Do livro Sontag - Vida e Obra. O texto de Benjamin Moser é fantástico e as histórias fabulosas.
34. Uma pessoa séria
Quando caiu o Muro de Berlim, até mesmo o cínico mais empedernido deve ter visto o arco do universo moral pendendo para o lado da justiça. As eletrizantes cenas televisionadas de multidões derrubando muros e rechaçando tiranos pareciam corroborar a antiga crença americana — ingênua ou esperançosa, ou ambas as coisas — de que a liberdade era o destino de todos os povos, e de que a história poderia se confundir com o progresso. O comunismo desmoronava, levando à emergência de governos democráticos numa porção enorme do planeta; também naqueles anos, muitas das ditaduras latino-americanas ruíram; o Acordo de Oslo de 1993 prometia paz entre israelenses e palestinos; e a libertação de Nelson Mandela anunciava o fim do apartheid sul-africano.
Essas mudanças eram tão dramáticas que a paz e a democracia começaram a parecer dadas de antemão. Era fácil ridicularizar essa noção, e Sontag muitas vezes o fez. Em “Projeto para uma viagem à China”, ela citou um senador dos Estados Unidos na virada do século que anunciou que “com a ajuda de Deus, vamos elevar Xangai tão alto, tão alto, que chegará ao nível de Kansas City”.1 Mas, por uns poucos e breves anos, o progresso foi real o bastante para que até mesmo os reveses mais pavorosos, como o massacre na praça Tiananmen, parecessem percalços temporários. Em 1992, Francis Fukuyama publicou um livro cujo título ficou famoso por sintetizar de modo tão perfeito a época: O fim da história e o último homem. A história, que raramente dera alguma razão para otimismo, havia encontrado seu melhor eu.
A ensolarada Iugoslávia encabeçava a lista de lugares credenciados a se beneficiar com essas revoluções. Aquela terra de ilhas, montanhas e florestas sofrera menos com o comunismo do que qualquer outro país da Europa comunista. Em vívido contraste com outros cidadãos comunistas, que só conseguiam viajar ao estrangeiro com dificuldade, os iugoslavos podiam ir e vir livremente. O país era uma ditadura, mas Tito nunca se aproximou da megalomania escancarada de Stálin ou Ceauşescu; e, apesar de a economia ser disfuncional, nunca chegou perto do colapso em larga escala de países como a Rússia ou a Romênia. Com o fim do comunismo, a Iugoslávia, com suas indústrias promissoras e seu povo altamente instruído, sua boa infraestrutura e seu bom vinho, parecia pronta para ser integrada sem traumas ao Ocidente.
Para o mundo exterior, a Iugoslávia era uma nação e os iugoslavos eram um povo. Esse mundo exterior, que só dedicara àquele lugar uma atenção muito ocasional e distraída, estava pouco preparado para as complexidades “raciais”, religiosas e culturais que o caracterizavam. O grupo étnico mais extenso eram os sérvios, por exemplo, que frequentemente coexistiam — mas não se confundiam — com os cidadãos da Sérvia, os quais não são todos sérvios: podiam ser albaneses, húngaros, judeus ou mesmo chineses. Os sérvios, em contraste, são um grupo étnico da Igreja cristã ortodoxa do Oriente, que podem ser encontrados em toda parte, de Moscou a Miami; e havia além disso sérvios-bósnios, sérvios de Kosovo, sérvios da Croácia — que não podem de modo algum ser confundidos com os croatas cidadãos da Sérvia —, todos os quais tinham suas próprias histórias, embora falassem todos a mesma língua, que era conhecida genericamente como servo-croata, mas que era também, dependendo do lugar, chamada de sérvio, de croata, de bósnio, de montenegrino, ou apenas, com um dar de ombros, de “nossa língua”.
Quando o país começou a se despedaçar, essa complexidade tornou fácil descrever a Iugoslávia como um mistério medieval, fervilhando de ódios insondáveis; essa descrição era útil para políticos estrangeiros em busca de desculpas para ficar de braços cruzados. Mas havia outros meios de descrever a Iugoslávia, a mais óbvia das quais era como uma nação europeia moderna. Era verdade que ela contava com uma população multiétnica, o que também acontecia com todas as nações baseadas na cidadania, e não na filiação étnica. Os iugoslavos eram pessoas “para quem a propriedade de chalés à beira-mar, dois carros e formação universitária havia se tornado corriqueira”, conforme escreveu David Rieff.2 Eles eram “tão dependentes de elevadores, encanamento de gás, supermercados e eletricidade quanto qualquer outra população de um país moderno, desenvolvido”.
Derrotada sua ditadura, talvez a Iugoslávia pudesse ter se tornado uma federação nos moldes suíços ou belgas. Ou talvez, como a Tchecoslováquia, seus componentes pudessem ter seguido pacificamente caminhos separados. O fato de não ter feito nem uma coisa nem outra — e de seu nome ter se tornado um sinônimo de horror — deveu-se em grande parte a um homem, Slobodan Milošević, um burocrata que ascendeu nos anos 1980 ao denunciar os abusos aos quais a maioria sérvia estava supostamente sendo submetida. Os sérvios estavam sendo oprimidos pelos albaneses de Kosovo, pelos croatas, pelos muçulmanos bósnios, declarou ele — e agiu, como presidente da Sérvia, para centralizar o poder em Belgrado. Isso provocou uma reação. A Eslovênia e a Croácia se separaram no início de 1991. A independência da Eslovênia foi logo consolidada; mas os combates eram ferozes na Croácia, que fazia fronteira com a Sérvia e onde viviam muitos sérvios. O bombardeio de Dubrovnik, a joia da Riviera croata, pelo Exército iugoslavo deu uma prévia do que viria pela frente.
No ano seguinte foi a vez da Bósnia-Herzegovina, a mais mesclada das repúblicas. Sua população, “dividida” entre sérvios, croatas e muçulmanos, estava de tal modo misturada que muitos bósnios acreditavam que o tipo de violência irrompida tão brutalmente na Croácia era impossível na Bósnia: dividir as pessoas por sua formação étnica ou religiosa significaria destruir cidades, bairros, famílias. E foi exatamente o que aconteceu depois que um referendo sobre a independência da Bósnia foi boicotado pelos sérvios do país. A guerra estourou em 6 de abril, dia em que a Bósnia recebeu reconhecimento internacional. Em 2 de maio, o que restava do Exército iugoslavo isolou a capital da Bósnia.
A palavra “capital” é um pouco excessiva para Sarajevo, que, nas palavras exageradas de um bósnio, não passa de uma rua. Essa rua, paralela ao rio Miljacka, se bifurca em outras, que, a poucas quadras do rio, elevam-se de modo íngreme para dentro de morros verdejantes, oferecendo vistas de jardins e minaretes que dão à cidade uma reputação de romance islâmico. Era também um lugar de modernidade europeia: mais ou menos equidistante de Milão e Istambul, Viena e Atenas, Sarajevo tinha uma cultura cosmopolita que lhe conferia uma ambiência muito mais sofisticada do que poderia fazer crer seu tamanho. Com mesquitas e sinagogas muito próximas, e igrejas católicas e ortodoxas lado a lado, Sarajevo representava o ideal pluralista do qual cidades como Nova York foram herdeiras. Existiram muitas dessas cidades na Europa Central; mas a maioria tinha sido destruída no século XX pelo irredentismo que agora ameaçava Sarajevo.
Como duas mãos unidas em forma de concha, o vale que envolve Sarajevo é profundo e se estreita em ambas as extremidades. No ponto em que os pulsos se tocam, o vale se espreme numa passagem apertada; onde os dedos se encontram, no alto do vale, o terreno é plano e largo apenas o bastante para dar espaço à pista do aeroporto. A topografia da cidade tinha sido uma bênção para o turismo que a Bósnia, a exemplo da Croácia, queria atrair. Com estação de esqui com teleférico a poucos minutos do centro da cidade, Sarajevo sediou as Olimpíadas de Inverno em 1984. Na época, poucos seriam capazes de prever os usos mais malignos a que aquela geografia viria a servir.
Oito anos depois, Sarajevo estava sitiada. Ela seria sufocada durante 1425 dias, o mais longo cerco da história moderna, quase o dobro do recorde anterior, o do cerco nazista a Leningrado. Aqueles que poderiam tê-lo encerrado — a Marinha dos Estados Unidos avaliou que isso demandaria no máximo 48 horas3 — refugiaram-se em clichês sobre a insondável barafunda e os rancores irreparáveis das tribos iugoslavas. As complexidades históricas eram reais, mas uma vez que Sarajevo estava sitiada, a obrigação moral era inequívoca.
Milošević e seu Estado-Maior colocaram o miscigenado Exército iugoslavo a serviço de um projeto de estabelecimento de uma etnocracia em áreas altamente povoadas por sérvios ou que tivessem alguma significação histórica para esse grupo, não importa quão fantasiosa. O Exército e seus incontáveis subsidiários assassinaram, estupraram e expulsaram muçulmanos e croatas de comunidade atrás de comunidade, diante de um mundo que concordava com pouca coisa além do princípio que, depois de Hitler, separava a civilização da barbárie. Esse princípio era uma rejeição da “limpeza étnica”, uma expressão que a matança iugoslava deu como contribuição ao léxico mundial. Todos concordavam que o fenômeno do terror racial deveria ter ficado no passado; mas, sem intervenção externa, tal concordância era vazia. Nações supostamente civilizadas se mantiveram quietas e seguiram em frente enquanto campos de concentração eram instalados e civis bombardeados ou obrigados a passar fome a menos de uma hora de Veneza.
“Era espantoso”, diz Atka Kafedzić Reid, uma jovem bósnia, “como a gente podia passar, num dia, de assistir à MTV a uma existência completamente medieval.”4 A cidade olímpica se converteu num lugar onde ofertar uma cebola era uma prova generosa de altruísmo; onde pássaros, aterrorizados pelo bombardeio constante, abandonavam a cidade; onde as pessoas carregavam as próprias fezes em sacos de papel à procura de algum lugar para se livrar delas; e onde cidadãos não davam mais atenção aos cadáveres por cima dos quais eles passavam nas ruas. “Uma cidade europeia estava sendo reduzida a nada”, escreveu David Rieff. “Cartago em câmera lenta, mas dessa vez com plateia e um registro em vídeo.”
David foi para a Bósnia em setembro de 1992, no final do primeiro verão do cerco. Assim como ocorreu com tantos jornalistas que estiveram em Sarajevo, a viagem foi um divisor de águas. “Numa vida anterior, a vida antes da Bósnia, eu costumava me vangloriar de que a indignação era uma emoção à qual eu era praticamente imune”, escreveu ele.6 Como tantos jornalistas que fizeram a expedição a Sarajevo, ele o fez porque acreditava, ainda que implicitamente, na existência de um mundo civilizado e no dever de informá-lo. “Se as notícias sobre a Bósnia pudessem ser levadas às pessoas no meu país”, pensava, “não se permitiria que a carnificina continuasse.”
Ao final dessa primeira visita, ele falou com Miro Purivatra, que posteriormente fundou o Festival de Cinema de Sarajevo, e lhe perguntou se havia alguma coisa, ou alguém, que ele poderia trazer na próxima vez. “Uma pessoa que seria perfeita para vir aqui e entender o que está acontecendo seria certamente Susan Sontag”, respondeu ele. Sem mencionar sua conexão — “evidentemente”, disse Miro, “eu não sabia que ele era filho dela” —, David disse que faria o possível. Bateu à porta de Miro algumas semanas depois. “Nos abraçamos e ele me disse: ‘O.k., você me pediu uma coisa e eu trouxe sua convidada’. Logo atrás da porta estava ela. Susan Sontag. Fiquei paralisado.” Demoraria ainda pelo menos um mês para ele se dar conta do parentesco entre os dois: “Eles nunca me contaram”.8 Isso foi em abril de 1993, na primeira das onze visitas que Susan acabaria fazendo a um lugar que se tornou tão marcante em sua vida que uma praça importante no centro da cidade foi batizada com seu nome — tão relevante que David chegou a cogitar a ideia de enterrá-la lá.
Como Sarajevo está situada na intersecção entre o islã e o cristianismo, entre o catolicismo e a Igreja ortodoxa, era o lugar em que confluíam os interesses que Sontag perseguira ao longo da vida. O papel político e o dever social da artista; a tentativa de unir o estético e o político, e seu entendimento de que o estético era o político; o elo entre mente e corpo; a experiência do poder e da impotência; os modos como a dor é infligida, encarada e representada; os modos como imagens, linguagem e metáfora criam — e distorcem — o que as pessoas chamam de realidade: essas questões foram refratadas, e depois literalmente dramatizadas, durante os quase três anos que ela passou indo e vindo do pior lugar do mundo.
“Eu não vim antes não porque tinha medo, ou porque não tinha interesse”, disse Susan naquela sua primeira visita. “Eu não vim antes porque não sabia qual é a utilidade disso.
Mas, logo que partiu, não conseguiu mais tirar a cidade da cabeça. O contraste entre o que ela havia visto e a fria indiferença do mundo exterior era violento demais.
"Deixar Sarajevo e, uma hora depois, estar numa cidade “normal” (Zagreb). Entrar num táxi (um táxi!) no aeroporto… estar no trânsito regido por semáforos, em ruas margeadas por prédios com telhados intactos, paredes sem marcas de obuses, com vidros nas janelas… acender a luz no interruptor do seu quarto de hotel… usar a privada e dar a descarga… abrir a torneira para o banho (quando há várias semanas você não toma banho) e ter água no encanamento, água quente… dar um passeio e ver as lojas, as pessoas que caminham, como você, num ritmo normal… comprar alguma coisa numa pequena mercearia, com as prateleiras abarrotadas de mercadorias… entrar num restaurante e receber o cardápio…"
A salvo em Berlim, ela se viu “totalmente obcecada”, escrevendo a um amigo que “ir a Sarajevo agora é um pouco como deve ter sido visitar o gueto de Varsóvia no final de 1942”. A comparação com o Holocausto não era feita de maneira frívola — e quando os massacres, os campos de concentração e a “limpeza étnica” vieram à luz, acabou se tornando lugar-comum. Mas Susan foi a primeira a fazê-la, depois daquela primeira visita, numa entrevista à televisão alemã. “Ela foi a primeira personalidade internacional que disse publicamente que o que estava ocorrendo na Bósnia em 1993 era um genocídio”, diz Haris Pašović, um jovem diretor de teatro. “A primeira. Ela compreendeu profundamente isso. Estava 100% dedicada a isso porque julgava que era importante para a Bósnia e importante também para o mundo.”
O que estava em jogo em Sarajevo não era apenas o destino de um povo e de um país. Sarajevo era uma cidade europeia — e europeu, escreveu David, “tinha se tornado uma categoria tanto moral quanto geográfica”.13 Essa categoria era a ideia liberal da sociedade livre: da civilização em si. Os bósnios sabiam disso e ficavam espantados com a indiferença com que seus apelos eram recebidos.
"Fazemos parte da Europa. Somos o povo que, na antiga Iugoslávia, representa os valores europeus — secularismo, tolerância religiosa e multietnicidade. Como pode o resto da Europa permitir que isso aconteça conosco? Quando eu respondia que a Europa é e sempre foi um local tanto de barbárie quanto de civilização, eles não queriam me dar ouvidos. Agora, ninguém refutaria essa afirmação."
Essa ideia de Europa emergiu do Holocausto, depois do qual um critério básico de mensuração da civilização passou a ser a disposição para resistir aos tipos de horror que se desenvolviam na Bósnia. Depois de Auschwitz, o governo civilizado era definido por sua resistência a tais crimes; mas os governos não eram os únicos convocados: o cidadão livre também tinha obrigação de resistir. Mas como poderia uma pessoa sozinha se colocar no caminho de um Exército genocida? A questão de como se opor a uma injustiça havia ocupado Susan desde a infância: desde que leu Les misérables, desde que viu as primeiras imagens do Holocausto na livraria em Santa Monica.
“Sou muito atraída pela ideia de uma conduta nobre”, disse ela em 1979. “Palavras como nobreza soam muito estranhas para nós hoje, soam esnobes, para dizer o mínimo.” Mas nobreza era o cerne do que ela descrevia, desde antes, como “seriedade”. “Ser sério”, escreveu ela em anotações para “A estética do silêncio”,
"significa estar “presente”. Sentir o “peso” das coisas. Das próprias declarações ou atos de nós mesmos […]. Quando [Kierkegaard] disse que não havia cristãos hoje, queria dizer que não há cristãos sérios, não há cristãos que levem o cristianismo a sério.
não o levam “a sério” — isto é, não estão preparados para agir com base nele. Colocar o corpo na linha de tiro, estar à altura das próprias palavra"
Sarajevo propiciava a ela uma chance de colocar seu corpo na linha de tiro pelas ideias que haviam dado dignidade a sua vida. Era algo que ela não tinha sido capaz de fazer em relação à aids — mas fazia agora, e Pašović viu até que ponto ela estava disposta a ir.
"Susan entendia de fato, muito profundamente, que aquele era um momento de definição na história da Europa, e talvez do mundo. Ela sabia disso. E estava disposta a morrer por isso. Porque ela estava dizendo… Estou tentando não chorar. Fazia muito tempo que eu não falava assim sobre Susan. É que ela não dizia isso, mas ouso dizer que ela não queria viver no mundo em que essas coisas são possíveis."
Susan Sontag era um indivíduo, mas sua carreira a transformara em algo mais. Era um símbolo da cultura cosmopolita, “europeia”, que estava sob ataque. E ela levava sua obrigação para com aquela cultura a sério o bastante para colocar na linha de fogo ambas as existências — de Susan, a pessoa, e de Sontag, a metáfora.
Ela sempre refletira sobre o dever público do escritor. Admirava aqueles predecessores que, em situações igualmente perigosas, arriscaram suas vidas. E ficava chocada com o fato de que outras pessoas em sua posição não estivessem arriscando as suas. “O espantoso em relação a Susan, antes que a gente a conhecesse direito, era o próprio fato de ela estar lá”, diz John Burns, correspondente do New York Times nos Bálcãs. “Sarajevo era famosa pelas pessoas que não apareceram. Em face de casos evidentes de genocídio, onde estava a intelligentsia da época?”
Ao retornar, depois da primeira visita, a uma Alemanha impassível, ela ficou “desalentada ao descobrir que todo intelectual e escritor alemão com quem eu falava — Günter Grass, [Hans] Magnus [Enzensberger] etc. — parecia completamente indiferente ao genocídio, ou pior. Pela primeira vez ouvi Magnus falar como um alemão, não como um europeu”. Em Sarajevo, ela foi indagada sobre a ausência de muitos escritores norte-americanos famosos:
"Há uma enorme despolitização da intelligentsia ocidental, dos escritores ocidentais, dos escritores da Europa Ocidental e da América do Norte. Você menciona Kurt Vonnegut […]. Todas essas pessoas estão lá sentadas em seus apartamentos enormes, ricos, e saindo no fim de semana para o campo, vivendo suas vidas particulares."
O contraste com outro conflito era mencionado com frequência, como numa entrevista que Sontag concedeu a Burns em agosto:
"Sarajevo é a Guerra Civil Espanhola de nossa época, mas a diferença das reações é espantosa. Em 1937, gente como Ernest Hemingway, André Malraux, George Orwell e Simone Weil correu para a Espanha, embora fosse incrivelmente perigoso. Simone Weil teve queimaduras terríveis e George Orwell foi baleado, mas eles não viam o perigo como um motivo para não ir. Eles foram num ato de solidariedade, e desse ato surgiu uma parte da melhor literatura de seu tempo."
Mas a que levava esse namoro com a morte? A estimular o impulso literário quando estivesse de volta a Londres ou Paris? Em Contra a interpretação, Sontag escrevera sobre A idade viril, de Michel Leiris, um livro de memórias cujo inesquecível prefácio, “Da literatura como tauromaquia”, sugeria que a literatura moderna era exangue, cautelosa, inofensiva. “Ser um escritor, um homem de letras, não é suficiente. É tedioso, raso. Carece de perigo.” O habitante burguês de uma nação pacificada precisava buscar suas emoções em algum lugar estrangeiro mais escuro, seja artístico ou geográfico.
"Leiris precisa sentir, quando escreve, o equivalente da consciência do toureiro de que corre o risco de ser perfurado. Só então escrever vale a pena. Mas como pode o escritor alcançar essa revigorante sensação de perigo mortal? A resposta de Leiris é: mediante a autoexposição, mediante a não defesa de si próprio; não fabricando obras de arte, objetificações de si mesmo, mas colocando a si mesmo — a sua própria pessoa — na linha de fogo. Mas nós, os leitores, os espectadores desse ato sangrento, sabemos que quando é bem efetuado (pense em como a tourada é discutida como um ato eminentemente estético, cerimonial), não importa que renegue a literatura, ele se torna — literatura."
A demanda de Leiris era a mesma de Adrienne Rich, a mesma dos ativistas gays: colocar-se na linha de fogo. Esse imperativo podia ser interpretado, conforme fez Sontag, como uma exigência estética ou política; mas podia também ser interpretado no outro sentido sugerido por Leiris: um simples apelo para arriscar a própria vida. Esse apelo era assustadoramente fácil de satisfazer colocando os pés em Sarajevo. Durante o cerco, foram mortas em média dez pessoas por dia, 11 541 no total.
Não havia algo de grotesco no uso do sofrimento de outras pessoas para “alcançar essa revigorante sensação de perigo mortal”? Será que o dever — social, político, moral, estético — não significava mais do que correr o risco de sofrer queimaduras terríveis, ou de tomar um tiro no pescoço, ou de ser perfurado? E seria suficiente se entregar voluntariamente ao risco — ou a morte era o único meio de provar o comprometimento da pessoa?
Mesmo aqueles que fizeram a corajosa viagem a Sarajevo descobriram como era difícil responder a essas perguntas. Alguns, cujas intenções eram impecáveis, deixaram os sarajevianos injuriados. Em meio à carestia generalizada, Joan Baez disse a Atka Kafedzić que ela estava “magra demais”; Bernard-Henri Lévy, conhecido na França como BHL, ficou conhecido na Bósnia como DHS: “Deux heures à Sarajevo”, duas horas em Sarajevo.
Os locais tiveram fartas oportunidades de avaliar seus visitantes. “Éramos muito cínicos quanto a todo o aspecto circense desse tipo de safári de guerra”, diz Una Sekerez, que emitia vistos em nome da ONU e emitiu um para Susan:
"Havia outras pessoas assim, tipo: O que elas estão fazendo aqui? Eu simplesmente presumi que ela tinha vindo para dar uma rápida olhada em como viviam aquelas pessoas na reserva — e que logo iria embora. Mas aí ela ficou. Isso era muito, muito incomum."
Naquela primeira visita, a poeta Ferida Duraković traduziu perguntas de um jornalista.
"Sua primeira pergunta foi: Como a senhora se sente vindo a Sarajevo para um safári? Eu traduzi e Susan disse: entendi a pergunta. Por favor, seja cuidadosa ao traduzir isto. Olhou para mim e disse: “Meu rapaz, não faça perguntas estúpidas. Eu sou uma pessoa séria”."
“O ato de testemunhar requer a criação de testemunhas estelares”, escreveu Sontag em Diante da dor dos outros, o último livro que publicou em vida.24 Como tantas de suas obras, o livro era uma meditação sobre os modos de ver e representar; mas se sua referência às estrelas soava sardônica, ela não era — ou não era só isso. Como todas as formas de ver e representar, o testemunho era, com frequência, pateticamente ineficaz. Como é que a observação de alguma coisa acontecendo, mesmo que se arriscasse a vida escrevendo a respeito ou tirando fotos, poderia mudar o mundo dos exércitos e dos políticos?
No entanto, John Burns enxergava a importância de testemunhar. Pouco depois do início do cerco, três jornalistas foram mortos; e os repórteres remanescentes, liderados pela BBC, decidiram que todos deveriam ir embora: “Foi um debate intenso e infame”. Eles foram evacuados em segurança para o subúrbio de Ilidža, que ficava depois do aeroporto, para o mesmo hotel onde o arquiduque Francisco Ferdinando dormiu antes de sua própria visita apocalíptica. Ali, Burns tomou a decisão de voltar para Sarajevo. “Tão logo partimos, os sérvios começaram a bombardear a cidade”, diz ele. “Dez mil bombas naquele dia. Sentiram-se livres porque os jornalistas tinham partido.”
Os olhos faziam diferença, ainda que limitada. Em Sobre fotografia, Susan discutiu os limites da representação de uma calamidade. “Uma foto que traz notícias de uma insuspeitada região de miséria não pode deixar marca na opinião pública, a menos que exista um contexto apropriado de sentimento e de atitude.” Isso permitia a uma testemunha — um escritor, um jornalista, um fotógrafo — criar esse contexto; mas esse processo podia ser angustiantemente lento, e não era tão fácil saber se estava fazendo alguma diferença. “Um escritor não pode mais achar que sua tarefa imperiosa é levar as notícias ao mundo”, escreveu ela. “As notícias já são levadas.”
Foi isso que David descobriu. Todo mundo, em toda parte, sabia o que estava acontecendo na Bósnia, ainda que poucos fossem além de expressões retóricas de solidariedade. Os políticos contavam com o cansaço da compaixão, exatamente como Susan alertara em Sobre fotografia — fotos de guerra se tornariam nada mais que “uma reprise insuportável de uma exibição de atrocidades já familiar”.27 E as vítimas, enraivecidas pela evidente indiferença do mundo, zombavam dos impotentes portadores de notícias, fossem eles celebridades ou jornalistas.
"Em Sarajevo, nos anos do cerco, não era incomum ouvir, no meio de um bombardeio ou de uma rajada de tiros de snipers, um morador gritar com os fotojornalistas, facilmente reconhecíveis pelo equipamento pendurado no pescoço: “Estão esperando uma bomba explodir para poder fotografar alguns cadáveres?”."
Os repórteres que estavam arriscando a vida pelo bem de Sarajevo eram julgados. E eles, por sua vez, julgavam aqueles que suspeitavam estar fazendo turismo. Mas tanto os sarajevianos como os jornalistas respeitavam Susan Sontag. Uma dessas jornalistas, a americana Janine di Giovanni, ficou impressionada com sua pura capacidade de resistência.
"Era incrivelmente duro para mim, uma garota de vinte e poucos anos. E ela era uma mulher na faixa dos sessenta. Aquilo me espantou de verdade. Para uma intelectual de Nova York, era um lugar estranho para estar. Vinham muitas celebridades, e os repórteres eram sarcásticos. Lembro que fiquei sabendo que ela viria e não me impressionei muito. Mas ela não se queixava. Sentava-se com todas as outras pessoas, comia qualquer porcaria, vivia nos mesmos quartos destruídos por bombas em que nós vivíamos."
O ator Izudin Bajrović diz:
"Ela representava para nós a parte do mundo que compreendia o que estava acontecendo e estava disposta a fazer alguma coisa a respeito. Não o mundo. Mas para nós ela ter vindo significava mais do que se viesse algum primeiro-ministro. Não acreditávamos de fato em primeiro-ministro nenhum. Nunca duvidamos da boa vontade dela. Duvidávamos da de todos os outros."
Se o aplauso e a prosperidade traziam à tona o pior dela, a opressão e a privação revelavam o melhor. Se podia ser arrogante em Nova York, em Sarajevo ela era gentil. Ali, ela colocou o corpo na linha de fogo, e testemunhou e conquistou respeito universal; mas nada disso respondia à difícil pergunta que ela fazia: o que, como indivíduo ou como símbolo, ela podia concretamente fazer para ajudar. “Eu não queria ser uma turista aqui”, disse ela, “só observar enquanto todo mundo sofria… Eu queria dar alguma coisa, contribuir.”31 Talvez, escreveu ela mais tarde, a resposta mais apropriada tivesse sido o silêncio:
"O melhor é não dizer nada, e essa era a minha intenção original. Falar do que estamos fazendo parece — e talvez se torne mesmo, a despeito de nossas intenções — uma forma de autopromoção."
Essa era a resposta — o silêncio — oferecida por muitos artistas modernos. Foi a resposta que Elisabet, em Persona de Bergman, escolheu quando confrontada com outros horrores exemplares: um monge vietnamita ateando fogo em si mesmo; uma criança aterrorizada no gueto de Varsóvia. Elisabet, escreveu Susan quase trinta anos antes, “quer ser sincera, não desempenhar um papel, não mentir; fazer o interior e o exterior se unirem, [e] tendo rejeitado o suicídio como solução, decidiu ficar muda”. Mas essa era uma resposta espiritual, não política. Os bósnios tinham necessidades reais, e Susan tinha a esperança de ser de alguma ajuda real.
"Eu teria ficado contente simplesmente em ajudar alguns pacientes a se acomodarem numa cadeira de rodas. Assumi um compromisso colocando em risco minha vida, sob uma situação de extremo desconforto e perigo mortal. Caíam bombas, balas passavam voando pela minha cabeça… Não havia comida, nem eletricidade, nem água corrente, nem correio, nem telefone, dia após dia, semana após semana, mês após mês. Isso não é “simbólico”. Isso é real."
Em sua primeira visita, ela pediu a Ferida Duraković que organizasse um encontro com intelectuais. Duraković convidou algumas pessoas que trouxeram previsíveis pedidos de assistência material — que, a seu tempo, Susan providenciaria. “Mas o que vocês querem que eu faça”, perguntou ela, “além de trazer comida, dinheiro, água ou cigarros? O que vocês querem de mim?”
Por fim, com Pašović, diretor do Festival Internacional de Teatro, ela discutiu a montagem de uma peça. Isso de forma alguma libertaria a cidade. Mas tinha, sim, alguma utilidade prática. Daria emprego a atores, proporcionaria atividade cultural e mostraria ao mundo que os clãs supostamente bárbaros da Iugoslávia eram tão modernos quanto as pessoas que talvez lessem sobre o espetáculo em seus jornais. Ela pensou em Ubu rei, a peça de Alfred Jarry que é frequentemente vista como avó do teatro moderno.34 E ela mencionou Dias felizes, a peça de Beckett sobre uma mulher que trai o marido, lembrando dias mais felizes, enquanto é enterrada viva. A terra chega a seu pescoço no final da peça.
“Ela veio com Beckett”, recorda Pašović. “E eu disse: Mas Susan, aqui — em Sarajevo — nós estamos esperando.
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