quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Susan Sontag - Uma carta para Borges

 




Uma carta para Borges
13 de junho de 1996
Nova York
Caro Borges,
Como a sua literatura sempre se situou sob o signo da eternidade, ela não parece velha demais para que eu lhe envie uma carta.(Borges, são dez anos!) Se existiu algum contemporâneo destinado à imortalidade literária, foi você. Você foi um perfeito produto de sua época, de sua cultura, e contudo soube como transcender sua época, sua cultura, de um modo que parece inteiramente mágico.
Isso tinha algo a ver com a abertura e com a generosidade da sua atenção. Você foi o menos egocêntrico, o mais transparente dos escritores, bem como o mais engenhoso. Tinha também algo a ver com a natural pureza do espírito. Embora tenha vivido entre nós por um tempo bastante longo, você aperfeiçoou maneiras de perspicácia e de isenção que o tornaram um especialista em viagens mentais para outras eras, também. Você tinha um sentido de tempo diferente do das demais pessoas. As noções comuns de passado, presente e futuro pareciam banais sob o seu olhar. Você gostava de dizer que todo momento do tempo contém o passado e o futuro, citando (se bem me lembro) o poeta Browning, que escreveu algo como “o presente é o instante em que o futuro se desfaz para dentro do passado”. Isso, está claro, fazia parte da sua modéstia: o seu gosto por encontrar suas idéias nas idéias dos outros escritores.
Sua modéstia era parte da certeza da sua presença. Você era um descobridor de prazeres novos.
Um pessimismo tão profundo, tão sereno como o seu não precisava mostrar-se indignado. Precisava, antes, ser inventivo — e você foi, acima de tudo, inventivo. A serenidade e a transcendência do eu que você encontrou são, para mim, exemplares. Você mostrou que não é necessário ser infeliz, mesmo quando se é clarividente e sem ilusões sobre como tudo é terrível. Em algum ponto, você disse que um escritor — por delicadeza, acrescentou: todas as pessoas — deve pensar que o que lhe acontece é uma riqueza. (Você se referia à sua cegueira.)
Você foi uma grande riqueza, para os outros escritores. Em 1982 — ou seja, quatro anos antes de você morrer — eu disse numa entrevista: “Não existe hoje um escritor vivo mais importante para os outros escritores do que Borges. Muitos diriam que ele é o maior escritor vivo, hoje [...] Muito poucos escritores de hoje não aprenderam algo com ele ou não o imitaram”. Isso ainda é verdade.
Ainda aprendemos com você. Ainda o imitamos. Você deu às pessoas maneiras novas de imaginar, ao mesmo tempo que proclamava sem cessar nossa dívida com o passado, acima de tudo, com a literatura. Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e o que fomos. Se os livros desaparecerem, a história desaparecerá, e os seres humanos também. Tenho certeza de que você tem razão. Livros não são apenas a suma arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória. Eles nos dão também o modelo da autotranscendência. Algumas pessoas pensam na leitura apenas como um tipo de fuga: uma fuga do mundo cotidiano “real” para um mundo imaginário, o mundo dos livros. Livros são muito mais.
São um modo de ser plenamente humano.
Lamento ter de dizer a você que os livros, hoje, são tidos como uma espécie ameaçada. Por livros, refiro-me também às condições de leitura que tornam possível a literatura e seus efeitos na alma.
Em breve, nos dizem, invocaremos em “telas-livro” quaisquer “textos” que quisermos e poderemos alterar seu aspecto, fazer perguntas a eles, “interagir”. Quando os livros se tornarem “textos” com que “interagiremos” segundo o critério da utilidade, a palavra escrita terá se transformado simplesmente em mais um aspecto da nossa realidade televisual regida pela publicidade. Esse é o glorioso futuro que está sendo criado e prometido para nós, como algo mais “democrático”. É claro, isso significa nada menos que a morte da interioridade — e do livro.
Para essa transição, não haverá nenhuma necessidade de uma grande conflagração. Os bárbaros não precisam queimar os livros. O tigre está na biblioteca. Caro Borges, por favor compreenda que não me dá nenhum prazer queixar-me. Mas a quem melhor que você poderiam ser endereçadas tais queixas sobre o destino dos livros — da própria leitura? (Borges, faz dez anos!) Tudo o que quero dizer é que sentimos sua falta. Eu sinto sua falta. Você continua a ser importante. A era em que estamos entrando agora, este século xxi, porá a alma à prova de maneiras novas. Mas, esteja certo, alguns de nós não abandonaremos a Grande Biblioteca. E você continuará a ser o nosso patrono e o nosso herói.
Susan

Susan Sontag - Entrevista completa para a revista Rolling Stone




Em 2020, fui apresentado ao livro "Sobre Fotografia" de Sontag, mas estava muito absorto em aprender mais a fundo técnicas fotográficas (pois também me dediquei a cursos de fotografia no período) e não dei muita atenção ao conteúdo de pensamento do livro.
Mas ontem, baixei o "Susan Sontag - Entrevista completa para a revista Rolling Stone" e não consegui parar de ler. Varei a noite até acabá-lo. Livro e pensamentos fascinantes dessa monumental mulher. Sim, ela observou, agudamente, o aspecto cultural das décadas de 60, 70 e 80 de nossa era. Comecei a sublinhar passagens, mas desisti, pois já estava sublinhando todo o livro.
Porque coloquei isso aqui? Só para sugerir que leiam os livros dela. E que comecem pela biografia dela por Mose, pois começa a lhe dar um apanhado geral de suas obras. E aproveite e veja a maneira de escrever de Mose, que deve ser um cara também bem inteligente.
Um excerto do livro para degustação e observe como não é fácil escolher uma frase aqui e outra lá para sublinhar. Tudo é um pensamento contínuo.
Grifo meu "O fragmento pressupõe bastante conhecimento e experiência, e é decadente nesse sentido porque precisa ter como apoio todo esse conteúdo de modo que faça alusões e comentários sobre as coisas sem ter de esclarecer todas elas."
P - No livro você diz que “o mundo fotográfico mantém com o mundo real a mesma relação essencialmente imprecisa que os fotogramas mantêm com os filmes. A vida não são detalhes significativos, iluminados num lampejo, fixados para sempre. As fotografias são.” Uma vez li que os maias tinham uma palavra para designar sabedoria que significava “pequeno lampejo”, e os místicos costumam falar de um lampejo de inspiração ou iluminação. O crítico George Steiner uma vez escreveu sobre o lampejo de inspiração transmitido pelo fragmento literário conforme usado por escritores como Nietzsche e Wittgenstein, e atribuiu aos dois uma “lampejante certeza do imediatismo e a necessária incompletude desse imediatismo”, salientando sua importância para o processo de insight criativo.
R - Antes de mais nada, são níveis bem diferentes do que acontece. Existem lampejos que não considero fragmentos. Uma epifania não é um fragmento. Um orgasmo não é um fragmento. É claro, existem coisas limitadas no tempo que são muito intensas e parecem nos levar para outro nível de consciência ou nos dar acesso a algo que não acessávamos antes. O acesso pode ser, usando a imagem do Novo Testamento, um portão estreito, um lugar bem apertado – você o atravessa e tem um tipo de lampejo, por assim dizer, e depois já é outra coisa. Então o fato ser algo pequeno ou breve não significa necessariamente que é um lampejo. A questão dos fragmentos é outra história.
Parece que o fragmento é a forma artística da nossa época, e todos que já refletiram sobre a arte e o pensamento precisaram tratar desse problema. Recentemente ouvi Roland Barthes dizer que todo seu esforço atual é ir além do fragmento. Mas a questão é: consegue-se? Há uma razão para o fragmento, a começar com os românticos, ter se tornado uma forma artística preeminente que permite que as coisas sejam mais verdadeiras, mais autênticas, mais intensas. Há momentos privilegiados de prazer e insights, e algumas coisas podem ser mais intensas do que outras porque, na vida e na consciência, habitamos lugares muito diferentes. Mas o fato de podermos distinguir determinado momento como privilegiado – e não só por ser memorável, mas porque nos mudou – não significa que é um fragmento.
Talvez seja a culminação de tudo que já passou. O fato de podermos localizar e separar as coisas não indica seu caráter fragmentário.
P - No ensaio esclarecedor sobre o filme Viver a vida, de Godard, você usa uma estrutura fragmentada, e com isso sugere a radiância e a plenitude de um filme que se desdobra numa série de fragmentos.
R - Bom, acho que existe algo bem respeitável na forma do fragmento que aponta para lacunas, espaços e silêncios entre as coisas. Por outro lado, a gente poderia dizer que o fragmento é literalmente decadente – e não no sentido moral –, pois é o estilo do fim de uma era, e com isso quero dizer o fim de uma civilização, de uma tradição de pensamento ou de uma sensibilidade. O fragmento pressupõe bastante conhecimento e experiência, e é decadente nesse sentido porque precisa ter como apoio todo esse conteúdo de modo que faça alusões e comentários sobre as coisas sem ter de esclarecer todas elas. Não se trata de uma forma artística ou de uma forma de pensar típicas de culturas jovens que precisam fazer coisas bem específicas. Nós temos muito conhecimento e temos ciência de que existe uma multiplicidade de perspectivas, e o fragmento é uma maneira de reconhecer isso.
Não tenho paciência para ensaios que usam um argumento linear. Sinto que tenho de tornar as coisas mais sequenciais do que realmente são porque minha mente salta, e um argumento, para mim, se parece muito mais com os raios de uma roda do que com os elos de uma corrente. Contudo, a natureza da leitura na forma de página é que você começa do lado esquerdo, desce pela página, passa para o topo do lado direito, desce de novo e depois vira a folha. Não consigo pensar numa maneira melhor de leitura e não estou sugerindo que se deva abandonar a sequência das páginas, mas é uma maneira de obter algo parecido com o que Joseph Frank chamou há muitos anos de “forma espacial”. A questão dos fragmentos é muito complicada.
P - Pense nos antigos fragmentos gregos de Arquíloco e Safo, que na verdade são o que restaram de um todo original, mas cujas reverberações ainda nos afetam profundamente.
R - É por isso que somos sensíveis à forma fragmentada. Há fragmentos criados pelas mutilações da história, e temos de assumir que as palavras não foram escritas como fragmentos - elas se tornaram fragmentos porque o material se perdeu. Sinto que a Vênus de Milo nunca teria se tornado tão famosa se tivesse braços. Começou no século XVIII, quando as pessoas viram a beleza das ruínas. Suponho que o amor pelos fragmentos tem primeiro a ver com certo sentido do páthos da história e com as devastações do tempo porque o que aparecia para as pessoas na forma de fragmentos eram obras, cujas partes despencaram, foram perdidas ou destruídas. E agora, é claro, é possível e muito convincente que as pessoas criem obras na forma de fragmentos. Os fragmentos no mundo do pensamento ou da arte parecem ruínas, como aquelas artificiais que os ricos colocavam em suas propriedades no século XVIII.
P- Em certo sentido, também as fotografias.
R - Sim, acho que a fotografia surge na forma de fragmentos. A natureza da fotografia é ter o estado mental de um fragmento. É claro, ela é uma coisa completa em si mesma. Mas em relação à passagem do tempo, ela se torna aquele pedaço marcante do que nos restou do passado: "olha, éramos tão felizes nessa época, estávamos todos ali, você estava tão bonita, eu estava vestindo isso ou aquilo, olha como éramos jovens....", esse tipo de coisa. Quer dizer, as pessoas não tiram uma foto nesse espírito, mas o tempo muda o que está nas fotografias.


 

Susan Sontag - Prefácio do livro Entrevista completa para a revista Rolling Stones

“A única metáfora possível que se pode conceber para a vida do espírito”, escreveu a cientista política Hannah Arendt, “é a sensação de estar vivo. Sem o sopro da vida, o corpo humano é um cadáver; sem pensamento, o espírito humano está morto”. Susan Sontag concordava. No segundo volume de seus diários (As Consciousness Is Harnessed to Flesh), declarou ela: “Ser inteligente, para mim, não é como fazer algo ‘melhor’. É minha única forma de existir. [...] Eu sei que tenho medo da passividade (e da dependência). Alguma coisa faz eu me sentir ativa (autônoma) quando uso a mente. Isso é bom.”
Ensaísta, romancista, dramaturga, cineasta e ativista política, Sontag, que nasceu em 1933 e faleceu em 2004, foi uma testemunha exemplar do fato de que viver uma vida pensante e pensar sobre a própria vida podem ser atividades complementares e enriquecedoras. Desde a publicação de Contra a interpretação em 1966 – sua primeira coletânea de ensaios em que tratava, de maneira alegre e nada condescendente, de assuntos que variavam de The Supremes a Simone Weil, e de filmes como O incrível homem que encolheu a Muriel – Sontag nunca vacilou em sua lealdade à cultura “popular”, bem como à “alta” cultura. Como afirmou no prefácio à edição comemorativa de trinta anos do livro, “Se eu tivesse de escolher entre The Doors e Dostoiévski, é claro que escolheria Dostoiévski. Mas por que tenho de escolher?”
Como proponente de uma “erótica da arte”, tinha em comum com o escritor francês Roland Barthes não só o que ele chamava de “o prazer do texto”, mas também o que ela descrevia como sua “visão da vida do espírito como uma vida de desejo, do pleno intelecto e prazer”. Nesse aspecto, ela seguiu os passos de William Wordsworth, que, em seu “Prefácio às Baladas Líricas”, definiu o papel do poeta como o de “dar prazer imediato ao ser humano” – iniciativa que ele considerava ser “um reconhecimento da beleza do universo” e “uma homenagem prestada à dignidade nativa e nua do homem” – e afirmou que transformar esse princípio em realidade foi “tarefa fácil e leve para ele, que olha para o mundo no espírito do amor”.
“O que me faz sentir forte?”, pergunta-se Sontag em uma entrada de seu diário, dando em seguida a resposta: “Estar apaixonada e trabalhar”, além de assegurar sua fidelidade “às calorosas exaltações do espírito”. Claramente, para Sontag, amar, desejar e pensar eram, em sua raiz, atividades de essência comparável. Em seu fascinante livro Eros the Bittersweet, a poeta e classicista Anne Carson – escritora bastante admirada por Sontag – propôs que “parece haver uma semelhança entre o modo de Eros agir no espírito de um amante e o modo de o conhecimento agir no espírito de um amante”, e acrescenta: “Quando o espírito expande-se ao conhecer, abre-se o espaço do desejo” – opinião repetida por Sontag em seu ensaio sobre Roland Barthes, quando observa que “escrever é um abraço, é ser abraçado; cada ideia é uma ideia que se expande”.
Em 1987, num simpósio patrocinado pelo PEN American Center e dedicado à obra de Henry James, Sontag ampliou a noção da conexão indissolúvel entre desejar e conhecer proposta por Anne Carson. Rejeitando as críticas geralmente feitas ao vocabulário árido e abstrato de James, Sontag contra-argumenta: “Na verdade, seu vocabulário é o da prodigalidade, da plenitude, do desejo, do júbilo, do êxtase. No mundo de James há sempre mais – mais texto, mais consciência, mais espaço, mais complexidade no espaço, mais alimento para a consciência consumir. Ele investe no romance um princípio de desejo que me parece novo. É um desejo epistemológico, o desejo de saber, que é como o desejo carnal, e muitas vezes mimetiza ou duplica o desejo carnal”. Em seus diários, Sontag descreve a vida do espírito, ou do intelecto, com as seguintes palavras: “avidez, apetite, aspiração, anseio, apetência, insaciabilidade, arrebatamento, inclinação”; e não é difícil imaginar que Sontag talvez tenha sentido que Anne Carson na verdade falava para as duas quando confessou que “apaixonar-se e conhecer fazem-me sentir genuinamente viva”.
Em todos os seus esforços, Sontag tentava desafiar e subverter categorias estereotípicas como masculino/feminino e juventude/velhice, que induzem as pessoas a ter a vida limitada e sem riscos. Além disso, ela examinava e testava o tempo todo sua ideia de que supostas polaridades como pensar e sentir, forma e conteúdo, ética e estética, consciência e sensualidade, na verdade podiam simplesmente ser vistas como aspectos uma da outra – como uma superfície de veludo que, ao revertermos o sentido do toque, fornece duas texturas e dois modos de sentir, duas tonalidades e dois modos de percepção.
Em seu ensaio “Sobre o estilo”, de 1965, por exemplo, Sontag escreveu: “Chamar Triunfo da vontade e Olympia, de Leni Riefenstahl, de obrasprimas, não é o mesmo que encobrir a propaganda nazista com leniência estética. A propaganda nazista está lá. Mas também está algo mais [...], os movimentos complexos da inteligência, da graciosidade, da sensualidade”.
Uma década depois, em seu ensaio “Fascinante fascismo”, ela reverte a superfície aveludada, comentando que Triunfo da vontade foi “o filme mais puramente propagandista já realizado, cuja própria concepção nega a possibilidade de o autor do filme ter uma concepção estética ou visual independente da propaganda”. Sontag explicaria depois que, no primeiro ensaio, ela estava interessada nas “implicações formais do conteúdo”, e no segundo quis investigar “o conteúdo implícito em certas ideias da forma”.
Descrevendo-se como uma “esteta inebriada” e uma “moralista obsessiva”, Sontag bem que poderia ter concordado com a ideia de Wordsworth de que “não temos simpatia além do que é propagado pelo prazer” e que “sempre que nos simpatizarmos com a dor será descoberto que a simpatia é gerada e mantida por combinações sutis com o prazer”. Não surpreende, portanto, que, embora Sontag tenha abraçado totalmente os prazeres do que chamou de “cultura pluralista e polimorfa”, ela nunca deixou de se colocar “diante da dor dos outros” – título dado ao último livro que escreveu antes de morrer –, tampouco deixou de tentar aliviá-la.
Em 1968, a convite do governo do Vietnã do Norte, Sontag viajou para Hanói como parte de uma delegação de ativistas norte-americanos contrários à guerra, uma experiência que, conforme escreveu em seu diário, “me fez reavaliar minha identidade, as formas da minha consciência, as formas psíquicas da minha cultura, o significado de ‘sinceridade’, linguagem, decisão moral, expressividade psicológica”. Duas décadas depois, no início dos anos 1990, ela visitou em nove ocasiões diferentes a bombardeada cidade de Sarajevo, testemunhando o sofrimento de 380 mil habitantes que, na época, viviam sob cerco constante. Na sua segunda visita, em julho de 1993, conheceu um produtor de teatro nascido em Sarajevo que a convidou para dirigir uma adaptação de Esperando Godot, de Samuel Beckett, realizada com alguns dos atores profissionais mais gabaritados da cidade; o som dos atiradores de elite e da explosão de granadas serviu de fundo tanto para os ensaios quanto para as apresentações, cuja plateia contava com representantes do governo, médicos do principal hospital da cidade e soldados do front, bem como muitos cidadãos angustiados e mutilados pela guerra. “Aqueles que perenemente se surpreendem com a existência da depravação”, escreveu ela em Diante da dor dos outros, “que ainda se sentem desiludidos (até incrédulos) quando se deparam com provas do que os seres humanos são capazes de infligir a outros seres humanos, no que diz respeito a crueldades reais e grotescas, ainda não atingiram a maturidade moral ou psicológica”. E, como declarou uma vez: “Não há possibilidade de uma cultura verdadeira sem altruísmo”.
Conheci Susan Sontag no início da década de 1960 na Columbia University – ela lecionava, e eu era aluno. Durante três anos, fui um dos colaboradores e editores do suplemento literário do Columbia Spectator – jornal diário da Columbia College – para o qual Sontag, em 1961, escrevera um ensaio sobre Vida contra a morte, de Norman O. Brown, incluído posteriormente em Contra a interpretação. Depois de ler o ensaio, decidi, com certa audácia, passar uma tarde na sala dela para falar do quanto eu tinha gostado do ensaio. Depois disso, tomamos café juntos em diversas ocasiões.
Depois de me formar, em 1964, mudei-me para Berkeley para estudar literatura inglesa na University of California e logo me vi no meio de um grande despertar social, cultural e político nos Estados Unidos. “Felicidade foi estar vivo naquele alvorecer”, escreveu William Wordsworth dois séculos antes, no início da Revolução Francesa. Agora, mais uma vez, as pessoas passavam por uma verdadeira dramatização da vida, e em qualquer lugar era como se houvesse “música nas cafeterias à noite e revolução no ar”, como cantou Bob Dylan em “Tangled Up in Blue”. Cerca de trinta anos depois, ao refletir sobre essa época no prefácio à reedição de Contra a interpretação, Sontag escreveu: “Como tudo isso parece maravilhoso em retrospectiva.
Como se deseja que algo de sua coragem, seu otimismo, seu desdém pelo comércio tivesse sobrevivido. Os dois polos do sentimento distintamente moderno são a nostalgia e a utopia. Talvez a característica mais interessante do que hoje chamamos de anos sessenta seja a parca existência da nostalgia.
Nesse sentido, aquele foi de fato um momento utópico”.
Uma tarde, em 1966, deparei-me por acaso com Susan no campus de Berkeley. Ela me disse ter sido convidada pela universidade para dar uma palestra, e eu lhe contei que estava iniciando a produção e a apresentação de um programa noturno e livre na rádio KPFA; mencionei que eu e meu amigo Tom Luddy – que depois se tornaria curador do Pacific Film Archive – entrevistaríamos o cineasta Kenneth Anger sobre seu filme Scorpio Rising ainda naquela noite; e perguntei se ela queria participar da conversa, convite que aceitou. (Em seus diários, Susan cita Inauguration of the Pleasure Dome, de Anger, numa lista de “Melhores Filmes”.)
Em 1967 me mudei para Londres e me tornei o primeiro editor europeu da revista Rolling Stone, e continuei trabalhando e escrevendo para a revista quando voltei para Nova York em 1970. Eu e Susan tínhamos diversos amigos em comum, e nos anos seguintes, tanto em Nova York como na Europa, acabamos nos encontrando por acaso em jantares, lançamentos de filmes, shows de rock e concertos de música clássica, além de eventos relacionados a direitos humanos. Sempre quis entrevistá-la para a Rolling Stone, mas evitava tocar no assunto com ela. Em fevereiro de 1978, no entanto, achei que era o momento certo. Seu aclamado livro Sobre fotografia havia sido publicado no ano anterior, e dois outros livros estavam prestes a ser lançados: I, etcetera – coletânea de oito contos descritos por ela como “uma série de aventuras em primeira pessoa” – e A doença como metáfora.
Susan foi submetida a um tratamento contra câncer de mama entre 1974 e 1977, e suas experiências como paciente dessa doença estimularam-na a escrever o livro. Então, quando finalmente resolvi perguntar se ela gostaria de me conceder uma entrevista e sugeri que usássemos esses três livros como ponto de partida da conversa, ela aceitou sem hesitar.
Alguns escritores sentem que dar entrevistas é uma experiência não muito diferente de “queimar a língua antes do almoço”, como observou o poeta Kenneth Rexroth depois de participar de um coquetel particularmente detestável. Italo Calvino era um desses. No conto “Thoughts Before an Interview”, ele se queixa: “Toda manhã eu digo para mim mesmo: hoje tem de ser produtivo, então algo acontece e me impede de escrever. Hoje... O que tenho mesmo para fazer hoje? Ah, sim, parece que virão me entrevistar... Deus me ajude!” De longe mais resistente que Calvino, no entanto, foi J. M. Coetzee, laureado com o Prêmio Nobel, que, no meio de uma entrevista com David Attwell, anunciou: “Se eu tivesse alguma presciência, não teria nenhuma relação com jornalistas desde o princípio. Nove de dez entrevistas não passam de uma conversa com um completo estranho, mas um estranho que, pelas convenções do gênero, tem permissão para ultrapassar os limites do que é apropriado numa conversa entre estranhos. [...] Para mim, por outro lado, a verdade está relacionada ao silêncio, à reflexão, à prática da escrita. A fala não é um manancial da verdade, mas uma versão pálida e provisória da escrita. E o espadim da surpresa empunhado pelo magistrado ou entrevistador não é um instrumento da verdade, ao contrário, é uma arma, um signo da natureza inerentemente confrontadora dessa transação”.
A visão de Susan Sontag era diferente. “Gosto de entrevistas”, disse-me uma vez, “e gosto delas porque gosto de conversar, gosto do diálogo, e sei que boa parte das minhas ideias é produto da conversação. De certa forma, o mais difícil de escrever é estar sozinha e ter que estabelecer uma conversa consigo, o que é uma atividade antinatural em essência. Eu gosto de conversar com as pessoas – é o que me faz não ser uma reclusa –, e conversar me dá a chance de saber o que penso. Não quero saber sobre o público porque é uma abstração, mas com certeza quero saber o que pensa o indivíduo, e isso requer um encontro cara a cara”.
Em uma anotação dos diários escrita em 1965, Susan confessou: “Não darei nenhuma entrevista até soar tão clara + confiável + direta quanto Lillian Hellman na Paris Review”. Treze anos depois, numa tarde ensolarada em meados de junho, cheguei ao apartamento de Susan em Paris no 16º arrondissement. Sentamo-nos em dois sofás na sala; entre nós havia uma mesinha, sobre a qual coloquei o gravador; enquanto escutava suas respostas claras, confiáveis e diretas, não tive dúvida de que ela alcançara o objetivo que estabelecera para si anos atrás em relação às entrevistas.
Ao contrário de quase todas as outras pessoas que já entrevistei – sendo a única exceção o pianista Glenn Gould –, Susan não dizia frases, mas parágrafos extensos e bem cuidados. E o que me chamou mais atenção foi a exatidão “e o ajuste moral e linguístico” – como ela descreveu uma vez o estilo de escrita de Henry James – com que ela enquadrava e elaborava os pensamentos, ajustando com precisão os significados pretendidos com observações incidentais e termos qualificadores (“às vezes”, “de vez em quando”, “usualmente”, “na maioria das vezes”, “em quase todos os casos”), a prodigalidade e a fluência de sua conversa manifestando o que os franceses chamam de ivresse du discours – uma embriaguez com a palavra falada.
“Sinto-me fisgada pela conversa como diálogo criativo”, observou ela em seus diários, e acrescentou: “Para mim, é meu principal meio de salvação”.
Mas depois de falar durante três horas, Susan me disse que precisava descansar antes de sair para um jantar naquela noite. Percebi que já tinha gravado o suficiente para a entrevista da Rolling Stone. Para minha surpresa, no entanto, ela me disse que logo se mudaria de novo para o apartamento de Nova York, onde ficaria seis meses; e como ainda havia diversos assuntos sobre os quais ela queria conversar, perguntou se poderíamos continuar e terminar nossa conversa em Nova York.
Cinco meses depois, numa tarde fria de novembro, cheguei à espaçosa cobertura na Riverside Drive com 106th Street, de frente para o Rio Hudson, onde ela morava cercada por uma biblioteca de oito mil livros à qual ela se referia como “meu próprio sistema de informação” e “meu arquivo de desejo”. Nesse lugar abençoado, conversamos até tarde da noite.
Em outubro de 1979, a revista Rolling Stone publicou um terço da minha conversa com Susan Sontag. Agora, pela primeira vez, apresento a entrevista completa que tive o privilégio de realizar há trinta e cinco anos, em Paris e Nova York, com uma pessoa notável e inspiradora, cuja crença intelectual – como sempre pensei – parece-me ter sido expressada da maneira mais comovente num conto que ela escreveu em 1996 chamado “Uma carta para Borges”: Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e fomos. Se os livros desaparecerem, desaparecerá a história e também os seres humanos. Tenho certeza de que você está certo. Os livros não são apenas a soma arbitrária de nossos sonhos e memórias. Eles também nos dão o modelo da autotranscendência. Alguns pensam que a leitura é apenas uma forma de escapismo: uma fuga do mundo “real” cotidiano para um mundo imaginário, o mundo dos livros. Mas os livros são muito mais. São um modo de sermos plenamente humanos.

Jonathan Cott