terça-feira, 22 de novembro de 2022

Os Engenheiros do Caos - Cap 2 - A NetFlix da Política

A NetFlix da Política

livorno é uma cidade importante na história política italiana. Foi ali que aconteceu, em 1921, a cisão que fez nascer o Partido Comunista Italiano. É ali, também, que oitenta anos depois os fundadores do Movimento 5 Estrelas se reuniram pela primeira vez: “Eu o encontrei [...] numa noite de abril”, escreve Beppe Grillo sobre Gianroberto Casaleggio, “durante meu espetáculo ‘Black Out’. Ele veio ao meu camarim e começou a me falar sobre internet. De como a internet podia mudar o mundo. Por não o conhecer, eu aquiesci e sorri. Tentei não contrariá-lo. Não queria correr o risco de ser ameaçado por uma @ ou um .com. Ele estava bem seguro do que dizia. Imaginei que fosse um gênio do mal ou algum tipo de São Francisco de Assis que falava de internet em vez de dissertar sobre lobos e pássaros”.

Nessa cena inaugural – o encontro da besta, poderosa, mas sem saber como dar vazão à sua raiva, com o nerd frio, visionário, mas um pouco perdido no mundo real –, já se encontra toda a mitologia do que estava destinado a se tornar o Movimento 5 Estrelas. O espetáculo, o escárnio, a cultura da internet e a revolução.

De um lado, Beppe Grillo, o comediante irresistível que saiu das salas de espetáculo underground de Gênova para chegar aos cumes da popularidade televisiva, capaz de lotar teatros em todo o país com stand-ups cheios de paradoxos, provocações e insultos, usando seu físico imponente e sua voz feroz digna das pregações do padre Savonarola (Pregador florentino (1952-1498) conhecido por suas profecias e seu espírito reformador. [N.T.]).

De outro lado, Gianroberto Casaleggio, preciso, silencioso, concentrado. Um gestor de 50 anos, especialista em marketing digital, que se apresenta como uma espécie de John Lennon pós-moderno, com longos cabelos emoldurando uma fisionomia austera sustentada por um par de óculos redondos. A perfeita síntese da estética hippie e do approach geek (Geek é um anglicismo e uma gíria inglesa usada para designar indivíduos que, entre outras características, consomem intensamente cultura pop e dominam o uso das tecnologias digitais. [N.E.]) de onde nasceu a cibercultura californiana. Depois de 30 anos atuando na Olivetti – por muito tempo o emblema de empresa de informática na Itália –, ele acaba de deixar o grupo para fundar a própria empresa, Casaleggio Associati.

Mas Casaleggio não é um simples empresário. É um visionário, um autodidata, que forjou para si uma concepção da realidade que une São Francisco de Assis com Isaac Asimov e os pioneiros da ficção científica. Ele não pretende, de forma alguma, ser movido por qualquer paixão política. “A política não me interessa”, garante. “O que me interessa é a opinião pública.”

*

Em sua posição de expert em marketing digital, Casaleggio entendeu que a internet iria revolucionar a política, tornando possível o surgimento de um movimento novíssimo, guiado pelas preferências dos eleitores-consumidores. Ele pretende, então, lançar um produto capaz de responder de maneira eficaz a uma demanda política que os partidos existentes não são capazes de satisfazer. Mas sabe, também, que a dimensão digital, sozinha, ainda é fria e distante demais para dar vida a um verdadeiro movimento de massa na Itália. É por isso que precisa de Beppe Grillo: para dotar de calor e paixão um movimento que corria o risco de, sem esses ingredientes, continuar confinado aos geeks italianos. A força e a resiliência do futuro Movimento 5 Estrelas virão desta combinação inédita: o populismo tradicional que se casa com o algoritmo e dá à luz uma temível máquina política.

Por ora, depois de conseguir o OK do comediante, Casaleggio se contenta em lançar um blog. Desde o início o sucesso é fenomenal: “Em 26 de janeiro de 2005, abri um blog sem saber direito o que era”, recorda Grillo. “Só começo de fato a entendê-lo agora: beppegrillo.it se tornou em algumas semanas o blog italiano mais visitado.” Por trás da aparente desenvoltura do comediante já se esconde uma engrenagem perfeitamente lubrificada. Cada postagem nasce com base num ritual muito exato. Durante a manhã, os colaboradores da Casaleggio Associati selecionam os dez comentários mais interessantes publicados no site e os transmitem a Gianroberto. Ele os lê, retrabalha os textos e escreve o post do dia, que estará on-line às 12 horas. Aos olhos do público, o único autor é Grillo. Casaleggio é relegado ao papel de simples fornecedor de tecnologia. Mas a realidade é bem diferente. As campanhas virais que marcarão o sucesso do blog, levando-o, no espaço de alguns anos, a ser um dos mais seguidos do mundo, nascem todas nos escritórios milaneses da Casaleggio Associati. É lá que são identificados os temas que funcionam, com base nos retornos dos usuários, num processo de interação constante que já é o embrião dos algoritmos mais sofisticados que estão por vir.

Nesse período, o blog surfa sobre temas populares que estimulam o ressentimento com o establishment político e financeiro: a corrupção dos homens públicos, os abusos das grandes empresas à custa dos pequenos acionistas, a precarização do trabalho. Sobre todos esses tópicos, o blog não se limita a denunciar a situação. Ao contrário, ele propõe remédios concretos, embora simplistas, para os males que aponta. Passa a impressão de que a solução estaria próxima, se a Itália não estivesse nas mãos de um bando de delinquentes, direita e esquerda confundidas no mesmo bolo, agindo apenas em função de seus próprios interesses em detrimento do povo.

Em pouco tempo, começa a se desenvolver uma consistente rede de apoiadores que desejam se organizar para ir além do blog. Casaleggio seguiu com interesse a campanha do candidato democrata Howard Dean, o primeiro candidato “digital” nas primárias americanas de 2004. Inspirado em Dean, ele decide incentivar os discípulos de Grillo a adotar a plataforma Meetup, um software que permite organizar facilmente discussões e encontros [meets], on-line ou no mundo real. Rapidamente, grupos de “Amigos de Beppe Grillo” florescem por toda a Itália. Nesta fase inicial, os discípulos são completamente livres. Eles podem se organizar como bem entendem, reunir-se e tomar qualquer iniciativa que venha à cabeça. O confronto entre a rapidez e o frescor da máquina posta em ação por Casaleggio e a velha política é impiedoso. “Em 2007”, escreve Marco Canestrari (um apoio de primeira hora que será em seguida frustrado), “para fazer política nos partidos, você devia necessariamente se submeter a regras e a rituais incompreensíveis para uma geração habituada à rapidez dos processos na internet. Em primeiro lugar, você devia escolher de que lado estava, à direita ou à esquerda, quase independentemente do conteúdo. Depois, decidir a que partido pertence, em todos os sentidos do termo. Em seguida, durante anos, lutar para subir degraus na administração local e, na melhor das hipóteses, procurar um ‘santo’ no Parlamento. A mensagem do blog era, enfim, bem diferente: para fazer política não é preciso se inscrever num partido e esperar o resultado anos a fio. Você pode fazer política em qualquer momento do seu dia, publicando comentários no blog ou difundindo posts na plataforma. E, assim, fazer parte das coisas desde o início do processo.”

Sobre a superfície dessa promessa fácil, imediata e contemporânea, e graças à virulência dos conteúdos de forte teor emotivo disseminados pela verve de Grillo, a galáxia do blog se expande de maneira vertiginosa. No início de 2007, Casaleggio festeja o primeiro milhão de comentários, enquanto os Meetup já se contam às centenas e transbordam de energia renovada e iniciativas. Enquanto isso, o velho Prodi, no comando de uma coalizão capenga de centro-esquerda, recuperou o cetro do governo das mãos do velho Berlusconi, da mesma maneira que dez anos antes. A Itália parece presa na armadilha de um interminável Truman Show, no qual os mesmos atores, cada vez mais exaustos, voltam à cena para mais um giro do carrossel, numa dança tediosa e imutável.

Dois jornalistas do Corriere della Sera publicam um livro, A casta, que venderá mais de um milhão de exemplares e se tornará o manifesto de uma revolta do povo contra as elites. Em suas páginas, revelam-se, com profusão de detalhes, todos os privilégios da casta dos políticos, do último conselheiro municipal ao presidente da república, alimentando a indignação dos eleitores cujos comentários no blog são cada vez mais raivosos. Casaleggio sente que a hora chegou. É o momento de fazer sair da dimensão virtual o furor acumulado pelos discípulos de Grillo e lhe dar uma via física: as ruas.

Oito de setembro é uma data simbólica no imaginário italiano: marcou, em 1943, a proclamação do armistício e a capitulação diante dos Aliados. Assim, quando, no final da primavera de 2007, Grillo/Casaleggio escrevem um post inflamado chamando o “povo do blog” a juntar-se numa manifestação de rua no 8 de setembro, é difícil ignorar as implicações de tal gesto. Para a ocasião, o comediante adota uma linguagem particularmente lírica:

“Há uma atmosfera de 8 de setembro”, ele escreve. “A política sente o tornado se aproximar. Ela se prepara. A Itália poderia ter mudado em 1992. Não conseguiu. Os lobbies, os clãs e as máfias venceram. A Segunda República morreu no próprio berço [...] O tornado gira, gira. Seu cheiro é de madeira podre, de corda, de granizo e de chuva densa. A Itália é uma panela de pressão, se ela explode desta vez, carrega todo mundo, talvez o próprio Estado nacional […] O verão será muito quente. Depois, virá setembro e o Vaffanculo Day [o Dia do Vá se Foder], ou V-Day. Um meio termo entre o D-Day do desembarque na Normandia e o V de Vingança. Será no sábado, 8 de setembro, nas praças da Itália, para lembrar que, desde 1943, nada mudou. Ontem, era o rei em fuga e a nação derrotada; hoje, os políticos fechados nos palácios. O V-Day será um dia de informação e participação popular. Para fazer parte, conecte-se no blog.”

Com seu título envolvente, a ira em estado puro, o chamado ao Vaffanculo Day viraliza em segundos e começa a se espalhar nas telas e monitores, para muito além das fronteiras dos simpatizantes dos Meetup.

Só as mídias tradicionais não se dão conta de nada. Uma semana antes da manifestação, Grillo tenta convocar uma entrevista coletiva para explicar a iniciativa, mas é forçado a cancelá-la, pois apenas um jornalista de um diário responde ao convite. Nos dias que precedem o V-Day, a imprensa não dedica uma só linha, e os canais de TV não cedem um mísero minuto de suas antenas ao acontecimento.

Mas, nesse 8 de setembro de 2007, a Praça Maggiore, de Bolonha, está abarrotada de gente, como não se vê há muitos anos. Em toda a Itália, duzentas outras praças são tomadas por apoiadores do movimento, que vieram celebrar o Vaffanculo colossal dirigido por Grillo à casta dos homens políticos corruptos que oprime os italianos. Mais de trezentas mil assinaturas são recolhidas para a iniciativa “Parlamento limpo”, que prevê , entre outras providências, que cada deputado não possa exercer mais de dois mandatos.

O choque para o establishment político é imenso. É preciso dizer que em 2007 a internet é ainda uma criatura mais ou menos desconhecida da maioria dos responsáveis políticos, que deixam seus assessores ou secretários cuidarem de suas caixas de e-mail.

A partir desse momento, as mídias começam a girar em torno de Grillo, num grande frenesi. Elas querem compreender o fenômeno. A classe política também se agita e volta os olhos com interesse e medo para aquelas praças cheias de eleitores furiosos. À época, o comediante e Casaleggio ainda não imaginam que possam assumir um papel político direto. Eles ainda pensam que é preciso investir as forças que começaram a mobilizar na arena tradicional do jogo político.

Casaleggio, a essa altura, já cultivou uma relação privilegiada com Antonio Di Pietro, o juiz-símbolo da Operação Mãos Limpas, que fundou seu próprio partido, aliado da centro-esquerda de Romano Prodi. Desde então, os dois situam-se mais para as fileiras do partido democrata em gestação, uma formação destinada a misturar as principais correntes da centro-esquerda num único recipiente político. De fato, nem Grillo nem Casaleggio podem ser considerados de esquerda, mas a maioria de seus discípulos, nessa primeira fase, vem de lá. São, principalmente, jovens, sensíveis aos temas ambientais e trabalhistas, distantes da política tradicional e indignados com os desperdícios ligados à corrupção.

Mas a esquerda não se mostra nem um pouco receptiva aos progressos da dupla. Prodi lhes concede meia hora de encontro (“Ele ficou com os olhos fechados, parecia dormir”, diria Beppe Grillo logo após a reunião), e quando o comediante tenta se candidatar às primárias do novo partido democrata, é imediatamente descartado. “Se ele quer criar um partido, basta candidatar-se e ter votos”, declara, inconscientemente, um dos caciques da agremiação.

É então que Grillo e Casaleggio decidem partir para o voo solo. Aliás, o entusiasmo de seus partidários se torna irrefreável. Alguns são candidatos às eleições locais, integrando “listas Grillo” mais ou menos autônomas. O risco de que todo esse fervor escape a seu demiurgo é bem real. Casaleggio é obcecado por controle. Estudou, durante muitos anos, os grandes conquistadores da História. Admira, em particular, Gengis Khan, que governava um império erguido sobre um sistema de comunicação extremamente performático, capaz de fazer chegarem ordens a todos os grotões de seus domínios. Ele adora a maneira pela qual o imperador mongol selecionava seus comandados: uma fidelidade a toda prova, que transcendia critérios como berço e experiência.

Por seu lado, Casaleggio cultiva a mesma vontade inflexível de punir toda forma de insubordinação. “À menor dúvida, nenhuma dúvida mais!”, repete, como um mantra. Aquele que der a impressão de não aderir 100% à visão do chefe é sumariamente expulso.

Com seu filho Davide, especialista apaixonado por internet e marketing viral, Casaleggio-pai põe em marcha o modelo de organização do Movimento 5 Estrelas. Uma arquitetura aparentemente aberta, fundada na participação das bases, mas na verdade completamente bloqueada e controlada pela cúpula.

Num livro amplamente inspirado pelo pai, Davide Casaleggio compara as redes sociais aos formigueiros. “As formigas”, escreve, “seguem uma série de regras aplicadas a cada indivíduo, por meio das quais se determina uma estrutura muito organizada, mas não centralizada. Cada formiga reage ao contexto, ao espaço no qual se desloca e às outras formigas.”

Mesmo auto-organizado, tal sistema não exclui o papel de um demiurgo, que observa o formigueiro do alto e determina sua evolução: “As informações sobre as interações locais”, prossegue Casaleggio júnior, “permitem compreender um sistema emergente e, se possível, modificá-lo. Por exemplo, saber que as formigas mudam de trabalho, se encontram certo número de outras formigas que exercem as mesmas tarefas nos permite compreender suas decisões.”

Mas, para que isso seja possível, três condições de base devem ser respeitadas:

“É preciso que os participantes sejam numerosos, que se encontrem por acaso e que não tenham consciência das características do sistema no seu todo. Uma formiga não deve saber como funciona o formigueiro, do contrário, todas as formigas desejariam ocupar os melhores postos e os menos cansativos, criando, assim, um problema de coordenação.”

Apoiando-se nessas reflexões, os Casaleggio lançam as bases de seu movimento. Uma organização complexa, com uma fachada descentralizada, no seio da qual nenhuma formiga deve conhecer o projeto geral, nem os papéis exercidos pelas outras. Essas informações são reservadas a um demiurgo externo e onisciente. Pode parecer uma caricatura, mas são exatamente os princípios sobre os quais é fundado o novo Movimento 5 Estrelas, que Grillo apresenta num teatro, desta vez em Milão, em 4 de outubro de 2009.

Segundo a linguagem sempre muito imagética do comediante, trata-se de uma “não-associação”, regida por um “não-estatuto” que declara, no seu artigo primeiro: “O Movimento 5 Estrelas representa uma plataforma e um meio de confrontação e de consulta que tem suas origens e encontra seu epicentro no blog www.beppegrillo.it. O contato com o Movimento 5 Estrelas é garantido exclusivamente por meio da caixa de correio eletrônico, cujo endereço é movimento5stelle@beppegrillo.it.”

Na prática, o Movimento não é nem um partido nem uma associação, mas um blog mesmo, pertencente a Grillo e a Casaleggio, e um endereço de e-mail ligado ao mesmo site na internet. Aquele que controla essa plataforma detém o controle absoluto da vida do Movimento 5 Estrelas. Além disso, no artigo 3, o “não-estatuto” prevê que o nome do Movimento seja dotado de uma marca “registrada em nome de Beppe Grillo, único titular dos seus direitos de uso”.

Essa arquitetura privada sofrerá várias modificações jurídicas ao longo dos anos, mas nenhuma variação substancial até agora. Hoje, o Movimento 5 Estrelas representa o principal partido da Itália, e, de seus quadros, saíram o presidente do Conselho e a maioria dos ministros do governo atual. Continua a ser, contudo, uma estrutura essencialmente privada controlada por Davide Casaleggio, filho e herdeiro de Gianroberto.

É em torno desse ponto que, desde o começo, repousa o grande mal-entendido do Movimento. Para sua base de militantes, internet é sinônimo de participação. É o instrumento de uma revolução democrática destinada a arrancar o poder das mãos de uma casta de profissionais da política e entregá-lo ao homem comum. Mas, para a elite do próprio Movimento, encarnada pela “diarquia” Casaleggio/Grillo, as coisas são diferentes: internet é, antes de tudo, um instrumento de controle. É o vetor de uma revolução a partir do topo, que capta uma quantidade enorme de dados a fim de utilizá-los para fins comerciais e, sobretudo, políticos.

Voltemos ao outono de 2009. Desde o início, o modelo organizacional do Movimento – que se opõe radicalmente à retórica da participação pela base – permite a seus proprietários guiar sua criatura com mão de ferro. Os partidários são formigas, é proibido formular críticas ou tomar iniciativas. Cada um é conectado ao Centro através do blog, mas é impedido de estabelecer conexões com outras formigas. Quem se desvia do caminho programado é eliminado.

É o caso de centenas de apoiadores, muitas vezes os maiores entusiastas, expulsos por Casaleggio por insubordinação. O rito é sumário e brutal. Para o Movimento, não sendo nem um partido nem uma simples associação, basta um clique e os traidores estão excluídos do blog. Da noite para o dia, eles acordam desprovidos do direito de acessar a plataforma on-line. Às vezes, recebem uma carta do advogado de Grillo que os proíbe de utilizar o logotipo do 5 Estrelas, propriedade exclusiva desse último.

Se as formigas rebeldes são eliminadas, por outro lado as mais disciplinadas têm a chance de serem ricamente recompensadas. Com a fundação do Movimento, Grillo deixa de ser o único porta-voz do Vaffanculo. Nos escritórios da Casaleggio Associati, outros rostos são testados, principalmente de jovens sem nenhuma experiência política ou profissional, que “funcionam” nos monitores e podem ser passivamente pilotados pelo comando. Os melhores – aqueles que produzem mais burburinho no Facebook e nas outras mídias sociais – são promovidos pelo blog. Em pouco tempo, eles atingem de centenas de milhares a mais de um milhão de seguidores em suas páginas e perfis. Seus posts e vídeos, publicados obrigatoriamente no blog e em outros sites de Casaleggio, juntam-se às postagens de Grillo e começam a gerar retornos publicitários significativos para o partido-empresa.

“Estamos caminhando para a criação de avatares na vida real”, entusiasma-se Gianroberto. Para ele, o fato de a classe dirigente do Movimento 5 Estrelas ser composta de personagens improváveis, sem experiência ou competência, representa uma vantagem dupla. Primeiro, são avatares facilmente controlados e, se necessário, substituídos. Além disso, sua ignorância, sua gramática aproximativa e suas gafes frequentes, delícia dos jornalistas e adversários políticos, os humanizam e fazem com que os avatares de Casaleggio sejam percebidos como próximos do povo e distantes da casta.

A partir de 2012, outros sites se unem ao blog beppegrillo.it. Entre eles, La Cosa, uma espécie de web.tv, e Tze-Tze, um site de informações composto exclusivamente de notícias pinçadas do universo on-line tendo como critério sua popularidade. Durante essa fase, o Movimento experimenta um salto qualitativo na produção da realidade paralela teorizada há muito tempo por Casaleggio. Para os discípulos de Grillo, não é mais necessário sair da bolha para recorrer às mídias tradicionais. A Casaleggio Associati produz as informações e as distribui em seus próprios canais. Elas já são recortadas, sob medida, para viralizar no Facebook e nas outras redes sociais. Os títulos são sedutores, muitas vezes enganosos, outras vezes violentos. Começam quase sempre com as mesmas palavras e expressões: Vergonhoso, Péssima notícia, Isto é a Itália!, Vocês vão ficar chocados, Basta!, É o fim!. De início, antecipa-se a emoção, em geral negativa, que se quer suscitar. Depois, divulgada a informação, às vezes verdadeira, mas muito frequentemente falsa, convida-se à participação: Compartilhe!, Faça circular, Máxima difusão! O único critério de seleção, bem entendido, são os cliques.

As notícias que suscitam as reações mais intensas são valorizadas, republicadas, aprofundadas. Tornam-se objeto de discursos e de iniciativas políticas, cavalos de batalha do Movimento. Outras, tediosas, mesmo quando mais importantes e exatas, terminam o dia no pano de fundo, dando espaço às denúncias de complô e de corrupção, reais ou imaginárias.

Três anos após seu nascimento, o organismo tecnopolítico de Casaleggio já é uma criatura adulta, perfeitamente desenvolvida e capaz de tirar proveito máximo da implacável delinquência do sistema político italiano. Em Roma, Berlusconi, arrastado pelos escândalos sexuais e pela tempestade financeira de 2011, é forçado a renunciar. Em seu lugar, já está um professor frio e calculista, que aplica, em tom acadêmico, um programa de austeridade sustentado por quase todos os partidos do parlamento. Mario Conti, rebatizado “Rigor Mortis” por Grillo, é um alvo perfeito para o Movimento 5 Estrelas.

Diariamente, o blog e outros sites da galáxia Casaleggio martelam o mesmo refrão. Eles são todos iguais. Eles nos arruinaram! Vamos mandá-los de volta para casa! Em plena recessão, com uma taxa de desemprego de 13% e uma pressão fiscal recorde, os italianos estão cada vez mais receptivos às palavras de ordem simples e vulgares do Movimento. 

No espaço de alguns meses, o Movimento 5 Estrelas se torna o único verdadeiro partido nacional do país, popular no Norte e no Sul, entre os jovens e entre os velhos, e capaz de captar vozes tanto à esquerda quanto à direita.

Assim chegamos às eleições de fevereiro de 2013, quando o Movimento, com pouco menos de 9 milhões de votos e 25% do sufrágio, se torna o partido mais votado da Itália. É o estranho triunfo da dupla Grillo/Casaleggio, mas também o começo de seu declínio.

Passadas as eleições, os fundadores conseguem seguir impondo sua linha: jamais comprometer sua pureza, nunca formar alianças para chegar ao governo. O Movimento 5 Estrelas rejeita os convites do Partido Democrata para integrar a maioria governamental e permanece, orgulhosamente, na oposição. Mesmo que o Movimento tenha entrado na corrente sanguínea das instituições, sua atitude não muda. Seu objetivo continua a ser o de minar, por dentro, as bases da democracia representativa em nome de uma democracia direta made in Casaleggio.

Em sua ótica, os 163 parlamentares eleitos pelo Movimento são, e devem continuar sendo, formigas: “Eles estão lá em nome do Movimento”, declara, “não devem fazer política, são apenas o instrumento de um programa e devem respeitar as regras às quais aceitaram aderir. É simples”. As humilhações e os controles infligidos aos eleitos, desde o primeiro dia, são incontáveis. Pede-se a eles, por exemplo, que comuniquem à Casaleggio Associati as senhas para acessar suas caixas de e-mail e seus perfis pessoais no Facebook e em outras redes sociais, de forma a dar à empresa o controle absoluto sobre sua existência digital, a única que conta, realmente, aos olhos do Demiurgo.

Nesse período, Beppe Grillo vocifera contra o parlamento e as instituições democráticas. De “ovo de larva vazio” a “lata de atum” fechada, a verve criativa de Beppe atinge, desde sempre, ápices de bizarrice quando se trata de definir o legislativo. No outono de 2010, o Movimento organiza seu primeiro Cozza-day – algo como “Jornada do mexilhão” – quando os grillinhos, seguidores de Beppe, se encontraram em Roma, diante da Câmara dos deputados. “Não só os condenados em última instância devem ir embora”, proclamou Grillo em seu blog, “mas também todos os que se entrincheiraram no interior do palácio. Presos, como mexilhões, a seus privilégios. Eles não merecem nem que lhes atiremos pequenas moedas, pois seria honrá-los demais. Eles merecem só umas conchas descarnadas, privadas de seu molusco, cada uma rebatizada com o nome de um parlamentar [...]. Elas podem ser deixadas na rua onde mora o deputado ou postas sobre as escadarias do parlamento, como um convite para que se retirem.”

A eleição de 163 representantes do Movimento não convence Grillo a adotar um tom mais moderado. Muito pelo contrário, ele descreve o evento como uma “marcha sobre Roma”, aludindo à tomada de poder de Mussolini em 1922. Depois, num post publicado no blog, escreve: “O parlamento poderia fechar amanhã, ninguém notaria. É um simulacro, um monumento aos mortos, a tumba malcheirosa da Segunda República”.

Mas a violência das declarações do Movimento 5 Estrelas contra as instituições democráticas é só o reflexo da violência verbal que a metralhadora giratória de Casaleggio continua a insuflar no debate político. Na Itália, todo jornalista ou comentarista compreendeu rápido que o simples fato de redigir um texto sobre o M5S (Movimento 5 Stelle, em italiano) o deixava exposto não só a uma onda de críticas – como seria normal –, mas a uma tempestade de insultos.

A partir do final de 2013, o blog introduz uma seção dedicada ao “jornalista do dia”: geralmente, um repórter que criticou o movimento. A vítima é apresentada às massas de grillinhos como um exemplo de má-fé e da corrupção das mídias italianas e se torna pontualmente objeto de injúrias e ameaças nas telas das redes.

Não é por acaso que, em seu relatório anual, o Repórteres sem Fronteiras denuncia, a partir de 2015, o Movimento 5 Estrelas como um dos fatores que mais limitam a liberdade de imprensa na Itália. Dois anos mais tarde, a Associação Internacional de Jornalistas publicará: “O nível de violência contra os jornalistas (intimidações verbais e físicas, provocações e ameaças) é alarmante, em particular quando os políticos como Beppe Grillo não hesitam em tornar públicos os nomes dos jornalistas de quem ele não gosta”.

Se nem todos os adeptos do Movimento praticam o esquadrismo (Movimento com que Benito Mussolini contou para criar seus “feixes de combate” fascistas. Termo utilizado para se referir a um certo tipo de organização que se impõe pela força. [N.T.]) digital, a taxa de agressividade é bem mais elevada que em todas as outras formações políticas. No entanto, por trás da fachada, a verdadeira briga de facas está relacionada aos dados recolhidos pela Casaleggio Associati durante mais de dez anos de atividade do blog, e os provenientes de outros sites, nas redes sociais dos avatares do Movimento.

Num livro-reportagem, Nicola Biondo, ex-responsável pela comunicação do grupo M5S na Câmara dos Deputados, e Marco Canestrari, braço-direito de Gianroberto Casaleggio entre 2007 e 2010, revelaram, pela primeira vez, o outro lado do cenário. De acordo com essa reconstrução, é sobretudo a guerra pelo controle dos dados que faz pulsar a vida interna do Movimento e determina as relações entre a família Casaleggio, Beppe Grillo e os novos avatares da M5S que aparecem de tempos em tempos à frente do palco. Em comparação com os conflitos pelo poder que marcam todas as formações políticas, essa luta tem por singularidade o fato de acontecer inteiramente à sombra e de envolver uma ambição orwelliana (De George Orwell, autor de 1984 , um dos grandes clássicos da ficção do século XX. A obra retrata os efeitos nefastos do totalitarismo em uma sociedade futurística e distópica. [N.E.]) – o controle dos cérebros dos adeptos –, da qual pouquíssimos são conscientes.

De um lado, os dados têm um valor comercial. “A Casaleggio Associati”, escrevem Biondo e Canestrari, “não é um organismo caridoso, mas uma sociedade limitada. Tem interesse evidente em controlar esses dados: conhecer o ‘perfil’ de pessoas ligadas ao Movimento – quem são, onde moram, como votam, quanto pagam – tem valor [...] inestimável”.

De outro lado, considerando o consenso eleitoral do Movimento, os dados se tornaram o desafio principal de um jogo político gigantesco. Conhecer a opinião dos inscritos sobre um território e um tema definido, ou a visão dos próprios parlamentares, é uma vantagem competitiva importante, dentro ou fora do M5S, para quem tem a ambição de guiar o partido. Assim, se Di Maio, ou um outro, deseja tomar as rédeas do Movimento, deverá ter acesso aos dados. Saber quem, no seio do grupo parlamentar, votou a favor ou contra a direção, a abolição do delito de clandestinidade ou as uniões civis, por exemplo, para fazer a diferença.

Graças ao controle absoluto que exerce sobre os dados, Casaleggio-pai controla também sua criatura, mesmo quando ela se metamorfoseia no primeiro partido italiano. E pode continuar a desenvolver seus experimentos políticos.

*

Na primavera de 2016, o Movimento 5 Estrelas tem, enfim, a oportunidade de realizar de maneira completa seu projeto de privatização digital da coisa pública. O prefeito de Roma, vindo do Partido Democrata, foi obrigado a renunciar em razão de uma série de escândalos, e o Movimento está na pole position para garantir a sucessão. Virginia Raggi, uma advogada totalmente desconhecida e sem qualquer experiência administrativa anterior, é escolhida por Casaleggio como candidata às eleições municipais do mês de junho.

No entanto, mais uma vez, nas intenções do Demiurgo, trata-se de um simples avatar: não é ela quem irá administrar a Cidade Eterna. Antes de ser candidata, a futura prefeita assina, em total segredo, um contrato no qual está previsto que “as propostas de ações de alta administração e as questões juridicamente complexas serão antes submetidas a um juízo técnico-legal, deixado aos bons cuidados do staff coordenado pelos guardiões do Movimento 5 Estrelas”. A cláusula 4 do contrato determina que “o instrumento oficial para a divulgação das informações e a participação dos cidadãos” não será o site da prefeitura de Roma na internet, mas o blog www.beppegrillo.it . O inciso b da mesma cláusula prevê que a equipe de comunicação seja nomeada por Grillo e Casaleggio. Se a prefeita violar uma dessas disposições, o contrato assinado por ela prevê multa de 150.000 euros. Segundo a lei italiana, um contrato desse tipo é, evidentemente, ilegal e seria declarado nulo se a prefeita decidisse contestá-lo na justiça. Mas o fato mesmo de um documento assim existir e ter sido aceito, sem qualquer hesitação, pela futura “primeira cidadã” de Roma, mostra, mais uma vez, de forma cristalina, a natureza orwelliana da experiência de Casaleggio.

Infelizmente para ele, o Demiurgo não terá tempo de ver triunfar o “teste de Roma” nem a vitória das eleições nacionais dois anos mais tarde. Gravemente doente, Casaleggio morre em abril de 2016, numa clínica milanesa onde se internou sob o pseudônimo de Gianni Isolato, “João, o Isolado”, confirmando, mais uma vez, que em política não há final feliz.

Mesmo assim, poucos dias antes de morrer, Casaleggio organiza, do leito de morte, sua sucessão. Deixa como herança a seu filho Davide o principal partido político italiano. Nasce, naquele momento, a Associação Rousseau, composta por duas únicas pessoas, o pai moribundo e o filho a quem ele passa a coroa – na forma de presidência vitalícia da entidade.

A novíssima associação tem por objetivo “promover o desenvolvimento da democracia digital e ajudar o Movimento 5 Estrelas”. De fato, segundo o artigo primeiro do novo estatuto do Movimento, a Rousseau é responsável, para sempre, pelo conjunto de ferramentas informáticas do Movimento. Ao contrário dos partidos piratas do Norte da Europa e das outras forças políticas que lutam pela democracia eletrônica e se apoiam, de forma coerente, sobre plataformas open source inteiramente transparentes, o Movimento 5 Estrelas faz suas escolhas na mais absoluta obscuridade. O site sobre o qual se baseia toda a vida do partido pertence a uma associação blindada e administrada por uma empresa privada, que tem o mesmo presidente da agremiação. Nem os códigos nem qualquer elemento que sirva ao funcionamento da plataforma são públicos. A Rousseau é uma caixa preta da qual saem apenas, dependendo da boa vontade de Casaleggio júnior e sem nenhum controle, os resultados das consultas: nomes de vencedores das primárias para todos os cargos públicos, decisões sobre temas do programa, votações para expulsões e expurgos dos dissidentes.

Em tais condições, não é de espantar que a participação nas votações on-line tenha caído continuamente nos últimos anos. Hoje, as principais questões submetidas aos membros são decididas por um punhado de cliques. O Demiurgo morreu, e o bufão Grillo, cumprido seu dever de avatar número um dos Casaleggio, foi relegado a um papel irrelevante, marginal. O poder, hoje, é todo concentrado nas mãos de Davide, que o exerce com muita discrição, mas sem nenhum pudor.

Se o pai era essencialmente um autodidata talentoso, o filho é formado em economia empresarial numa das melhores universidades privadas da Itália, a Bocconi, de Milão. Tímido, metódico, ótimo jogador de xadrez e apaixonado por mergulho submarino, Davide não herdou o caráter idealista do pai. Segundo aqueles que o conhecem, o que lhe interessa, acima de tudo, são os negócios. Para ele, o Movimento é um tipo de megadepartamento para relações institucionais, capaz de abrir todas as portas na Itália e, de agora em diante, no estrangeiro. O fato de, após as eleições de 4 de março de 2018, o M5S se identificar com as instituições não muda, de maneira fundamental, a natureza de seu approach. Dos bastidores, Casaleggio controla seus homens de confiança no comando, e não há nenhuma decisão estratégica relativa ao Movimento, e ao seu governo, que não passe por seu gabinete.

No palco da ópera, acotovelam-se os improváveis avatares do partido-empresa: o presidente do Conselho de Ministros, Mister Conte, o líder provisório do Movimento, Luigi Di Maio, o presidente da Câmara, Roberto Fico, e o franco-atirador Alessandro Di Battista. Cada um deles pode facilmente ser substituído de acordo com a necessidade, as exigências políticas ou os interesses da empresa. Para evitar qualquer mal-entendido, aliás, o estatuto do Movimento prevê que nenhum dos eleitos possa exercer mais de dois mandatos.

Diante dessa inédita situação para uma democracia ocidental, podemos finalmente apreender a exata medida do poder da intuição inicial de Gianroberto Casaleggio, quando, lá atrás, decidiu criar um movimento alicerçado na união solidária de dois componentes – um análogo e outro digital – que não haviam jamais encontrado, até então, uma síntese política tão poderosa.

Esse dispositivo possui duas características explosivas em comparação ao sistema político pré-existente. Antes de tudo, o Movimento 5 Estrelas tem uma vocação explicitamente totalitária, no sentido em que procura representar não uma parte, mas a totalidade do “povo”. Casaleggio-pai não concebeu seu movimento como um partido destinado a se integrar ao jogo – ultrapassado, em sua ótica – da democracia representativa, mas como um veículo destinado a conduzir a Itália a um novo regime político: a democracia direta, na qual os representantes dos cidadãos desaparecem porque são os cidadãos, eles próprios, que tomam todas as decisões. Isso se dá através de um processo de consulta on-line permanente, extensível a todos os domínios da vida social.

Em segundo lugar, em linha com sua aspiração totalitária, o M5S não funciona como um movimento tradicional, mas como o PageRank do Google. Ele não tem visão, programa ou qualquer conteúdo ou agenda positivas. É um simples algoritmo construído para interceptar o consenso graças a assuntos e tópicos “que funcionam”. Se a imigração é um tema forte, o Movimento investe no assunto, adotando a posição mais popular – ou seja, hoje uma postura similar à da Liga do Norte. Isso vale igualmente para o euro, os bancos etc. Se a opinião pública evoluísse no sentido oposto em relação a qualquer um desses temas, o M5S mudaria de posição, sem o menor prurido. O partido-algoritmo criado por Casaleggio-pai tem por único objetivo satisfazer de modo rápido e eficaz a demanda de consumidores políticos. E essa mentalidade comercial continua a ser a pedra fundamental do partido-empresa.

Numa entrevista ao Corriere della Sera, Davide Casaleggio fala do movimento como se fosse uma cadeia de lojas: “Nós garantimos um melhor serviço e somos mais eficazes em trazer as aspirações dos cidadãos às instituições [...] a velha partidocracia é como uma [videolocadora] Blockbuster, enquanto nós somos como a Netflix”.

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