quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Uma Nova Razão do Mundo: Introdução


Sobre A nova razão do mundo
Nilton Ota

Compreender o capitalismo é tomar a sério, com todas as consequências políticas, a heterogeneidade de sua morfologia social e suas modalidades práticas de dominação. É também reconhecer a necessidade de nomeá-lo a partir de sua atualidade histórica. Eis a tarefa crítica assumida por Pierre Dardot e Christian Laval em A nova razão do mundo, uma das mais inventivas interpretações do capitalismo contemporâneo feita nos últimos anos e que desembarca no Brasil em boa e dramática hora.

A aplicação de recursos analíticos pouco ortodoxos, que concilia filologia dos conceitos e investigação históricosocial, conforma o propósito dos autores de realizar a genealogia do governo neoliberal. Nesse programa de investigação, o neoliberalismo resulta de um processo histórico de construção estratégica. Seus princípios de controle pressupõem, como nas doutrinas liberais clássicas, a liberdade, mas uma outra que não a fundada sobre a relação diacrítica com a autoridade estatal. A liberdade neoliberal seria extraída da concorrência mercantil, cuja lógica terminaria por se generalizar para todas as esferas sociais, entre as quais o Estado, de agora em diante transformado em ente horizontal, em situação de competição com todos os outros agentes econômicos privados. Longe de ser simplesmente uma ideologia, o neoliberalismo configuraria uma racionalidade política global, que prescindiria de qualquer teleologia ou continuidade substantiva com as antigas formas do liberalismo.

Certamente, o “espírito” do capitalismo ainda convoca condutas, mas seu corpo não se deixa mais animar pela subjetivação das normas que um dia fizeram a lei e os valores da sociedade liberal. A intensidade do engajamento e da mobilização subjetiva, inscrita nas disposições individuais da “empresa de si” e na busca da eficácia pela eficácia, maximização dos objetivos divorciada do cálculo pela melhor relação entre meios e fins, revelaria o núcleo normativo dessa nova razão do mundo. Daí por que a democracia seja, a um só tempo, seu alvo e o que a coloca em risco.

Sobre A nova razão do mundo
Jorge Nóvoa

Pierre Dardot e Christian Laval “descrevem” nesta obra a racionalidade neoliberal. Ao olharmos o Brasil hoje, ela desfila diante de nossos olhos: o estado de exceção, a lógica binária da política e sua “jaula de aço” a tentar nos aprisionar. Toda herança da tradição democrática e republicana termina subvertida e submetida à lógica da concorrência à morte. A crise de governabilidade se universaliza como expressão contraditória que ultrapassa a vontade e o controle conscientes dos antigos agentes sociais. Estes foram dominados pelo que André Gorz pensava ser uma “cumplicidade estrutural”. Por múltiplos caminhos, o neoliberalismo se impôs como a nova razão do mundo, não deixando incólume nenhuma esfera da vida. O que se acha em causa é a forma de existência na modernidade última. Sua norma fundamental é a competição mortífera modelando tudo da vida social introjetada na subjetividade dos indivíduos pelo capital e seu mercado. Contudo, também se observam as “contracondutas” que instituem novas práticas e novas formas de luta. O homem Sísifo continua lutando pela emancipação humana.


SUMÁRIO
Prefácio à edição brasileira
Agradecimentos
Introdução à edição inglesa (2014)

I A refundação intelectual
1 Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo
2 O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvenção do liberalismo
3 O ordoliberalismo entre “política econômica” e “política de sociedade”
4 O homem empresarial
5 Estado forte, guardião do direito privado

II A nova racionalidade
6 A grande virada
7 As origens ordoliberais da construção da Europa
8 O governo empresarial
9 A fábrica do sujeito neoliberal
Conclusão – O esgotamento da democracia liberal


PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Um sistema pós-democrático

O neoliberalismo tem uma história e uma coerência. Combatê-lo exige não se deixar iludir, fazer uma análise lúcida dele. O conhecimento e a crítica do neoliberalismo são indispensáveis. A esquerda radical e alternativa não pode contentar-se com denúncias e slogans, muitas vezes confusos, parciais ou atemporais. Assim, é errado dizer que estamos lidando com o “capitalismo”, sempre igual a ele mesmo, e com suas contradições, que inevitavelmente levariam à ruína final. Eficácia política pressupõe uma análise precisa, documentada, circunstanciada e atualizada da situação. O capitalismo é indissociável da história de suas metamorfoses, de seus descarrilhamentos, das lutas que o transformam, das estratégias que o renovam. O neoliberalismo transformou profundamente o capitalismo, transformando profundamente as sociedades.

Nesse sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida.

A obra que você lerá, e que finalmente está disponível em português graças à editora Boitempo, foi escrita no período de gestação da crise financeira mundial de 2008. Foi publicada no momento em que se podia constatar a amplidão dos estragos causados pelo neoliberalismo. A convicção que tínhamos ao escrevê-la possuía fundamento: a crise não foi suficiente para fazer o neoliberalismo desaparecer. Muito pelo contrário, a crise apareceu para as classes dominantes como uma oportunidade inesperada. Melhor, como um modo de governo. Ficou demonstrado que o neoliberalismo, apesar dos desastres que engendra, possui uma notável capacidade de autofortalecimento. Ele fez surgir um sistema de normas e instituições que comprime as sociedades como um nó de forca. As crises não são para ele uma ocasião para limitar-se, como aconteceu em meados do século XX, mas um meio de prosseguir cada vez com mais vigor sua trajetória de limitação. O capitalismo, com ele, não parece mais capaz de encontrar compensações, contrapartidas, compromissos. A maneira como a crise de 2008 foi provisoriamente superada, com uma inundação de moeda especulativa emitida pelos bancos centrais, mostra que a lógica neoliberal escapa de maneira extraordinariamente perigosa.

O acúmulo de tensões e problemas não resolvidos, o reforço de tendências desigualitárias e desequilíbrios especulativos preparam dias cada vez mais difíceis para as populações. No entanto, o caráter sistêmico do dispositivo neoliberal torna qualquer inflexão das políticas conduzidas muito difícil, ou mesmo impossível, no próprio âmbito do sistema. Compreender politicamente o neoliberalismo pressupõe que se compreenda a natureza do projeto social e político que ele representa e promove desde os anos 1930. Ele traz em si uma ideia muito particular da democracia, que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo: o direito privado deveria ser isentado de qualquer deliberação e qualquer controle, mesmo sob a forma do sufrágio universal. Essa é a razão pela qual a lógica não controlada de autofortalecimento e radicalização do neoliberalismo obedece, hoje, a um cenário histórico que não é o dos anos 1930, quando ocorreu uma revisão das doutrinas e das políticas do “laissez-faire”. Esse sistema fechado impede qualquer autocorreção de trajetória, em particular em razão da desativação do jogo democrático e até mesmo, sob certos aspectos, da política como atividade. O sistema neoliberal está nos fazendo entrar na era pós-democrática.

Na ausência de margens de manobra, o confronto político com o sistema neoliberal enquanto tal é inevitável. Mas esse confronto também é problemático, porque é difícil reunir as condições em que ele se dá. O sistema neoliberal é instaurado por forças e poderes que se apoiam uns nos outros em nível nacional e internacional. Oligarquias burocráticas e políticas, multinacionais, atores financeiros e grandes organismos econômicos internacionais formam uma coalização de poderes concretos que exercem certa função política em escala mundial. Hoje, a relação de forças pende inegavelmente a favor desse bloco oligárquico.

Além dos fatores sociológicos e políticos, os próprios móbeis subjetivos da mobilização são enfraquecidos pelo sistema neoliberal: a ação coletiva se tornou mais difícil, porque os indivíduos são submetidos a um regime de concorrência em todos os níveis. As formas de gestão na empresa, o desemprego e a precariedade, a dívida e a avaliação, são poderosas alavancas de concorrência interindividual e definem novos modos de subjetivação. A polarização entre os que desistem e os que são bem-sucedidos mina a solidariedade e a cidadania. Abstenção eleitoral, dessindicalização, racismo, tudo parece conduzir à destruição das condições do coletivo e, por consequência, ao enfraquecimento da capacidade de agir contra o neoliberalismo.

O sofrimento causado por essa subjetivação neoliberal, a mutilação que ela opera na vida comum, no trabalho e fora dele, são tais que não podemos excluir a possibilidade de uma revolta antineoliberal de grande amplitude em muitos países. Mas não devemos ignorar as mutações subjetivas provocadas pelo neoliberalismo que operam no sentido do egoísmo social, da negação da solidariedade e da redistribuição e que podem desembocar em movimentos reacionários ou até mesmo neofascistas. As condições de um confronto de grande amplitude entre lógicas contrárias e forças adversas em escala mundial estão se avolumando.

A esquerda somente poderá tirar partido disso se souber remediar a pane de imaginação que vem sofrendo. A falência histórica do comunismo de Estado contribuiu em muito para sua ruína. Se quisermos ultrapassar o neoliberalismo, abrindo uma alternativa positiva, temos de desenvolver uma capacidade coletiva que ponha a imaginação política para trabalhar a partir das experimentações e das lutas do presente. O princípio do comum que emana hoje dos movimentos, das lutas e das experiências remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais. Essa nova razão que emerge das práticas faz prevalecer o uso comum sobre a propriedade privada exclusiva, o autogoverno democrático sobre o comando hierárquico e, acima de tudo, torna a coatividade indissociável da codecisão – não há obrigação política sem participação em uma mesma atividade. Como escrevemos nas últimas linhas deste livro, precisamos trabalhar por uma outra razão do mundo.

Pierre Dardot e Christian Laval
Fevereiro de 2016

AGRADECIMENTOS

Este livro é devedor, em primeiro lugar, de todas aquelas e todos aqueles que participaram nos últimos anos do seminário “Question Marx”, no qual foram apresentadas e discutidas nossas pesquisas sobre o neoliberalismo.

Queremos agradecer especialmente aos participantes que enriqueceram nossa reflexão coletiva com suas apresentações, em particular Gilles Dostaler, Agnès Labrousse, Dominique Plihon, Pascal Petit e Isabelle Rochet.

Devemos muito a nosso editor, Hugues Jallon, que acompanha desde o início a pequena aventura do seminário “Question Marx” e nos ajudou enormemente com seus conselhos para a composição da obra. Agradecemos igualmente a Bruno Auerbach, pela releitura atenta e paciente do original.

Mas nada disso teria sido possível sem a amizade fiel e o apoio intelectual de El Mouhoub Mouhoud, que se associou desde o início à redação deste livro, tampouco sem a ajuda tão constante quanto preciosa de Anne Dardot, que várias vezes releu e organizou o original, sem nunca medir esforços.


INTRODUÇÃO À EDIÇÃO INGLESA (2014)[a]

“Ainda não terminamos com o neoliberalismo” era a primeira frase da Introdução à primeira edição francesa deste livro, publicada em janeiro de 2009. Na época, queríamos dissipar o quanto antes as ilusões que surgiram com a falência do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. Muitos pensavam, na Europa e nos Estados Unidos, que a crise financeira soara as badaladas finais do neoliberalismo e que seria a vez do “retorno do Estado” e da regulação dos mercados. Joseph Stiglitz percorria o mundo anunciando “o fim do neoliberalismo”, e autoridades políticas, como o presidente francês Nicolas Sarkozy, proclamavam a reabilitação da intervenção governamental na economia.

Perigosas, uma vez que poderiam suscitar uma desmobilização política, essas ilusões não tinham razões para nos deixar admirados: baseavam-se num erro de diagnóstico amplamente compartilhado, o qual nossa obra tinha o objetivo de combater. Enganar-se sobre a verdadeira natureza do neoliberalismo, ignorar sua história, não enxergar suas profundas motivações sociais e subjetivas era condenar-se à cegueira e continuar desarmado diante do que não ia demorar a acontecer: longe de provocar o enfraquecimento das políticas neoliberais, a crise conduziu a seu brutal fortalecimento, na forma de planos de austeridade adotados por Estados cada vez mais ativos na promoção da lógica da concorrência dos mercados financeiros. Parecia-nos, e hoje nos parece mais do que nunca, que a análise da gênese e do funcionamento do neoliberalismo é condição para uma resistência eficaz em escala europeia e mundial. Ainda que pretenda respeitar os critérios da pesquisa científica, este livro não é acadêmico no sentido tradicional do termo, mas pretende-se primeiro, e acima de tudo, uma obra de esclarecimento político sobre essa lógica normativa global que é o neoliberalismo. Em uma palavra, a compreensão do neoliberalismo é, a nosso ver, uma questão estratégica universal.

Um erro de diagnóstico

A partir do fim dos anos 1970 e do início dos anos 1980, o neoliberalismo foi interpretado em geral como se fosse ao mesmo tempo uma ideologia e uma política econômica diretamente inspirada nessa ideologia. O núcleo duro dessa ideologia seria constituído por uma identificação do mercado com uma realidade natural[1]. Segundo essa ontologia naturalista, bastaria deixar essa realidade por sua própria conta para ela alcançar equilíbrio, estabilidade e crescimento. Qualquer intervenção do governo só poderia desregular e perturbar esse curso espontâneo, logo convinha estimular uma atitude abstencionista. O neoliberalismo compreendido dessa forma apresenta-se como reabilitação pura e simples do laissez-faire. Considerado do ponto de vista de sua implantação política, foi analisado de pronto de forma muito estreita, segundo a perspicaz observação de Wendy Brown:

"Como instrumento da política econômica do Estado, com o desmantelamento dos auxílios sociais, da progressividade do imposto e outras ferramentas de redistribuição de riquezas de um lado e com o estímulo da atividade sem entraves ao capital mediante a desregulamentação do sistema de saúde, do trabalho e do meio ambiente de outro.[2]"

Se admitirmos que sempre há “intervenção”, esta é unicamente no sentido de uma ação pela qual o Estado mina os alicerces de sua própria existência, enfraquecendo a missão do serviço público previamente confiada a ele. “Intervencionismo” exclusivamente negativo, poderíamos dizer, que nada mais é que a face política ativa da preparação da retirada do Estado por ele próprio, portanto, de um anti-intervencionismo como princípio.

Não é nossa intenção contestar a existência e a difusão dessa ideologia, tampouco negar que ela tenha alimentado as políticas econômicas impulsionadas maciçamente a partir dos anos Reagan e Thatcher e encontrado em Alan Greenspan, o “maestro de Wall Street”, seu adepto mais fervoroso – com as consequências que todos conhecemos[3]. O que Joseph Stiglitz chamou com justiça de “fanatismo do mercado” é, aliás, o que os periódicos Wall Street Journal, The Economist e todos os equivalentes ao redor do mundo sabem fomentar melhor entre seus leitores[4]. Mas o neoliberalismo está muito distante de se resumir a um ato de fé fanático na naturalidade do mercado. O grande erro cometido por aqueles que anunciam a “morte do liberalismo” é confundir a representação ideológica que acompanha a implantação das políticas neoliberais com a normatividade prática que caracteriza propriamente o neoliberalismo. Por isso, o relativo descrédito que atinge hoje a ideologia do laissez-faire não impede de forma alguma que o neoliberalismo predomine mais do que nunca enquanto sistema normativo dotado de certa eficiência, isto é, capaz de orientar internamente a prática efetiva dos governos, das empresas e, para além deles, de milhões de pessoas que não têm necessariamente consciência disso. Este é o ponto principal da questão: como é que, apesar das consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais, essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves? Como é que, há mais de trinta anos, essas mesmas políticas vêm se desenvolvendo e se aprofundando, sem encontrar resistências suficientemente substanciais para colocá-las em xeque?

A resposta não é e não pode ser limitada apenas aos aspectos “negativos” das políticas neoliberais, isto é, à destruição programada das regulamentações e das instituições. O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da “modernidade”. Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa.

Há quase um terço de século, essa norma de vida rege as políticas públicas, comanda as relações econômicas mundiais, transforma a sociedade, remodela a subjetividade. As circunstâncias desse sucesso normativo foram descritas inúmeras vezes. Ora sob seu aspecto político (a conquista do poder pelas forças neoliberais), ora sob seu aspecto econômico (o rápido crescimento do capitalismo financeiro globalizado), ora sob seu aspecto social (a individualização das relações sociais às expensas das solidariedades coletivas, a polarização extrema entre ricos e pobres), ora sob seu aspecto subjetivo (o surgimento de um novo sujeito, o desenvolvimento de novas patologias psíquicas). Tudo isso são dimensões complementares da nova razão do mundo. Devemos entender, por isso, que essa razão é global, nos dois sentidos que pode ter o termo: é “mundial”, no sentido de que vale de imediato para o mundo todo; e, ademais, longe de limitar-se à esfera econômica, tende à totalização, isto é, a “fazer o mundo” por seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana. Razão do mundo, mas ao mesmo tempo uma “razão-mundo”[5].

O neoliberalismo como racionalidade

A tese defendida por esta obra é precisamente que o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação. O termo racionalidade não é empregado aqui como um eufemismo que nos permite evitar a palavra “capitalismo”. O Neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral de vida. O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência.

O conceito de “racionalidade política” foi elaborado por Michel Foucault em relação direta com as pesquisas que dedicou à questão da “governamentalidade”. Assim, encontramos na explanação do curso dado no Collège de France em 1978-1979 – publicado com o título de Nascimento da biopolítica[6] – uma apresentação do “plano de análise” escolhido para o estudo do neoliberalismo: trata-se, diz Foucault, em resumo, “de um plano de análise possível – o da ‘razão governamental’, isto é, dos tipos de racionalidade que são empregados nos procedimentos pelos quais se dirige, através de uma administração de Estado, a conduta dos homens”[7]. Uma racionalidade política é, nesse sentido, uma racionalidade “governamental”.

Devemos nos estender ainda sobre o sentido dessa noção de “governo”: “Trata-se [...] não da instituição ‘governo’, mas da atividade que consiste em reger a conduta dos homens no interior de um quadro e com instrumentos de Estado”[8]. Foucault retoma várias vezes essa ideia do governo como atividade, e não como instituição. Assim, no resumo do curso do Collège de France intitulado Do governo dos vivos[b], essa noção é “entendida no sentido amplo de técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens” [9]. Ou então, no prefácio à História da sexualidade[c], há este esclarecimento retrospectivo de sua análise das práticas punitivas: ele se diz interessado, acima de tudo, nos procedimentos do poder, ou seja, “na elaboração e na implantação desde o século XVII de técnicas para ‘governar’ os indivíduos, isto é, para ‘conduzir sua conduta’, e isso em domínios tão diferentes quanto a escola, o Exército, a fábrica” [10]. O termo “governamentalidade” foi introduzido precisamente para significar as múltiplas formas dessa atividade pela qual homens, que podem ou não pertencer a um governo, buscam conduzir a conduta de outros homens, isto é, governá-los.

É certo que o governo, longe de remeter à disciplina para alcançar o mais íntimo do indivíduo, visa na verdade a obter um autogoverno do indivíduo, isto é, produzir certo tipo de relação deste consigo mesmo. Em 1982, Foucault dirá que se interessa cada vez mais pelo “modo de ação que um indivíduo exerce sobre si mesmo por meio das técnicas de si”, a ponto de ampliar sua primeira concepção de governamentalidade, excessivamente centrada nas técnicas de exercício do poder sobre os outros: “Chamo de ‘governamentalidade’ o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si” [11]. Assim, governar é conduzir a conduta dos homens, desde que se especifique que essa conduta é tanto aquela que se tem para consigo mesmo quanto aquela que se tem para com os outros. É nisso que o governo requer liberdade como condição de possibilidade: governar não é governar contra a liberdade ou a despeito da liberdade, mas governar pela liberdade, isto é, agir ativamente no espaço de liberdade dado aos indivíduos para que estes venham a conformar-se por si mesmos a certas normas.

Abordar a questão do neoliberalismo pela via de uma reflexão política sobre o modo de governo modifica necessariamente a compreensão que se tem dele. Em primeiro lugar, permite refutar análises simplistas em termos de “retirada do Estado” diante do mercado, já que a oposição entre o mercado e o Estado aparece como um dos principais obstáculos à caracterização exata do neoliberalismo. Ao contrário de certa percepção imediata, e de certa ideia demasiado simples, de que os mercados conquistaram a partir de fora os Estados e ditam a política que estes devem seguir, foram antes os Estados, e os mais poderosos em primeiro lugar, que introduziram e universalizaram na economia, na sociedade e até neles próprios a lógica da concorrência e o modelo de empresa. Não podemos esquecer jamais que a expansão das finanças de mercado, assim como o financiamento da dívida pública nos mercados de títulos, são fruto de políticas deliberadas. Como se vê até mesmo na atual crise na Europa, os Estados adotam políticas altamente “intervencionistas”, que visam a alterar profundamente as relações sociais, mudar o papel das instituições de proteção social e educação, orientar as condutas criando uma concorrência generalizada entre os sujeitos, e isso porque eles próprios estão inseridos num campo de concorrência regional e mundial que os leva a agir dessa forma. Mais uma vez, comprovamos as grandes análises de Marx, Weber ou Polanyi segundo as quais o mercado moderno não atua sozinho: ele foi sempre amparado pelo Estado. Em segundo lugar, a via da reflexão política permite compreender que é uma mesma lógica normativa que rege as relações de poder e as maneiras de governar em níveis e domínios muitos diferentes da vida econômica, política e social. Ao contrário de uma leitura do mundo social que o divide em campos autônomos, o fragmenta em microcosmos e tribos separadas, a análise em termos de governamentalidade destaca o caráter transversal dos modos de poder exercidos no interior de uma sociedade numa mesma época.

Os limites do marxismo

Enfatizando o regime disciplinar imposto a todos pela lógica normativa que se encarnou em instituições e dispositivos de poder cujo alcance hoje é mundial, nosso pensamento difere um pouco de muitas das interpretações do neoliberalismo dadas até o momento. Não contestamos que as políticas neoliberais foram impostas primeiro pela mais criminosa das violências no Chile, na Argentina, na Indonésia e em outros lugares, com o apoio decisivo dos países capitalistas, a começar pelos Estados Unidos. O trabalho de Naomi Klein, muito bem documentado a respeito desse ponto, continua obrigatório[12]. Nesse aspecto, há uma frase de Marx que não envelheceu: “Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência” [13]. Esse parto na violência revela, em primeiro lugar, o fato de que se trata de uma guerra que se trava por todos os meios disponíveis, inclusive o terror, e que se aproveita de todas as ocasiões possíveis para implantar o novo regime de poder e a nova forma de existência. Por isso, se reduzíssemos o neoliberalismo à aplicação do programa econômico da Escola de Chicago pelos métodos da ditadura militar, enveredaríamos pelo caminho errado. Convém não confundir estratégia geral com métodos particulares. Estes dependem das circunstâncias locais, das relações de forças e das fases históricas: podem tanto empregar a brutalidade do putsch militar como a sedução eleitoreira das classes médias; podem usar e abusar da chantagem do emprego e do crescimento e aproveitar os déficits e as dívidas como pretexto para as “reformas estruturais”, como fazem há muito tempo o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a União Europeia. O questionamento da democracia toma caminhos diversos, que nem sempre têm a ver com a “terapia de choque”, mas, sim, e sobretudo, com o que Wendy Brown chamou, com justiça, de processo de “desdemocratização”, que consiste em esvaziar a democracia de sua substância sem a extinguir formalmente. Não há dúvida de que há uma guerra sendo travada pelos grupos oligárquicos, na qual se misturam de forma específica, a cada ocasião, os interesses da alta administração, dos oligopólios privados, dos economistas e das mídias (sem mencionar o Exército e a Igreja). Mas essa guerra visa não apenas a mudar a economia para “purificá-la” das más ingerências públicas, como também a transformar profundamente a própria sociedade, impondo-lhe a fórceps a lei tão pouco natural da concorrência e o modelo da empresa. Para isso, é preciso enfraquecer as instituições e os direitos que o movimento operário conseguiu implantar a partir do fim do século XIX, o que pressupõe uma guerra longa, contínua e muitas vezes silenciosa, qualquer que seja a amplidão do “choque” que sirva de pretexto para determinada ofensiva.

Portanto, é fundamental compreender como se exerce hoje a violência comum, rotineira, que pesa sobre os indivíduos, à maneira de Marx talvez, quando observava que a dominação do capital sobre o trabalho recorria apenas excepcionalmente à violência extraeconômica – e exercia-se mais comumente na forma de uma “coerção muda” inserida nas palavras e nas coisas[14]. Todavia, não se trata mais de se perguntar como, de maneira geral, as relações capitalistas impõem-se à consciência operária como “leis naturais evidentes”; trata-se de compreender, mais especificamente, como a governamentalidade neoliberal escora-se num quadro normativo global que, em nome da liberdade e apoiando-se nas margens de manobra concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos.

Assim, não podemos nos contentar com as lições de Karl Marx nem de Rosa Luxemburgo para desvelar o segredo dessa estranha faculdade do neoliberalismo de se estender por toda a parte, apesar de suas crises e das revoltas que suscita em todo o mundo. Por razões teóricas básicas, a interpretação marxista, por mais atual que seja, revela-se de uma insuficiência gritante nesse caso. O neoliberalismo emprega técnicas de poder inéditas sobre as condutas e as subjetividades. Ele não pode ser reduzido à expansão espontânea da esfera mercantil e do campo de acumulação do capital. Não que se deva defender, contra o determinismo monocausal de certo marxismo, a relativa autonomia da política, simplesmente porque o neoliberalismo, por muitos de seus aspectos doutrinais e nas políticas que desenvolve, não separa “a economia” do quadro jurídico-institucional que determina as práticas próprias da “ordem concorrencial” mundial e nacional.

Embora tenham previsto a crise financeira de 2008, as interpretações marxistas nem sempre conseguem captar a novidade do capitalismo neoliberal: fechando-se numa concepção que faz da “lógica do capital” um motor autônomo da história, elas reduzem a história a uma repetição dos mesmos roteiros, com as mesmas personagens vestidas com novos figurinos e as mesmas intrigas situadas em novos cenários. Em outras palavras, a história do capitalismo nunca é mais do que o desenvolvimento de uma mesma essência sempre idêntica a si mesma, aquém de suas formas fenomenais e fases, e, no fundo, leva de crise em crise até a ruína final. O neoliberalismo, entendido desse modo, é a um só tempo a máscara e o instrumento das finanças, as quais são o sujeito histórico real. Para Gérard Duménil e Dominique Lévy, o neoliberalismo “restaurou as regras mais estritas do capitalismo” (“Neoliberalism has restored the strictest rules of capitalism”)[15], permitindo ao poder do capital continuar sua marcha multissecular sob formas que se renovam por meio das crises. O próprio David Harvey, embora muito mais cuidadoso com a novidade do neoliberalismo, continua a aderir a um esquema explicativo muito pouco original[16].

Para ele, a crise da acumulação nos anos 1960, marcada pela estagflação e pela diminuição dos lucros, teria incitado a burguesia a ir à “desforra”, empregando por ocasião dessa crise, e para sair dela, o projeto social formulado pelos teóricos da Sociedade Mont-Pèlerin. O Estado neoliberal, para além de seus traços específicos e a despeito de seu intervencionismo, continua a ser visto como um simples instrumento nas mãos de uma classe capitalista desejosa de restaurar uma relação de força favorável vis-à-vis aos trabalhadores e, desse modo, aumentar sua parte na distribuição de renda. O aumento das desigualdades e o crescimento da concentração de renda e patrimônio que podemos constatar hoje confirmam a existência dessa vontade inicial[17]. No fundo, tudo reside na resposta de Duménil e Lévy à pergunta “Quem lucra com o crime?” (“Who benefits from the crime?”)[18]: como são as finanças que lucram, são elas que desde o princípio estão no comando da manobra. Temos aqui um paralogismo recorrente que consiste em confundir o beneficiário do crime com seu autor, como se o surgimento de uma nova forma social devesse ser reconduzido à consciência de um ou mais estrategistas como sua fonte ou seu foco genuíno e como se o recurso à intencionalidade de um sujeito fosse o princípio último de toda inteligibilidade histórica.

Mas, se a explicação é sedutora, é justamente porque, contrariando as lições de Marx, ela toma os resultados históricos de um processo por objetivos decididos logo de início com plena consciência. A incontestável polarização de riqueza e pobreza a que levou a implantação das políticas neoliberais basta por si só para explicar sua natureza. Esta, no fundo, seria apenas a eterna tendência do capital de se autovalorizar mediante a expansão da mercadoria. Não teria acontecido nada de muito diferente desde 1867, quando Marx expôs o jogo das leis da acumulação capitalista, fazendo a mercadoria, forma elementar da riqueza burguesa, remontar à acumulação original que produz as condições históricas da transformação da mercadoria e do dinheiro em capital. Na medida em que a análise de Marx faz da relação salarial como relação mercantil sui generis o coração do capitalismo, essa crítica tende logicamente a privilegiar a relação mercantil como modelo de toda relação social – o neoliberalismo equivaleria, assim, à mercantilização implacável de toda a sociedade. É o que Duménil e Lévy sustentam quando escrevem: “Finally neoliberalism is indeed the bearer of a process of general commodification of social relationships” [“em última análise, o neoliberalismo é o portador de um processo de mercantilização generalizada das relações sociais”][19].

David Harvey concorda largamente com essa tese. O que ele designa como “acumulação por despossessão”, expressão que sob sua caneta remete ao significado mais profundo de “neoliberalização” da sociedade, tem como efeito a expansão a priori ilimitada da mercantilização[20]. Contudo, ele acrescenta uma pincelada ao quadro – mérito que lhe deve ser reconhecido – quando sublinha que os métodos da “suposta acumulação original” perduraram muito além do surgimento do capitalismo industrial e quando considera Karl Polanyi o historiador do capitalismo mais pertinente para se compreender como, ainda hoje, a intervenção pública é necessária para construir mercados e criar “mercadorias fictícias”. Mas o verdadeiro motor da história continua a ser o poder do capital, que subordina o Estado e a sociedade, colocando-os a serviço de sua acumulação cega.

Esse esquema, amplamente compartilhado pelo movimento altermundialista, tem algumas fraquezas. Além de fazer da economia a única dimensão do neoliberalismo, pressupõe que a burguesia é um sujeito histórico que perdura no tempo, que preexiste às relações de luta que engaja com as outras classes e que somente precisou alertar, influenciar e corromper os políticos para que estes abandonassem as políticas keynesianas e as fórmulas de compromisso entre o trabalho e o capital. Em Harvey, esse cenário entra em contradição com o reconhecimento de que as classes mudaram profundamente ao longo do processo de neoliberalização – a ponto de novas burguesias terem surgido diretamente dos aparelhos comunistas em certos países (oligarcas na Rússia, príncipes vermelhos na China) – e é incoerente com a análise bastante precisa das formas específicas de intervenção do Estado neoliberal.

Na realidade, não houve um grande complô nem uma doutrina pré-fabricada que os políticos teriam aplicado com cinismo e determinação para satisfazer as expectativas de seus poderosos amigos do mundo dos negócios. A lógica normativa que acabou se impondo constituiu-se ao longo de batalhas inicialmente incertas e de políticas frequentemente tateantes. A sociedade neoliberal em que vivemos é fruto de um processo histórico que não foi integralmente programado por seus pioneiros; os elementos que a compõem reuniram-se pouco a pouco, interagindo uns com os outros, fortalecendo uns aos outros. Da mesma forma como não é resultado direto de uma doutrina homogênea, a sociedade neoliberal não é reflexo de uma lógica do capital que suscita as formas sociais, culturais e políticas que lhe convém à medida que se expande. A explicação marxista clássica esquece que a crise de acumulação a que o neoliberalismo supostamente responde, longe de ser uma crise de um capitalismo sempre igual a si mesmo, tem a particularidade de estar ligada às regras institucionais que até então enquadravam certo tipo de capitalismo.

Consequentemente, a originalidade do neoliberalismo está no fato de criar um novo conjunto de regras que definem não apenas outro “regime de acumulação”, mas também, mais amplamente, outra sociedade. Tocamos aqui num ponto fundamental. Na concepção marxista, o capitalismo é, antes de tudo, um “modo de produção” econômico que, como tal, é independente do direito e gera a ordem jurídico-política de que necessita a cada estágio de seu autodesenvolvimento. Ora, longe de pertencer a uma “superestrutura” condenada a exprimir ou obstruir o econômico, o jurídico pertence de imediato às relações de produção, na medida em que molda o econômico a partir de dentro. “O inconsciente dos economistas”, como diz Foucault, que é na verdade o inconsciente de todo economicismo, seja liberal, seja marxista, é precisamente a instituição, e é justamente a instituição que o neoliberalismo, em particular em sua versão ordoliberal, quer reconduzir a uma posição determinante[21].

Tocamos aqui num ponto fundamental, cuja implicação política tem a ver com a questão da possibilidade de sobrevivência do capitalismo além de suas crises, uma possibilidade que, como bem sabemos, foi discutida novamente no auge da crise de novembro de 2008. Se nos colocarmos sob uma perspectiva marxista, a lógica única e necessária da acumulação do capital determina a unicidade do capitalismo: “Há na verdade apenas um capitalismo, porque há apenas uma lógica do capital”, como observa Foucault[22]. As contradições que a sociedade capitalista manifesta em todas as épocas são as contradições do capitalismo tout court. Por exemplo, se seguirmos a análise do Livro I de O capital, a consequência da lei geral da acumulação capitalista é uma tendência à centralização dos capitais, da qual a concorrência, juntamente com o crédito, é a principal alavanca. A tendência à centralização está, portanto, na própria lógica da concorrência como uma “lei natural”, a da “atração do capital pelo capital”[23]. Mas se pensarmos como os ordoliberais – e, depois deles, como os economistas “regulacionistas” [24] – que a figura atual do capitalismo, longe de poder se deduzir diretamente da lógica do capital, não passa de “uma figura econômico-institucional” historicamente singular, devemos convir, então, que a forma do capitalismo e os mecanismos da crise são efeito contingente de certas regras jurídicas, não consequência necessária das leis da acumulação capitalista. Por conseguinte, são suscetíveis de ser superadas à custa de transformações jurídico-institucionais. Em última análise, o que justifica o intervencionismo jurídico reivindicado pelo neoliberalismo é que, quando se lida com um capitalismo singular, é possível intervir nesse conjunto de maneira a inventar outro capitalismo, diferente do primeiro, o qual constituirá uma configuração singular determinada por um conjunto de regras jurídico-políticas. Em vez de um modo econômico de produção cujo desenvolvimento é comandado por uma lógica que age à maneira de uma “lei natural” implacável, o capitalismo é um “complexo econômico-jurídico” que admite uma multiplicidade de figuras singulares. É por isso também que devemos falar de sociedade neoliberal, e não apenas de política neoliberal ou economia neoliberal – embora seja inegavelmente uma sociedade capitalista, essa sociedade diz respeito a uma figura singular do capitalismo que exige ser analisada como tal em sua irredutível especificidade. Vemos, pois, que a análise da governamentalidade neoliberal atinge indiretamente, como que por tabela, a concepção marxista do capitalismo em seu essencialismo.

Não é só isso. A interpretação marxista do neoliberalismo nem sempre compreendeu que a crise dos anos 1960-1970 não era redutível a uma “crise econômica” no sentido clássico. Nesses termos, ela é estreita demais para captar a extensão das transformações sociais, culturais e subjetivas introduzidas pela difusão das normas neoliberais em toda a sociedade. Porque o neoliberalismo não é apenas uma resposta a uma crise de acumulação, ele é uma resposta a uma crise de governamentalidade. É, na verdade, nesse contexto muito específico de contestação generalizada que Foucault situa o advento de uma nova maneira de conduzir os indivíduos que pretende satisfazer a aspiração de liberdade em todos os domínios, tanto sexual e cultural como econômico. Para resumirmos, ele teve a intuição de que o que se decidia naqueles anos era uma crise aguda das formas até então dominantes de poder. Compreendeu, contra o economicismo, que não se podem isolar as lutas dos trabalhadores das lutas das mulheres, dos estudantes, dos artistas e dos doentes, e pressentiu que a reformulação dos modos de governo dos indivíduos nos diversos setores da sociedade e as respostas dadas às lutas sociais e culturais estavam encontrando, com o neoliberalismo, uma possível coerência teórica e prática. Interessando-se de perto pela história do governo liberal, ele mostra que aquilo que chamamos desde o século XVIII de “economia” está no fundamento de um conjunto de dispositivos de controle da população e de orientação das condutas (a “biopolítica”) que vão encontrar no neoliberalismo uma sistematização inédita. Com este último, a concorrência e o modelo empresarial constituem um modo geral de governo, muito além da “esfera econômica” no sentido habitual do termo. E é precisamente o que se pode observar por toda a parte. A exigência de “competitividade” tornou-se um princípio político geral que comanda as reformas em todos os domínios, mesmo os mais distantes dos enfrentamentos comerciais no mercado mundial. Ela é a expressão mais clara de que estamos lidando não com uma “mercantilização sorrateira”, mas com uma expansão da racionalidade de mercado a toda a existência por meio da generalização da forma-empresa. É essa “racionalização da existência” que, afinal, como dizia Margaret Thatcher, pode “mudar a alma e o coração”. Nesse sentido, basta pensarmos nos profundos estragos subjetivos que vinte anos de “berlusconismo” produziram na Itália para termos uma ideia bastante precisa dessas transformações. Embora se distinga de um marxismo estreito, essa análise vai ao encontro de uma das intuições mais profundas de Marx, que compreendeu muito bem que um sistema econômico de produção era também um sistema antropológico de produção.

A crise generalizada de um modo de governar os homens

Enfatizando a dimensão produtora do neoliberalismo, essa análise nos permite pensar a crise atual não mais como consequência de um “excesso de finanças”, um efeito da “ditadura dos mercados” ou, então, uma “colonização” dos Estados pelo capital. A crise que atravessamos aparece como aquilo que é: uma crise global do neoliberalismo como modo de governar as sociedades.

A crise atual do euro não é uma simples crise “monetária”, as crises dos países do sul da Europa não são simples crises “orçamentárias”, assim como a crise mundial que começou no outono de 2008 não é uma simples crise “econômica”. Considerada isoladamente, a primeira pode aparecer como uma espécie de réplica atrasada da crise dos subprimes, uma transição entre uma crise da dívida privada e uma crise da dívida pública, sob o efeito de mercados especulativos não controlados. Mas essa visão é estreita, ou mesmo enganosa. A crise mundial é uma crise geral da 
“governamentalidade neoliberal”, isto é, de um modo de governo das economias e das sociedades baseado na generalização do mercado e da concorrência. A crise financeira está profundamente ligada às medidas que, desde o fim dos anos 1970, introduziram na esfera das finanças norte-americanas e mundiais novas regras baseadas na generalização da concorrência entre as instituições bancárias e os fundos de investimentos, o que os levou a aumentar os níveis de risco e espalhá-los pelo resto da economia para embolsar lucros especulativos colossais.

Tornou-se comum relacionar a crise ao “novo regime de acumulação financeira”, caracterizado por uma instabilidade crônica que assiste à formação sucessiva de “bolhas especulativas” e a seu estouro, mas é raro que se diga que a financeirização do capitalismo em escala mundial é apenas um dos aspectos de um conjunto de normas que envolveram progressivamente todos os aspectos da atividade econômica, da vida social e da política dos Estados desde o fim dos anos 1970. A autonomia e o inchaço da esfera financeira não são as causas primeiras e espontâneas de um novo modo de acumulação capitalista. A hipertrofia financeira é antes o efeito historicamente identificável de políticas que estimularam a concorrência entre os atores nacionais e mundiais das finanças. Acreditar que os mercados financeiros escaparam um belo dia da influência política é puro e simples conto da carochinha. Foram os Estados e as organizações econômicas mundiais, em estreita conivência com os atores privados, que criaram as regras favoráveis a esse rápido crescimento das finanças de mercado.

Se a crise financeira norte-americana mostrou sobre que bases instáveis e desigualitárias funcionava o novo capitalismo mundial (especulação cínica das finanças de mercado, sucessão de bolhas cada vez maiores, polarização crescente entre as classes, submissão à dívida bancária das populações das classes pobres e dos países periféricos etc.), a atual crise europeia mostra que os fundamentos da construção europeia (“a ordem da concorrência livre e não distorcida”) conduzem a assimetrias cada vez maiores entre países mais ou menos “competitivos”. Porque é exatamente o imperativo da “competitividade”, enaltecida por toda a parte como o único “remédio”, que explica a especificidade da atual crise europeia. A corrida à competitividade, na qual a Alemanha se lançou no início dos anos 2000 com sucesso crescente, nada mais é do que o efeito da implementação de um princípio inserido na “Constituição europeia”: a competição entre as economias europeias, combinada com a existência de uma moeda única gerida por um banco central que garante a estabilidade dos preços, constitui na verdade a própria base do edifício comunitário e o eixo dominante das políticas nacionais. Isso significa que todo país-membro é livre para usar o dumping fiscal mais agressivo a fim de atrair as multinacionais e os contribuintes mais ricos, é livre para diminuir os salários e a proteção social a fim de criar empregos à custa de seus vizinhos, é livre para tentar baixar os custos de produção deslocando toda ou parte de sua produção e é livre para reduzir as despesas públicas, inclusive com saúde e educação, a fim de reduzir o nível dos descontos compulsórios. Enquanto princípio geral de governo, a “competitividade” representa precisamente a extensão da norma neoliberal a todos os países, a todos os setores da ação pública, a todos os domínios da vida social, e é a implementação dessa norma que leva à diminuição da demanda por toda parte simultaneamente, sob o pretexto de tornar a oferta mais “competitiva”, e à concorrência entre os assalariados dos países europeus e dos outros países do mundo, o que acarreta deflação salarial e desigualdades crescentes. A atitude da Renault na Espanha é muito esclarecedora nesse sentido: apesar de elogiar a competitividade dos funcionários espanhóis diante dos funcionários franceses, na Espanha a direção do grupo não hesita em exaltar o exemplo da Romênia para pedir aos funcionários que trabalhem de graça aos sábados[25].

Como explicar essa corrida suicida para ver quem será o campeão da austeridade? Devemos culpar a falta de lucidez ou, mais profundamente, vê-la como consequência de uma engrenagem concorrencial? No interior de um sistema europeu baseado na concorrência e numa moeda única, a pressão especulativa dos investidores privados sobre o mercado da dívida pública e a pressão das agências de classificação de risco, sem falar da impossibilidade de desvalorização da moeda, são todos aspectos de uma mesma lógica disciplinadora com uma temível eficácia para rebaixar os salários e diminuir a proteção social.

É incompreensível a obstinação, ou mesmo o fanatismo, com que os especialistas dos governos, da União Europeia e do FMI perseguem essa tal política de “austeridade”, se não levarmos em conta que eles estão presos a um quadro normativo, tanto europeu como mundial, composto de regras de direito públicas e privadas e “consensos” com valor de compromisso para o futuro que eles próprios construíram ativamente durante décadas. Não podendo e não querendo romper com esse quadro, são empurrados para adaptar-se cada vez mais aos efeitos de sua própria política anterior. Nesse sentido, os planos de austeridade que diminuem a renda da grande massa da população são inseparáveis da vontade de gerir as economias e as sociedades como empresas “lançadas na competição mundial”.

Aqui e ali, nos espaços onde a crítica ainda é possível, condenam-se os “erros” das políticas europeias de austeridade, que, repetindo os equívocos dos anos 1930, agravam a depressão onde quer que sejam adotadas e levam sociedades inteiras a uma regressão social que até pouco tempo atrás era inimaginável. Paul Krugman aconselha há anos um aumento da despesa pública para pôr a máquina novamente em movimento[26]. Mas devemos ir mais longe na análise para compreender por quais encadeamentos fatais os governos “técnicos” da Grécia, da Espanha, de Portugal ou da Itália, mas também o governo “socialista” da França, foram levados a implantar políticas tão contrárias ao “bom senso”, já que reduzem a demanda e aniquilam os empregos quando deveriam ser expansionistas e gerar atividade. Boas almas keynesianas ou pós-keynesianas podem até alegar que essas políticas violentamente aplicadas no sul da Europa são não apenas contrárias ao bem-estar da maioria, como fatais para o crescimento e até para a sobrevivência da construção europeia, mas não conseguirão convencer com simples argumentos os dirigentes europeus, os meios financeiros e todos os especialistas e os jornalistas que se encarregaram de justificar o suicídio coletivo. Continuar a acreditar que o neoliberalismo não passa de uma “ideologia”, uma “crença”, um “estado de espírito” que os fatos objetivos, devidamente observados, bastariam para dissolver, como o sol dissipa a névoa matinal, é travar o combate errado e condenar-se à impotência. O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais. Além disso, devemos deixar claro que esse sistema é tanto mais “resiliente” quanto excede em muito a esfera mercantil e financeira em que reina o capital. Ele estende a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetividade “contábil” pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos. Pense-se em particular na generalização dos métodos de avaliação no ensino público oriundos da empresa: a longa greve dos professores de Chicago em setembro de 2012 obstruiu, ao menos momentaneamente, um projeto de avaliação dos professores de acordo com o desempenho de seus alunos em testes elaborados sob medida para permitir a avaliação dos professores por meio da avaliação dos alunos, com a possibilidade de demissão do professor cujos alunos não apresentassem resultados satisfatórios.

Pense-se igualmente como o endividamento crônico é produtor de subjetividade e acaba se tornando um verdadeiro “modo de vida” para centenas de milhares de indivíduos: o movimento dos estudantes do Québec pôs em evidência a lógica infernal do endividamento para toda a vida que seria imposto pela alta brutal das taxas de matrícula. O que está em jogo nesses exemplos é a construção de uma nova subjetividade, o que chamamos de “subjetivação contábil e financeira”, que nada mais é do que a forma mais bem-acabada da subjetivação capitalista. Trata-se, na verdade, de produzir uma relação do sujeito individual com ele mesmo que seja homóloga à relação do capital com ele mesmo ou, mais precisamente, uma relação do sujeito com ele mesmo como um “capital humano” que deve crescer indefinidamente, isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais. Como podemos ver, não são tanto as teorias falsas que devem ser combatidas, ou as condutas imorais que devem ser denunciadas, mas é todo um quadro normativo que deve ser desmantelado e substituído por outra “razão do mundo”. Esse é o desafio das lutas sociais atuais, que decidirão a continuação – ou até mesmo a radicalização – dessa lógica neoliberal ou, ao contrário, seu fim.

Quanto ao Estado, com o qual alguns ainda contam ingenuamente para “controlar” os mercados, a crise mostrou até que ponto ele se fez o coprodutor voluntário das normas de competitividade, à custa de todas as considerações de salvaguarda das condições mínimas de bem-estar, saúde e educação da população. Mas a crise mostrou também que o Estado, pela defesa incondicional que fazia do sistema financeiro, era parte interessada nas novas formas de sujeição do assalariado ao endividamento de massa que caracteriza o funcionamento do capitalismo contemporâneo. O Estado neoliberal não é, portanto, um “instrumento” que se possa utilizar indiferentemente para finalidades contrárias. Enquanto “Estado-estrategista”, codecididor dos investimentos e das normas, ele é uma peça da máquina que se deve combater.

Atingindo a Europa, a crise mundial agiu como um indicador brutal e impiedoso. Pôs a nu as ilusões sobre as quais a Europa se construiu até hoje: a crença de que se podia construir a Europa política sobre o êxito econômico e a prosperidade material, “constitucionalizando” as normas do equilíbrio orçamentário, da estabilidade monetária e da concorrência. A crise da Europa é uma crise de seus fundamentos. Não basta “reorientar” a Europa em direção ao crescimento, ou “resolver o déficit democrático” da Europa, coroando o grande mercado com a superestrutura institucional de um Estado federal sem mexer em suas fundações. Não é o telhado da “casa Europa” que é frágil, mas suas fundações, que estão rachando de todos os lados. É preciso compreender quão intimamente os três aspectos da Europa atual estão ligados entre si: constitucionalização da concorrência e da regra de ouro orçamentária, “federalismo executivo” consagrando a supremacia do intergovernamental e a importância secundária dos direitos sociais[27]. Em particular, o fato de que o Parlamento não tenha nenhum poder de iniciativa no campo legislativo, que a Comissão Europeia, instância não eleita, seja a única habilitada a propor leis e disponha de poder de veto em matéria de legislação e que essa mesma Comissão Europeia e o Conselho dos Ministros (que não têm nenhuma responsabilidade em relação ao Parlamento) sejam considerados órgãos independentes, encarregados de promover o “interesse geral”, não é em absoluto um concurso fortuito de circunstâncias; ao contrário, existe nisso uma coerência institucional forte, que repousa no princípio antidemocrático segundo o qual a independência em relação aos cidadãos é a melhor garantia para perseguir o interesse geral. Assim, é preciso refundar a Europa, isto é, no sentido exato do termo, dar a ela novas fundações. À diferença dos tratados precedentes, esse ato não pode ser negociado e implantado por uma instância intergovernamental, nem mesmo depender do monopólio de um Parlamento. Ele só pode ser um ato dos cidadãos europeus.

Liberalismo clássico e neo liberalismo

Para além da questão política, abordar o estudo do neoliberalismo pela governamentalidade não deixa de levar a certos desvios em relação às abordagens dominantes ou às linhas de clivagem estabelecidas. Esta obra propõe-se examinar os caracteres diferenciais que especificam a governamentalidade neoliberal. Portanto, não se trata aqui de procurar restabelecer uma simples continuidade entre liberalismo e neoliberalismo, como se costuma fazer, mas sublinhar o que constitui propriamente a novidade do neo liberalismo, o que implicar ir contra a tendência que consiste em apresentar o neoliberalismo como um “retorno” ao liberalismo original ou uma “restauração” deste último após o longo eclipse que se seguiu à crise dos anos 1890-1900. As consequências políticas dessa confusão para a esquerda são facilmente discerníveis. Como toda regulamentação da vida econômica é considerada por definição a - ou antiliberal, é um dever apoiá-la, sem levar em conta seu conteúdo ou, pior ainda, prejulgando favoravelmente esse conteúdo[28].

O “primeiro liberalismo”, aquele que toma corpo no século XVIII, caracteriza-se pela elaboração da questão dos limites do governo. O governo liberal é enquadrado por “leis”, mais ou menos conjugadas: leis naturais que fazem do homem o que ele é “naturalmente” e devem servir de marco para a ação pública; leis econômicas, igualmente “naturais”, que devem circunscrever e regular a decisão política. Contudo, por mais finas e flexíveis que sejam as doutrinas do direito natural e da dogmática do laissez-faire, as técnicas utilitaristas do governo liberal tentam orientar, estimular e combinar os interesses individuais para fazê-los servir ao bem geral. Embora nesse primeiro liberalismo haja certa concepção comum do homem, da sociedade e da história, e a questão da limitação da ação governamental seja central, a unidade do liberalismo “clássico” será cada vez mais problemática, como mostram os caminhos divergentes que os liberais seguirão no século XIX, entre o dogmatismo do laissez-faire e certo reformismo social, uma divergência que resultará numa crise cada vez mais marcada das antigas certezas[29].

A primeira parte desta obra mostra que, desde seu registro de nascimento, na grande crise dos anos 1930, o neoliberalismo introduziu uma distância, ou até um claro rompimento, em relação à versão dogmática do liberalismo que se impôs no século XIX. A gravidade da crise desse dogmatismo forçava uma revisão explícita e assumida do velho laissez-faire. Combater o socialismo e todas as versões do “totalitarismo” exigia um trabalho de refundação das bases intelectuais do liberalismo. É nessa conjuntura de crise econômica, política e doutrinal que se opera uma refundação “neoliberal” da doutrina que também não conduz a uma doutrina completamente unificada. Duas grandes correntes vão se esboçar a partir do Colóquio Walter Lippmann, em 1938: a corrente do ordoliberalismo alemão, representada sobretudo por Walter Eucken e Wilhelm Röpke, e a corrente austro-americana, representada por Ludwig von Mises e Friedrich A. Hayek. A segunda parte do livro nos permitirá estabelecer que a racionalidade neoliberal que realmente se desenvolve nos anos 1980-1990 não é a simples implementação da doutrina elaborada nos anos 1930. Não passamos com ela da teoria para a prática. Uma espécie de filtro, que não se deve a uma seleção consciente e deliberada, retém alguns elementos em detrimento do resto, em função de seu valor operatório ou estratégico em dada situação histórica. Trata-se aqui não da ação de uma monocausalidade (da ideologia para a economia ou vice-versa), mas de uma multiplicidade de processos heterogêneos que resultaram, em razão de 
“fenômenos de coagulação, apoio, reforço recíproco, coesão, integração”, nesse “efeito global” que é a implantação de uma nova racionalidade governamental, no sentido definido anteriormente[30].

O neoliberalismo, portanto, não é o herdeiro natural do primeiro liberalismo, assim como não é seu extravio nem sua traição. Não retoma a questão dos limites do governo do ponto em que ficou. O neoliberalismo não se pergunta mais sobre que tipo de limite dar ao governo político, ao mercado (Adam Smith), aos direitos (John Locke) ou ao cálculo da utilidade (Jeremy Bentham), mas, sim, sobre como fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens como o do governo de si (Parte I). Considerado uma racionalidade governamental, e não uma doutrina mais ou menos heteróclita, o neoliberalismo é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade (Parte II). É essa coerência prática e normativa, mais do que a das fontes históricas e das teorias de referência, que fundamenta nosso argumento. Este último, esclarecendo a forma como se impõe e funciona em todos os níveis um certo sistema de normas, não tem outro objetivo além de contribuir para a renovação do pensamento crítico e a reinvenção das formas de luta.

_______________________________________________________
[a] Originalmente publicado na França, em 2009, este livro teve uma edição inglesa, reduzida e adaptada em 2013 e revista em 2014. Embora a presente tradução tenha sido feita a partir do original francês, a edição que ora se apresenta ao leitor brasileiro incorporou, por meio de cotejo e com a supervisão dos autores, a redução, as adaptações e as correções da edição inglesa de 2014, entre elas, esta introdução revista e ampliada. (N.E.)

[1] Esse credo naturalista, que era o de Jean-Baptiste Say e Frédéric Bastiat, foi perfeitamente formulado nos seguintes termos pelo ensaísta francês Alain Minc:

“O capitalismo não pode ruir, ele é o estado natural da sociedade. A democracia não é o estado natural da sociedade. O mercado, sim” (Cambio 16, Madri, 5 dez. 1994).

[2] Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, néolibéralisme et néoconservatisme (trad. Christine Vivier, Philippe Mangeot e Isabelle Saint-Saëns, Paris, Les Prairies Ordinaires, 2007), p. 37. Esse ensaio incisivo nos ajudou muito a formular nossa própria compreensão do neoliberalismo.

[3] A lei, de Frédéric Bastiat [trad. Ronaldo da Silva Legey, 2. ed., Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1991], era o livro de cabeceira de Ronald Reagan no início dos anos 1960. Ver Alain Laurent, Le libéralisme américain (Paris, Les Belles Lettres, 2006), p. 177.

[4] Joseph Stiglitz, Un autre monde: contre le fanatisme du marché (trad. Paul Chemla, Paris, Fayard, 2006).

[5] A ideia de uma razão configuradora do mundo encontra-se em Max Weber, embora se refira essencialmente à ordem econômica capitalista, esse “imenso cosmo” que “impõe ao indivíduo pego nas armadilhas do mercado as normas de sua atividade econômica” (L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme, trad. Isabelle Kalinowski, Paris, Champs Flammarion, 2000, p. 93-4 [ed. bras.: A ética protestante e o espírito do capitalismo, trad. José Marcos Mariani de Macedo, ed. Antônio Flávio Pierucci, São Paulo, Companhia das Letras, 2012]). Contudo, numa passagem dessa mesma obra dedicada ao caráter “relativo” e “impessoal” do amor ao próximo no calvinismo, encontramos a expressão “configuração racional do cosmo social” (ibidem, p. 175). Nesse sentido, e desde que o social não seja reduzido a apenas mais uma das dimensões da existência humana, poderíamos dizer que a razão neoliberal é muito precisamente a razão de nosso “cosmo social”.

[6] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard, 2004) [ed. bras.: Nascimento da biopolítica, trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes, 2008]. Esse curso constitui a referência central pela qual se ordena toda a análise do neoliberalismo ensaiada nesta obra.

[7] Ibidem, p. 327; reproduzido em Dits et écrits II (1976-1988) (Paris, Gallimard, 2001), p. 823. Sobre a noção de racionalidade política, ver ainda esta última obra, p. 818 e 1.645-6.

[8] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 324; reproduzido em Dits et écrits II, cit., p. 819.

[b] Trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes, 2014. (N. E.)

[9] Michel Foucault, Dits et écrits II, cit., p. 944.

[c] Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2014-2015, 3 v. (N. E.)

[10] Michel Foucault, Dits et écrits II, cit., p. 1.401.

[11] Idem, “Les techniques de soi”, em Dits et écrits II, cit., p. 1.604. É nesse sentido amplo que será tomado aqui o termo governamentalidade”.

[12] Naomi Klein, The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism (Londres, Penguin, 2008).

[13] Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), cap. 24, p. 786.

[14] Ibidem, p. 808.

[15] Ver Gérard Duménil e Dominique Lévy, Capital Resurgent: Roots of the Neoliberal Revolution (trad. Derek Jeffers, Cambridge, Harvard University Press, 2004), p. 1.

[16] Ver David Harvey, A Brief History of Neoliberalism (Oxford, Oxford University Press, 2005) [ed. bras.: O neoliberalismo: história e implicações, São Paulo, Loyola, 2008].

[17] Harvey toma amplamente esse quadro explicativo de Duménil e Lévy, utilizando os gráficos construídos pelos autores para mostrar a evolução da distribuição de renda no capitalismo neoliberal.

[18] Título do capítulo 15 de Gérard Duménil e Dominique Lévy, Capital Resurgent, cit.

[19] Ibidem, p. 2.

[20] Ver a seção intitulada “The Commodification of Everything”, em David Harvey, A Brief History of Neoliberalism, cit., p. 165 e seg.

[21] Faremos aqui uma observação que tem sua importância. Muitos críticos do neoliberalismo tratam com enorme desprezo o objeto de seus ataques, como se não tivessem nada para aprender com seus adversários teóricos.

Evidentemente, essa é uma atitude muito contrária à que Marx adotou em relação aos defensores do capitalismo liberal, assim como a de Foucault com relação aos neoliberais.

[22] Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 170.

[23] Karl Marx, O capital, Livro I, cit., cap. 23, p. 702.

[24] Ver Robert Boyer e Yves Saillard, Regulation Theory: The State of the Art (Londres, Routledge, 2002).

[25] Ver “En France, Renault veut une compétitivité espagnole”, Le Monde, Paris, 8 nov. 2012.

[26] Paul Krugman, End this Depression Now (Nova York, W. W. Norton & Co., 2012).

[27] Lembramos que o Artigo 210-2 da Parte III do Tratado de Lisboa proíbe que os Estados tomem medidas que vão no sentido de uma harmonização social.

[28] Esse foi um dos argumentos mais invocados pelos líderes socialistas que tomaram a defesa da ratificação do Tratado Europeu durante a campanha do referendo na França.

[29] A edição francesa desta obra tem quatro capítulos iniciais, que foram excluídos das edições inglesa e brasileira, dedicados ao primeiro liberalismo.

[30] Michel Foucault, Sécurité, territoire, population (Paris, Seuil/Gallimard, 2004, Coleção Hautes Études), p. 244. Nessa passagem, o autor substitui a questão da atribuição de uma causa ou uma fonte única pela da constituição ou da composição dos efeitos globais como meio privilegiado de estabelecimento da inteligibilidade na história.

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