“A única metáfora possível que se pode conceber para a vida do espírito”, escreveu a cientista política Hannah Arendt, “é a sensação de estar vivo. Sem o sopro da vida, o corpo humano é um cadáver; sem pensamento, o espírito humano está morto”. Susan Sontag concordava. No segundo volume de seus diários (As Consciousness Is Harnessed to Flesh), declarou ela: “Ser inteligente, para mim, não é como fazer algo ‘melhor’. É minha única forma de existir. [...] Eu sei que tenho medo da passividade (e da dependência). Alguma coisa faz eu me sentir ativa (autônoma) quando uso a mente. Isso é bom.”
Ensaísta, romancista, dramaturga, cineasta e ativista política, Sontag, que nasceu em 1933 e faleceu em 2004, foi uma testemunha exemplar do fato de que viver uma vida pensante e pensar sobre a própria vida podem ser atividades complementares e enriquecedoras. Desde a publicação de Contra a interpretação em 1966 – sua primeira coletânea de ensaios em que tratava, de maneira alegre e nada condescendente, de assuntos que variavam de The Supremes a Simone Weil, e de filmes como O incrível homem que encolheu a Muriel – Sontag nunca vacilou em sua lealdade à cultura “popular”, bem como à “alta” cultura. Como afirmou no prefácio à edição comemorativa de trinta anos do livro, “Se eu tivesse de escolher entre The Doors e Dostoiévski, é claro que escolheria Dostoiévski. Mas por que tenho de escolher?”
Como proponente de uma “erótica da arte”, tinha em comum com o escritor francês Roland Barthes não só o que ele chamava de “o prazer do texto”, mas também o que ela descrevia como sua “visão da vida do espírito como uma vida de desejo, do pleno intelecto e prazer”. Nesse aspecto, ela seguiu os passos de William Wordsworth, que, em seu “Prefácio às Baladas Líricas”, definiu o papel do poeta como o de “dar prazer imediato ao ser humano” – iniciativa que ele considerava ser “um reconhecimento da beleza do universo” e “uma homenagem prestada à dignidade nativa e nua do homem” – e afirmou que transformar esse princípio em realidade foi “tarefa fácil e leve para ele, que olha para o mundo no espírito do amor”.
“O que me faz sentir forte?”, pergunta-se Sontag em uma entrada de seu diário, dando em seguida a resposta: “Estar apaixonada e trabalhar”, além de assegurar sua fidelidade “às calorosas exaltações do espírito”. Claramente, para Sontag, amar, desejar e pensar eram, em sua raiz, atividades de essência comparável. Em seu fascinante livro Eros the Bittersweet, a poeta e classicista Anne Carson – escritora bastante admirada por Sontag – propôs que “parece haver uma semelhança entre o modo de Eros agir no espírito de um amante e o modo de o conhecimento agir no espírito de um amante”, e acrescenta: “Quando o espírito expande-se ao conhecer, abre-se o espaço do desejo” – opinião repetida por Sontag em seu ensaio sobre Roland Barthes, quando observa que “escrever é um abraço, é ser abraçado; cada ideia é uma ideia que se expande”.
Em 1987, num simpósio patrocinado pelo PEN American Center e dedicado à obra de Henry James, Sontag ampliou a noção da conexão indissolúvel entre desejar e conhecer proposta por Anne Carson. Rejeitando as críticas geralmente feitas ao vocabulário árido e abstrato de James, Sontag contra-argumenta: “Na verdade, seu vocabulário é o da prodigalidade, da plenitude, do desejo, do júbilo, do êxtase. No mundo de James há sempre mais – mais texto, mais consciência, mais espaço, mais complexidade no espaço, mais alimento para a consciência consumir. Ele investe no romance um princípio de desejo que me parece novo. É um desejo epistemológico, o desejo de saber, que é como o desejo carnal, e muitas vezes mimetiza ou duplica o desejo carnal”. Em seus diários, Sontag descreve a vida do espírito, ou do intelecto, com as seguintes palavras: “avidez, apetite, aspiração, anseio, apetência, insaciabilidade, arrebatamento, inclinação”; e não é difícil imaginar que Sontag talvez tenha sentido que Anne Carson na verdade falava para as duas quando confessou que “apaixonar-se e conhecer fazem-me sentir genuinamente viva”.
Em todos os seus esforços, Sontag tentava desafiar e subverter categorias estereotípicas como masculino/feminino e juventude/velhice, que induzem as pessoas a ter a vida limitada e sem riscos. Além disso, ela examinava e testava o tempo todo sua ideia de que supostas polaridades como pensar e sentir, forma e conteúdo, ética e estética, consciência e sensualidade, na verdade podiam simplesmente ser vistas como aspectos uma da outra – como uma superfície de veludo que, ao revertermos o sentido do toque, fornece duas texturas e dois modos de sentir, duas tonalidades e dois modos de percepção.
Em seu ensaio “Sobre o estilo”, de 1965, por exemplo, Sontag escreveu: “Chamar Triunfo da vontade e Olympia, de Leni Riefenstahl, de obrasprimas, não é o mesmo que encobrir a propaganda nazista com leniência estética. A propaganda nazista está lá. Mas também está algo mais [...], os movimentos complexos da inteligência, da graciosidade, da sensualidade”.
Uma década depois, em seu ensaio “Fascinante fascismo”, ela reverte a superfície aveludada, comentando que Triunfo da vontade foi “o filme mais puramente propagandista já realizado, cuja própria concepção nega a possibilidade de o autor do filme ter uma concepção estética ou visual independente da propaganda”. Sontag explicaria depois que, no primeiro ensaio, ela estava interessada nas “implicações formais do conteúdo”, e no segundo quis investigar “o conteúdo implícito em certas ideias da forma”.
Descrevendo-se como uma “esteta inebriada” e uma “moralista obsessiva”, Sontag bem que poderia ter concordado com a ideia de Wordsworth de que “não temos simpatia além do que é propagado pelo prazer” e que “sempre que nos simpatizarmos com a dor será descoberto que a simpatia é gerada e mantida por combinações sutis com o prazer”. Não surpreende, portanto, que, embora Sontag tenha abraçado totalmente os prazeres do que chamou de “cultura pluralista e polimorfa”, ela nunca deixou de se colocar “diante da dor dos outros” – título dado ao último livro que escreveu antes de morrer –, tampouco deixou de tentar aliviá-la.
Em 1968, a convite do governo do Vietnã do Norte, Sontag viajou para Hanói como parte de uma delegação de ativistas norte-americanos contrários à guerra, uma experiência que, conforme escreveu em seu diário, “me fez reavaliar minha identidade, as formas da minha consciência, as formas psíquicas da minha cultura, o significado de ‘sinceridade’, linguagem, decisão moral, expressividade psicológica”. Duas décadas depois, no início dos anos 1990, ela visitou em nove ocasiões diferentes a bombardeada cidade de Sarajevo, testemunhando o sofrimento de 380 mil habitantes que, na época, viviam sob cerco constante. Na sua segunda visita, em julho de 1993, conheceu um produtor de teatro nascido em Sarajevo que a convidou para dirigir uma adaptação de Esperando Godot, de Samuel Beckett, realizada com alguns dos atores profissionais mais gabaritados da cidade; o som dos atiradores de elite e da explosão de granadas serviu de fundo tanto para os ensaios quanto para as apresentações, cuja plateia contava com representantes do governo, médicos do principal hospital da cidade e soldados do front, bem como muitos cidadãos angustiados e mutilados pela guerra. “Aqueles que perenemente se surpreendem com a existência da depravação”, escreveu ela em Diante da dor dos outros, “que ainda se sentem desiludidos (até incrédulos) quando se deparam com provas do que os seres humanos são capazes de infligir a outros seres humanos, no que diz respeito a crueldades reais e grotescas, ainda não atingiram a maturidade moral ou psicológica”. E, como declarou uma vez: “Não há possibilidade de uma cultura verdadeira sem altruísmo”.
Conheci Susan Sontag no início da década de 1960 na Columbia University – ela lecionava, e eu era aluno. Durante três anos, fui um dos colaboradores e editores do suplemento literário do Columbia Spectator – jornal diário da Columbia College – para o qual Sontag, em 1961, escrevera um ensaio sobre Vida contra a morte, de Norman O. Brown, incluído posteriormente em Contra a interpretação. Depois de ler o ensaio, decidi, com certa audácia, passar uma tarde na sala dela para falar do quanto eu tinha gostado do ensaio. Depois disso, tomamos café juntos em diversas ocasiões.
Depois de me formar, em 1964, mudei-me para Berkeley para estudar literatura inglesa na University of California e logo me vi no meio de um grande despertar social, cultural e político nos Estados Unidos. “Felicidade foi estar vivo naquele alvorecer”, escreveu William Wordsworth dois séculos antes, no início da Revolução Francesa. Agora, mais uma vez, as pessoas passavam por uma verdadeira dramatização da vida, e em qualquer lugar era como se houvesse “música nas cafeterias à noite e revolução no ar”, como cantou Bob Dylan em “Tangled Up in Blue”. Cerca de trinta anos depois, ao refletir sobre essa época no prefácio à reedição de Contra a interpretação, Sontag escreveu: “Como tudo isso parece maravilhoso em retrospectiva.
Como se deseja que algo de sua coragem, seu otimismo, seu desdém pelo comércio tivesse sobrevivido. Os dois polos do sentimento distintamente moderno são a nostalgia e a utopia. Talvez a característica mais interessante do que hoje chamamos de anos sessenta seja a parca existência da nostalgia.
Nesse sentido, aquele foi de fato um momento utópico”.
Uma tarde, em 1966, deparei-me por acaso com Susan no campus de Berkeley. Ela me disse ter sido convidada pela universidade para dar uma palestra, e eu lhe contei que estava iniciando a produção e a apresentação de um programa noturno e livre na rádio KPFA; mencionei que eu e meu amigo Tom Luddy – que depois se tornaria curador do Pacific Film Archive – entrevistaríamos o cineasta Kenneth Anger sobre seu filme Scorpio Rising ainda naquela noite; e perguntei se ela queria participar da conversa, convite que aceitou. (Em seus diários, Susan cita Inauguration of the Pleasure Dome, de Anger, numa lista de “Melhores Filmes”.)
Em 1967 me mudei para Londres e me tornei o primeiro editor europeu da revista Rolling Stone, e continuei trabalhando e escrevendo para a revista quando voltei para Nova York em 1970. Eu e Susan tínhamos diversos amigos em comum, e nos anos seguintes, tanto em Nova York como na Europa, acabamos nos encontrando por acaso em jantares, lançamentos de filmes, shows de rock e concertos de música clássica, além de eventos relacionados a direitos humanos. Sempre quis entrevistá-la para a Rolling Stone, mas evitava tocar no assunto com ela. Em fevereiro de 1978, no entanto, achei que era o momento certo. Seu aclamado livro Sobre fotografia havia sido publicado no ano anterior, e dois outros livros estavam prestes a ser lançados: I, etcetera – coletânea de oito contos descritos por ela como “uma série de aventuras em primeira pessoa” – e A doença como metáfora.
Susan foi submetida a um tratamento contra câncer de mama entre 1974 e 1977, e suas experiências como paciente dessa doença estimularam-na a escrever o livro. Então, quando finalmente resolvi perguntar se ela gostaria de me conceder uma entrevista e sugeri que usássemos esses três livros como ponto de partida da conversa, ela aceitou sem hesitar.
Alguns escritores sentem que dar entrevistas é uma experiência não muito diferente de “queimar a língua antes do almoço”, como observou o poeta Kenneth Rexroth depois de participar de um coquetel particularmente detestável. Italo Calvino era um desses. No conto “Thoughts Before an Interview”, ele se queixa: “Toda manhã eu digo para mim mesmo: hoje tem de ser produtivo, então algo acontece e me impede de escrever. Hoje... O que tenho mesmo para fazer hoje? Ah, sim, parece que virão me entrevistar... Deus me ajude!” De longe mais resistente que Calvino, no entanto, foi J. M. Coetzee, laureado com o Prêmio Nobel, que, no meio de uma entrevista com David Attwell, anunciou: “Se eu tivesse alguma presciência, não teria nenhuma relação com jornalistas desde o princípio. Nove de dez entrevistas não passam de uma conversa com um completo estranho, mas um estranho que, pelas convenções do gênero, tem permissão para ultrapassar os limites do que é apropriado numa conversa entre estranhos. [...] Para mim, por outro lado, a verdade está relacionada ao silêncio, à reflexão, à prática da escrita. A fala não é um manancial da verdade, mas uma versão pálida e provisória da escrita. E o espadim da surpresa empunhado pelo magistrado ou entrevistador não é um instrumento da verdade, ao contrário, é uma arma, um signo da natureza inerentemente confrontadora dessa transação”.
A visão de Susan Sontag era diferente. “Gosto de entrevistas”, disse-me uma vez, “e gosto delas porque gosto de conversar, gosto do diálogo, e sei que boa parte das minhas ideias é produto da conversação. De certa forma, o mais difícil de escrever é estar sozinha e ter que estabelecer uma conversa consigo, o que é uma atividade antinatural em essência. Eu gosto de conversar com as pessoas – é o que me faz não ser uma reclusa –, e conversar me dá a chance de saber o que penso. Não quero saber sobre o público porque é uma abstração, mas com certeza quero saber o que pensa o indivíduo, e isso requer um encontro cara a cara”.
Em uma anotação dos diários escrita em 1965, Susan confessou: “Não darei nenhuma entrevista até soar tão clara + confiável + direta quanto Lillian Hellman na Paris Review”. Treze anos depois, numa tarde ensolarada em meados de junho, cheguei ao apartamento de Susan em Paris no 16º arrondissement. Sentamo-nos em dois sofás na sala; entre nós havia uma mesinha, sobre a qual coloquei o gravador; enquanto escutava suas respostas claras, confiáveis e diretas, não tive dúvida de que ela alcançara o objetivo que estabelecera para si anos atrás em relação às entrevistas.
Ao contrário de quase todas as outras pessoas que já entrevistei – sendo a única exceção o pianista Glenn Gould –, Susan não dizia frases, mas parágrafos extensos e bem cuidados. E o que me chamou mais atenção foi a exatidão “e o ajuste moral e linguístico” – como ela descreveu uma vez o estilo de escrita de Henry James – com que ela enquadrava e elaborava os pensamentos, ajustando com precisão os significados pretendidos com observações incidentais e termos qualificadores (“às vezes”, “de vez em quando”, “usualmente”, “na maioria das vezes”, “em quase todos os casos”), a prodigalidade e a fluência de sua conversa manifestando o que os franceses chamam de ivresse du discours – uma embriaguez com a palavra falada.
“Sinto-me fisgada pela conversa como diálogo criativo”, observou ela em seus diários, e acrescentou: “Para mim, é meu principal meio de salvação”.
Mas depois de falar durante três horas, Susan me disse que precisava descansar antes de sair para um jantar naquela noite. Percebi que já tinha gravado o suficiente para a entrevista da Rolling Stone. Para minha surpresa, no entanto, ela me disse que logo se mudaria de novo para o apartamento de Nova York, onde ficaria seis meses; e como ainda havia diversos assuntos sobre os quais ela queria conversar, perguntou se poderíamos continuar e terminar nossa conversa em Nova York.
Cinco meses depois, numa tarde fria de novembro, cheguei à espaçosa cobertura na Riverside Drive com 106th Street, de frente para o Rio Hudson, onde ela morava cercada por uma biblioteca de oito mil livros à qual ela se referia como “meu próprio sistema de informação” e “meu arquivo de desejo”. Nesse lugar abençoado, conversamos até tarde da noite.
Em outubro de 1979, a revista Rolling Stone publicou um terço da minha conversa com Susan Sontag. Agora, pela primeira vez, apresento a entrevista completa que tive o privilégio de realizar há trinta e cinco anos, em Paris e Nova York, com uma pessoa notável e inspiradora, cuja crença intelectual – como sempre pensei – parece-me ter sido expressada da maneira mais comovente num conto que ela escreveu em 1996 chamado “Uma carta para Borges”: Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e fomos. Se os livros desaparecerem, desaparecerá a história e também os seres humanos. Tenho certeza de que você está certo. Os livros não são apenas a soma arbitrária de nossos sonhos e memórias. Eles também nos dão o modelo da autotranscendência. Alguns pensam que a leitura é apenas uma forma de escapismo: uma fuga do mundo “real” cotidiano para um mundo imaginário, o mundo dos livros. Mas os livros são muito mais. São um modo de sermos plenamente humanos.
Jonathan Cott
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