quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Susan Sontag - Entrevista completa para a revista Rolling Stone




Em 2020, fui apresentado ao livro "Sobre Fotografia" de Sontag, mas estava muito absorto em aprender mais a fundo técnicas fotográficas (pois também me dediquei a cursos de fotografia no período) e não dei muita atenção ao conteúdo de pensamento do livro.
Mas ontem, baixei o "Susan Sontag - Entrevista completa para a revista Rolling Stone" e não consegui parar de ler. Varei a noite até acabá-lo. Livro e pensamentos fascinantes dessa monumental mulher. Sim, ela observou, agudamente, o aspecto cultural das décadas de 60, 70 e 80 de nossa era. Comecei a sublinhar passagens, mas desisti, pois já estava sublinhando todo o livro.
Porque coloquei isso aqui? Só para sugerir que leiam os livros dela. E que comecem pela biografia dela por Mose, pois começa a lhe dar um apanhado geral de suas obras. E aproveite e veja a maneira de escrever de Mose, que deve ser um cara também bem inteligente.
Um excerto do livro para degustação e observe como não é fácil escolher uma frase aqui e outra lá para sublinhar. Tudo é um pensamento contínuo.
Grifo meu "O fragmento pressupõe bastante conhecimento e experiência, e é decadente nesse sentido porque precisa ter como apoio todo esse conteúdo de modo que faça alusões e comentários sobre as coisas sem ter de esclarecer todas elas."
P - No livro você diz que “o mundo fotográfico mantém com o mundo real a mesma relação essencialmente imprecisa que os fotogramas mantêm com os filmes. A vida não são detalhes significativos, iluminados num lampejo, fixados para sempre. As fotografias são.” Uma vez li que os maias tinham uma palavra para designar sabedoria que significava “pequeno lampejo”, e os místicos costumam falar de um lampejo de inspiração ou iluminação. O crítico George Steiner uma vez escreveu sobre o lampejo de inspiração transmitido pelo fragmento literário conforme usado por escritores como Nietzsche e Wittgenstein, e atribuiu aos dois uma “lampejante certeza do imediatismo e a necessária incompletude desse imediatismo”, salientando sua importância para o processo de insight criativo.
R - Antes de mais nada, são níveis bem diferentes do que acontece. Existem lampejos que não considero fragmentos. Uma epifania não é um fragmento. Um orgasmo não é um fragmento. É claro, existem coisas limitadas no tempo que são muito intensas e parecem nos levar para outro nível de consciência ou nos dar acesso a algo que não acessávamos antes. O acesso pode ser, usando a imagem do Novo Testamento, um portão estreito, um lugar bem apertado – você o atravessa e tem um tipo de lampejo, por assim dizer, e depois já é outra coisa. Então o fato ser algo pequeno ou breve não significa necessariamente que é um lampejo. A questão dos fragmentos é outra história.
Parece que o fragmento é a forma artística da nossa época, e todos que já refletiram sobre a arte e o pensamento precisaram tratar desse problema. Recentemente ouvi Roland Barthes dizer que todo seu esforço atual é ir além do fragmento. Mas a questão é: consegue-se? Há uma razão para o fragmento, a começar com os românticos, ter se tornado uma forma artística preeminente que permite que as coisas sejam mais verdadeiras, mais autênticas, mais intensas. Há momentos privilegiados de prazer e insights, e algumas coisas podem ser mais intensas do que outras porque, na vida e na consciência, habitamos lugares muito diferentes. Mas o fato de podermos distinguir determinado momento como privilegiado – e não só por ser memorável, mas porque nos mudou – não significa que é um fragmento.
Talvez seja a culminação de tudo que já passou. O fato de podermos localizar e separar as coisas não indica seu caráter fragmentário.
P - No ensaio esclarecedor sobre o filme Viver a vida, de Godard, você usa uma estrutura fragmentada, e com isso sugere a radiância e a plenitude de um filme que se desdobra numa série de fragmentos.
R - Bom, acho que existe algo bem respeitável na forma do fragmento que aponta para lacunas, espaços e silêncios entre as coisas. Por outro lado, a gente poderia dizer que o fragmento é literalmente decadente – e não no sentido moral –, pois é o estilo do fim de uma era, e com isso quero dizer o fim de uma civilização, de uma tradição de pensamento ou de uma sensibilidade. O fragmento pressupõe bastante conhecimento e experiência, e é decadente nesse sentido porque precisa ter como apoio todo esse conteúdo de modo que faça alusões e comentários sobre as coisas sem ter de esclarecer todas elas. Não se trata de uma forma artística ou de uma forma de pensar típicas de culturas jovens que precisam fazer coisas bem específicas. Nós temos muito conhecimento e temos ciência de que existe uma multiplicidade de perspectivas, e o fragmento é uma maneira de reconhecer isso.
Não tenho paciência para ensaios que usam um argumento linear. Sinto que tenho de tornar as coisas mais sequenciais do que realmente são porque minha mente salta, e um argumento, para mim, se parece muito mais com os raios de uma roda do que com os elos de uma corrente. Contudo, a natureza da leitura na forma de página é que você começa do lado esquerdo, desce pela página, passa para o topo do lado direito, desce de novo e depois vira a folha. Não consigo pensar numa maneira melhor de leitura e não estou sugerindo que se deva abandonar a sequência das páginas, mas é uma maneira de obter algo parecido com o que Joseph Frank chamou há muitos anos de “forma espacial”. A questão dos fragmentos é muito complicada.
P - Pense nos antigos fragmentos gregos de Arquíloco e Safo, que na verdade são o que restaram de um todo original, mas cujas reverberações ainda nos afetam profundamente.
R - É por isso que somos sensíveis à forma fragmentada. Há fragmentos criados pelas mutilações da história, e temos de assumir que as palavras não foram escritas como fragmentos - elas se tornaram fragmentos porque o material se perdeu. Sinto que a Vênus de Milo nunca teria se tornado tão famosa se tivesse braços. Começou no século XVIII, quando as pessoas viram a beleza das ruínas. Suponho que o amor pelos fragmentos tem primeiro a ver com certo sentido do páthos da história e com as devastações do tempo porque o que aparecia para as pessoas na forma de fragmentos eram obras, cujas partes despencaram, foram perdidas ou destruídas. E agora, é claro, é possível e muito convincente que as pessoas criem obras na forma de fragmentos. Os fragmentos no mundo do pensamento ou da arte parecem ruínas, como aquelas artificiais que os ricos colocavam em suas propriedades no século XVIII.
P- Em certo sentido, também as fotografias.
R - Sim, acho que a fotografia surge na forma de fragmentos. A natureza da fotografia é ter o estado mental de um fragmento. É claro, ela é uma coisa completa em si mesma. Mas em relação à passagem do tempo, ela se torna aquele pedaço marcante do que nos restou do passado: "olha, éramos tão felizes nessa época, estávamos todos ali, você estava tão bonita, eu estava vestindo isso ou aquilo, olha como éramos jovens....", esse tipo de coisa. Quer dizer, as pessoas não tiram uma foto nesse espírito, mas o tempo muda o que está nas fotografias.


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário