’action managériale”, Cahiers de Recherches, Groupe ESC Lyon, 1996; e idem, L’action contrainte: organisations libérales et domination (Paris, PUF, 2000).

[10] Ver Nikolas Rose, Inventing Ourselves: Psychology, Power and Personhood (Cambridge, Cambridge University Press, 1996), p. 154 [ed. bras.: Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade, coord. trad. Arthur Arruda Leal Ferreira, Petrópolis, Vozes, 2011].

[11] Samuel Smiles, Self-help ou caractère, conduite et persévérance illustrées à l’aide de biographies (trad. Alfred Talandier, Paris, Plon, 1865). Na introdução, o autor dá o seguinte resumo de seu propósito: “Na vida, o bem-estar e a felicidade individuais dependem sempre de nossos próprios esforços, do cuidado mais ou menos diligente com que cultivamos, disciplinamos, controlamos nossas aptidões e, acima de tudo, do honesto e corajoso cumprimento do dever, que faz a glória do caráter individual”, ibidem, p. 1.

[12] Ibidem, p. 5.

[13] Bob Aubrey, L’entreprise de soi (Paris, Flammarion, 2000), p. 11.

[14] Nikolas Rose, Inventing Ourselves, cit., p. 154.

[15] Michel Foucault, L’herméneutique du sujet (Paris, Gallimard/Seuil, 2001), p. 203 [ed. bras.: A hermenêutica do sujeito, trad. Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail, 3. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2014].

[16] Max Weber, L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme (Paris, Flammarion, 1999), p. 176 e seg.

[17] Entrevista com Bob Aubrey, “L’entreprise de soi, un nouvel âge”, Autrement, n. 192, 2000, p. 97.

[18] Bob Aubrey, L’entreprise de soi, cit., p. 193.

[19] Ibidem. Ele escreveu antes com Bruno Tilliette, Savoir faire savoir (Paris, Interéditions, 1990) e Le travail après la crise (Paris, Interéditions, 1994).

[20] Bob Aubrey, Le travail après la crise, cit., p. 85.

[21] Ibidem, p. 86.

[22] Ibidem, p. 88.

[23] Bob Aubrey, L’entreprise de soi, cit., p. 15.

[24] Idem, Le travail après la crise, cit., p. 103. Lembremos que a epimeleia heautou é a formulação do “cuidado de si” ou “preocupação consigo mesmo” na cultura grega clássica. Sobre esse ponto, ver Michel Foucault, L’herméneutique du sujet, cit.

[25] “Trabalhar, aprender, manter relações, assegurar a harmonia do nosso casamento e criar nossos filhos, participar da vida local, fazer caridade, melhorar a qualidade da nossa vida: hoje, podemos nos dedicar a essas atividades apenas na medida em que assumimos responsabilidades e desenvolvemos estratégias”, Bob Aubrey, Le travail après la crise, cit., p. 105.

[26] Ibidem, p. 101.

[27] Entrevista com Bob Aubrey, “L’entreprise de soi, un nouvel âge”, cit., p. 99 e seg.

[28] Bob Aubrey, Le travail après la crise, cit., p. 133 e seg.

[29] Ibidem, p. 138.

[30] Ibidem, p. 198.

[31] Bob Aubrey, L’entreprise de soi, cit., p. 9.

[32] Ibidem, p. 10.

[33] Ibidem, p. 22.

[34] Ver François Aballéa e Lise Demailly, “Les nouveaux régimes de mobilisation des salariés”, em Jean-Pierre Durand e Danièle Linhart (orgs.), Les ressorts de la mobilisation du travail (Toulouse, Octares, 2005).

[35] Bob Aubrey e Bruno Tilliette, Savoir faire savoir, cit., p. 265.

[36] Sobre esse assunto, ver as aulas do Collège de France dedicadas à leitura de Alcibíades, de Platão, em Michel Foucault, L’herméneutique du sujet, cit., p. 27-77.

[37] Éric Pezet (org.), Management et conduite de soi: enquête sur les ascèses de la performance (Paris, Vuibert, 2007).

[38] Para uma análise crítica das práticas de coaching, em particular na área da saúde, ver Roland Gori e Pierre Le Coz, L’empire des coachs: une nouvelle forme de contrôle social (Paris, Albin Michel, 2006).

[39] Antoni Girod, La PNL (Paris, Interéditions, 2008), p. 37.

[40] Site de formação em AT: <www.capitecorpus.com>; acesso em: 6 mar. 2016.

[41] Site de PNL: <www.france-pnl.com>; acesso em: 6 mar. 2016.

[42] Antoni Girod, La PNL, cit., p. 13.

[43] A esse respeito, lembramos que a enkrateia, ou império sobre si mediante a luta contra os próprios desejos, alinhava-se desde a época clássica a um ideal de temperança e justiça, o que nos coloca muito longe da “gestão dos afetos”.

[44] Antoni Girod, La PNL, cit., p. 21.

[45] Citações extraídas da página “PNL et business”: <www.france-pnl.com>.

[46] Valérie Brunel, Les managers de l’âme: le développement personnel en entreprise, nouvelle pratique de pouvoir ? (Paris, La Découverte, 2004).

[47] Michel Foucault, L’herméneutique du sujet, cit., p. 81.

[48] Pierre Hadot, “Réflexions sur la notion de ‘culture de soi’”, em Exercices spirituels et philosophie antique (Paris, Albin Michel, 2002), p. 330.

[49] Will Schutz citado em Valérie Brunel, Les managers de l’âme, cit., p. 67. Ver Will Schutz, L’élément humain: comprendre le lien entre estime de soi, confiance et performance (trad. Jacques Lecomte, Paris, Interéditions, 2006).

[50] Idem.

[51] Entrevista com Bob Aubrey, “L’entreprise de soi, un nouvel âge”, cit., p. 101.

[52] Richard Cantillon, Essai sur la nature du commerce en général (trad. Richard Cantillon, Londres, Fletcher Gyles, 1755), p. 71-2 [ed. bras.: Ensaio sobre a natureza do comércio em geral (1755), apr. e trad. Fani Goldfarb Figueira, Curitiba, Segesta, 2002].

[53] Sobre esse ponto, ver neste volume cap. 6, p. 181, nota 75.

[54] Laurence Parisot em Le Figaro, 30 ago. 2005.

[55] Sobre esse ponto preciso, Beck engana-se ao opor categoricamente a ontologia do interesse do liberalismo clássico à ontologia do risco do capitalismo contemporâneo, a sociedade burguesa governada pelo interesse à sociedade moderna governada pelo risco (Ulrich Beck, La société du risque, trad. Laure Bernardi, Paris, Aubier, 2001, p. 135 [ed. bras.: Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade, trad. Sebastião Nascimento, São Paulo, Editora 34, 2010]). Por outro lado, ele acerta quando destaca a ênfase que se dá atualmente à obsessão do “risco” como perigo ou consciência do perigo. Mas, por causa disso, devemos, como ele, atribuir essa obsessão a mutações importantes na dominação técnica da natureza, hoje incorporada à sociedade (ibidem, p. 146)? Não deveríamos atribuí-la igualmente, ou mesmo, sobretudo, à nova norma da concorrência generalizada? Aliás, é o que tende a evidenciar a segunda parte de sua obra.

[56] Ibidem, p. 161 e 202.

[57] “Entretien avec François Ewald”, Nouveaux Regards, n. 21, 2003.

[58] Entrevista com Bob Aubrey, “L’entreprise de soi, un nouvel âge”, cit., p. 100.

[59] Ver Valérie Brunel, Les managers de l’âme, cit.

[60] Éric Pezet et al., Management et conduite de soi: enquête sur les ascèses de la performance (Paris, Vuibert, 2007), p. 8.

[61] Ver Nelarine Cornelius e Pauline Gleadle, “La conduite de soi et les sujets entreprenants: les cas Midco et Lbco”, em Éric Pezet et al., Management et conduite de soi, cit., p. 139.

[62] Sobre todos esses pontos, ver capítulo 8 deste volume.

[63] Ver Alain Ehrenberg, Le culte de la performance (Paris, Hachette, 1999, Coleção Pluriel).

[64] Ibidem, p. 14. Ehrenberg nota com razão que Max Weber antecipou essa tendência: “Nos Estados Unidos, nos lugares mesmo de seu paroxismo, a busca da riqueza, sem seu sentido ético-religioso, tende hoje a associar-se às paixões puramente agonísticas, o que lhe confere no mais das vezes um caráter de esporte”, Weber citado em ibidem, p. 176.

[65] Ver Roland Gori e Pierre Le Coz, L’empire des coachs, cit., p. 7 e seg.

[66] Como sublinha Jean-Pierre Durand em La chaîne invisible. Travailler aujourd’hui: du flux tendu à la servitude volontaire (Paris, Seuil, 2004), o modelo desse paradoxo é idêntico ao anunciado por Étienne de La Boétie com o nome de “servidão voluntária” (ibidem, p. 373).

[67] Essa intensificação e essa aceleração é que deram a Gilles Deleuze e Félix Guattari a ideia inicial de outra economia política não separada da economia libidinal, exposta em O anti-Édipo [trad. Luiz B. L. Orlandi, 2. ed., São Paulo, Editora 34, 2014] e Mil platôs [trad. Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa, 2. ed., São Paulo, Editora 34, 2014]. Para eles, o capitalismo só pode funcionar com a liberação dos fluxos desejantes que excedem os quadros sociais e políticos estabelecidos para a própria reprodução do sistema de produção. É nesse sentido que o processo de subjetivação próprio do capitalismo é qualificado como “esquizofrênico”. Mas, apesar de o capitalismo só poder funcionar com a liberação de doses cada vez maiores de energia libidinal que “decodificam” e “desterritorializam”, ele tenta reincorporá-las continuamente à máquina produtiva. “Quanto mais a máquina capitalista desterritorializa, decodificando e axiomatizando os fluxos para extrair deles o mais-valor, mais seus aparatos anexos, burocráticos e policiais, reterritorializam, absorvendo uma parte crescente de mais-valor” (Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Œdipe, Paris, Minuit, 1972, p. 42). Se nos anos 1970 Deleuze dá ênfase às máquinas repressivas “paranoicas”, que tentam dominar inutilmente as linhas de fuga do desejo, mais tarde ele ressaltará a relação entre essa liberação dos fluxos desejantes e os dispositivos de guiamento dos fluxos na “sociedade de controle”, entre o modo de subjetivação por estímulo do “desejo” e a avaliação generalizada dos desempenhos. Ver Gilles Deleuze, “Contrôle et devenir” e “Post-scriptum sur les sociétés de contrôle”, em Pourparlers (Paris, Minuit, 1990) [ed. bras.: Conversações: 1972-1990, trad. Peter Pál Pelbart, São Paulo, Editora 34, 2013].

[68] Os termos “trans-subjetivação” e “autossubjetivação” são propostos por Foucault para dar conta da diferença entre o ascetismo cristão dos séculos III e IV e a “cultura de si” da época helenística. Ver Michel Foucault, L’herméneutique du sujet, cit., p. 206.

[69] No sentido em latim de ultra (“além de”), a ultrassubjetivação, portanto, não é uma subjetivação exagerada ou excessiva, mas uma subjetivação que visa sempre a um além de si em si.

[70] Michel Foucault, Surveiller et punir (Paris, NRF Gallimard, 1975), p. 246 [ed. bras.: Vigiar e punir, trad. Raquel Ramalhete, 42. ed., Petrópolis, Vozes, 2014].

[71] Nikolas Rose, Governing the Soul. The Shaping of the Private Self (2. ed., Londres, Free Association Books, 1999), p. vii. Rose, no entanto, comete um erro de data. A virada “psi” não ocorreu no fim do século XIX, mas antes. Embora ainda permanecesse preso à fisiologia, o início do discurso “psi” é contemporâneo ao surgimento da economia política e da governamentalidade liberal: para governar as condutas, é preciso saber influenciar a formação dos motivos, isto é, atuar sobre a “dinâmica psicológica”, segundo expressão criada por Bentham.

[72] Ibidem, p. 88.

[73] Lembremos que, para Freud, a adaptação à realidade, longe de significar uma renúncia a qualquer prazer, gera em si mesma certa forma de prazer.

[74] Nikolas Rose, Inventing Ourselves, cit. Ver neste mesmo capítulo a nota 43, sobre o ideal ético da enkrateia.

[75] Ver Michaël Foessel e Olivier Mongin, “Les mises en scène de la réussite. Entreprendre, entraîner, animer”, Esprit, nov. 2007, p. 22-42.

[76] Ver Christophe Dejours, Souffrance en France: la banalisation de l’injustice sociale (Paris, Seuil, 2006).

[77] Ver “Rapport sur la détermination, la mesure et le suivi des risques psychosociaux au travail”, entregue em 12 de março de 2008 por Philippe Nasse, magistrado honorário, e Patrick Légeron, médico psiquiatra, a Xavier Bertrand, ministro do Trabalho, das Relações Sociais e da Solidariedade.

[78] Como escrevem Michel Gollac e Serge Volkoff, “além dos modos e das técnicas gerenciais, captar em proveito da empresa a energia que os indivíduos podem investir em atividades economicamente desinteressadas é uma preocupação constante e declarada da gestão de recursos humanos: quando se trata de aumentar a produtividade, nenhum recurso deve ser negligenciado, e esse é o sentido do “desprezo zero”. Contudo, quando a intensificação do trabalho torna este último penoso, desvaloriza a experiência do cargo, atrapalha o aprendizado, perturba os coletivos, e os termos autonomia e participação mudam de sentido. O desprezo zero combina-se, então, com uma infinita duplicidade”, Michel Gollac e Serge Volkoff, “Citius, Altius, Fortius: l’intensification du travail”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 114, set. 1996, p. 67.

[79] Jean-Pierre Durand, La chaîne invisible, cit., p. 309.

[80] Ver Nicole Aubert e Vincent de Gaulejac, Le coût de l’excellence (Paris, Seuil, 1991).

[81] Richard Sennett, Le travail sans qualités: les conséquences humaines de la flexibilité (trad. Pierre-Emmanuel Dauzat, Paris, Albin Michel, 2000). O título em inglês é mais eloquente: The Corrosion of Character: The Personal Consequences of Work in the New Capitalism (Nova York, Norton, 1999) [ed. bras.: A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo, trad. Marcos Santarrita, 15. ed., Rio de Janeiro, Record, 2010].

[82] Ibidem, p. 24.

[83] Ibidem, p. 31.

[84] Ibidem, p. 189.

[85] Ver Gabrielle Balazs e Jean-Pierre Faguer, “Une nouvelle forme de management, l’évaluation”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 114, set. 1996.

[86] Eva Illouz, Les sentiments du capitalisme (Paris, Seuil, 2006).

[87] Nicole Aubert, Le culte de l’urgence: la société malade du temps (Paris, Flammarion, 2004, Coleção Champs).

[88] Ver Philippe Pignarre, Comment la dépression est devenue une épidémie (Paris, La Découverte, 2001).

[89] Ver Alain Ehrenberg, La fatigue d’être soi: dépression et société (Paris, Odile Jacob, 2000).

[90] Ibidem, p. 16.

[91] Ver as observações de Eva Illouz, Les sentiments du capitalisme, cit.

[92] Sobre esse ponto, ver as reflexões de Charles Melman, L’homme sans gravité: jouir à tout prix (Paris, Denoël, 2002), entrevista com Jean-Pierre Lebrun [ed. bras.: O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço, trad. Sandra Regina Felgueiras, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2003].

[93] Dany-Robert Dufour, L’art de réduire les têtes: sur la nouvelle servitude de l’homme libéré à l’ère du capitalisme total (Paris, Denoël, 2003), p. 13: “Hoje, a troca mercantil tende a dessimbolizar o mundo”.

[94] Ibidem, p. 127.

[a] Trad. Álvaro Pina e Ivana Jinkings, 1. ed. revista, São Paulo, Boitempo, 2010. (N. T.)

[95] Dany-Robert Dufour, L’art de réduire les têtes, cit., p. 137.

[96] Jean-Pierre Lebrun, Un monde sans limite: essai pour une clinique psychanalytique du social (Toulouse, Érès, 1997), p. 122 [ed. bras.: Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social, trad. Sandra Regina Felgueiras, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2004].

[97] Em Lacan, a castração é entendida como uma separação do gozo da mãe, em razão da entrada na ordem simbólica. Citado em Dany-Robert Dufour, L’art de réduire les têtes, cit., p. 122-3 (Seminário “Ou pire”, 3 de fevereiro de 1972; seminário em Saint-Anne, “Le savoir du psychanalyse”, 6 de janeiro de 1972).

[98] Certas apologias gerenciais da produção de condutas paranoicas não deixam de ter algum interesse. Andrew Grove, presidente da Intel Corporation, preconiza um método de direção que liga diretamente a norma da competição a uma gestão “psicotizante” do pessoal: “O medo da concorrência, o medo da falência, o medo de errar, o medo de perder podem ser motivações poderosas. Como cultivar o medo de perder nos nossos funcionários? Nós não podemos cultivá-lo nos outros se nós mesmos não o sentimos”, Andrew Grove, Only the Paranoid Survive (Nova York, Doubleday, 1996), p. 117 [ed. bras.: Só os paranoicos sobrevivem, trad. Carlos Cordeiro de Mello, São Paulo, Futura, 1997].

[99] Emprestamos o termo de Jean-Pierre Lebrun, La perversion ordinaire, cit.

[100] Sobre os “negócios” como modalidade da relação perversa com o objeto, ver Roland Chémama, “Éléments lacaniens pour une psychanalyse au quotidien”, Le Discours Psychanalytique, Paris, Association Freudienne Internationale, 1994, p. 299-308.

[101] Charles Melman, L’homme sans gravité, cit., p. 69-70.

[102] Ibidem, p. 67.

[103] Ibidem, p. 18-9.

[104] Olivier Rey, Une folle solitude: le fantasme de l’homme autoconstruit (Paris, Seuil, 2006).

[105] Em L’individu incertain (Paris, Hachette, 1996, Coleção Pluriel, p. 18), Ehrenberg observa com razão que o indivíduo conquistador e o indivíduo sofredor são as “duas faces do governo de si”.

[106] Depois do desenvolvimento da “sociobiologia”, o surgimento de uma “neuroeconomia” não deve ser ignorado. Não há dúvida de que a fusão da biologia do cérebro com a microeconomia oferece perspectivas interessantes de controle do comportamento.