quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Susan Sontag - Uma carta para Borges

 




Uma carta para Borges
13 de junho de 1996
Nova York
Caro Borges,
Como a sua literatura sempre se situou sob o signo da eternidade, ela não parece velha demais para que eu lhe envie uma carta.(Borges, são dez anos!) Se existiu algum contemporâneo destinado à imortalidade literária, foi você. Você foi um perfeito produto de sua época, de sua cultura, e contudo soube como transcender sua época, sua cultura, de um modo que parece inteiramente mágico.
Isso tinha algo a ver com a abertura e com a generosidade da sua atenção. Você foi o menos egocêntrico, o mais transparente dos escritores, bem como o mais engenhoso. Tinha também algo a ver com a natural pureza do espírito. Embora tenha vivido entre nós por um tempo bastante longo, você aperfeiçoou maneiras de perspicácia e de isenção que o tornaram um especialista em viagens mentais para outras eras, também. Você tinha um sentido de tempo diferente do das demais pessoas. As noções comuns de passado, presente e futuro pareciam banais sob o seu olhar. Você gostava de dizer que todo momento do tempo contém o passado e o futuro, citando (se bem me lembro) o poeta Browning, que escreveu algo como “o presente é o instante em que o futuro se desfaz para dentro do passado”. Isso, está claro, fazia parte da sua modéstia: o seu gosto por encontrar suas idéias nas idéias dos outros escritores.
Sua modéstia era parte da certeza da sua presença. Você era um descobridor de prazeres novos.
Um pessimismo tão profundo, tão sereno como o seu não precisava mostrar-se indignado. Precisava, antes, ser inventivo — e você foi, acima de tudo, inventivo. A serenidade e a transcendência do eu que você encontrou são, para mim, exemplares. Você mostrou que não é necessário ser infeliz, mesmo quando se é clarividente e sem ilusões sobre como tudo é terrível. Em algum ponto, você disse que um escritor — por delicadeza, acrescentou: todas as pessoas — deve pensar que o que lhe acontece é uma riqueza. (Você se referia à sua cegueira.)
Você foi uma grande riqueza, para os outros escritores. Em 1982 — ou seja, quatro anos antes de você morrer — eu disse numa entrevista: “Não existe hoje um escritor vivo mais importante para os outros escritores do que Borges. Muitos diriam que ele é o maior escritor vivo, hoje [...] Muito poucos escritores de hoje não aprenderam algo com ele ou não o imitaram”. Isso ainda é verdade.
Ainda aprendemos com você. Ainda o imitamos. Você deu às pessoas maneiras novas de imaginar, ao mesmo tempo que proclamava sem cessar nossa dívida com o passado, acima de tudo, com a literatura. Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e o que fomos. Se os livros desaparecerem, a história desaparecerá, e os seres humanos também. Tenho certeza de que você tem razão. Livros não são apenas a suma arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória. Eles nos dão também o modelo da autotranscendência. Algumas pessoas pensam na leitura apenas como um tipo de fuga: uma fuga do mundo cotidiano “real” para um mundo imaginário, o mundo dos livros. Livros são muito mais.
São um modo de ser plenamente humano.
Lamento ter de dizer a você que os livros, hoje, são tidos como uma espécie ameaçada. Por livros, refiro-me também às condições de leitura que tornam possível a literatura e seus efeitos na alma.
Em breve, nos dizem, invocaremos em “telas-livro” quaisquer “textos” que quisermos e poderemos alterar seu aspecto, fazer perguntas a eles, “interagir”. Quando os livros se tornarem “textos” com que “interagiremos” segundo o critério da utilidade, a palavra escrita terá se transformado simplesmente em mais um aspecto da nossa realidade televisual regida pela publicidade. Esse é o glorioso futuro que está sendo criado e prometido para nós, como algo mais “democrático”. É claro, isso significa nada menos que a morte da interioridade — e do livro.
Para essa transição, não haverá nenhuma necessidade de uma grande conflagração. Os bárbaros não precisam queimar os livros. O tigre está na biblioteca. Caro Borges, por favor compreenda que não me dá nenhum prazer queixar-me. Mas a quem melhor que você poderiam ser endereçadas tais queixas sobre o destino dos livros — da própria leitura? (Borges, faz dez anos!) Tudo o que quero dizer é que sentimos sua falta. Eu sinto sua falta. Você continua a ser importante. A era em que estamos entrando agora, este século xxi, porá a alma à prova de maneiras novas. Mas, esteja certo, alguns de nós não abandonaremos a Grande Biblioteca. E você continuará a ser o nosso patrono e o nosso herói.
Susan

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