terça-feira, 22 de novembro de 2022

Os Engenheiros do Caos - Introdução


INTRODUÇÃO

Em 19 de fevereiro de 1787, Goethe está em Roma. Chegou à cidade no início de outono e tratou de ocupar um apartamento anônimo na Via del Corso, de onde pode contemplar, sem ser visto, a animação da principal artéria do centro histórico. O poeta veio procurar na cidade eterna tudo o que, até agora, foi negado à sua vida de filho prodígio da literatura alemã, conselheiro privado do grande duque de Weimar e responsável pelas minas e vias públicas do ducado. Acima de tudo, Goethe veio em busca da liberdade de dispor de seu tempo como bem entender. Para não ser importunado pelos admiradores do Jovem Werther (Marco inicial do Romantismo, Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, provocou, por toda a Europa após sua publicação, além de admiração, uma onda de suicídios, o chamado “efeito Werther”. [N.T.] – que o seguem há anos, onde quer que vá – decidiu assumir a falsa identidade de um pintor, Jean Philippe Möller, o que lhe vem garantindo, até o momento, a tranquilidade que tanto almeja.

Nesse dia 19 de fevereiro, o poeta nota uma forte agitação do lado de fora. Então, inclina-se à janela e vê uma cena inesperada: nas varandas e diante das portas dos prédios vizinhos, os moradores instalaram cadeiras e tapetes. Como se, de repente, quisessem transformar a rua em salão. Ao mesmo tempo, ao longo da Via del Corso, o sentido do trânsito de carroças se inverteu, produzindo o caos, e personagens curiosos começaram a despontar na multidão. “Rapazes disfarçados de mulheres do povo, com seus trajes de festa, o peito descoberto, audaciosos até a insolência, acariciam os homens com quem cruzam, tratam, com familiaridade e sem cerimônia, as mulheres como suas colegas e se deixam levar por todos os excessos, ao sabor dos caprichos, do espírito e da vulgaridade”. Simetricamente, “as mulheres também se divertem prazerosamente ao mostrar-se em trajes masculinos”, produzindo resultados que o poeta não hesita em definir como “muito interessantes”. Há até, no meio do povo, um personagem com duas faces: “Não se entende se é sua frente ou sua traseira, nem se ele vai ou vem”.

É o começo do Carnaval, a festa que tem por hábito virar o mundo de cabeça para baixo, invertendo não somente as relações entre os sexos mas também entre as classes e todas as hierarquias – que, em tempos normais, regem a vida social. “Aqui, basta um sinal”, prossegue Goethe em seu relato, “para anunciar que cada um pode enlouquecer do modo que deseja e que, à exceção de golpes de porrete ou de faca, quase tudo é permitido. A diferença entre castas alta e baixa parece, por um instante, suspensa; todos se aproximam uns dos outros, todos aceitam com desenvoltura seus destinos, enquanto a liberdade e a permissividade são mantidas em equilíbrio pelo bom humor universal.”

Dentro desse espírito, os cocheiros se fantasiam de senhores e os senhores, de cocheiros. E mesmo os abades, com suas túnicas negras, geralmente merecedoras do maior respeito, viram alvos ideais dos lançadores de confetes de gesso e argila. Assim, os pobres coitados ficam rapidamente cobertos, dos pés à cabeça, de manchas brancas e cinzentas. Ninguém está imune a um ataque, muito menos os membros das famílias mais bem situadas. Esses se concentram à altura do Palazzo Ruspoli, onde se desencadeiam, por sinal, os “assaltos” mais cruéis e as “batalhas” mais sangrentas. Ao mesmo tempo, os polichinelos, às centenas, surgem e se reú nem em outro endereço. Depois, elegem um rei, entregam-lhe um cetro, acompanham-no ao som de música e conduzem-no aos urros à frente do Corso, num pequeno carro decorado.

Tudo isso se dá numa atmosfera de alegria coletiva, mesmo que Goethe não se furte a perceber algumas notas desafinadas: “Não é raro”, ele observa em dado momento, “que a batalha fique séria e se generalize; então, é assustador testemunhar a obstinação e o ódio pessoal que vai tomando conta de todos”. Ou ainda, descrevendo a corrida de cavalos que passa pelo Corso, ele menciona graves incidentes e as “numerosas tragédias, que, no entanto, passam despercebidas, e às quais não se dá nenhuma importância”. É a face obscura do Carnaval, a combinação inextricável da festa e da violência sobre a qual se ergue seu potencial subversivo. E que deixa no peito dos participantes, quase sempre, uma dúvida sobre a natureza real daquilo que se passou. O Carnaval não é uma festa como as outras, mas a expressão de um sentimento profundo e impossível de se deter, latente sob as cinzas da cultura dos povos. Não é por acaso, como observa Goethe, que não se trata de uma celebração oferecida ao povo pelas autoridades, mas sim uma “festa que o povo oferece a si mesmo”.

Desde a Idade Média, o Carnaval é a ocasião para o povo derrubar, de forma simbólica e por um tempo limitado, todas as hierarquias instituídas entre o poder e os dominados, entre o nobre e o trivial, entre o alto e o baixo, entre o refinado e o vulgar, entre o sagrado e o profano. Nesse clima, os loucos viram sábios, os reis, mendigos, e a realidade se confunde com a fantasia. Um golpe de Estado simbólico que termina quase sempre com a eleição de um rei, substituto temporário da autoridade oficial.

Não se deve, portanto, estranhar que a fronteira entre a dimensão lúdica e a dimensão política do Carnaval sempre tenha sido, em essência, frágil. A prova está nos vários episódios durante os quais a festa se transformou em revolta, a ponto de gerar verdadeiros massacres, sempre que a multidão não se contentou em destituir os poderosos para rir – mas, em vez disso, tentou assassiná-los de fato. Não é tampouco surpreendente que essa festa tenha sido abolida, em algum momento, em quase todos os lugares, inclusive em Roma, ao raiar da Revolução Francesa, por temor de que se produzisse um contágio. Na França, foram os jacobinos, eles mesmos, que suspenderam o Carnaval, chegando ao extremo de punir com a pena de morte aqueles que tivessem a audácia de se fantasiar. “É uma festa boa para os povos escravos”, diria Marat (Jean-Paul Marat (1743-1793), jornalista, filósofo, médico, teórico e político radical da Revolução Francesa. [N.T.]). Ou seja, a Revolução realizou, efetivamente e de uma vez por todas, a grande virada. Logo, é inútil insistir em se disfarçar: circulem, não há nada para ver.

Contudo, nenhum poder jamais conseguiu se libertar completamente do Carnaval e de seu espírito subversivo. Ao longo de séculos, esse espírito percorreu infatigavelmente as ruas para se estampar nos panfletos e nas caricaturas dos jornais populares. Até reaparecer, mais recentemente, nas sátiras dos shows de TV e nos ataques dos trolls (na linguagem da internet, designa usuários que disseminam a discórdia, a fúria e o caos nas redes sociais, aleatoriamente ou com estratégias definidas. [N.T.]) na internet. Mas só muito recentemente o Carnaval deixou, por fim, sua praça preferida, às margens da consciência do homem moderno, para adquirir uma centralidade inédita, posicionando-se como o novo paradigma da vida política global.

Em Roma, mais de dois séculos após a visita de Goethe, o Carnaval reconquista seus direitos. Em primeiro de julho de 2018, um novo governo assume. Seu chefe é Mister Chance, o jardineiro do filme com Peter Sellers. Como em Muito além do jardim, Giuseppe Conte – o novo presidente do Conselho de Ministros – é um anônimo sempre meio deslocado que, por uma série de estranhas coincidências, chega ao topo do poder. Mas, ao contrário do jardineiro de Sellers, no dia seguinte à nomeação desse desconhecido professor sem a menor experiência política, os principais jornais estrangeiros tentam desmascará-lo. Assim, eles revelam que o único elemento de informação disponível sobre Mister Conte, seu curriculum vitae on-line, está repleto de fake news. A partir desse momento, começam a chover nos quatro cantos do planeta os desmentidos das universidades mais prestigiosas do mundo – New York University (NYU), Cambridge, Sorbonne – citadas no CV do jardineiro como “locais de aperfeiçoamento”. As instituições confirmam, de imediato, não terem achado qualquer traço de sua passagem pelos corredores de suas escolas.

No entanto, mesmo tendo sido pego de calças curtas em cadeia global, o imperturbável Mister Conte persiste em sua ascensão à cúpula das instituições italianas. O que permite aos dois líderes políticos do Movimento 5 Estrelas e da Liga, verdadeiros homens fortes do novo governo, atingir seu objetivo: ocupar tranquilamente seus lugares no pódio logo abaixo dele. Ao menos o primeiro, à frente do Movimento 5 Estrelas, Luigi Di Maio – nomeado vice-presidente do Conselho e ministro da Indústria e do Trabalho – não tem problemas de currículo. Aos 30 anos e sem diploma universitário, ele só conta com uma única experiência em seu ativo profissional antes de virar deputado graças aos 189 votos obtidos nas primárias do Movimento 5 Estrelas: guia do estádio San Paolo de Nápoles. “Eu trabalhava no mais alto nível”, declarou ao jornal Corriere della Sera, “acompanhei muitos VIP até seus lugares”. Mas isso não o impede de assumir rapidamente um dos principais papéis do novo “Carnaval” romano, distinguindo-se graças à sua inefável capacidade de dizer tudo – e também o contrário – no espaço de poucas horas, e de protagonizar gafes e fake news em série. Como quando declarou que o governo estava imprimindo seis milhões de cartões de salário-cidadão, quando a adoção do benefício não havia sido aprovada nem sequer apresentada ao parlamento. Ou quando, em visita oficial à China, dirige-se ao líder supremo Xi Jinping chamando-o de “Senhor Ping”.

O verdadeiro homem forte, coroado pela Time Magazine como a nova cara da Europa, é, no entanto, o outro vice-presidente, Matteo Salvini, que, desde que assumiu a função, dá vida ao espetáculo de um ministro do Interior que tuíta diariamente para espalhar o medo e incitar o ódio racial. A partir do início de seu mandato, muitas dezenas de vídeos virais postados por Salvini referem-se a delitos cometidos por negros ou clandestinos, de casos mais graves a acontecimentos os mais triviais. “Hoje, em toda a Itália”, ele comenta, por exemplo, durante o verão de 2018, “fiéis muçulmanos celebraram a festa do sacrifício, que prevê o martírio de um animal, degolando-o. Em Nápoles, este cabrito foi salvo no último minuto, mas no resto do país centenas de milhares de bestas foram abatidas sem piedade”.

Fica bastante claro que, mesmo ocupando uma função institucional, “o Capitão”, como o chamam os partidários, não se importa muito com a veracidade dos fatos que dissemina. Ele não hesita em difundir uma falsa informação sobre os que reivindicam asilo, que teriam organizado uma manifestação em Vicenza para poderem assistir ao canal de televisão a cabo Sky. Uma história que foi desmentida pela prefeitura, ou seja, por um órgão que integra o ministério que o próprio Salvini dirige.

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Em sua aparição inaugural na cena política, os demais membros do governo são, do primeiro ao último, desconhecidos do público italiano. Mas eles não demoram a se aclimatar. Assim, no dia mesmo em que assume o cargo, o novo ministro da Família declara que “não existem famílias gays”. O ministro da Saúde, interpelado sobre o tema das vacinas, responde que, no que depender dele, é pessoalmente favorável, mas nada impede que se sustentem opiniões contrárias. Por sua vez, o ministro da Justiça põe imediatamente na ordem do dia uma das medidas centrais de seu programa: a abolição da prescrição de crimes e contravenções. Ou seja, no país do populismo real, deve ser possível mover um processo contra qualquer pessoa a qualquer momento. Não por acaso, ao pedir o apoio do parlamento a seu governo, Mister Conte, num ato falho flagrante, declara estar pronto para defender a “presunção de culpa”.

Dias depois, para completar as fileiras do governo, apresentam-se outros personagens que, por sua vez, parecem ter sido selecionados para uma filmagem de Monty Python.

Maurizio Santangelo, o novo secretário de Estado, encarregado da articulação no parlamento, é adepto da teoria dos “traços químicos”, segundo a qual os aviões de linhas comerciais seriam utilizados por governos para espalhar na atmosfera agentes químicos ou biológicos nocivos à população. Para confirmar essa teoria, ele posta de tempos em tempos, nas redes sociais, fotos de rastros brancos no céu que considera suspeitos, acompanhadas de comentários do tipo “Em que este céu faz você pensar?”.

O subsecretário de Estado do Interior, Carlo Sibilia, por sua vez, não é do tipo que se deixa enganar: a ideia segundo a qual os americanos desembarcaram na Lua ainda não o convence. “Hoje, festeja-se o aniversário da chegada à Lua”, tuitou Sibilia. “Será possível que ninguém tenha a coragem de dizer que foi tudo uma grande farsa?”

O mais afiado em matéria de teorias da conspiração, porém, é, sem dúvida, o secretário de Relações Exteriores com a Europa, Luciano Barra Caracciolo. No seu blog Orizzonte48, ele ataca o euro, compara a União Europeia à Alemanha nazista e lança teses conspiratórias como a Hazard Circular, pregando que forças financeiras obscuras teriam abolido a escravidão em troca de uma forma de opressão sutil fundada sobre o controle da moeda.

Só o Carnaval político romano consegue ir ainda mais longe em sua loucura do que a fantasia de Barra Caracciolo. De fato, a cena política de Roma viu a maioria de seus personagens mudar de máscara durante o verão de 2019, passando de um governo soberanista antieuropeu, guiado por Mister Conte, a um governo progressista pró-europeu, também dirigido pelo inefável jardineiro Conte, acompanhado de seu cortejo de polichinelos – entre os quais o líder do Movimento 5 Estrelas, Luigi Di Maio, promovido a ministro das Relações Exteriores graças, principalmente, às suas excelentes relações com o “senhor Ping”.

Mas se a Itália se destaca, como de hábito, nesse quesito, a volta por cima do Carnaval vai bem além da península. Onde quer que seja, na Europa ou em outros continentes, o crescimento dos populismos tomou a forma de uma dança frenética que atropela e vira ao avesso todas as regras estabelecidas. Os defeitos e vícios dos líderes populistas se transformam, aos olhos dos eleitores, em qualidades. Sua inexperiência é a prova de que eles não pertencem ao círculo corrompido das elites. E sua incompetência é vista como garantia de autenticidade. As tensões que eles produzem em nível internacional ilustram sua independência, e as fake news que balizam sua propaganda são a marca de sua liberdade de espírito.

No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por um outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática. Diante desse espetáculo, é grande a tentação, para muitos observadores, de levar as mãos aos céus e dar razão ao bardo: “O tempo está fora do eixo!” (Fala de Hamlet (IV), de William Shakespeare, também traduzida como “o mundo está fora do eixo”. [N.T.]). No entanto, por trás das aparências extremadas do Carnaval populista, esconde-se o trabalho feroz de dezenas de spin doctors (Consultores políticos que se ocupam, diante de determinada situação de impasse, crise ou estagnação, em identificar a direção capaz de mudar a tendência a favor de um candidato ou campanha. [N.T.]), ideólogos e, cada vez mais, cientistas especializados em Big Data (Área do conhecimento que se dedica a lidar com quantidade de dados tão extensa que é impossível analisá-los pelos sistemas tradicionais. Presente também na ciência e em diversos campos, tem sido amplamente utilizada para potencializar e monetizar dados de usuários das redes sociais. [N.T.]), sem os quais os líderes do novo populismo jamais teriam chegado ao poder.

Este livro conta a história deles.

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É a história de um especialista em marketing italiano que, no início dos anos 2000, compreende que a internet irá revolucionar a política, mesmo sabendo que não é chegada ainda a hora de formar um partido puramente digital. Assim, Gianroberto Casaleggio contratará um comediante, Beppe Grillo, para o papel de primeiro avatar de carne e osso de um partido-algoritmo. É o Movimento 5 Estrelas, inteiramente fundado na coleta de dados de eleitores sobre a satisfação de suas demandas, independentemente de qualquer base ideológica. Mais ou menos como se, em vez de ser recrutada por Donald Trump, uma empresa de Big Data como a Cambridge Analytica tivesse tomado o poder diretamente e escolhesse seu próprio candidato.

É a história de Dominic Cummings, diretor da campanha do Brexit, que afirma: “Se você quer fazer progressos em política, não contrate experts ou comunicadores. É melhor utilizar os físicos”. Graças ao trabalho de uma equipe de cientistas de dados, Cummings pôde atingir milhões de eleitores indecisos, de cuja existência os adversários sequer supunham, e dirigir a eles exatamente as mensagens que precisavam receber, no momento certo, a fim de fazê-los pender a balança para o lado do Brexit.

É a história de Steve Bannon, o homem-orquestra do populismo americano, que, depois de conduzir Donald Trump à vitória, sonha, hoje, fundar uma Internacional Populista para combater aquilo que ele chama de “o partido de Davos das elites globais”.

É a história de Milo Yiannopoulos, o blogueiro inglês graças ao qual a transgressão mudou de campo. Se, nos anos 1960, os gestos de provocação dos manifestantes visavam sobretudo atingir a moral comum e quebrar os tabus de uma sociedade conservadora, hoje os nacional-populistas adotam um estilo transgressor em sentido oposto: quebrar os códigos das esquerdas e do politicamente correto tornou-se a regra número 1 de sua comunicação.

É a história de Arthur Finkelstein, um judeu homossexual de Nova York que se tornou o mais eficaz conselheiro de Viktor Orban, o porta-estandarte da Europa reacionária, engajado num combate impiedoso em defesa dos valores tradicionais na Hungria.

Juntos, esses engenheiros do caos estão em vias de reinventar uma propaganda adaptada à era dos selfies e das redes sociais, e, como consequência, transformar a própria natureza do jogo democrático. Sua ação é a tradução política do Facebook e do Google. É naturalmente populista, pois, como as redes sociais, não suporta nenhum tipo de intermediação e situa todo mundo no mesmo plano, com um só parâmetro de avaliação: os likes, ou curtidas. É uma ação indiferente aos conteúdos porque, como as redes sociais, só tem um objetivo: aquilo que os pequenos gênios do Vale do Silício chamam de “engajamento” e que, em política, significa adesão imediata.

Se o algoritmo das redes sociais é programado para oferecer ao usuário qualquer conteúdo capaz de atraí-lo com maior frequência e por mais tempo à plataforma, o algoritmo dos engenheiros do caos os força a sustentar não importa que posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica, desde que ela interprete as aspirações e os medos – principalmente os medos – dos eleitores.

Para os novos Doutores Fantásticos da política, o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los, mesmo à revelia. Para conquistar uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir-se aos extremos.

Cultivando a cólera de cada um sem se preocupar com a coerência do coletivo, o algoritmo dos engenheiros do caos dilui as antigas barreiras ideológicas e rearticula o conflito político tendo como base uma simples oposição entre “o povo” e “as elites”. No caso do Brexit, assim como nos casos de Trump e da Itália, o sucesso dos nacional-populistas se mede pela capacidade de fazer explodir a cisão esquerda/direita para captar os votos de todos os revoltados e furiosos, e não apenas dos fascistas.

Naturalmente, como as redes sociais, a nova propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem a maior participação, daí o sucesso das fake news e das teorias da conspiração. Mas tal tipo de comunicação possui também um lado festivo e libertário, comumente desconhecido daqueles que enfatizam unicamente a faceta sombria do Carnaval populista. O escárnio vem sendo, desde então, a ferramenta mais eficiente para dissolver as hierarquias. Durante o Carnaval, um bom e libertador ataque de riso é capaz de enterrar a ostentação do poder, suas regras e suas pretensões. Nada mais devastador para a autoridade que o impertinente, que a transforma em objeto de ridículo.

Diante da seriedade programática do poder, do tédio arrogante que emana de cada um de seus gestos, o bufão transgressor à la Trump, ou a explosão contestatória dos Gilets Jaunes – os Coletes Amarelos franceses – funcionam como uma boa chicotada no lombo para liberar as energias. Os tabus, a hipocrisia e as convenções da língua desmoronam em meio às aclamações da multidão em delírio.

Durante o Carnaval, não há lugar para o espectador. Todos participam juntos da celebração desvairada do mundo ao avesso, e nenhum insulto ou piada é vulgar se contribui para a demolição da ordem dominante e sua substituição por alguma dimensão de liberdade e fraternidade. O Carnaval produz, naquele que dele participa, uma intensa sensação de plenitude e de renascimento – o sentimento de pertencer a um corpo coletivo que se renova. De espectador, cada um se torna ator, sem nenhuma distinção baseada em grau de instrução. A opinião do primeiro que passa vale tanto quanto, ou talvez mais, que a do expert. Enquanto isso, a máscara coletiva se mudou para a internet, em que o anonimato tem o mesmo efeito de desinibição que, tempos atrás, nascia no momento de se vestir uma fantasia. Os trolls são, assim, os novos polichinelos, que jogam gasolina no fogo libertador do Carnaval populista.

Nesse clima, não há nada mais inconveniente que interpretar o papel do espírito de porco. O fact-checker (Checador de fatos”. O fact-checking é uma das tendências mais profusas das mídias tradicionais de hoje, cuja atividade é ameaçada pelas ondas de fake news . [N.T.]) que demonstra o erro com caneta de marcador vermelha, o liberal (Aqui e nas demais menções neste livro, utilizado na acepção anglófona política do termo, no sentido de progressista , e não no âmbito do liberalismo econômico, como é mais corrente no Brasil. [N.T.]) com a sobrancelha elevada de indignação contra a vulgaridade dos novos bárbaros. “É por isso que a esquerda é tão infeliz”, diz Milo Yiannopoulos, “ela não tem a menor tendência à comédia e à celebração”. Aos olhos do populista em estado festivo, o progressista é um pedante com o dedo mindinho empinado. Seu pragmatismo virou sinônimo de fatalismo, enquanto os reis do Carnaval prometem dinamitar a realidade existente.

A vida não é feita de direitos e deveres, de números a serem respeitados e de formulários a preencher. O novo Carnaval não se afina com o senso comum – ele tem sua própria lógica, mais próxima daquela de um teatro do que de uma sala de aula, mais ávida de corpos e imagens que de textos e ideias, mais concentrada na intensidade da narrativa que na exatidão dos fatos. Uma razão com certeza muito distante das abstrações cartesianas – mas não desprovida de uma coerência inesperada, em especial no que se refere à sua maneira sistemática de revirar as normas consolidadas para afirmar outras, de sinal contrário.

Por trás do aparente absurdo das fake news e das teorias da conspiração, oculta-se uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda. Contrariamente às informações verdadeiras, elas constituem um formidável vetor de coesão. “Por vários ângulos, o absurdo é uma ferramenta organizacional mais eficaz que a verdade”, escreveu o blogueiro da direita alternativa americana Mencius Moldbug.

“Qualquer um pode crer na verdade, enquanto acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade – e que possui um uniforme, e um exército.”

Assim, o líder de um movimento que agregue as fake news à construção de sua própria visão de mundo se destaca da manada dos comuns. Não é um burocrata pragmático e fatalista como os outros, mas um homem de ação, que constrói sua própria realidade para responder aos anseios de seus discípulos. Na Europa, como no resto do mundo, as mentiras têm a dianteira, pois são inseridas numa narrativa política que capta os temores e as aspirações de uma massa crescente do eleitorado, enquanto os fatos dos que as combatem inserem-se em um discurso que não é mais tido como crível. Na prática, para os adeptos dos populistas, a verdade dos fatos, tomados um a um, não conta. O que é verdadeiro é a mensagem no seu conjunto, que corresponde a seus sentimentos e suas sensações.

Diante disso, é inútil acumular dados e correções, se a visão do conjunto dos governantes e dos partidos tradicionais continua a ser percebida por um número crescente de eleitores como pouco pertinentes em relação à realidade.

Para combater a grande onda populista é preciso, primeiro, compreendê-la e não se limitar a condená-la ou liquidá-la como uma nova “Idade da desrazão”, como faz George Osborne, o último chanceler do tesouro de David Cameron, no título de seu livro mais recente. O Carnaval contemporâneo se alimenta de dois ingredientes que nada têm de irracional: a cólera de alguns meios populares, que se fundamenta sobre causas sociais e econômicas reais; e uma máquina de comunicação superpotente, concebida em sua origem para fins comerciais, transformada em instrumento privilegiado de todos aqueles que têm por meta multiplicar o caos.

Se escolhi, para este livro, me concentrar no segundo aspecto, não é de modo algum para negar a importância das fontes reais da revolta. As ações dos engenheiros do caos não explicam tudo, longe disso. O que torna tais personagens interessantes, mais que o fato de terem sabido captar antes dos outros os sinais da mudança em curso, é a forma pela qual se aproveitaram disso para avançar da margem para o centro do sistema. Para o bem e, sobretudo, para o mal, suas intuições, suas contradições e suas idiossincrasias são aquelas que marcam o nosso tempo. 

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