segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O que é Sindicalismo - Ricardo Antunes


O QUE É SINDICALISMO

Ricardo L. C. Antunes

O ressurgimento da ação sindical foi um fato marcante na história recente do Brasil. Para entender a importância desse acontecimento é preciso discutir o significado da organização dos trabalhadores na história da humanidade. O livro do sociólogo Ricardo Antunes nos reporta às origens do movimento sindical, analisa suas várias vertentes e aponta seus limites no interior da sociedade capitalista. Além disso, o autor faz um balanço do sindicalismo brasileiro, desde o surgimento das primeiras organizações de auxilio mútuo até a formação das Centrais Sindicais nos últimos anos.

SUMÁRIO

Apresentação 

PRIMEIRA PARTE

- Origens, evolução e importância dos sindicatos

- O advento do capitalismo e o papel dos sindicatos

- O nascimento do sindicalismo e das lutas operárias: os trade-unions

- A evolução do sindicalismo e suas várias concepções: anarquista, reformista, cristã, corporativistae comunista

- A importância da atuação dentro dos sindicatos operários

- A luta pelo sindicato único

  - Os limites do sindicalismo e o papel do partido político

SEGUNDA PARTE O Sindicalismo no Brasil

- As origens

- A superação do anarquismo

- Getúlio Vargas no comando do Estado

- O ressurgimento das lutas sindicais no Brasil no período de 1945-64

- O avanço das lutas sociais durante o Governo Goulart

- A longa noite do sindicalismo brasileiro

- Retomada da luta contra o arrocho salarial ou greves de Osasco e Contagem em 1968

- Maio de 78: as máquinas param; a classe operária volta à cena. 

- Março de 79: os braços novamente estão cruzados: começa a nascer a democracia

- A década de 80: anos de mudança no sindicalismo brasileiro — o nascimento da CUT e da CGT 

- Para onde vão os sindicatos

- Indicações de Leitura

APRESENTAÇÃO

O ressurgimento da luta sindical no Brasil foi, para muitos, algo inesperado. Para alguns porque, apesar de interessados, simplesmente desconheciam o que efetivamente se passava no mundo do trabalho. Para outros porque premeditadamente faziam questão de ignorar as reais condições de vida dos trabalhadores. Havia também aqueles que ainda acreditavam, apelando para a falsa idéia da “passividade” do povo brasileiro, este encontrar-se resignado com o lugar que lhe tinha sido destinado na sociedade. A todos eles — e a outros ainda —, o ressurgimento do movimento sindical foi uma surpresa.

Este pequeno livro pretende destacar que esta “surpresa” era algo previsível no desenrolar dos acontecimentos que envolviam a classe operária, sua história e seu sindicalismo. Para tanto, introduz algumas questões preliminares para todos aqueles que, envolvidos ou não na condição de assalariados, buscam principiar no entendimento do que é o sindicalismo.

Daí que nos parece desnecessário frisar que ele foge a todas as regras de um trabalho acadêmico. Se não bastasse o seu caráter meramente introdutório, destina-se especialmente àquelas pessoas cujo cotidiano se desenvolve fora dos muros da universidade.

Sob estas condições este texto foi concebido.

Nele se encontram duas partes: a primeira mostra as origens do sindicalismo, suas várias concepções, sua importância e os seus limites dentro da sociedade capitalista moderna. A segunda faz um sintético balanço da história do movimento sindical brasileiro, destacando seus principais momentos, desde a criação das organizações de auxilio mútuo na segunda metade do século XIX até os embates mais recentes desencadeados pelo movimento dos trabalhadores.

RICARDO ANTUNES

1ª Parte ORIGENS, EVOLUÇÃO E IMPORTÂNCIA DOS SINDICATOS

O advento do capitalismo e o papel dos sindicatos

"Os sindicatos representaram, nos primeiros tempos do desenvolvimento do capitalismo, um progresso gigantesco da classe operária, pois propiciaram a passagem da dispersão e da importância dos operários aos rudimentos da união da classe."

A sociedade capitalista encontrou em meados do século XVIII plenas condições para a sua expansão. O intenso desenvolvimento das máquinas, substituindo a produção artesanal e manufatureira, consolidou o capitalismo, que agora ingressava na fase industrial.

O maquinismo desenvolveu-se prodigiosamente, tornando-se mesmo uma lei imperativa para os fabricantes capitalistas na concorrência que faziam entre si, em busca de maiores lucros. Porém, o emprego da força mecânica e das máquinas nos novos ramos industriais, assim como a utilização de máquinas mais avançadas em ramos já mecanizados, deixaram sem trabalho um grande número de operários. Esse excedente de mão-de-obra substituído pela máquina fortaleceu ainda mais o capitalista que, a partir de então, passou a pagar um salário ainda mais humilhante para os operários.

Neste momento a divisão da sociedade atingiu sua plenitude; constituíram-se as duas classes fundamentais e antagônicas que compõem a sociedade capitalista. De um lado os capitalistas, que são proprietários dos meios de produção, como as máquinas, matérias-primas e que vivem da exploração da grande massa da população, e, de outro, os proletários, que se encontram privados de toda a propriedade dos meios de produção e que só dispõem de sua força de trabalho, isto é, da sua capacidade de produzir. Noutras palavras, o produto criado pelo trabalho do operário passou a ser apropriado pelo capitalista. E subsiste dentro da sociedade capitalista a Lei do Salário que, como demonstrou Engels em seus Escritos sobre o Sindicalismo, acarretando cada vez mais a diminuição da remuneração do trabalhador, reforça as cadeias que tornam cada vez mais o operário escravo do produto gerado pelas suas próprias mãos. Essa tendência ao rebaixamento dos salários atinge um nível tal, que só é suficiente para a reprodução do trabalhador, forçando-o a uma jornada de trabalho extenuante, cheia de “horas extras”, além de ver sua mulher e filhos, estes na maioria das vezes ainda em idade precoce, trabalhando sob condições desumanas.

Como decorrência dessa situação, os operários, que inicialmente não dispõem de outra coisa senão sua força de trabalho, subordinam-se aos interesses e à força do capital, mantendo com esse uma relação sempre desigual. A grande força que possuem é, em contrapartida, a sua quantidade.

Essa quantidade, porém, é anulada quando há desunião entre a classe, o que não acontece com os capitalistas que, facilitados pelo seu reduzido número, encontram-se sempre organizados e coesos na defesa da propriedade privada e dos lucros. Os operários encontrarão em suas organizações próprias condições para dispor de um meio de resistência eficaz contra essa pressão constante pela baixa de salários.

É neste momento que surgem os sindicatos; estes nasceram dos esforços da classe operária na sua luta contra o despotismo e a dominação do capital. Os sindicatos têm como finalidade primeira impedir que os níveis salariais se coloquem abaixo do mínimo necessário para a manutenção e sobrevivência do trabalhador e sua família. Os operários unidos em seu sindicato colocam-se de alguma maneira em pé de igualdade com o patronato no momento da venda de sua força de trabalho, evitando que o capitalista trate isoladamente com cada operário. Esta é a função primeira dos sindicatos: impedir que o operário se veja obrigado a aceitar um salário inferior ao mínimo indispensável para o seu sustento e o da sua família.

Os sindicatos são, portanto, associações criadas pelos operários para sua própria segurança, para a defesa contra a usurpação incessante do capitalista, para a manutenção de um salário digno e de uma jornada de trabalho menos extenuante, uma vez que o lucro capitalista aumenta não só em função da baixa de salários e da introdução das máquinas, mas também em função do tempo excessivo de trabalho que o capitalista obriga o operário a exercer.

A atuação dos sindicatos baseia-se nas lutas cotidianas da classe operária. Mas além disso, os sindicatos constituem-se também força organizadora da classe operária na luta pela supressão do sistema de trabalho assalariado. Devem ser considerados como centro de organização dos operários visando sua emancipação econômica, social e política.

O sindicato, ao tornar-se representante dos interesses de toda a classe operária, conseguiu agrupar em seu seio todos os assalariados que não estavam organizados, evitando que o operário continuasse sua luta isolada e individual frente ao capitalista. A partir do momento em que os operários constituíram suas organizações de classe, ficou mais difícil para o capitalista baixar desmesuradamente o salário ou aumentar excessivamente a jornada de trabalho.

Presentemente os sindicatos são instituições reconhecidas e sua ação é admitida como fator de regulamentação e fiscalização dos salários, da jornada de trabalho e da legislação social. E graças à ação sindical que a Lei dos Salários é controlada pelos próprios operários. Mais ainda: o papel dos sindicatos é fornecer aos operários alguns meios de resistência na sua luta contra os excessos do capitalismo. Essa luta subsistirá enquanto a redução dos salários continuar a ser o meio mais seguro e mais fácil para o capitalista aumentar seus lucros, ou seja, enquanto durar o próprio sistema de salário. A simples existência dos sindicatos é a prova disso: se não lutassem contra a usurpação do capital, diz Engels, para que serviriam?

Os sindicatos representaram, conforme acrescentou Lenin, nos primeiros tempos do desenvolvimento do capitalismo, um progresso gigantesco da classe operária, pois propiciaram a passagem da dispersão e da impotência dos operários aos rudimentos da união de classe.

O nascimento do sindicalismo e das lutas operárias: os trade-unions 

“Se a história das organizações sindicais inglesas teve momentos de derrotas e vitórias, é inegável que elas constituíram a primeira tentativa efetiva dos trabalhadores de organizarem-se na luta contra os capitalistas. Ao conseguirem abater a concorrência existente entre os operários unindo-os e tornando-os solidários em sua luta, ao se utilizarem das greves como principal arma contra os capitalistas, os operários conseguiram dar os primeiros passos na luta pela emancipação de toda a classe operária."

A Inglaterra viveu, na segunda metade do século XVIII, um processo de desenvolvimento intenso. O advento do vapor e das máquinas transformou as manufaturas em grandes indústrias modernas, criando as novas bases da sociedade capitalista. Vivia-se a etapa da produção em larga escala. Cada vez mais se acentuava a divisão da sociedade em grandes capitalistas, de um lado, e proletários, de outro, mediados por uma massa de pequenos comerciantes e artesãos, segmento flutuante e oscilante da população. O capitalismo iniciava um processo que ainda haveria de desenvolver, mas já trazia consigo toda uma gama de transtornos sociais, como a superexploração do trabalho, que atingia até 16 horas por dia, a exploração das mulheres e das crianças, o trabalho sem condições mínimas de salubridade, além da aglomeração da população operária em locais sem as mínimas condições de vida e habitação.

O intenso desenvolvimento do processo de produção capitalista teve, como já referimos, a necessidade de recorrer cada vez mais ao uso das máquinas, o que coadunava com os interesses dos capitalistas que procuravam auferir lucros cada vez maiores. Vimos também que dentro destas circunstâncias a introdução das máquinas trouxe a substituição de grandes contingentes de mão-de-obra, que foram lançados ao desemprego. Daí as primeiras manifestações de revolta dos operários visarem a destruição das máquinas, num movimento denominado Ludismo.

Engels, em seu célebre estudo A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, mostrou que a forma mais elementar de luta da classe operária marcou uma resistência violenta à introdução das máquinas. Os primeiros inventores foram inicialmente perseguidos e suas máquinas destruídas. Mas essa forma de revolta era isolada, limitada, e não conseguiu conter o inimigo maior que era o próprio poder do capitalista. Mais ainda, colocou a sociedade inteira contra os operários pelo seu gesto considerado brutal. Era pois necessário encontrar uma forma de oposição mais eficiente e que representasse um avanço nas lutas da classe operária.

Foi de grande importância para esse avanço a lei votada em 1824 pelo Parlamento inglês, onde se conquistou o direito que até então era restrito às classes dominantes: a livre associação. Na verdade as associações sindicais já existiam na Inglaterra desde o século anterior, mas eram violentamente reprimidas no desempenho de suas atividades, o que dificultava a organização dos trabalhadores. Conquistado o direito de livre associação as uniões sindicais — trade-unions, como as chamam os ingleses — desenvolveram-se por toda a Inglaterra, tornando-se bastante poderosas. Em todos os ramos industriais, diz ainda Engels, formaram-se trade-unions com o objetivo de fortalecer o operário na luta contra a exploração capitalista. As trade-unions passaram então a fixar os salários para toda a categoria, evitando com isso que o operário atuasse isoladamente na luta por melhores salários. Passaram também a regulamentar o salário em função do lucro, obtendo aumentos que acompanhavam a produtividade industrial e nivelando-se a toda categoria.

As trade-unions negociavam com os capitalistas a criação de uma escala de salários, forçando sua aceitação, e deflagravam greve sempre que esses salários eram rejeitados. Ante as constantes manobras dos capitalistas, as trade-unions auxiliavam financeiramente os operários em greve ou desempregados, através das "Caixas de Resistência”, o que aumentava sobremaneira a capacidade de luta da classe operária e tornava arriscado para o capitalista diminuir os salários ou aumentar as horas de trabalho.

Outro avanço que se procurou obter foi a aglutinação das várias categorias de uma região numa federação. Em 1830 constituiu-se uma associação geral de operários ingleses — a “Associação Nacional para a Proteção do Trabalho" — cujo objetivo era atuar como central de todos os sindicatos.

Reuniu operários têxteis, mecânicos, fundidores, ferreiros, mineiros etc. Na vanguarda deste movimento encontrava-se o operariado fabril de Lancashire, ocupados nas fábricas de tecidos. A Associação era liderada por John Doherty (um operário que já nos anos 20 era secretário do Sindicato dos Fiadores de Algodão em Manchester) e reunia milhares de associados, além de uma publicação periódica, A Voz do Povo. A função principal da Associação Geral era resistir à diminuição dos salários e dar apoio aos operário em greve. Uma vez desrespeitado o salário fixado pelas trade-unions, estas enviavam uma delegação junto ao patronato exigindo a aceitação dos salários previamente estabelecidos pela escala. Se isso não fosse suficiente a Associação recorreria à paralisação de todos os operários daquele ramo ou setor. Estas greves eram parciais, em uma determinada fábrica ou setor de produção, ou generalizadas, quando atingiam todo um ramo de produção, como os têxteis, mineradores etc. Estes eram os meios legais utilizados pela Associação Geral e somente se consolidavam em vitórias quando correspondiam a uma maciça organização e atuação dos operários.

À medida que surgiam estas associações sindicais, os patrões, através das demissões, começaram a pressionar e obrigar os operários a renunciar formalmente a participar da vida sindical. Isso fez com que várias associações sindicais fossem posteriormente extintas, o que demonstrou quão árdua foi a luta dos operários pela sua organização nos sindicatos.

Destaque nesta luta das trade-unions inglesas deve ser dado a Robert Owen, industrial que se tornou posteriormente um dos precursores do socialismo utópico inglês. Diz Engels em seu ensaio Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico que, enquanto se limitou ao papel filantrópico e assistencialista, Owen só recolheu riqueza, aplausos, honra e fama, não só entre os homens de sua classe burguesa, mas também entre os governantes e o Estado. Contudo, a partir do momento em que formulou suas teorias socialistas, foi banido e perseguido pelos capitalistas e pelo Estado, além de ser ignorado completamente pela imprensa. Owen aproximou-se cada vez mais dos interesses da classe operária, onde ainda atuou durante algumas décadas. "Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais registrados na Inglaterra no interesse da classe trabalhadora estão ligados ao nome de Owen. Assim, em 1819, após cinco anos de grandes esforços conseguiu que fosse votada a primeira lei limitando o trabalho da mulher e das crianças nas fábricas. Foi ele quem presidiu o Primeiro Congresso em que as trade-unions de toda a Inglaterra se fundiram numa única e grande organização sindical”: Grande União Consolidada dos Trabalhadores, criada em 1834 e que se dedicou a sustentar as greves que eclodiram por toda parte na Inglaterra.

Foi Owen quem organizou as cooperativas de consumo e de produção que serviram para demonstrar, na prática, que o comerciante ou intermediário e o proprietário capitalista não são indispensáveis e, por outro lado, organizou ainda os mercados operários, estabelecimentos de trocas dos produtos por meio de bônus do trabalho, cuja unidade era a hora produzida. O que Owen não conseguiu perceber — e por isso foi um socialista utópico — é que a transformação da sociedade capitalista não seria pacífica e através de reformas, mas sim a partir da luta violenta entre as classes, conforme mostraram Marx e Engels no célebre Manifesto Comunista de 1848.

Se a história destas Associações é caracterizada por momentos de vitórias e de derrotas, é inegável que elas constituíram a primeira tentativa efetiva de organização dos trabalhadores na luta contra os capitalistas. Ao conseguirem abater a concorrência existente entre os operários, unindo-os e tornando-os solidários em sua luta, ao utilizarem-se das greves como a principal arma contra os capitalistas, os operários conseguiram dar os primeiros passos na luta pela emancipação de toda a classe operária.

A evolução do sindicalismo e suas várias concepções: anarquista, reformista, cristã, corporativista e comunista 

Desde seu nascimento, os sindicatos mostraram-se fundamentais para o avanço das lutas operárias. E sua evolução não se limitou à nação inglesa. O crescente desenvolvimento das atividades industriais em França, Alemanha, E.U.A. e outros países, já na segunda metade do século passado, fez emergir um proletariado cada vez mais forte, tanto quantitativa quanto qualitativamente. O movimento sindical expandiu-se. Floresceram as greves em todo o mundo capitalista, desde os países mais avançados até aqueles de industrialização mais atrasada. A classe operária ganhava novas dimensões e avançava na batalha pela sua emancipação; em 1866 realizou-se o Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, reunido representantes operários de todo o mundo. Lá estavam presentes as idéias anarquistas de Bakunin, de Proudhon e as idéias comunistas de Marx e de Engels. Neste Congresso reafirmou-se a importância da criação dos Sindicatos, definida como uma das tarefas primordiais do proletariado.

“Estas associações devém não só lutar contra os ataques do capital, como também devem trabalhar conscientemente como locais de organização da classe operária em busca do grande objetivo que é a sua emancipação radical. Devem ajudar qualquer movimento social ou político que tenha esta direção.”

O proletariado iniciou um processo de luta, desencadeando desde reivindicações puramente econômicas até movimentos propriamente políticos, como o Cartismo na Inglaterra, as Revoluções de 1848 em França e Alemanha e a célebre Comuna de Paris de 1871. Em todos estes eventos a participação da classe operária foi decisiva.

No movimento sindical o trade-unionismo, que aspirava a reivindicações predominantemente econômicas, já não era a única tendência.

Uma segunda tendência emergiu em países como França e Itália, onde a classe operária ainda não atingira o grau altamente concentrado da indústria inglesa e onde a exploração capitalista atingia níveis ainda mais violentos. Precursora do anarquismo, esta segunda corrente se auto-intitulou "revolucionária”. Enfatizando que a sociedade capitalista não se transformaria através de reformas, os “sindicalistas revolucionários” acreditavam que somente a greve geral poderia levar à transformação radical da sociedade. Os principais teóricos desta corrente foram o francês Georges Sorel e o italiano Arturo Labriola. Eles acreditavam que a prática da luta exclusivamente econômica, através da ação direta nas fábricas e da deflagração da greve geral, constituía-se na única forma de ação efetivamente revolucionária da classe operária. Dizia Sorel que a ação direta violenta e a greve geral, levando ao conflito as distintas classes sociais, acarretariam uma possível vitória dos operários, devido à justiça de sua causa, a sua maioria numérica e a sua superioridade física, esquecendo-se que a isto os patrões contrapõem toda a violência da força militar e repressiva do Estado capitalista. Sorel ainda rechaçava de antemão a necessidade da luta política, inclusive aquela efetuada no parlamento, e negava qualquer forma de organização partidária, entendida sempre como sendo utópica e reacionária. O “mito sorelíano” da greve geral espontânea caracteriza, segundo o filósofo marxista Georg Lukács, a rebeldia de sua ideologia pequeno-burguesa e irracionalista, e que cada vez mais se distancia da verdadeira ideologia do proletariado. Dado o caráter emocional e a ausência do verdadeiro conteúdo proletário — o que fez com que Lenin o definisse como um “conhecido confusionista” —, as idéias de Sorel foram demagogicamente exploradas pelo fascismo de Mussolini.

Uma terceira tendência foi aquela constituída pelos sindicalistas anarquistas que, coincidindo com os sindicalistas “revolucionários”, também negavam violentamente a luta política e enfatizavam a importância e a exclusividade dos sindicatos no processo de emancipação da sociedade. Para Bakunin, por exemplo, os sindicatos, além de “organização natural das massas”, seriam o “único instrumento de guerra verdadeiramente eficaz” na construção da sociedade anarquista baseada na autogestão e na negação de qualquer forma de administração estatal. Proudhon, Kropotkin e Malatesta foram outros teóricos desta concepção libertária. Embora comportando algumas tendências distintas, o anarquismo enfatizava o papel do sindicato não só como órgão de luta, mas também como núcleo básico da sociedade anarquista. A concepção anarquista propagou-se nos países europeus de menor desenvolvimento capitalista e, consequentemente, de menor concentração industrial, onde predominavam as pequenas indústrias como na Espanha, França, Itália, Portugal, e penetrou também na maioria dos países latino-americanos.

Lenin faz agudas críticas aos anarquistas, mostrando alguns fundamentos de sua ideologia individualista e pequeno-burguesa: a defesa da pequena propriedade, a negação da força unificadora e organizadora do poder (os anarquistas propugnavam a abolição do Estado antes mesmo da supressão das classes antagônicas) e a incompreensão da verdadeira dimensão política da luta de classe do proletariado. Tudo isto acarretou a subordinação da classe operária a ideologia burguesa, sob a falsa aparência de negação da política, apregoada pelos anarquistas.

Outra corrente do movimento sindical, que tem suas origens no trade-unionismo inglês, é aquela denominada reformista, uma vez que se opõe à atuação revolucionária do proletariado. Sem negar o princípio de que os sindicatos constituem um meio de luta a fim de obter reivindicações justas, os reformistas pretendem uma simples melhora da situação dos trabalhadores dentro do sistema capitalista. O maior exemplo dentro desta corrente é o sindicalismo norte-americano. Na herança das trade-unions, o sindicalismo norte-americano pauta sua atuação no terreno estritamente economicista e reivindicatório, nunca abalando, mas sim se ajustando ao sistema capitalista. Sua recusa a um "sindicalismo político” é violenta e data desde a criação da Federação Americana do Trabalho, em fins do século passado, quando a luta operária grevista atingiu ampla repercussão (mais de cinco mil greves em 1886), objetivando conquistar a jornada de oito horas. Vale lembrar o Dia do Trabalho, universalmente celebrado pela classe de todo o mundo em primeiro de maio, tem origem nesta luta dos operários norte-americanos — os Mártires de Chicago — pela redução da jornada de trabalho. Depois de violenta repressão policial às greves, quatro operários são condenados à morte e outros à prisão perpétua sob a falsa acusação de terem cometido um atentado. A partir de então o 1º de Maio tornou-se um dia de luta de toda a classe operária.

Apesar destas lutas no fim do século passado, a Federação Americana do Trabalho pratica, até os dias de hoje, um sindicalismo que nega a luta de classes e que se limita a uma estreita defesa dos interesses corporativos. O movimento sindical norte-americano, neste seu apoliticismo, expressa uma ideologia conservadora e adequada aos interesses do capitalismo e, apesar de ter sua estrutura sindical totalmente independente do Estado, não consegue exercer uma atuação autônoma, uma vez que sua prática sindical encontra-se totalmente subordinada a ideologia capitalista dominante, da qual objetiva extrair algumas melhorias para o operário norte-americano.

Sem romper com a concepção reformista, encontramos ainda a corrente do sindicalismo cristão que se inspirou, em sua origem, na encíclica Rerum Novarum (1891), de Leão XIII. Essa corrente adota uma ampla colaboração social e reconhece a legitimidade de princípio das organizações sindicais, sem que isto implique radicais transformações no regime capitalista da propriedade privada. A concepção cristã atribui ao capitalismo a necessidade de desenvolver sua função social, tornando-o um sistema “justo e equitativo”. A Confederação Internacional dos Sindicatos Cristãos, criada no Congresso de Haia em 1920, afirmou que “a vida econômica e social implica a colaboração de todos os filhos de um mesmo povo. Rejeita, portanto, a violência e a luta de classes, quer do lado patronal, quer do lado operário". A influência do sindicalismo cristão é ainda hoje bastante grande em alguns países, como a Itália.

Outra corrente dentro do sindicalismo — a corporativista — datou das primeiras décadas deste século, durante a vigência do fascismo. Seu aparecimento só foi possível através da violenta repressão ao movimento sindical e operário antifascista, acabando com as verdadeiras lideranças operárias, além de uma prática de intensa manipulação das massas populares. Em 1927 Mussolini decretou a Carta del Lavoro, que organizou os sindicatos italianos nos moldes corporativistas: as corporações tornaram-se subordinadas e dependentes do Estado fascista.

Expressava a política da paz social, da colaboração entre as classes, conciliando o trabalho ao capital, negando violentamente a existência da luta de classes, com o nítido objetivo de garantir a acumulação capitalista em larga escala e com um alto grau de exploração da classe operária.

As corporações italianas aglutinavam representantes dos capitalistas e dos operários, de todas as categorias que contribuíam para a produção de determinado produto. Por exemplo, na corporação dos cereais, na Itália, participavam os representantes dos patrões e dos trabalhadores dos moinhos, padarias, confeitarias, comércio de cereais, técnicos agrícolas etc. Com isso se evitava a criação de corporações por categoria, que mais facilmente refletiriam os conflitos de classe, pois que dela participariam os patrões e os trabalhadores de uma única categoria — por exemplo, os capitalistas proprietários de indústrias metalúrgicas e os operários empregados naquelas indústrias —, refletindo diretamente as disparidades existentes entre eles.

Nos sindicatos fascistas, diz Togliatti em Lições sobre o Fascismo, participavam conjuntamente patrões e operários, capitalistas e proletários, fundamento para a implementação da ideologia corporativista. É importante ressaltar que o corporativismo somente se organizou depois que os trabalhadores foram privados de qualquer representação, quando foram destruídos todos os partidos políticos da classe operária, liquidada a liberdade sindical, liberdade de reunião e demais liberdades democráticas.

Por fim, devemos fazer referência à concepção comunista de sindicalismo.

Lenin, em Que Fazer, demonstrou que o movimento sindical, quando totalmente isolado das demais lutas de toda a sociedade, acaba incorrendo numa atuação demasiadamente “economicista", trade-unionista. Daí a importância da atuação dos comunistas dentro dos sindicatos para transformar a luta trade-unionista numa luta mais ampla pelo fim do sistema capitalista, aproveitando os vislumbres de consciência política que a atuação econômica introduz no operário e elevando esta consciência ao nível de uma consciência revolucionária.

Na Rússia czarista, fase imperial anterior à Revolução Socialista de 1917, os sindicatos que surgiram nos fins do século XIX foram locais de organização fundamentais para o avanço da classe operária. Em São Petesburgo, por exemplo, o movimento sindical foi muito ativo, sendo justamente daí que nasceu a Revolução de Fevereiro, que antecipou a Revolução Socialista de Outubro.

A partir do momento em que a classe operária tomou o poder através da revolução, tornou-se necessário alterar o significado e a função dos sindicatos. Os sindicatos, conforme disse Lenin em Sobre os Sindicatos, tornaram-se uma organização educadora da massa operária, uma organização que dá instrução, uma escola de governo, uma escola de administração, enfim, uma escola de comunismo. É uma escola de tipo completamente desconhecido no capitalismo, pois nos sindicatos não há mestres e alunos, mas sim uma escola que cada vez mais forma os setores mais avançados do proletariado.

Durante a ditadura do proletariado, os sindicatos situam-se entre o Partido e o poder do Estado. Houve inclusive um debate entre Lenin e Trotsky, em 1921, sobre os vínculos entre os sindicatos e o Estado socialista. Enquanto Trotsky, naquele momento histórico, defendia a necessidade de estatizar os sindicatos, isto é, torná-los órgãos estatais (posição que Trotsky abandonou posteriormente), Lenin demonstrou que os sindicatos, mesmo sob o socialismo, deveriam manter-se como órgão de defesa dos interesses materiais dos trabalhadores na luta pela democracia proletária. 

Ressaltava a dupla tarefa dos sindicatos durante a ditadura do proletariado: é, de um lado, através das lutas diárias dos sindicatos que as massas aprendem a caminhar em direção ao socialismo. De outro, os sindicatos são uma “reserva de força” do Estado. Na verdade, na fase de transição do capitalismo para o socialismo os sindicatos assumem algumas tarefas fundamentais, tais como: organização e direção da produção, evitando inclusive as sabotagens contra-revolucionárias dos inimigos da revolução; a melhoria da situação econômica dos operários; a melhoria da condição operária dentro e fora da fábrica, através de garantia do direito ao trabalho, da proteção a acidentes, além de fornecer condições para a manutenção de atividades culturais, de saúde, de turismo, visando o bem-estar e a elevação do nível de vida do operário. Os sindicatos devem também preocupar-se com a formação ideológica dos trabalhadores, através do trabalho cultural de massas, fornecendo a educação política necessária para que os operários entendam e trabalhem pela construção da sociedade socialista, onde eles são os verdadeiros beneficiados.

A importância da atuação dentro dos sindicatos operários

“Não atuar dentro dos sindicatos reacionários significa abandonar as massas operárias insuficientemente desenvolvidas ou atrasadas à influência dos líderes reacionários, dos agentes da burguesia, dos operários aristocratas ou aburguesados.”

Já analisamos a importância dos sindicatos para o avanço das lutas operárias contra a exploração capitalista. Na verdade os sindicatos tornaram-se indispensáveis para o desenvolvimento da classe operária nos primórdios do capitalismo e mesmo na sua fase atual, dominada pelo imperialismo.

Foi, porém, com o surgimento do sindicalismo reacionário que se iniciou uma grande discussão entre as vanguardas operárias sobre a importância da atuação dentro daqueles sindicatos.

Foi Lenin, em Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, quem mostrou a incorreção e inconsequência da luta daqueles que julgavam desnecessária a atuação dentro dos sindicatos reacionários. Referindo-se aos revolucionários alemães Lenin disse: “Mas, por muito convencidos que estejam os esquerdistas alemães do caráter revolucionário de semelhante tática, ela é, na realidade, profundamente errônea e nada contém, a não ser frases vazias."

Na verdade, toda a discussão de Lenin com os “esquerdistas" alemães mostrou os equívocos e os desastres para a classe operária quando certos setores procuraram criar organizações paralelas: não podemos deixar de achar um absurdo ridículo e pueril, diz ainda Lenin, as argumentações ultra-sábias e pretensamente revolucionárias daqueles que defendem idéias de que não se deve atuar nos sindicatos reacionários, e, mais ainda, de que é preciso abandonar os sindicatos e organizar obrigatoriamente uniões operárias “paralelas e livres."

Mesmo quando comportando certas características reacionárias, como a estreiteza grupal, o apoliticismo, o reformismo, nem por isso deixou de ser o sindicato uma “escola de guerra", uma escola preparatória para os operários na luta contra o capitalismo. Daí a necessidade premente de os operários mais avançados instruírem, ilustrarem, educarem as camadas mais atrasadas da classe operária.

Não atuar dentro dos sindicatos reacionários, diz ainda Lenin, significa abandonar as massas operárias insuficientemente desenvolvidas ou atrasadas à influência dos líderes reacionários, dos agentes da burguesia, dos operários aristocratas ou “operários aburguesados". É uma obrigação da vanguarda mais avançada dos operários trabalhar obrigatoriamente onde estiverem as massas. É necessário saber superar todos os obstáculos e barreiras que se colocam entre a vanguarda e as massas; necessário realizar uma propaganda sistemática, pertinaz, perseverante e paciente, exatamente nas instituições, associações e sindicatos onde estejam presentes as massas, por mais reacionárias que sejam. E os sindicatos, diz ainda Lenin, são precisamente as organizações onde estão as massas. Isolar-se deles implica o isolamento das massas operárias, inevitavelmente uma palavra de ordem “infantil e esquerdista" e que atende aos interesses exclusivos da burguesia.

Sendo a organização mais massiva e que abarca todos os operários dos distintos ramos industriais, os sindicatos, mostram-se como um terreno fértil para o avanço de todos os setores do proletariado, mesmo aqueles mais atrasados e com menor experiência de luta, uma vez que é no seu sindicato, junto com os operários mais avançados, que eles começam a entender toda a complexidade da luta contra os capitalistas.

Mesmo durante a época do fascismo, quando a ditadura da classe burguesa assumiu a sua forma mais violenta, o terreno dos sindicatos mostrava-se o mais vulnerável e onde as contradições de classe penetravam de forma mais imediata. Foi exatamente a partir de uma atuação lenta e vigorosa dentro dos sindicatos fascistas e ditatoriais que se conseguiu forjar as grandes organizações sindicais necessárias para a derrota da ditadura capitalista.

Não atuar dentro dos sindicatos, a pretexto do seu caráter reacionário, apolítico, trade-unionista, é o melhor serviço que se pode prestar aos interesses dos capitalistas.

A luta pelo sindicato único

A luta pelo sindicato único tem sido, desde os primeiros tempos, uma luta incansável da classe operária visando o seu fortalecimento e união concreta contra os interesses capitalistas.

Também não é recente o interesse dos capitalistas e dos falsos representantes da classe operária em dividir de todas as formas o sindicalismo operário, visando com isso seu enfraquecimento. Quando se propõe o pluralismo sindical está-se diante de uma tentativa concreta de gerar o divisionismo no seio da classe operária e da sua luta sindical. O principio do pluralismo sindical garante, a pretexto de uma falsa liberdade sindical, o aparecimento de vários sindicatos de uma dada categoria e em uma única base territorial. Esse princípio, que vai ao encontro dos interesses da burguesia, baseia-se no fato de que não deve haver adesão de todos os operários de uma mesma categoria a um único sindicato. Com isso permite-se a criação de vários sindicatos para uma única categoria em uma mesma região, o que, em vez de fortalecer um único sindicato, cria vários pequenos sindicatos. Exemplificando: em vez de existir um único sindicato dos metalúrgicos em uma região, tem-se vários pequenos sindicatos naquele mesmo local. Nada interessa menos à classe operária.

Outra decorrência do principio do pluralismo sindical é que, em vez de se lutar pela criação de uma Central Sindical dos trabalhadores, forte e unitária, os adeptos do pluralismo defendem a criação de várias centrais sindicais independentes entre si, como acontece em vários países da Europa, onde existe a central sindical controlada pelos comunistas, outra pelos democratas-cristãos, outra pelos sociais-democratas, e ainda outras de expressão menor.

Há ainda outro aspecto negativo dentro da concepção de pluralismo sindical e que precisa ser destacado: não poucas vezes um sindicato, dentre os vários existentes em um único setor, julga-se no direito de representar toda a categoria, sendo que ele, por ser um dos vários sindicatos existentes, não tem representatividade para tal ação.

Ao contrário, o princípio da unidade sindical garante a existência de um único sindicato representativo para cada ramo de atividade em uma determinada região. Com isso evita-se a divisão e o consequente enfraquecimento do movimento sindical que, apesar da existência de várias tendências que atuam dentro do sindicato, vê garantida a existência de um único sindicato por categoria. Tem-se, por exemplo, em uma dada região, um único sindicato dos metalúrgicos, um único dos têxteis etc., ao contrário da situação onde há pluralismo, onde existiriam vários sindicatos metalúrgicos, têxteis etc.

Com o princípio da unidade sindical evita-se também outro ponto nefasto para os opérários: que exista um sindicato para cada empresa. Um sindicato por fábrica, não é difícil deduzir, permite um controle muito grande da direção da empresa sobre a direção do sindicato, o que, uma vez conseguido, tolhe a possibilidade de uma luta autônoma por parte dos operários, além de criar minúsculos sindicatos em vez de um único e forte para toda a categoria. Ao contrário, quando existe um único sindicato aglutinando várias empresas de um mesmo ramo, evidentemente isto o fortalece, aumentando sua força frente aos patrões, o que faz com que, quando este sindicato obtenha vitórias, elas beneficiem toda a categoria, indiscriminadamente, e não uma ou outra empresa, isoladamente. Vale lembrar que a existência do princípio do sindicato único não implica a obrigatoriedade da sindicalização; esta sim permanece a critério do trabalhador que opta ou não pela sindicalização. Mas há ainda outros aspectos relevantes: a existência de sindicatos únicos possibilita aos operários, na sua luta pelo fortalecimento sindical, a criação de uma central única dos trabalhadores, momento maior da unidade orgânica, que aglutina todas as categorias assalariadas da cidade e do campo. É evidente que uma central unitária e forte constitui-se num dos baluartes mais importantes da luta da classe operária contra o capital. O que não impede que dentro dela existam operários de várias tendências, como comunistas, socialistas, sociais-democratas, democratas-cristãos, reformistas etc., mas todos eles atuando juntos em torno das reivindicações imediatas da classe operária na luta contra a exploração capitalista.

Os limites do sindicalismo e o papel do partido político

Marx, Engels e Lenin sempre enfatizaram a importância da luta econômica como ponto de partida para o despertar da consciência da classe operária e a necessidade de transformá-la em uma luta política, onde, além de se reivindicar maiores vantagens no terreno econômico, pretende-se a conquista do poder político e o fim do sistema capitalista de produção.

Lenin, em seu artigo Sobre as Greves, tece considerações fundamentais sobre a importância das greves: estas, “por surgirem da natureza do sistema capitalista, significam o início da luta da classe operária contra toda a estrutura da sociedade... Toda greve infunde com enorme força aos trabalhadores a idéia do socialismo: a idéia da luta de toda classe trabalhadora por sua emancipação do jugo do capital...

Durante cada greve cresce e desenvolve-se nos operários a consciência de que o governo é seu inimigo e de que a classe operária deve preparar-se para a luta contra ele pelos direitos do povo.

Assim, pois, as greves ensinam os operários a unirem-se, as greves lhes fazem ver que só unidos podem sustentar a luta contra os capitalistas, as greves ensinam aos operários a pensar na luta de toda a classe operária contra toda classe patronal e contra o governo autocrático e policial. 

Por isso mesmo os socialistas chamam as greves escola de guerra, escola onde os operários aprendem a desencadear a guerra contra seus inimigos pela emancipação de todo o povo e de todos os trabalhadores do jugo do governo e do capital.

Porém, a escola de guerra não é ainda a própria guerra... As greves são um dos meios da classe operária para sua emancipaçãp, porém não o único, e se os operários não prestam atenção aos outros meios de luta, com isso demoram o desenvolvimento e os êxitos da classe operária*.

No mesmo sentido vão as considerações sobre os sindicatos: estes constituem um momento fundamental de organização da classe operária contra as usurpações do capital. Mas a luta sindical é limitada na medida em que é uma luta constante pela melhoria salarial e não diretamente contra o sistema capitalista que gera o sistema de salários. A luta sindical é uma luta contra os efeitos do capitalismo e não contra as suas causas.

Marx apontou com lucidez a relação entre a luta econômica e a luta política. A primeira restringe-se ao terreno econômico, não rompendo com as raízes do modo de produção capitalista. A classe é ainda uma classe em si, pois que não se constitui ainda como uma força política eficaz contra o capitalismo. O segundo momento, mais avançado, é quando a classe formula um projeto político que visa extinguir o capitalismo, o que implica destruir os antagonismos existentes através da supressão de todas as classes. Esse momento, o da classe para si, é um momento nitidamente político e que carece da atuação dos partidos revolucionários, cuja tarefa é dar direção ao processo revolucionário; é conduzir as explosões imediatas da massa visando à tomada do Estado e sua transformação, onde a classe trabalhadora assume a luta pela emancipação humana.

Lenin travou todo um debate com aqueles que acreditavam que a luta econômica em si já era revolucionária, mostrando que esta interpretação era espontaneísta, pois acreditava na sublevação instantânea e espontânea das massas. Mostrou que espontaneamente o proletariado não conseguiria afastar-se do trade-unionismo, do economicismo.

Se a luta econômica é fundamental como ponto de partida para a consciência operária, a verdadeira consciência de classe revolucionária, de tomada do poder pelos trabalhadores, é dada pela mediação dos Partidos. Lenin enfatizou que o movimento de massas, em sua espontaneidade, não conseguiu ir além do reformismo, o que, por sua vez, limita suas reivindicações ao universo burguês; a participação propriamente política implica numa concepção de revolução que se fundamente na luta concreta das massas operárias e que as direcione para a conquista do socialismo e da emancipação humana. O que significa que, para o operariado tornar-se revolucionário, é preciso ir além da luta imediata; é preciso compreender o poder político e o papel do Estado que garante a dominação capitalista. O que Lenin mostrou em seu escrito Que Fazem é que não se atinge essa visão ampla através de um processo espontâneo, de luta exclusivamente dentro da fábrica, mas que é necessária a fusão desta luta imediata, concreta, com a teoria revolucionária.

Do que se depreende que a luta política é mais complexa e mais ampla que a luta econômica. Esta distinção, por sua vez, é mais nítida nos países onde existem liberdades democráticas plenas. Nestes países a luta propriamente política é ainda mais intensa. Essa distinção tende a diminuir consideravelmente em países onde, em função da inexistência de liberdades mínimas, tanto a luta sindical quanto a luta política são consideradas ilegais. Aí, qualquer manifestação, a princípio econômica, ganha um claro caráter político de confronto com o poder.

De qualquer forma as relações entre os Sindicatos e os Partidos são fundamentais e indispensáveis para o avanço da classe operária. É dever de todo operário comunista, diz Lenin, atuar e trabalhar efetivamente nos sindicatos que, dada a sua abrangência, aglutinam todas as categorias de operários e colocam-se como locais fundamentais para que os Partidos possam exercer sua influência junto às massas. Cada partido deve sistematicamente, e com perseverança, conduzir uma ação no seio dos sindicatos, das comissões de fábricas e demais organismos dos trabalhadores. 

No interior destas organizações é necessário criar núcleos comunistas que, através de um trabalho contínuo, devem conquistar as direções dos sindicatos e demais organismos para a luta mais ampla visando a transformação da sociedade.

Essa influência será tão mais significativa quanto mais amplos forem os sindicatos e maior for a presença de operários avançados politicamente.

Lembre-se, porém, que essa influência não significa um vínculo obrigatório entre os Sindicatos e os Partidos. O que é necessário, isto sim, é que, sendo um local fundamental para a organização operária, os sindicatos devem procurar levar sua luta em consonância com aquela luta política mais ampla de emancipação da sociedade, cuja direção é dada pelos Partidos Políticos fundados na perspectiva do trabalho.

2ª Parte O SINDICALISMO NO BRASIL

As origens

A origem da classe operária brasileira remonta aos últimos anos do século XIX e está vinculada ao processo de transformação na nossa economia, cujo centro agrário-exportador cafeeiro ainda era predominante. Porém, ao criar o trabalho assalariado em substituição ao escravo, ao transferir parte dos seus lucros para atividades industriais e ao propiciar a constituição de um amplo mercado interno, a economia exportadora criou, num primeiro momento, as bases necessárias para a constituição do capital industrial no Brasil. E com isso criou também os primeiros núcleos operários, instalados, fundamentalmente, na região de São Paulo e Rio de Janeiro. Foi no bojo deste processo que surgiram as primeiras lutas operárias no Brasil.

Suas primeiras formas de organização foram as Sociedades de Socorro e Auxílio Mútuo, que visavam auxiliar materialmente os operários nos momentos mais difíceis, como nas greves ou em épocas de dificuldades econômicas. A estas associações mutualistas sucederam as Uniões Operárias, que por sua vez, com o advento da indústria, passaram a se organizar por ramos de atividades, dando origem aos sindicatos.

A greve, forma elementar e indispensável de luta da classe trabalhadora, eclodiu pela primeira vez no Brasil em 1858, quando os tipógrafos do Rio de Janeiro rebelaram-se contra as injustiças patronais e reivindicaram aumentos salariais. A vitória dos tipógrafos foi apenas o início; as greves começaram a expandir-se para as demais categorias. E junto com as greves surgiram também outras formas de organização da nascente classe operária: em 1892 realizou-se o I Congresso Socialista Brasileiro, cujo objetivo, que acabou não sendo atingido, era a criação de um Partido Socialista. Já nesta época as idéias de Marx e Engels penetravam no Brasil. Em seu II Congresso, em 1902, a influência do socialismo era mais marcante; em seu Manifesto aos Proletários diziam, no primeiro parágrafo:

“A história das sociedades humanas, desde que se constituíram e onde quer que evolvessem, é a história mesma da luta de classes; e desse pugnar incessante resultou, com o decorrer dos tempos, a eliminação de algumas dessas classes, podendo-se atualmente considerar que somente duas permaneceram, extremadas em campos adversos, inconciliáveis em seus interesses: tais são a classe da burguesia e a classe dos assalariados.”

E foi dentro deste quadro que nasceram os sindicatos no Brasil, cujo principal objetivo era conquistar os direitos fundamentais do trabalho. Nos vários Congressos Sindicais e Operários e nas inúmeras manifestações grevistas tornaram-se constantes as reivindicações visando a melhoria salarial, a redução da jornada de trabalho etc. Data de 1906 o Primeiro Congresso Operário Brasileiro que, contando com 43 delegados representando os centros mais dinâmicos, como São Paulo e Rio de Janeiro, lançou as bases para uma organização operária sindical de âmbito nacional, a Confederação Operária Brasileira (C.O.B.), cuja luta era direcionada para as reivindicações básicas, além de uma intensa campanha de solidariedade aos operários de outros países. Deste Congresso participaram as duas tendências até então existentes no movimento operário: a anarco-sindicalista, que negava a importância da luta política, privilegiando exclusivamente a luta dentro da fábrica através da ação direta. 

Repudiava ainda a constituição de um partido para a classe operária e via nos sindicatos o modelo de organização para a sociedade anarquista. A outra tendência era composta pelo socialismo reformista, que buscava a transformação gradativa da sociedade capitalista, lutava pela criação de uma organização partidária dos trabalhadores e, a nível do Estado, utilizava-sè da luta parlamentar. Eram, pois, tendências em si bastante distintas, sendo mais forte a presença dos anarco-sindicalistas.

Em 1913 e 1920 realizaram-se, respectivamente, o II e o III Congresso Operário tentando reavivar a Confederação Operária Brasileira.

É necessário lembrar que já desde aquela época o Governo procurava controlar o movimento sindical brasileiro: exemplo disto foi o “Congresso Operário”, de 1912, que teve como presidente honorário Mario Hermes, filho de Hermes da Fonseca, então Presidente da República, e que criou uma liderança governista dentro de alguns poucos sindicatos. Estas “lideranças” sindicais governistas, embora dirigissem categorias combativas como os ferroviários e marítimos, conciliavam com o Estado e nisto se diferenciavam dos anarco-sindicalistas. Enquanto estes, ao deflagrarem greves, viam-na como um momento da “greve geral” que destruiria o capitalismo, aqueles eram imediatistas e em suas greves não questionavam o sistema. Daí a sua"denominação de sindicatos “amarelos”, sendo verdadeiros precursores do sindicalismo pelego, dada a sua obediência e subordinação ao governo.

Mas a combatividade operária era demonstrada através das greves decretadas seguidamente; o período de 1917/20, em decorrência da crise de produção após a I Guerra e da vertiginosa queda dos salários dos operários, caracterizou-se por uma onda irresistível de greves de massas que em muitos lugares assumiram proporções grandiosas. Foi o caso da greve geral de 1917 em São Paulo, iniciada numa fábrica de tecidos, e que recebeu a solidariedade e adesão inicial de todo setor têxtil, seguindo-se as demais categorias. A paralisação foi total, atingindo inclusive o interior. 

Em poucos dias o número de grevistas cresceu de 2000 para 45000 pessoas. A repressão desencadeada aos grevistas foi violenta levando, não

raro, alguns operários à morte, como foi o caso do sapateiro Antonio Martinez, atingido por um tiro no estômago durante manifestação operária. Apesar disto as greves se alastravam; entre 1918 e 1920 elas eclodiram no Rio de Janeiro, em São Paulo, Santos, Porto Alegre, Pernambuco, Bahia etc., sempre reivindicando aumento de salários e melhores condições de trabalho.

Esse período correspondeu ao auge do movimento anarquista, que era até então a liderança mais significativa do movimento operário brasileiro.

Mas, ao mesmo tempo, o anarquismo mostrava os sérios limites que jamais conseguiu superar. Astrojildo Pereira, então militante anarquista e que posteriormente se tornou um dos mais importantes líderes comunistas, assim se refere, em seu ensaio A Formação do PCB, às greves daquela época:

“não há dúvida que muitas das reivindicações pelas quais lutavam as massas trabalhadoras foram alcançadas, total ou parcialmente. Mas é um fato que a natureza e o volume das vitórias alcançadas não estavam em proporção com o vulto e a extensão do movimento geral. Mais ainda, as reivindicações, formuladas por aumento de salários, por melhores condições de trabalho etc., constituíam como que um fim em si mesmo, e não um ponto de partida para reivindicações crescentes de nível propriamente político. E que na realidade se tratava de lutas mais ou menos espontâneas, isoladas umas das outras, sucedendo-se por forças de um estado de espírito extremamente combativo que se generalizou entre as massas".

A superação do anarquismo

As limitações do movimento anarco-sindicalista se refletiam nas suas reivindicações exclusivamente econômicas, negando sempre a luta propriamente política e sequer exigindo do Estado uma legislação trabalhista, dado que os anarquistas eram contrários às leis do Estado. Também não admitiam a existência de um partido da classe operária, assim como não aceitavam a política de aliança de classes com os demais setores subalternos da sociedade, o que acarretou um isolamento da luta operária, tornando-a presa fácil do Estado e de sua força policial repressiva. Pode-se inclusive dizer que os anarquistas não conseguiram, na atuação concreta, ir além dos “reformistas amarelos” pois, repudiando a participação da luta pelo controle do Estado, limitavam-se ao terreno econômico, enquanto "os amarelos", embora conciliassem com o Estado também não o questionavam, limitando sua participação ao nível das reivindicações econômicas.

A incapacidade teórica, ideológica e política da concepção anarquista na condução das grandes greves desse período, acrescida da grande influência causada pelo vitória da Revolução Socialista na Rússia junto ao operariado brasileiro, fez com que um grupo de militantes anarco-sindicalistas rompesse com essa concepção e, em 1922, fundasse o Partido Comunista. Isso se deu em março do referido ano, e marcou o início de uma nova fase do nosso movimento operário, agora organizado politicamente em um Partido, cujo objetivo era dirigir a Revolução no Brasil.

No Congresso de fundação do PC, com exceção do alfaiate Manuel Cendón, todos os demais membros eram oriundos do anarco-sindicalismo: Astrojildo Pereira e Cristiano Cordeiro (intelectuais), Joaquim Barbosa (alfaiate), João da Costa Pimenta (tipógrafo), Luís Peres (varredor), Hermógenes da Silva (eletricista), Abílio de Nequete (barbeiro) e José Elias (construção civil). Nos primeiros anos a tarefa fundamental dos comunistas foi formar quadros para compor o Partido, estudar e divulgar o marxismo e tentar formular uma linha política que compreendesse e orientasse a revolução brasileira. Apesar da condição de ilegalidade que lhe foi imposta alguns meses após sua fundação, o PC passou a editar, como órgão do Partido, a revista Movimento Comunista, ainda em 1922. Publicou logo em seguida o Manifesto Comunista, de Marx e Engels e em 1925 iniciou a publicação do jornal A Classe Operária, com uma tiragem inicial de 5000 exemplares, que logo foi aumentada.

Um dos pontos mais importantes da atuação dos comunistas deu-se no movimento sindical onde, como se viu, predominavam os anarco-sindicalistas. Os comunistas criaram então a Federação Regional do Rio de Janeiro e, em 1929, realizaram o Congresso Sindical Nacional, com representantes dos sindicatos de vários estados, de onde se originou a Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil, organização que procurava congregar os sindicatos influenciados pelos comunistas.

É necessário lembrar que paralelamente à atuação dos comunistas e dos anarquistas, ainda nos anos 20, o Estado esboçou nova tentativa de cooptação junto a alguns setores da massa operária, e conseguiu ampliar a tendência “reformista amarela” dentro do sindicalismo. Em 1921 o Estado fundou o Conselho Nacional do Trabalho, visando controlar os sindicatos e torná-los órgãos de conciliação entre as classes. Foi criada também a Confederação Sindicalista Cooperativista Brasileira, de tendência reformista. Os sindicatos “amarelos” ' passaram a ser ainda mais favorecidos pelas vantagens concedidas pelo Estado republicano. Este, por ser o representante fiel das oligarquias ligadas à produção de café, tratou de forma distinta a classe trabalhadora; aqueles setores cujas atividades eram indispensáveis para a exportação do café, como ferroviários e portuários, eram atendidos em suas reivindicações, uma vez que sua paralisação estrangularia a economia. Já as categorias vinculadas à indústria, dado o seu caráter secundário na economia agrário-exportadora, eram tratadas de forma exclusivamente repressiva. Lembre-se aqui da afirmativa do Presidente Washington Luís de que “a questão social era simples caso de polícia.”

Porém, já por esta época, o Estado republicano apresentava seus primeiros sinais de crise. A criação do PC, se de um lado não se apresentava como uma alternativa imediata de poder, causou apreensão ao Estado oligárquico. Mas o que de fato o abalou foi a eclosão do movimento tenentista que, desde 1922, atuou francamente em oposição ao regime dos burgueses do café. Exemplo mais marcante do tenentismo foi a chamada Coluna Prestes que, liderada por Luís Carlos Prestes, percorreu todo o interior do Brasil buscando a adesão dos trabalhadores, rurais para as transformações necessárias na sociedade brasileira.

Quando a essa oposição militar se somou aquela empreendida pelos fazendeiros descontentes que não produziam café, aí então o domínio dos cafeicultores entrou em sua fase final.

Getúlio Vargas no comando do Estado

A Revolução de 1930 marcou um momento importante na transição de uma economia agrário-exportadora para uma economia industrializante. Nelson Werneck Sodré, um dos estudiosos da história brasileira, assim se referiu ao fato: “A Revolução de 1930 resultara de uma brecha na classe dominante, cindindo-se e permitindo a composição de uma de suas frações com os elementos de classe média presentes em todas as fermentações internas".

Na verdade, o processo iniciado em 1930 assemelha-se ao que Lenin denominou de “reformismo pelo alto", ou seja, um acordo entre as frações dominantes feito pelo alto, conciliando os interesses agrários com os interesses urbanos emergentes e excluindo qualquer forma de participação efetiva da classe operária. Esta, por sua vez, tentou isoladamente participar das eleições presidenciais de 1930, candidatando Minervino de Oliveira pelo Bloco Operário e Camponês, organização parlamentar do então ilegal PC. Embora tenha sido eleito Júlio Prestes, representante da burguesia cafeeira, deflagrou-se um movimento militar que barrou a sua posse. O resultado de tudo isto levou Vargas ao poder em 1930. Iniciou-se então uma nova fase do sindicalismo brasileiro.

Fruto de uma cisão nas classes dominantes, o Estado varguista procurou, numa primeira fase, controlar o movimento operário e sindical trazendo-o para dentro do aparelho de Estado. Uma de suas primeiras medidas foi a criação do Ministério do Trabalho, em 1930, com o nítido objetivo de elaborar uma política sindical visando conter a classe operária dentro dos limites do Estado e formular uma política de conciliação entre o capital e o trabalho. Não foi outro o objetivo da “Lei de Sindicalização” de 1931 (Decreto 19.770) que, contrariando a liberdade de associação sindical existente durante a Primeira República, criou os pilares do sindicalismo no Brasil.

Na apresentação deste Decreto assim se pronunciou Lindolfo Collor, primeiro Ministro do Trabalho do governo Vargas: “Os sindicatos ou associações de classe serão os pára-choques destas tendências antagônicas. Os salários mínimos, os regimes as horas de trabalho serão assuntos de sua prerrogativa imediata, sob as vistas cautelosas do Estado." Este Decreto estabelecia o controle financeiro do Ministério do Trabalho sobre os recursos dos sindicatos, proibindo a sua utilização pelos operários durante as greves, e definia o sindicato como órgão de colaboração e cooperação com o Estado. Permitia aos delegados do Ministério do Trabalho o direito de participar das assembléias operárias, proibia o desenvolvimento de atividades políticas e ideológicas dentro dos sindicatos, vetava sua filiação a organizações sindicais internacionais, negava o direito de sindicalização aos funcionários públicos e limitava a participação de operários estrangeiros nos sindicatos, visto que boa parte da liderança operária combativa era ainda, naqueles tempos, de origem estrangeira. Pode-se dizer que o único ponto favorável para a classe operária nesta lei — definida pelos operários como a “Súmula da ‘Carta del Lavoro' do fascismo italiano” foi garantir o sindicato único por categoria. De resto atrelava as entidades sindicais ao Estado.

É importante ressaltar a forma como parcelas significativas da classe operária reagiram frente a esta lei. Suportando a coerção e a pura repressão e, ao mesmo tempo, a manipulação ideológica, os operários resistiram aos chamamentos dessa legislação sindical e não se sujeitaram as normas oficiais. A autonomia sindical, oriunda das primeiras décadas deste século, foi mantida até meados de 30. Somente 25% dos sindicatos de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul aceitaram as normas desta Lei de Sindicalização. O movimento grevista, ao contrário do que diz a história oficial, foi intenso durante esse período e, como consequência, o proletariado conquistou inúmeras vantagens trabalhistas, como a lei de férias, descanso semanal remunerado, jornada de 8 horas, regulamentação do trabalho da mulher e do menor etc. Frise-se que algumas destas leis já existiam mesmo antes de 1930, porém limitadas a algumas categorias como ferroviários e portuários. Nestes casos a luta operária visou a extensão destas vantagens a todas as categorias da classe trabalhadora. Nesta época predominavam, no seio do movimento operário, algumas tendências: os anarco-sindicalistas que, embora em decadência, conseguiram agrupar seus seguidores na Federação Operária de São Paulo; os socialistas, que criaram a Coligação dos Sindicatos Proletários em 1934 e também lutavam pela completa autonomia sindical; e os comunistas, que, também em 1934, criaram a Federação Sindical Regional no Rio e em São Paulo e que, no ano seguinte, realizaram a Convenção Nacional de Unidade dos Trabalhadores, reunindo 300 delegados, quando reorganizaram a Confederação Sindical Unitária, central sindical de todo o movimento operário no Brasil.

Junto com as lutas sindicais, crescia a mobilização das massas trabalhadoras e em março de 1935 foi fundada a Aliança Nacional Libertadora, frente popular antiimperialista dirigida pelo PC, então já tendo Luís Carlos Prestes em suas fileiras. Citada inclusive como exemplo de frente púpular de democrática pelo VII Congresso da Internacional Comunista, a ANL em poucos meses atingiu 400 000 membros e a dimensão de um amplo movimento de massas.

O Governo, prevendo o avanço popular, iniciou sua ação repressiva. E em 4 qe abril de 1935, cinco dias após o primeiro comício da ANL, decretou a Lei de Segurança Nacional, que proibia o direito de greve e dissolvia a Confederação Sindical Unitária, tida como clandestina por se constituir à margem dos sindicatos oficiais. Alguns meses depois Filinto Muller, chefe da polícia do Distrito Federal e adepto do nazismo, a mando do Governo, decreta a ilegalidade da ANL. Não podendo mais atuar legalmente os aliancistas optaram pelo levante armado. Sem o necessário apoio das massas, foram violentamente reprimidos. O Governo intensificou a repressão e decretou o Estado de Sítio. Criou ainda a Comissão de Repressão ao Comunismo; as lideranças sindicais e operárias foram presas, deportadas e mortas e os sindicatos combativos foram sumariamente fechados. Naquele momento assistiu-se à grande derrota do movimento sindical e operário no Brasil e à perda de sua autonomia. Com razão disse o historiador Edgard Carone: “para o operariado, o Estado Novo começou em novembro de 1935".

A partir de então, o campo sindical ficou ainda mais aberto às associações “amarelas” já existentes desde as décadas anteriores e intensificou-se o processo de controle e cooptação de dirigentes sindicais por parte do Ministério do Trabalho. Criou-se uma burocracia sindical dócil, vinculada e escolhida a dedo pelo Estado, cujo objetivo não era outro senão o de controlar as reivindicações operárias. Implantou-se o "peleguismo", configurando um sindicalismo sem raízes autênticas e que permaneceu distante da classe operária durante os quinze anos da ditadura do Estado Novo. Em 1939, visando consolidar ainda mais a estrutura sindical subordinada ao Estado, promulgou-se o Decreto-lei n.° 1.402 que instituiu o enquadramento sindical; uma categoria, para ser reconhecida enquanto tal, teria de ser aprovada pela Comissão de Enquadramento Sindical, órgão governamental vinculado ao Ministério do Trabalho. Criou-se também neste ano o Imposto Sindical, estabelecido à revelia do movimento operário e que, através do pagamento compulsório de um dia de trabalho por ano de todos os assalariados, constituiu-se numa robusta fonte financeira para a manutenção dos dirigentes pelegos. Por não ser dinheiro sequer controlado pelos operários e não podendo ser utilizado nos momentos mais necessários, como durante as greves, o Imposto Sindical criou as condições financeiras necessárias para a transformação dos sindicatos, que de órgãos de luta de classes tornaram-se organismos prestadores de um assistencialismo social, função esta que seria do Estado e não dos sindicatos operários.

Estava efetivamente constituída a estrutura sindical brasileira, vertical e subordinada ao Estado. Na base dessa estrutura estão os sindicatos, que podem representar uma categoria no município, no estado ou mesmo no país. Quem definia isso era, obviamente, o Ministério do Trabalho. Acima dos sindicatos estão as federações, que podem abarcar uma região, um estado ou mesmo os trabalhadores de uma mesma profissão em todo o país. Por fim encontram-se as confederações nacionais que agrupam os trabalhadores dos vários setores, como a indústria, o comércio, a agricultura etc. Essa estrutura era essencialmente vertical e não permitia a criação de organismos sindicais horizontais, como a Central Sindical que representaria diretamente as bases de todos os sindicatos.

Mas foi dentro desta mesma estrutura sindical e apesar de toda sua rigidez que a classe operária procurou criar as suas organizações sindicais mais representativas.

O ressurgimento das lutas sindicais no Brasil no período de 1945-64 

Já nos primeiros anos da década de 40 o Estado Novo mostrava seus primeiros sinais de debilidade. As forças democráticas da sociedade brasileira lutavam em duas frentes: no plano externo visando derrotar o nazi-fascismo e no plano nacional objetivando romper a ditadura estado novista e caminhar para uma efetiva democracia. Porém, constituíram-se duas tendências oposicionistas: uma liberal e burguesa, cujos interesses econômicos estavam vinculados ao imperialismo; e outra, nacional e popular, que buscava a constituição de uma democracia incluindo a participação efetiva das classes populares. A primeira limitava-se às classes dominantes e temia o projeto nacionalista de Vargas. A segunda, liderada pelas organizações populares como o PC, via no nacionalismo de Vargas um possível aliado para a resolução dos problemas nacionais. O Manifesto dos Mineiros, de 1943, foi exemplo típico da oposição liberal. Já a tendência nacional e popular avançava em conquistas mais profundas. Além das conquistas econômicas, como a construção de Volta Redonda, houve um avanço na luta pelas liberdades democráticas; conquistou-se no início de 1945 a anistia ampla e irrestrita aos presos políticos, libertando os comunistas que estiveram encarcerados durante todo o Estado Novo. Conquistou-se ainda a legalizaçâo do Partido Comunista e marcaram-se para dezembro as eleições presidenciais e a convocação da Assembléia Constituinte. Vargas, na medida em que perdia apoio de setores dominantes, tentava ampliar suas bases junto aos trabalhadores. Para tanto, decretou ainda a Lei Antitruste, que constituía uma comissão autorizada a desapropriar empresas estrangeiras lesivas aos interesses nacionais, o que causou reação imediata do governo norte-americano. A organização Sociedade Amigos da América, representante do imperialismo norte-americano, foi fechada pelo Governo e, no plano da política externa, foram reatadas as relações diplomáticas com a União Soviética. Por fim, no mesmo ano em que foi deposto, Vargas eliminou não só os dispositivos legais que obrigavam a presença de representantes do Ministério do Trabalho nas assembléias sindicais, como também aqueles que exigiam a aprovação prévia do Ministério para a realização de eleições e posse das direções sindicais eleitas.

Além de todas estas conquistas, a classe operária avançou em um outro ponto crucial: o movimento sindical. Depois de uma fase extremamente repressiva para o movimento sindical, iniciou-se um trabalho de substituição das lideranças pelegas por lideranças autênticas e representativas da classe operária. Assim foi que, em 1945, criou-se o Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), organismo intersindical de caráter horizontal que rompia com a estrutura vertical e que proclamava, em Manifesto assinado por mais de 300 líderes sindicais representantes de 13 Estados, a luta da classe operária, “imediatamente, pela mais completa liberdade sindical, rompendo com as injustificáveis restrições e interferências na vida dos nossos órgãos de classe". Propugnava ainda a “extinção dos órgãos, dispositivos e decretos estranhos e hostis aos anseios democráticos do povo e comprometedores da segurança e da tranquilidade interna, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e o Tribunal de Segurança Nacional”, respectivamente, organismos de repressão ideológica e política existentes durante o Estado Novo.

A luta pelo fortalecimento dos sindicatos avançava. Realizaram-se vários Congressos Sindicais em vários Estados como Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. Em setembro de 1946 houve o coroamento desse processo com a realização do Congresso Sindical dos Trabalhadores do Brasil, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com cerca de 2400 delegados.

Os comunistas, sendo a maior força sindical, conseguiram, então, concretizar sua aspiração maior para o movimento sindical: foi criada a Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil (1946).

O avanço considerável das classes populares amedrontava os setores mais reacionários da sociedade brasileira. A permanência de Vargas no poder os ameaçava, pois temia-se um possível avanço da classe operária. O Golpe de 29 de outubro de 1945, sob a aparência de uma ação democrática, foi, na verdade, reacionário e antipopular, pois obstaculizou os avanços das classes populares.

Assim se referiu ao Golpe o então deputado do PC João Amazonas: “Cumpre confessar que nos últimos meses de 1945, o governo do Sr. Getúlio Vargas cedia em parte, permitindo pouco a pouco que os trabalhadores voltassem a seus sindicatos... Nosso Partido, que vive ligado às massas, que trabalha junto ao proletariado, que atua em todas as organizações trabalhistas do país, desmascarou o caráter do golpe como antidemocrático e, com muita razão, porque para os trabalhadores o 29 de outubro foi muito pior que aquele breve período que o antecedeu".

Apesar do Golpe, nas eleições de dezembro de 1945 o PC, que em poucos meses de legalidade tornou-se o maior Partido Comunista da América Latina, com cerca de 200.000 membros, conseguiu 10% dos votos do eleitorado para a presidência da República, elegeu 14 deputados e um senador, Luís Carlos Prestes, o mais votado da República.

No plano da organização sindical houve avanços; porém no plano institucional isso não foi possível, uma vez que, na Constituinte eleita em 1945, o PC era a quarta agremiação política. Embora contassem com o apoio do PTB, os comunistas se encontravam em minoria parlamentar frente aos partidos das classes dominantes, o PSD e a UDN, que juntos alcançavam 70% do Parlamento e tinham força suficiente para barrar qualquer possibilidade de alteração da estrutura sindical pelos comunistas.

Mas, ao mesmo tempo em que avançava a organização das massas, não tardaram as medidas repressivas do Governo antidemocrático de Dutra que, já em 1946, proibiu a existência do MUT, decretou a intervenção e a suspensão das eleições sindicais e, em 1947, determinou a ilegalidade do PC, cassando também o mandato de seus representantes no Parlamento. A ilusão institucional não permitiu que o PC resistisse e impedisse estas medidas.

Foi, sem dúvida, um rude golpe no avanço do movimento sindical e operário brasileiro.

No início dos anos 50, sob o último Governo de Vargas, o movimento sindical atingiu novamente grande dimensão. É importante lembrar que a classe operária brasileira, de 1940 a 1953, dobrou seu contingente e, segundo Jover Telles, atingiu cerca de 1.500.000 trabalhadores nas indústrias. As greves começavam a tornar-se constantes; em 1951 realizaram-se quase 200 paralisações atingindo quase 400.000 trabalhadores. No ano seguinte alastraram-se, totalizando quase 300 em todo o território nacional. Em 1953, a luta da classe operária contra a fome e a carestia atingiu cerca de 800.000 operários. Somente em São Paulo, diz ainda Jover Telles, realizaram-se mais de 800 greves abarcando todas as categorias profissionais. Data deste ano a greve dos 300.00 trabalhadores de São Paulo, da qual participaram os têxteis, metalúrgicos, gráficos, entre outros.

As várias comissões de fábrica criadas pelos comunistas ampliavam, dentro das fábricas, a presença dos sindicatos, dando-lhes uma configuração horizontal. Foram, sem dúvida, anos de avanço, de organização da classe operária. Suas reivindicações fundamentais voltavam-se contra a fome e a carestia, mas não se limitavam ao plano econômico.

Não foram poucas as manifestações por liberdades sindicais, contra a presença das forças imperialistas, em defesa das riquezas nacionais — de que a campanha pela criação da Petrobás foi a de maior vulto — e contra a aprovação e aplicação do Acordo Militar Brasil-EUA.

Foi criado o Pacto de Unidade Intersindical, mais tarde transformado no PUA (Pacto de Unidade e Ação), que avançou na tentativa de romper a estrutura sindical vertical e englobou mais de 100 organizações sindicais. Foram criados ainda os Pactos Intersindicais (PIS) que atuaram em várias regiões, sendo o do ABC o mais combativo. Ressalte-se que tais organizações intersindicais não tinham caráter de organizações paralelas mas, pelo contrário, nasceram de uma árdua Luta dentro dos sindicatos oficiais e que visavam, isto sim, a transformação da estrutura sindical vertical.

O avanço das lutas sociais durante o Governo Goulart

O avanço das lutas operárias atingiu, no início dos anos 60, o seu ápice quando, após imensas manifestações grevistas, realizou-se o III Congresso Sindical Nacional, onde os trabalhadores brasileiros aglutinaram suas forças sob uma única organização nacional de coordenação da luta sindical: o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).

O CGT, cuja direção era constituída por líderes sindicais e tinha na suplencia o pessoal diretamente ligado à produção, objetivava combater o peleguismo das Confederações Nacionais, especiaimente a CNTI* dominada havia décadas pelo pelego Ari Campista. O CGT visava ainda aglutinar os sindicatos de Norte e Nordeste que constituíam as bases do peleguismo. Além do CGT, que era o comando de âmbito nacional, foi intensa a atuação do Pacto de Unidade e Ação (PUA), intersindical que congregava os trabalhadores portuários, marítimos e ferroviários.

Nestes anos de avanço das lutas populares mereceu destaque ainda o Fórum Sindical de Debates, que unificava o movimento sindical da Baixada Santista.

O CGT foi, especialmente durante o Governo de João Goulart, a expressão mais significativa do movimento sindical brasileiro. Sua presença foi decisiva na direção de grandes manifestações operárias, como a Greve da Paridade em 1960 quando, objetivando a equiparação salarial aos militares, 400.000 trabalhadores civis paralisaram os transportes marítimo, ferroviário e portuário em todo o país. Também foram de extrema importância política as greves durante a crise entre a renúncia do Presidente Jânio Quadros e a ascensão do vice João Goulart. Os sindicatos decretaram greves em solidariedade a Goulart, atingindo principalmente as atividades industriais e de transportes no Rio de Janeiro. Em setembro de 1962 nova greve geral pelo plebiscito que derrotou maciçamente o regime parlamentarista. Reivindicou-se ainda nesta greve geral a revogação da Lei de Segurança Nacional, o direito de voto a todos os cidadãos, incluindo soldados e analfabetos, aumento salarial de 100%, concessão do direito de greve, reforma agrária radical, imediato congelamento de preços dos gêneros de primeira necessidade, aplicação rigorosa da Lei que controlava a Remessa de Lucros para fora e direito de organização sindical aos camponeses.

As greves se sucediam com grande rapidez. Em 1963 a célebre greve dos 700.000 que, entre outras reivindicações, pretendia a unificação da data-base dos acordos salariais, com o fim de evitar que os reajustes fossem realizados em épocas diferentes para as várias categorias. Se essa reivindicação tivesse sido vitoriosa, significaria uma mudança importante na legislação sindical vigente desde o Estado Novo. Apesar disso, a greve conseguiu outras vitórias, obtendo 80% de aumento para todos os trabalhadores, além de forçar os patrões a dialogar com várias categorias operárias representadas pelo Pacto de Ação Conjunta (PAC), intersindical que dirigiu a paralisação. A greve dos 700 mil constituiu-se numa das maiores manifestações grevistas de toda a história do movimento operário brasileiro.

Lembre-se, a título de exemplo, que os metalúrgicos de São Paulo atingiram no período alto grau de mobilização. Segundo o relato de um militante sindical “não existia nenhuma empresa em São Paulo onde não existissem delegados sindicais”. Ao que acrescenta que os metalúrgicos não faziam piquetes na sua categoria, pois a adesão era unânime, mas sim para buscar a adesão de outros setores, como têxteis, químicos, calçados etc. Cita ainda que, com o Golpe de 64, além de toda liderança ter sido esmagada, os 1800 delegados sindicais metalúrgicos de São Paulo foram denunciados à polícia e perderam seus empregos.

O campo também foi atingido pelo avanço das lutas populares. Os trabalhadores iniciaram o processo de mobilização desde 1955, com o surgimento da primeira Liga Camponesa, no Engenho Galiléia. Um ano antes havia sido criada a União dos Trabalhadores Agrícolas do Brasil (UTAB) e pouco a pouco floresceram os sindicatos rurais. Era a entrada decisiva do campesinato e dos trabalhadores rurais no cenário político nacional, exigindo uma radical transformação da estrutura agrária, através da substituição dos latifúndios pela propriedade camponesa e pela propriedade estatal. Exigiam o acesso à terra para aqueles que desejavam trabalhar, além da extensão da legislação trabalhista para o campo, com o objetivo de garantir alguns direitos mínimos aos trabalhadores rurais.

No início dos anos 60, através da Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião e dos Sindicatos Rurais dirigidos pelo Partido Comunista, intensificou-se a mobilização rural, tendo como bandeira principal a reforma agrária. No ano de 1963 fundou-se a Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas (CONTAG), sendo também elaborado o Estatuto do Trabalhador Rural, que expressava parte das reivindicações dos trabalhadores do campo. Desta maneira suas lutas uniam-se às dos trabalhadores urbanos.

A mobilização popular atemorizava cada vez mais os setores conservadores da sociedade brasileira; as reformas de base do Governo Goulart, especialmente a reforma agrária, contavam com o apoio crescente das classes subalternas. O CGT, revertendo a estrutura sindical criada na década de 30, agora utilizava-a como um instrumento de pressão junto ao aparelho de Estado, objetivando a consolidação de um governo democrático e popular.

A 13 de março de 64, mais de 200.000 trabalhadores, convocados por sindicatos e organizações operárias, dirigiram-se ao Comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, visando implantar as reformas de base, a formação da Frente Popular e Democrática. Entretanto, os setores reacionários procuravam, de todas as formas, conter os avanços populares. Em São Paulo, por exemplo, contra essas reformas as camadas médias tradicionais mobilizaram-se através das Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade.

As posições se radicalizavam. Em 31 de março, através de um golpe militar João Goulart foi deposto. O CGT e as demais organizações populares foram tolhidas de qualquer possibilidade de atuação, sendo suas lideranças imediatamente presas. Se de um lado essa liderança sindical tinha laços efetivos com os interesses populares, ela não soube preparar as bases para uma resistência mais efetiva. Uma vez contida a liderança, as bases ficaram aturdidas. Rude foi o golpe sofrido pelas classes populares. Iniciou-se uma longa noite em sua história...

A longa noite do sindicalismo brasileiro

Viu-se, portanto, que foi durante o período 1945-64 que o movimento operário atingiu sua fase de maior amplitude. Se, de um lado, a legislação sindical permanecia intacta, mantendo suas características de tendência corporativista, na prática fazia-se letra morta a esta legislação, avançando na tentativa de romper com a estrutura sindical. Quando mais se caminhava nesse processo, foi desfechado o golpe militar, cujo objetivo foi barrar os avanços até então atingidos pela classe operária, iniciando-se uma fase extremamente penosa. O medo da implantação da “República Sindicalista" durante o Governo João Goulart fez com que uma violenta repressão fosse desencadeada; além da prisão das lideranças operárias, foram extintas sumariamente as organizações sindicais. Reformulou-se, redinamizou-se e, o que foi pior, fez-se cumprir toda a legislação sindical defensora da “paz social" e da negação da luta de classes. Reforçou-se, através de novos instrumentos legais, o papel do sindicato como mero órgão assistencialista e de agente intermediário entre o Estado e a classe trabalhadora. Tratava-se, por parte do Estado e das classes dominantes, de criar as condições mínimas indispensáveis para a retomada da expansão do imperialismo no Brasil, que, durante os anos anteriores a 1964, encontrou sérias barreiras, dada a pujança que cada vez mais adquiria o movimento operário.

Era premente a criação de instrumentos capazes de garantir a super exploração da força de trabalho operária.

A nova política econômica, criadora do arrocho salarial, fez-se vingar em cima de alguns pontos: a proibição do direito de greve, através da famigerada Lei 4.330, de junho de 64, e a fixação dos índices de aumentos salariais, que deixou de ser feita através da negociação entre operários e patrões — como antes de 64 — e passou a ser prerrogativa absoluta do Estado. Porém para que o “arrocho” pudesse ser efetivamente implantado foi necessário acabar com outra conquista no movimento operário anterior a 64: o regime de estabilidade no emprego. Criou-se então, em 1966, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), instrumental necessário para grandes empresas despedirem, compulsoriamente e a seu bel-prazer, grandes contingentes de mão-de-obra em épocas anteriores ao dissídio coletivo, para sua posterior recontratação em faixas salariais abaixo daquelas determinadas pelos já irrisórios índices de aumento. Em outras palavras, criou-se a rotatividade necessária, através do regime de dispensa sem o pagamento de indenização pelo tempo de trabalho, para a superexploração da força de trabalho. Por fim, foi reformada a Lei de Remessa de Lucros, concedendo ao capital externo uma série de condições vantajosas para que os lucros aqui extraídos pelas multinacionais fossem levados para fora. Em cima destes pontos iniciou-se, em 1968, o “milagre brasileiro", que, se assim o foi para as classes dominantes, para os operários foi a expressão não do “milagre" mas do inferno e da miséria para a maioria do povo brasileiro.

Retomada da luta contra o arrocho salarial ou as greves de Osasco e Contagem em 1968

Após a ruptura causada pelo Golpe de 64, reiniciou-se lentamente a luta operária, desta feita contra as danosas consequências oriundas do arrocho salarial. Fruto das mobilizações da massa operária, os dirigentes sindicais, mesmo aqueles cuja atuação não superou o peleguismo, criaram, em fins de 1967, o Movimento Intersindical Anti-arrocho (MIA), contando com a participação dos sindicatos dos metalúrgicos de São Paulo, Santo André, Guarulhos, Campinas e Osasco, entre outros, e cujo objetivo era pressionar o Governo visando o fim do arrocho salarial.

Estes dirigentes, a exceção do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, eram favoráveis a um movimento contra a compressão salarial, desde que este permanecesse dentro dos limites tolerados pelo Ministério do Trabalho da Ditadura. Já o Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, dirigido por José Ibrahim, avançando com relação às propostas do MIA, enfatizava a necessidade da criação das comissões de fábricas, de uma Central Sindical e estava convicto de que somente através da prática de greve seria rompida a política salarial do Governo.

As posições foram-se radicalizando: vivia-se, de um lado, um momento de crise na ditadura militar. De outro, grupos de esquerda, que permeados pelo radicalismo pequeno-burguês viam como única alternativa para o fim do regime o levante armado, isolado e sem o respaldo das massas. Junto a isso, era um momento de extrema agitação no meio estudantil, que cada vez mais procurava penetrar de forma vanguardista no seio do movimento operário.

No plano sindical, o próprio José Ibrahim, em entrevista, reconhece os equívocos da análise de setores vinculados ao movimento sindical: partíamos da análise, diz ele, de que “o Governo está em crise, ele não tem saída, o problema é aguçar o conflito, transformar a crise política em crise militar. Daí vinha nossa concepção insurreicional de greve. O objetivo era levar a massa, através de uma radicalização crescente, a um conflito com as forças de repressão. Foi essa concepção que nos guiou quando, em julho de 1968, decidimos desencadear a greve”.

Antecipando-se à proposta de greve geral prevista para outubro de 68, época do dissídio coletivo dos metalúrgicos, a direção de Osasco decretou a greve, acreditando na possibilidade de sua extensão para outras regiões. Iniciada no dia 16 de julho, com a ocupação da Cobrasma, a greve atingiu as empresas Barreto Keller, Braseixos, Granada, Lonaflex e Brown Boveri. No dia seguinte o Ministério do Trabalho declarou a ilegalidade da greve e determinou a intervenção no Sindicato. Houve ainda a presença das forças militares que passaram a controlar todas as saídas da cidade, além de efetivarem o cerco e a invasão das fábricas. A partir de então, desestruturou-se toda e qualquer possibilidade de manutenção da greve. No seu quarto dia os operários retornaram ao trabalho. Era o fim da greve de Osasco. A repressão da Ditadura derrotara o movimento grevista.

Apesar do fracasso em Osasco, deflagrou-se em Contagem outra greve, no mês de outubro de 1968, também contra o arrocho salarial. Não conseguiu ir além de quatro dias de paralisação. A repressão foi violenta sobre os grevistas, tendo o sindicato sofrido intervenção. Era outra violenta derrota para o movimento operário, que levou dez anos para se recuperar...

Maio de 78: as máquinas param; a classe operária volta à cena Março de 79: os braços novamente estão cruzados: começa a nascer a democracia

“Eram sete horas da manhã no dia 12 de maio. Uma sexta-feira.

Todo mundo marcou o cartão, mas ninguém trabalhou. Das 7 até às 8 horas nós ficamos de braços cruzados, ao lado das máquinas sem fazer nada. Às 8 horas chegou o gerente geral. Pelo que eu fiquei sabendo, ele olhou, viu que tinha luz, que os cartões estavam marcados, mas que ninguém estava trabalhando. Achou estranho, mas não pensou que era uma paralisação. Não entendeu nada, como também jamais poderia imaginar que ocorreria uma greve. Foi uma surpresa!...“ (Relato de um operário da Scania, primeira fábrica a entrar em greve em maio de 1978.)

Era a volta da classe operária à cena política nacional, de onde, aliás, nunca saiu, mas que, especialmente após a derrota de 68, teve sua atuação extremamente limitada e isolada, através de lutas esparsas dentro das fábricas, como as "operações tartaruga". Nestas os operários diminuíam o ritmo de trabalho, fazendo cair consideravelmente a produção, “amarrando a produção" como dizem, e com isso forçando o patronato a dialogar e a conceder aumentos salariais. A "operação tartaruga” foi uma prática largamente utilizada durante os anos mais violentos do arrocho salarial, quando os níveis de exploração atingiram as formas mais aviltantes, garantidas por um controle ditatorial sobre quaisquer formas coletivas de luta operária. E assim se viveu durante os primeiros anos da década de 70.

Em fins de 77 o quadro começou a se alterar favoravelmente para a classe operária. Não mais aguentando o ônus oriundo do arrocho salarial e aproveitando-se de uma denúncia do Banco Mundial, veio à tona o que na prática se sabia. O Governo tinha usurpado e manipulado através de nefastas fórmulas matemáticas significativa parcela do salário real dos operários (especialmente em 1973, quando se diminuiu em 34,1% o índice de aumento salarial). Foi então que os trabalhadores iniciaram um intenso processo de mobilização nas fábricas e nos sindicatos pela reposição salarial. Na verdade, a luta pela reposição salarial preparou todo o terreno para que, no início de 1978, os operários voltassem com toda sua força e iniciassem as paralisações de maio, que atingiram centenas de milhares de trabalhadores metalúrgicos, inicialmente no ABC e depois estendendo-se para todo o Estado de São Paulo.

São claras as palavras de Luís Inácio da Silva, o Lula: “0 arrocho salarial fez com que a classe trabalhadora brasileira, após muitos anos de repressão, fizesse o que qualquer classe trabalhadora do mundo faria: negar sua força de trabalho às empresas. Era a única forma que os operários tinham de recuperar o padrão salarial, ou melhor, entrar no caminho da recuperação. Eu digo que para nós, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, a paralisação não se constituiu em nenhuma surpresa. Ela estava sendo plantada há anos. O auge foi a luta pela reposição dos 34,1% no final de 1977.”

É evidente, portanto, que as greves de maio de 78 resultaram de um árduo trabalho feito dentro de alguns sindicatos, especialmente o de São Bernardo, e o seu resultado foi uma magnífica vitória para a classe operária. Primeiro porque pegou os patrões de “calças curtas," paralisando as atividades dentro das fábricas. Segundo porque, ao serem vitoriosos, iniciaram uma luta profunda contra o arrocho salarial, pilar fundamental da ditadura instaurada no pós-64. Terceiro porque fizeram “letra morta” a toda legislação sindical repressiva, rompendo na prática a Lei Antigreve e iniciando uma atuação que visava, no limite, romper com a estrutura sindical atrelada ao Estado. Quarto porque incorporava-se definitivamente como classe fundamental que é, na luta pela democratização da sociedade brasileira. Quinto porque preparava o terreno para futuras participações políticas, pois, de uma fase de resistência, iniciaram uma nova e vindoura fase de amplo movimento de massas, no que foram seguidos por inúmeras

outras categorias, como médicos, bancários, professores, funcionários públicos etc., segmentos médios dá sociedade que passaram, com o fim do “milagre”, a sofrer com o ônus da exploração, proletarizando-se cada vez mais rapidamente.

As greves continuaram; além das de maio, eclodiram manifestações em junho, julho e em fins de 78, época do dissídio coletivo dos metalúrgicos de São Paulo, Osasco e Guarulhos. Em março de 1979 as greves voltaram com um novo peso. Aí encontraram um patronato muito bem preparado para reprimi-las, caso elas se realizassem novamente dentro das fábricas. Cansados pela intransigência dos patrões, depois de incontáveis horas de negociações, os operários deflagraram greve geral nas empresas metalúrgicas do ABC. A adesão foi maciça. E os patrões acabaram sendo novamente pegos de “calças curtas” pois, em vez de paralisarem dentro das fábricas como em 78, os operários, através da utilização de métodos de larga experiência da classe antes de 64, como os piquetes, não adentraram os locais de produção. E mostraram definitivamente como é mais forte a pressão operária com as máquinas paradas... E foram nestas condições que os operários continuaram as negociações.

A greve já ultrapassava seu décimo dia quando o Governo, atendendo aos interesses dos grandes monopólios nacionais e internacionais, decretou a intervenção nos três sindicatos metalúrgicos do ABC, acreditando que isso amedrontaria os operários e esvaziaria o movimento grevista. Deu-se exatamente o contrário. As forças se acumularam, agora acrescida de nova e fundamental reivindicação: a exigência da volta das diretorias cassadas pelo gesto ditatorial e repressivo do Governo. A greve continuou ainda mais forte, agora com o apoio e solidariedade de todos os setores democráticos da sociedade brasileira. Os diretores cassados continuaram sendo os verdadeiros líderes do amplo movimento grevista de massas. 

Souberam conduzi-lo com a justeza e maturidade necessárias e condizentes com o grau de desenvolvimento da consciência operária. Realizaram-se dezenas de assembléias populares com 100.000 operários, coisa inédita na história das lutas operárias no Brasil. O campo de futebol de Vila Euclides nunca estivera tão cheio. Sua capacidade fora suplantada em mais de dez vezes, tal foi a quantidade, lá presente, de homens e mulheres que compõem a jovem classe operária brasileira. E Lula consolidava sua liderança, contando agora com a solidariedade dos sindicatos de todo país; todos repudiando a medida arbitrária da intervenção. O maior exemplo deste avanço foi o 1.° de Maio Unitário, contando com cerca de 200.000 trabalhadores, que reavivou no seio operário o caráter de luta do Dia do Trabalho. Os patrões e o governo, apesar da sua radicalização, não conseguiram amedrontar e derrotar a classe operária. Foram forçados a negociar com os operários. E o fundamental foi conquistado: a volta das lideranças sindicais. Junto com isso avançou qualitativamente o movimento operário, desde a sua organização na base até à luta pelo fortalecimento do sindicato, visando o fim da estrutura sindical e uma participação efetivamente democrática dos operários nos destinos da nação em todos os níveis, econômico, social e político.

O ano de 1979 foi um momento de grande importância na luta sindical em nosso país: ocorreram cerca de 430 greves, abrangendo as mais diversas categorias, o que colocou o movimento operário num patamar muito superior em sua luta contra o poder ditatorial.

A DÉCADA DE 80: ANOS DE MUDANÇA NO SINDICALISMO BRASILEIRO — O NASCIMENTO DA CUT E DA CGT

Os anos 80 foram marcados por significativas transformações no movimento sindical em nosso país. Com o ressurgimento da ação sindical e grevista, na segunda metade da década de 70, retomava-se também uma velha aspiração operária, tentada diversas vezes, mas sempre com vida curta: era preciso caminhar para a criação de uma Central Única dos Trabalhadores, forte, coesa e de massas, capaz de se constituir em uma ferramenta a mais na luta dos assalariados em seus embates contra o capital.

A década de 80 teve início com um ano particularmente difícil: após as greves vitoriosas do ABC paulista em 78 e 79 e a intensa onda grevista verificada nestes dois anos, atingindo um amplo conjunto de assalariados urbanos e rurais, a longa Greve dos 41 Dias, desencadeada pelos metalúrgicos do ABC, terminou sem o mesmo saldo positivo para os trabalhadores, quando comparada aos embates anteriores. Este elemento, acrescido à política recessiva e à mudança sistemática da política salarial feita pela ditadura, entre outros elementos, levou a uma retração do movimento grevista; se em 1978 pode-se falar, segundo o DIEESE, em meio milhão de trabalhadores em greve e em 1979 este contingente chegou a quase três milhões e meio, em 1980 houve uma queda significativa para cerca de 800 mil grevistas. O capital tentava recuperar-se, após os avanços expressivos obtidos pelos trabalhadores nos anos anteriores.

Outras tendências marcaram os anos 80, tais como a expansão significativa das lutas dos assalariados médios e a constituição de inumeráveis associações sindicais e profissionais; vivenciou-se o pipocar de inúmeras greves de professores, funcionários públicos, médicos, bancários, trabalhadores em serviços, etc., que possibilitaram um grande fortalecimento da luta e da ação sindical. No mundo rural, o avanço também foi muito expressivo, aumentando a organização e resistência dos trabalhadores do campo, onde houve greves memoráveis dos trabalhadores agrícolas, Chamados “bóias frias", em várias regiões do país.

Foi nesta contextualidade da ação sindical que ocorreu, em 1981, a 1ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, depois de muitos anos de resistência dos trabalhadores à ditadura militar, e que reuniu mais de 5 mil delegados sindicais e de base, representantes dos assalariados urbanos e rurais (quase mil representavam o campo), operários e assalariados médios, funcionários públicos e despossuídos da terra. Foi um dos mais importantes eventos da história sindical e do trabalho em nosso país; significativo pela representatividade, pela importância política (era o primeiro encontro nacional desde o golpe de 64 e o maior de toda a história operária até então). Neste encontro deu-se um passo efetivo para a criação da Central Única dos Trabalhadores. Mas, paralelamente a este avanço organizativo, acentuavam-se as dissensões e diferenças no mundo sindical: de um lado encontravam-se tendências sindicais que desembocaram no chamado Novo Sindicalismo, que aglutinavam os setores mais importantes do sindicalismo mais combativo e, de outro, a então chamada Unidade Sindical, que aglutinava a esquerda tradicional, aliada a setores do peleguismo. E foi dessa divergência que, em 1983, começaram a nascer as duas principais centrais sindicais hoje existentes em nosso país: Central Unica dos Trabalhadores (CUT), nascida no Congresso de S. Bernardo e a Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT), nascida no Congresso da Praia Grande e posteriormente denominada Confederação Geral dos Trabalhadores (sua denominação, ao final dos anos 80, tem oscilado entre “Confederação” e “Central”, em função dos grupos que a tem dominado).

O que diferencia o sindicalismo praticado pela CUT, frente àquele realizado pela CGT? A CGT, que nasceu com o forte apoio da esquerda tradicional, representada pelos PCs, é, ao final dos anos 80 e inicio de 90, uma Central engolfada pela burocracia sindical que procurou modernizar-se e para tanto associou-se ao chamado "sindicalismo de resultados", tendência que defende enfaticamente o capitalismo e insere-se na onda neo-liberal, em voga novamente no final dos anos 80. A CGT é uma corrente sindical sem bases expressivas (salvo pouquíssimas exceções) e que depende, para sua existência, do apoio de inúmeros sindicatos de “carimbo", ainda existentes em nosso país. Daí a aliança entre esta nefasta burocracia sindical e o também nefasto “sindicalismo de resultados”. A CGT é a central sindical da ordem, aberta e dócil ao capital nacional e estrangeiro e que tem como eixo de sua ação a recusa aos confrontos mais amplos. Sua liderança estampa a penetração da ideologia burguesa junto ao movimento operário, quer através da vertente neo-liberal, quer através daqueles herdeiros do velho peleguismo que agora se pretende moderno. A CGT, agora sem o apoio da esquerda tradicional, que se aproximou da CUT, tenta consolidar-se através do “sindicalismo de resultados". Esquece que o capitalismo brasileiro é fundado na superexploração do trabalho. Sonha, portanto, com uma Suécia num país de imensos níveis de miserabilidade... Mas conta com o total e irrestrito apoio da mídia (TVs, rádios, jornais), ávida por divulgar líderes sindicais que defendem o capitalismo...

A CUT, por sua vez, nasceu em torno do novo sindicalismo, do sindicalismo mais combativo que se constituiu a partir de meados da década de 70 e aglutina sindicalistas independentes (isto é, sem militância anterior), setores da esquerda católica, tendências socialistas e comunistas desvinculadas dos partidos da esquerda tradicional, entre outras tendências. Tendo como eixo de sua ação o apoio à luta econômica dos trabalhadores contra o arrocho salarial e a superexploração do trabalho, ampliou-se significativamente ao longo da década de 80. Canalizou também sua luta a favor da plena autonomia dos sindicatos frente ao estado e desde o seu III Congresso Nacional, realizado no Rio de Janeiro em 1986, assumiu, em seu Programa, um compromisso de combate ao capitalismo e de luta pela construção da sociedade socialista. Suas principais tendências são: a Articulação, grupamento majoritário, mais sindicalista e com menor ênfase político-ideológica, da qual participam vários dirigentes sindicais que têm significativa projeção nacional e a CUT pela Base, com uma presença menor, porém expressiva e que assume um perfil político e ideológico de esquerda mais acentuado, de inspiração marcadamente socialista.

Nos embates e nas disputas entre estas e outras tendências existentes ou que se vêm incorporando, a CUT tem avançado em sua trajetória, constituindo-se hoje em uma Central com forte apoio dos setores mais organizados da classe trabalhadora. Se é possível estimar a existência, em 1988, de aproximadamente 7.426 sindicatos em nosso país, dos quais 4.277 são urbanos e 3.149 são rurais (dados extraídos do IBGE, Ministério do Trabalho e da CUT), a Central Única dos Trabalhadores tem presença junto àqueles sindicatos mais expressivos, mais organizados, com maior tradição de lutas. A CGT vive, por sua vez, sustentada por ampla parcela da burocracia sindical antiga e subserviente, herança do sindicalismo atrelado da época getulista e daqueles que se proliferam durante a ditadura militar. E, também, daqueles que, por convicção ideológica, optaram pela defesa do capital, como fazem os líderes do “sindicalismo de resultados". De modo que, ao final dos anos 80 e início de 90, o quadro sindical é bastante distinto daquele existente na década anterior: aqueles que de algum modo estão inseridos na defesa dos interesses dos trabalhadores, encontram seu leito natural na ação da CUT. Aqueles que, por sua vez, querem integrar e conciliar a luta entre capital e trabalho, encontram seu caminho tanto na “moderna” burocracia sindical, quanto na vertente denominada sindicalismo de resultados. A USI (União Sindical Independente) é absolutamente inexpressiva em termos de bases sociais efetivas e controla a maioria das Confederações que ainda praticam o peleguismo arcaico, totalmente atrelado e contrário aos interesses dos trabalhadores. É a massa amorfa dos velhos pelegos que sequer querem modernizar-se. Por tudo isso, o sindicalismo do final dos anos 80 e começo de 90, além da luta de resistência que vêm desempenhando desde o nascimento do sindicalismo combativo, terá também cada vez mais nítida conformação político-ideológica, entre os que defendem a ordem do capital e aqueles que, de algum modo, inserem sua luta no universo anti-capitalista.

A década de 80 vivenciou, também, a eclosão de amplos movimentos grevistas, as greves gerais, que objetivavam exprimir a rebeldia dos trabalhadores à política de arrocho salarial e de superexploração do trabalho. Exemplos destas foram a greve geral de 83, contra os decretos que penalizavam os assalariados, e já sob o Governo Sarney, as greves gerais de dezembro de 86, agosto de 87 e março de 89 que, especialmente neste último caso, contou com a adesão significativa de trabalhadores em distintas regiões do país, motivados em sua luta contra as perdas e pela reposição dos salários.

A década de 80 presenciou um aumento significativo dos índices de sindicalização, através da expansão do número de trabalhadores urbanos e rurais que se associaram aos seus respectivos sindicatos. Enquanto em vários países europeus e nos Estados Unidos tem havido um decréscimo das taxas de sindicalização, em nosso país deu-se o inverso. Em 1977, o índice de sindicalização dos assalariados urbanos era de 17% nos sindicatos oficiais e, na zona rural, esse índice chegou a 35% (IBGE, 1978, 80, citado por Armando Boito). Lembre-se que, com a conversão de inúmeras associações de classe em sindicatos, ocorrida a partir da Constituição de 88, aumentou significativamente o número de trabalhadores sindicalizados, especialmente a partir da ampliação do direito de sindicalização para os funcionários públicos e da extensão dos direitos sindicais ao mundo rural.

Para concluir este sintético balanço dos anos 80, é necessário ainda responder à seguinte indagação: o que mudou no sindicalismo depois da Constituição de 88?

Pode-se dizer que a Constituição, promulgada em outubro de 88, consolidou o trânsito da ditadura militar para o conservadorismo civil no Brasil. A maioria parlamentar dominante impediu que mudanças substanciais fossem conquistadas e manteve, no essencial, o caráter conservador da Carta Constitucional. Apesar disto, houve pontos de avanço para os trabalhadores que o capital e os seus representantes procuram obstar e inviabilizar, através da legislação complementar.

No capítulo dos Direitos Sociais, em especial no que se refere à organização sindical, está estampada a ambiguidade acima mencionada. Houve avanços efetivos, porém, em vários pontos, foram mantidos aspectos nefastos anteriores. Exemplifiquemos.

Um ponto importante obteve-se através da liberdade de associação sindical, sem que para isso seja necessária a autorização do Estado ou a sua intervenção (art. 8º). Trata-se, é evidente, de um passo significativo e de uma conquista do movimento sindical combativo. Porém, os sindicatos continuam organizados por categoria profissional e não por ramo de atividade econômica (neste caso se evitaria que uma mesma empresa tivesse trabalhadores vinculados a diferentes sindicatos). E, o que é muito pior, manteve-se o nefasto imposto sindical, um dos pilares mais importantes do sindicalismo atrelado. Foram ampliadas inclusive as formas de contribuição, visando o fortalecimento das Confederações que, ao invés de serem eliminadas, saíram fortalecidas. Como já mencionamos anteriormente, a única Confederação, dentro da estrutura sindical oficial, que nasceu como resultado das lutas sociais foi a CONTAG — Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas; as demais são todas parte do que há de mais nefasto no sindicalismo brasileiro e deveriam ter sido extintas.

Foi também consagrado o direito de sindicalização aos funcionários públicos que vinham, desde fins da década de 70, ampliando enormemente suas associações de classe, mas a quem era vetado o direito de criar sindicatos. Foram estendidos ao campo vários direitos sindicais anteriormente restritos ao mundo urbano. Foi aprovado o direito de eleição de um representante dos trabalhadores nas empresas com mais de duzentos empregados; é evidente, entretanto, que este direito está ainda muitíssimo aquém de constituir-se em uma efetiva representação dos trabalhadores, o que seria obtido a partir das comissões de empresas (ver, na coleção Primeiros Passos, O que são Comissões de Fábrica).

A ambiguidade também se estampa com nitidez em dois outros aspectos que dizem respeito aos trabalhadores: o direito de greve e a questão do sindicato único. No que diz respeito ao primeiro ponto, embora tenha sido assegurado o direito de greve — o que é um grande avanço —, há uma artimanha que pode restringir tal direito. Caberá à lei complementar estabelecer quais são os serviços ou atividades essenciais e como se procederá em caso de greve nestes setores. E mais, os “abusos” cometidos serão sujeitos às penas legais. Ou seja, concede-se o princípio do direito de greve e tenta-se restringi-lo ou mesmo inviabilizá-lo na hora da sua regulamentação complementar. Velha tática constitucional das classes dominantes brasileiras.

Por fim, a questão do sindicato único. Já expusemos, neste livro, nossa convicção de que o sindicato único é uma conquista dos trabalhadores, resultado da sua ação concreta. Porém, mostramos também que é necessário que exista ampla liberdade e autonomia sindical frente ao Estado (princípio este consagrado, por exemplo, pela Convenção 87 da OIT). A Constituição brasileira de 88, ao mesmo tempo em que consagra a livre associação sindical, proíbe a criação de mais de um sindicato por categoria. Há, evidentemente, uma contradição. Em nossa opinião, a aprovação da Convenção 87 da OIT, que permite a liberdade e autonomia sindicais, não é incompatível com o principio do sindicato único conquistado na prática pelos trabalhadores. Aquela Convenção possibilita tanto a vigência do pluralismo sindical (que entendemos como prejudicial para os trabalhadores brasileiros), quanto a existência do sindicato único, como, aliás, ocorre em diversos países. Neste último caso, a existência do sindicato único ao invés de ser uma imposição legal (neste caso trata-se de unicidade sindical), resulta de uma decisão autônoma e independente dos trabalhadores, em suas lutas históricas pela ação e organização unitária dos trabalhadores. E será difícil supor que a classe trabalhadora em nosso país opte pela sua própria fragmentação nas organizações de base. Ao contrário, sua luta tem-se pautado tanto pela defesa da independência, autonomia e liberdade sindicais, quanto pelo princípio da organização e da ação unitárias. Assim ela se tem expressado em vários congressos, encontros sindicais de âmbitos diversos, desde assembléias de fábrica ou de base, até seus encontros nacionais. Poderíamos mencionar recentemente, só para darmos um exemplo, a luta travada pelos metalúrgicos do ABC paulista, pela reconquista do seu sindicato, nas intervenções realizadas pela ditadura durante as greves de 79 e 80. Numa das vezes houve inclusive uma tomada simbólica do sindicato, enfrentando forte aparato repressivo.

Vê-se portanto que, se houve avanços a partir da constituição de 88, como a possibilidade da criação de sindicatos (sem que seja necessário o reconhecimento do Ministério do Trabalho), o direito de sindicalização dos funcionários públicos, a extensão dos direitos sindicais ao campo, a obtenção do direito de greve, houve também a manutenção de aspectos nefastos como o imposto e as contribuições sindicais, a persistência das Confederações, a não obtenção da plena autonomia e liberdade sindical, as possibilidades de restrição ao direito de greve, entre outros.

Se a década de 80 alterou significativamente o movimento sindical em nosso país, vê-se, entretanto, que a década de 90 será marcada por muitos outros embates, ações e transformações. Muito ainda há que fazer. E, para concluir, vale enfatizar que não basta a autonomia política dos sindicatos frente ao Estado; é imprescindível também a independência ideológica dos trabalhadores frente ao capital, condição para que se possa pensar numa sociedade fundada nos ideais de emancipação humana. E isso implica em reconhecer e enfatizar que o sindicalismo praticado pelos trabalhadores deva assumir, cada vez mais, um nítido caráter ofensivo e anticapitalista.

PARA ONDE VÃO OS SINDICATOS?

A última década vivenciou, nos países de capitalismo avançado, profundas transformações no mundo do trabalho, com repercussões diretas nas suas formas tradicionais de representação, dadas pelos sindicatos e partidos. Creio que se possa mesmo dizer, sem exagero, que foi a mais aguda crise deste século, que atingiu de maneira avassaladora o mundo da materialidade e da subjetividade do ser que vive do trabalho. A apreensão dos elementos centrais deste quadro crítico mostra-se imprescindível para que se possam visualizar perspectivas para a nova década.

Não foram poucas as transformações: com a inovação tecnológica, através da automação e da robótica, desencadeou-se uma metamorfose na forma de ser do trabalho. Paralelamente ao definhamento do operariado industrial tradicional, vivenciou-se uma explosão do assalariamento no setor de serviços. Desproletarização nas fábricas e terciarização do trabalho. As transformações em curso atingem também o padrão taylorista e fordista, dominantes neste século. Caminha-se rapidamente, nos países do Ocidente avançado, para a flexibilização da produção; experimenta-se a desconcentração de grandes unidades produtivas e flexionam-se os direitos e conquistas (árduas) do trabalho. Transita-se, em vários ramos da produção, num rumo que vai do fordismo ao “toyotismo". Ao invés do cronômetro taylorista e da produção em série fordista, movida por enormes contingentes operários, avança-se, com o Japão na dianteira, para novos padrões de produção e de gestão da força de trabalho. A experiência dos círculos de controle de qualidade (CCQ) esparramam-se por todo o Japão e ensaiam experimentos no Ocidente avançado e no Terceiro Mundo industrializado. Substituem o despotismo taylorista pelo estranhamento do trabalho levado ao limite. É a apropriação do fazer e do saber do trabalho.

Não é preciso reafirmar que este quadro penetra até a medula do operariado industrial dos países avançados, que se reduz significativamente mas resiste enquanto predominar o (neo) fordismo e o (neo) taylorismo. Desqualificou-se em vários ramos, diminuiu em outros, como no mineiro e metalúrgico, e requalificou-se em outros, como no caso dos operários-técnicos da siderurgia. Complexificou-se e heterogeneizou-se ainda mais. Se a estes elementos estruturais acrescentarmos aqueles que remetem ao universo da consciência, da subjetividade e da representação do trabalho, compreende-se o porquê da agudeza da crise. Os seus organismos tradicionais, como os sindicatos, estão aturdidos. Na defensiva, na retranca e com vários pontos vulneráveis. Entre o estrago bárbaro do stalinismo e a onda neoliberal, abandonam as perspectivas de emancipação do trabalho e contentam-se com o bem-estar social-democrata. Distanciam-se dos movimentos autônomos de classe e subordinam-se, política e ideologicamente, aos valores existentes na sociabilidade regida pelo mercado. Abandonam o sindicalismo de classe dos anos 60/70, forte na França e Itália, e optam pelo sindicalismo de participação, como o alemão. Viram decrescer, nos anos 80, seus níveis de sindicalização, perdendo muito de suas bases e de suas forças. Neste quadro adverso, querem discutir os impactos da automação, da robótica, das novas técnicas de gestão etc. Como tudo isso tem como mola propulsora a produção para o mercado, este é o limite que não podem transpor. Esta é a condição para participarem de tudo. Ou melhor, quase tudo... Da Suécia à Itália, da Alemanha à França, o quadro, em suas tendências mais gerais, pouco difere disso. E a unificação européia acentuará essas tendências. Na Inglaterra, laboratório clássico do neoliberalismo europeu, a ação sindical é ainda mais defensiva. Luta pela preservação de conquistas sociais e públicas solapadas no fundo durante a vigência da era Thatcher.

É claro que, nessa contextualidade, há sinais de resistência, dada a permanência da contraposição entre capital social total e a totalidade do trabalho. As centrais sindicais espanholas, uma vez contabilizadas as perdas oriundas do Pacto de Moncloa, ensaiam ações mais ofensivas. Os ainda incipientes COBAS (Comitato di base), na Itália, questionam fortemente a moderação das centrais sindicais. A este quadro deve-se adicionar as consequências socialmente graves, decorrentes da sociedade dual, dada pela presença dos gastarbeiters na Alemanha (1 milhão e meio ao final da década de 80), do lavoro nero na Itália, isto é, da presença do trabalho imigrante, que praticam o trabalho parcial, precário, sub-humano, e que não gozam das benesses do welfare State.

Para apreender o significado da crise do trabalho no Terceiro Mundo industrializado é preciso, entretanto, fazer mediações. Este vive uma contextualidade particular que o insere ora no fluxo, ora no contra-fluxo dessas tendências. México, Brasil, Argentina, Coréia e os países asiáticos de industrialização recente ilustram bem esse quadro de confluências e dissonâncias. O nosso país vivência as repercussões e impactos das mudanças estruturais decorrentes da automação e da robótica. Desenvolvem-se, mais ou menos ousadamente, novas técnicas de flexibilização e de gestão do trabalho, embora o binômio taylorismo-fordismo ainda impere, e muito. Mas, no contrafluxo do quadro do Ocidente avançado, inúmeras transformações fortaleceram o nosso sindicalismo. As taxas de sindicaiização aumentaram significativamente na última década, tanto no contexto urbano quanto no rural. Houve uma expansão enorme no sindicalismo dos assalariados médios; o volume grevista foi intenso e em 1987 alcançou mais de duas mil greves e mais de 130 milhões de jornadas não-trabalhadas. Ensaiou-se um projeto de organização de base, através das comissões de fábricas, avançou-se na luta pela independência dos sindicatos em relação ao Estado e verificou-se o nascimento das centrais sindicais. Este, um dos pontos mais nevrálgicos do sindicalismo brasileiro, possibilitou o nascimento da Central Única dos Trabalhadores que, em seus sete anos de existência, é caso ímpar da nossa história do trabalho, só encontrando paralelo, em duração, na pequena Confederação Operária Brasileira do início do século.

Se foram decisivas as transformações ocorridas em nosso sindicalismo nos anos 80, o que se visualiza para os primeiros anos da nova década é sombrio: recessão, mais arrocho salarial, aumento dos níveis de miserabilidade, além da tentativa de consolidação, neste Terceiro Mundo industrializado, das transformações vivenciadas no Ocidente avançado. O sindicalismo brasileiro terá, por certo, uma década duríssima. 

Teremos que seguir, aqui, os rumos adotados lá fora ou devemos buscar, em nossas especificidades, as reais saídas para a crise que atinge o mundo do trabalho?

INDICAÇÕES DE LEITURA

Há um conjunto enorme de livros e artigos que tratam da temática sindical. Aqui faremos algumas indicações que possibilitem outros passos para o leitor.

Sobre as origens do sindicalismo (na Inglaterra) consultamos bastante o clássico de Engels, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (Ed. Global), bem como os ricos artigos de Marx e Engels, sobre o sindicalismo, que o leitor pode encontrar em El Sindicalismo — Teoria, Organizacion e Actividad (Ed. Laia, Espanha). Um estudo minucioso o leitor encontrará em E. Hobsbawm, nos livros Os Trabalhadores e Mundos do Trabalho (Ed. Paz e Terra), bem como nos três volumes de E. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa (Paz e Terra). Pode consultar também A. L. Morton e G. Tate, O Movimento Operário Britânico (Ed. Seara Nova, Portugal) e o livro de E. Dolléans, História del Movimiento Obrero (3 vol., Ed. Zero, Espanha).

Um amplo quadro das tendências do sindicalismo europeu pode-se encontrar em Jesus Salvador e Fernando Almendros, Panorama dei Sindicalismo Europeo (2 vol., Ed. Fontanella, Espanha) e também em W. Abendroth, A História Social do Movimento Trabalhista Europeu (Paz e Terra). Pode consultar o volume Economia Y Política en La Accion Sindical (Pasado y Presente 44, México), com os artigos de P. Anderson, Serge Mallet etc. Sobre o sindicalismo norte-americano ver Florence Peterson, El Movimiento Obrero Norteamericano (Ed. Mary- mar, Argentina), entre outros.

Utilizamos bastante vários artigos e textos de Lenin, que podem ser encontrados na coletânea Sobre os Sindicatos (Ed. Ciências Humanas). De Trotsky veja-se Escritos sobre Sindicatos (Ed. Kairós) e de Gramsci vejam-se os vários escritos sobre sindicalismo e movimento operário na Antologia de Gramsci, organizada por M. Sacristan (Siglo XXI, Espanha).

Em relação, ao Brasil, a bibliografia é também bastante ampla e aqui faremos algumas indicações. No que tange às origens do nosso movimento sindical e operário pode-se consultar o livro de Boris Fausto, Trabalho Urbano e Conflito no Brasil (Difel), de F. Foot e V. Leonardi, História da Indústria e do Trabalho no Brasil (Ed. Global), o ensaio de Paulo Sérgio Pinheiro “O Proletariado Industrial na Primeira República”, em História Geral da Civilização Brasileira, Vol. X (Difel,) e Ligia Osório Silva, O Movimento Sindical Operário na Primeira República (Dissertação de mestrado, UN1CAMP).

Os livros de Azis Simão, Sindicato e Estado (Ed. Ática), Evaristo de Moraes Filho, O Problema do Sindicato Único no Brasil (Alfa-Ome- ga), Leôncio Martins Rodrigues, Conflito Industrial e Sindicalismo no Brasil (Difel) e José Albertino Rodrigues, Sindicato e Desenvolvimento no Brasil (Difel), são pioneiros no estudo da temática sindical.

Em relação à Crise de 30, à emergência do Getulismo e ao advento do sindicalismo de estado consulte-se Ricardo Antunes, Classe Operária, Sindicatos e Partidos no Brasil da Revolução de 30 até a Aliança Nacional Libertadora (Ed. Cortez) e o de Ângela Castro Gomes, Burguesia e Trabalho — Política e Legislação Social no Brasil: 1917137, (Ed. Campus).

Da crise do Varguismo até o Golpe Militar de 64 podem-se consultar os estudos de Luiz W. Vianna, Liberalismo e Sindicato no Brasil (Paz e Terra), de Ricardo Maranhão, Sindicalismo e Democratização (Brasiliense), de Kenneth Erickson, Sindicalismo no Processo Político no Brasil, de Sérgio Amad Costa, Estado e Controle Sindical no Brasil (TAQ. Editor), e de Lucília de A. Neves, O Comando Geral dos Trabalhadores (1961-64), (Ed. Vega).

Sobre as transformações do sindicalismo no pós-64 e sua evolução deve-se consultar Heloisa Martins, O Estado e a Burocratização do Sindicato no Brasil e Armando Boito, O Sindicato de Estado no Brasil (Tese d© Doutorado, USP).

Sobre a emergência do novo sindicalismo e do movimento grevista veja-se o artigo de Maria Hermínia Tavares de Almeida, “O Sindicalismo Brasileiro entre a Conservação e a Mudança" em Socie- dade e Política no Brasil Pós-64 (Ed. Brasiliense), o de J. Chasin, “As Máquinas Param: Germina a Democracia", na Revista Ensaio 1 (Ed. Escrita), o livro de John Humphrey, Controle Capitalista e Luta Operária da indústria Automobilística (Vozes), o de Celso Frederico, A Vanguarda Operária (Símbolo) e o de Leôncio M. Rodrigues, Partidos e Sindicatos (Ed. Ática).

Uma polêmica sobre o significado das greves do pós-78 e das lutas sindicais e sociais pode-se encontrar em Ricardo Antunes, A Rebeldia do Trabalho: o Confronto Operário no ABC Paulista — As Greves de 1978180 (Ed. da UNICAMP), Amnéris Maroni, A Estratégia da Recusa (Ed. Brasiliense) e Eder Sader, Quando Novos Personagens Entram em Cena (Paz e Terra).

O leitor ainda encontra um conjunto de depoimentos e entrevistas sobre o movimento sindical e operário, dos quais mencionamos o volume Por um Novo Sindicalismo, organizado por Ricardo Antunes (Ed. Brasiliense), “Movimento Operário: Novas e Velhas Lutas",“0 Arrocho Treme nas Bases do ABC", ambos na Revista Ensaio. "A Greve na Voz dos Trabalhadores", em História Imediata 2 e “Greves Operárias: 1968/78", em Cadernos do Presente. Deve consultar também os diversos volumes da coleção Os Trabalhadores (co-editada pela Associação Cultural do Arquivo Edgard Seuenroth), que estão voltados para o resgate da história do trabalho no Brasil.

Sobre as transformações em curso no mundo do trabalho no sindicalismo dos países avançados, o leitor poderá ler A Revolução dos Robôs, de B. Coriat (Ed. Busca Vida); A Classe Operária em Mutações, de J. Lojkine (Oficina de Livros); A Sociedade Informática, de A. Schaff (Ed. Brasiliense/UNESP) e Produção Destrutiva e Estado Capitalista, de I. Mészáros (Ed. Ensaio), dentre os já traduzidos em língua portuguesa.

Sobre o autor Ricardo Antunes nasceu em São Paulo, em 1953. É professor de Sociologia do Trabalho junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, onde foi Diretor do Arquivo Edgard Leuenroth (Centro de Pesquisa e Documentação Social). Foi professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e da UNESP, Campus de Araraquara.

Doutourou-se em Sociologia pela USP (1986) e, anteriormente, fez Mestrado.em Ciência Política pela UNICAMP (1980).

Publicou os seguintes livros: A Rebeldia do Trabalho (O Confronto Operário no ABC Paulista: as greves de 1978180 (Ed. da UNICAMP; Classe Operária, Sindicatos e Partido no Brasil (Da Revolução de 30 até a Aliança Nacional Libertadora) (Ed. Cortez); Crise e Poder (Ed. Cortez); O que São Comissões de Fábrica (Ed. Brasiliense, em co-autoria). Organizou o livro Por um Novo Sindicalismo (Ed. Brasiliense) e co-organizou A Inteligência Brasileira (Ed. Brasiliense).

Participou da organização dos volumes Movimento Operário: Novas e Velhas Lutas e O Arrocho Treme nas Bases do ABC da Revista Ensaio. Colabora regularmente em revistas e jornais escrevendo sobre política, a temática sindical e do trabalho. Foi, também, membro do movimento de oposição sindical dos professores de S. Paulo, Diretor da Associação de Docentes da Fundação Getúlio Vargas e Diretor da Associação de Docentes da UNESP de Araraquara.

domingo, 23 de outubro de 2022

Do transe a vertigem - Rodrigo Nunes - Introdução

INTRODUÇÃO

Os ensaios reunidos neste livro foram escritos entre setembro de 2019 e fevereiro de 2022, cobrindo, portanto, um período de dois anos e meio, que coincidiu tanto com a maior parte do mandato presidencial de Jair Bolsonaro como com o início e (esperamos) o auge da pandemia da covid-19. Sua gestação, no entanto, foi um pouco mais longa e complexa. O germe de algumas das ideias desenvolvidas aqui já estava comigo pelo menos desde a campanha eleitoral de 2018, quando os eventos no Brasil me apanharam na costa leste dos Estados Unidos, durante uma temporada na Brown University, aonde eu havia ido para trabalhar em outro livro. A produção deste último, que me manteria ocupado até o início de 2020, me impediria de dar vazão a boa parte destas ideias no calor da hora.

Essa relativa distância das polêmicas do dia a dia resultava em um modo diferente de perceber o momento como um todo e, particularmente, o fenômeno do bolsonarismo. Por trás de cada gesto, fala ou medida do novo governo, o que me interessava era entender o pano de fundo das dinâmicas de mais longa escala em que eles se encaixavam. Com isso, o que se insinuava era a oportunidade – e o desafio – de construir o bolsonarismo, a ascensão global da extrema direita e as polarizações políticas da última década como objetos de estudo complexos, multifacetados, compostos de diferentes dimensões e temporalidades, sem a pretensão de encontrar soluções imediatas ou grandes chaves gerais a partir das quais explicá-los.

Se esta reflexão aparece com algum atraso em relação a outros livros que buscaram oferecer respostas mais diretas e tempestivas, não creio que essa demora implique uma perda de urgência. Uma derrota do bolsonarismo nas urnas não o fará desaparecer, e menos ainda as condições que têm alimentado a extrema direita no Brasil e no mundo.

Aquilo que estamos vivendo tem raízes suficientemente profundas para que uma simples mudança de orientação política no topo não baste para mudar o que ocorre na base da sociedade, e um possível sucesso da esquerda será apenas o início de um período em que não só as condições serão menos favoráveis do que foram vinte anos atrás, como haverá muito mais em jogo. Uma análise que tenta dar conta de diferentes níveis e escalas talvez possa revelar-se, então, como um guia útil para esse período.

Embora escritos em ocasiões diferentes, conforme as oportunidades se apresentavam, a maioria dos ensaios reunidos aqui são como partes de um único texto que, na impossibilidade de ser escrito de maneira contínua, foi existindo aos poucos, como que extraído de um fluxo maior.

O primeiro capítulo, em particular, é uma espécie de mapa geral ou hipertexto do qual os três capítulos seguintes são zonas em detalhe, links nos quais se pode clicar para se aprofundar um pouco mais em um ou outro tema. Assim, por exemplo, o capítulo 1 conclui falando do negacionismo como um fator afetivo central do nosso tempo, um componente essencial de nosso estado anímico coletivo; e é justamente sobre esse tema, e sua relação com as fantasias mobilizadas pela extrema direita, que o capítulo 2 se debruça.

Do mesmo modo, o capítulo 4 desenvolve a ideia da relação entre bolsonarismo e empreendedorismo, e do bolsonarismo como fenômeno em si mesmo empreendorístico, esboçada no primeiro.

Já a relação do capítulo 3 com os demais é um pouco diversa. Por um lado, trata-se do único texto reunido aqui que está mais diretamente ligado a um evento específico: a performance de inspiração nazista que encerrou a breve passagem do secretário da Cultura Roberto Alvim pelo governo Bolsonaro, no longínquo mês de janeiro de 2020.

Por outro lado, o artigo explora uma relação implícita com o ensaio de abertura, já que a figura do troll concentra em um complexo várias das condições afetivas às quais aquele faz alusão (dissociação, dessensitização), e seu emprego tático depende não apenas de certa infraestrutura comunicacional mas também de dinâmicas (de captura da atenção, de formação de in- e out-groups, de “memeficação” da realidade) cuja influência sobre nossa “noosfera” – para retomar a expressão de Deleuze e Guattari recuperada por Maurizio Lazzarato – foi generalizada pelo ambiente altamente midiatizado em que vivemos.Se o nexo entre os dois textos ficou menos evidente, isso foi menos por desígnio que pela pressão externa do acaso. Não tendo encontrado uma boa maneira de expandir o terceiro capítulo de modo a transformá-lo em uma análise mais ampla de como a web 2.0 alterou as condições estruturais e subjetivas em que fazemos política e nos relacionamos uns com os outros, optei por retocá-lo minimamente, deixando

este objetivo mais amplo para outra oportunidade.

Tais relações ajudam a explicar, também, a organização temática do livro e o fato de que ele começa in medias res, discutindo o bolsonarismo, para depois recuar progressivamente no tempo. Assim, o capítulo 5 discute a questão da “polarização” política, tópico onipresente no período entre a campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff e as eleições de 2018, fazendo uma genealogia do uso desse termo para propor outro diagnóstico do problema que ele designa. O capítulo 6, que dá nome ao livro, aborda, pela via indireta da comparação entre a filmografia recente e aquela provocada pelo golpe de 1964, a reação da esquerda brasileira à chicana parlamentar que derrubou a presidente petista em 2016, identificando um sintomático mal-entendido na comparação entre os dois períodos.

Finalmente, o capítulo 7 remonta a Junho de 2013 a fim de investigar o grande enigma da política brasileira da última década: o que aconteceu para nos levar, no curto espaço de cinco anos, do maior movimento de massas desde a redemocratização a uma contraofensiva brutal da classe dominante assistida sem reação por muitos – e entusiasticamente apoiada por outros tantos?

O que essa organização temporal regressiva faz é expandir, lateral e verticalmente, o objeto delineado nos capítulos iniciais, preenchendo-lhe o contexto sincrônico e diacrônico, situando os outros com que o bolsonarismo interage (a esquerda, o “centro” liberal) e identificando os processos por meio dos quais esses diferentes polos, suas identidades e estratégias, foram se constituindo ao longo da última década. 

Mas esse movimento retrospectivo é também um recurso que permite um redirecionamento para o futuro. 

Primeiro, no sentido de assumir uma posição definida diante da pergunta mais importante quando a discussão é 2013 e seus desdobramentos: era necessário que tudo desse no que deu? Essa questão é fundamental na medida em que sua resposta determina os limites daquilo que imaginamos ser politicamente possível, e se havia algo que poderia ter sido feito para que as coisas tomassem outro rumo. Responder à pergunta na negativa – o resultado efetivamente negativo era evitável – implica automaticamente abrir cenários alternativos dos quais podemos, pela comparação com aquele que se realizou, extrair lições para outras situações por vir. Quem diz “poderia ter sido diferente” também diz “poderíamos ter feito outras escolhas”. No entanto, a extrema dificuldade de tirar lições de 2013 que os mais variados setores da esquerda demonstram sugere que há ali um núcleo traumático em que o pensamento trava sem conseguir avançar.

Portanto, retornar a esse ponto do passado recente também é importante porque elaborar esses traumas é condição para liberar o pensamento e a ação. E isso é essencial porque os desafios que a esquerda encontrará num possível retorno ao poder são muito distintos daqueles de duas décadas atrás – e permanecer preso à incapacidade de superar os eventos dos últimos anos, ou às certezas de um período que já se esgotou, impede-nos de encará-los como se deve. A expressão “do transe à vertigem”, que aparece no capítulo 6 em referência às diferentes reações da esquerda a duas grandes derrotas históricas, 1964 e 2016, funciona, assim, em outro sentido no contexto do livro como um todo: a passagem do transe do presente (negacionismo, teorias conspiratórias, sofrimento psíquico, a grande dessublimação dos desejos fascistas) à vertigem de confrontar as questões ainda mais sérias e profundas que estão por trás dele. 

É nessa direção futura, finalmente, que estes textos, mesmo quando se resumem a analisar aquilo que existe, pretendem apontar. Mas isso não é a única coisa que eles têm em comum; alguns temas, ideias e abordagens se mantêm constantes ao longo do livro. Para começar, há a referência a um pano de fundo compartilhado por todos os processos analisados aqui: o contexto global aberto pela crise financeira de 2008, no interior do qual tiveram lugar tanto o ciclo de protestos que se iniciou com a Primavera Árabe em 2011 como a ascensão da extrema direita. O destaque dado à Grande Recessão não deriva de um determinismo econômico simplista que supõe uma relação linear entre piora das condições de vida e aumento da mobilização social. Ele é consequência, ao contrário, do entendimento de que, para além de seus efeitos materiais imediatos, os eventos de quase quinze anos atrás inauguraram um momento histórico em que a intensificação de algumas das tendências mais deletérias do neoliberalismo coincide com uma crise de legitimidade deste último e, por extensão, de sistemas e partidos políticos que permanecem incapazes de colocá-lo em questão. É essa conjuntura mais ampla que serve para explicar por que, mundialmente, a política na última década tendeu aos extremos, desestabilizando aquilo que se constituíra, desde a consolidação da hegemonia neoliberal nos anos 1990, como seu centro de gravidade “natural”. É ela, ainda, que nos ajuda a compreender o recrudescimento recente das “guerras culturais” que acompanharam a ascensão de figuras como Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 1980, e que hoje são mobilizadas pela extrema direita para defender uma forma ainda mais extrema de privatização dos riscos e de suspensão das proteções sociais contra o neoliberalismo “progressista” ou “normativo” – para tomar as expressões de Nancy Fraser e Will Davies, respectivamente – que foi dominante dos anos 1990 até 2008.

A crise de legitimidade do neoliberalismo tem um aspecto simbólico e outro material. O simbólico decorre da maneira como a resposta estatal ao colapso financeiro, que protegeu aqueles que o causaram e transferiu os custos do resgate econômico para a população em geral, escancarou a convertibilidade do poder econômico em poder político que torna as promessas de uma ordem estritamente meritocrática e autorregulada inevitavelmente falsas. Ao contrário do que afiançava o ordoliberal alemão Wilhelm Röpke, a desigualdade não é, no fim das contas, a mesma para todos. Mas a outra coisa que 2008 expôs foi o vazio por sob os pés do sistema econômico mundial. Se a financeirização introduzida a partir dos anos 1970 foi uma tentativa de sustentar os lucros do capital e o consentimento da população num cenário em que a expansão do pós-guerra começava a se esgotar, o que a debacle do fim da década retrasada fez ver é que não só o problema de fundo continua irresoluto como a última solução encontrada para “comprar tempo” gerou seus próprios problemas. Por um lado, a taxa de crescimento da economia global continua em queda há cinco décadas. Por outro, desde a segunda metade dos anos 1990 temos assistido ao “espetáculo extraordinário de uma economia mundial em que a continuidade da acumulação de capital passou a literalmente depender de ondas especulativas de dimensões históricas”, financiadas pela oferta de crédito barato que simultaneamente soterrou famílias e corporações em dívidas e tornou o sistema global muito mais sujeito a crises. Se não destruiu a fé nesse arranjo por completo, a revelação dessa fragilidade, a falta de uma receita alternativa para pôr em seu lugar, e o aumento do subemprego e da precarização que veio com a retomada pós-recessão não só tornaram as promessas de prosperidade futura menos críveis como demonstraram o quão facilmente elas podem ser rescindidas. Basta lembrar que, nos Estados Unidos apenas, mais de 6 milhões de famílias que haviam sido atraídas para a bolha especulativa do mercado imobiliário pela miragem da casa própria acabaram despejadas.

Essa crise de legitimidade, no entanto, não implica necessariamente um recuo do neoliberalismo. Pelo contrário, a austeridade da última década representou sua intensificação, e ainda não está claro que o expansionismo fiscal instigado pela pandemia vá significar uma inflexão real a longo prazo. Isso se explica, em parte, pelo relativo descompasso entre instituições políticas e sociedade. Dado que a crise de legitimidade não gerou um desafio suficientemente forte à ascendência do capital financeiro e corporativo, esses setores continuam capazes de impor sua vontade à população em geral, e é justamente porque viram seu poder balançar, mas não cair, que eles agora o usam para pisar no acelerador em vez do freio. (Esse descompasso, como sugiro no capítulo 2, é uma das explicações possíveis para a popularidade da figura do zumbi na cultura popular da última década.) Mas há um outro descompasso que passa por dentro da própria sociedade ou, antes, de cada indivíduo: o abalo simbólico e material sofrido pela autoridade do neoliberalismo se encontra parcialmente cancelado pela hegemonia neoliberal no campo dos afetos – e a atenção a essa dimensão afetiva da vida social é outra das constantes neste livro.

Aquilo a que me refiro é a dimensão constituída pelos efeitos que as experiências por que passam os indivíduos produzem em seus prazeres, desprazeres e desejos, estabelecendo, ao longo do tempo, amores, ódios, medos, esperanças, objetos de repulsa e de admiração. Na medida em que afetos são produtos de interações, e as interações são sempre condicionadas (e até certo ponto fixadas e padronizadas) pelos arranjos materiais que determinam nosso lugar no mundo e por instituições como a família, a polícia e o trabalho assalariado, o afetivo nunca é simplesmente privado: ele é sempre social. Contudo, não se trata de fazer do afeto um dado bruto e imediato. Na verdade, afetos sempre se encontram numa relação circular com os sistemas (de novo, nunca meramente individuais) mediante os quais interpretamos, concatenamos e justificamos aquilo que nos acontece. A regularidade de nossas experiências produz afetos que consolidam esquemas valorativos, mas esses esquemas valorativos podem continuar operando mesmo quando elementos da experiência vivida começam a entrar em contradição com eles.

É essa força inercial do hábito que explica o descompasso mencionado acima. O nosso é um tempo em que convivem, lado a lado, um sentimento difuso de que, por diversos motivos, as coisas não podem continuar como estão (e que, se continuam, é simplesmente porque quem delas se beneficia tem a força necessária para impor sua vontade); e a sensação de que as coisas não poderiam ser de outro jeito, sustentada pelo fato de que o modo como vivemos, nos relacionamos e nos compreendemos está completamente atravessado por dispositivos como o consumo, o individualismo, a concorrência, o punitivismo e o “empreendedorismo de si mesmo”. Se de um ponto de vista mais ou menos consciente (ainda que frequentemente renegado), as promessas de boa vida do capitalismo contemporâneo parecem cada vez mais suspeitas, nossa “servidão passional” ao atual estado de coisas permanece profundamente enraizada – mesmo entre aqueles que conscientemente se opõem a ele.

Esse conflito produz monstros, como o negacionismo (no sentido que dou à palavra nos capítulos 1 e 2), o niilismo casual do troll (capítulo 3) e a proliferação de fraudes e contos do vigário, característica do “empreendedorismo político” que marcou a ascensão da extrema direita (capítulo 4) e cada vez mais ubíqua na cultura contemporânea. Com efeito, se fôssemos reduzir os dois caminhos que se abrem a partir da atual conjuntura a fórmulas simples, poderíamos dizer que enquanto à esquerda caberia propor um jogo alternativo àquele que se esgotou, à extrema direita basta assumir que, quando a competição se torna cada vez mais questão de vida ou morte, excluir os adversários se torna uma opção válida.

Trata-se, em resumo, de don’t hate the player, hate the game [não odeie o jogador, odeie o jogo] contra don’t hate the game, hate the other players [não odeie o jogo, odeie os outros jogadores] – sendo que a segunda opção tem a grande vantagem de estar de acordo com a tendência natural das coisas hoje.

Da escolha por atentar à dimensão afetiva seguem algumas consequências que também perpassam estes ensaios. Para começar, a ênfase na necessidade do perspectivismo para a política. Se a afetividade nos constitui como indivíduos dotados de hábitos e disposições ao mesmo tempo únicos (porque pertencem a nossa experiência singular) e largamente compartilhados (com aqueles cujas condições de vida se assemelham às nossas), é de se esperar que o espaço político se apresente de maneiras distintas conforme o lugar desde onde se olha.

Isso quer dizer que ideias, práticas, palavras de ordem e mesmo personagens públicos podem aparecer de diferentes maneiras para diferentes pessoas, e apreender o sistema dessas variações é essencial para saber se mover entre diferentes pontos. Esse é um elemento crucial para a compreensão do bolsonarismo (capítulo 1) e mais ainda da polarização política (capítulo 6), que supõe justamente a tendência de diferentes perspectivas a se organizarem cada vez mais por oposição uma à outra. Dois corolários dessa abordagem, que aparecem em mais de uma análise proposta aqui, são o aspecto fundamentalmente comparativo da experiência de classe e a distinção entre radicalização programática e radicalização identitária.

O primeiro desses pontos se refere ao fato de que as comparações que as pessoas fazem de suas condições de vida atuais com sua situação anterior, sua posição esperada e a realidade daqueles em sua vizinhança imediata são determinantes para o modo como elas identificam seus interesses e respondem politicamente a diferentes cenários.

É isso que explica que mesmo grupos cuja vida melhorou possam sentir-se pior se outros a sua volta aparentam ter se beneficiado mais (capítulo 4); que protestos ocorram não porque as coisas pioraram, mas porque as expectativas cresceram (capítulo 7); e é também o que facilita a manobra da extrema direita de associar as perdas que muitos têm acumulado aos ganhos relativos obtidos por minorias e setores historicamente marginalizados (capítulos 1 e 5).

O segundo ponto, por sua vez, chama atenção para o risco de confundir a adesão a princípios e valores de esquerda com a adesão a um conjunto de marcadores externos que compõem uma identidade (códigos linguísticos, preferências estéticas, objetos de amor e ódio).

Por mais que a fronteira entre as duas coisas possa ser fluida, a capacidade de diferenciá-las importa por motivos que aparecem de diferentes maneiras nos capítulos 5, 6 e 7.

Um deles é que, ao permitir identificar situações em que os obstáculos à comunicação estão mais no nível das associações e dos preconceitos que dos conteúdos, essa capacidade ajuda tanto a evitar que a forma com que se comunica uma mensagem acabe por impedir que ela chegue aos destinatários, como a descobrir possibilidades de diálogo e convergência mesmo quando os interlocutores não falam exatamente a mesma língua. Outro é o fato de ela revelar o erro, muito comum à esquerda, que consiste em tratar as identidades políticas como plenamente constituídas, de tal maneira que, de uma diferença de vocabulário ou gosto, seria automaticamente possível deduzir um conjunto completo de crenças e convicções.

Conforme sugiro no capítulo 5, apenas aqueles que entendem a orientação política como elemento central da própria identidade costumam pretender que todas as suas posições sejam consistentes entre si. A maioria das pessoas, para quem a política é menos relevante, tende a ser menos consistente, mas por isso mesmo suas ideias e atitudes contêm contradições a serem exploradas.

Por último, discernir entre os dois tipos de radicalização nos ajuda a perceber que frequentemente a ênfase na própria identidade política é uma maneira de compensar seja a falta de capacidade de incidir efetivamente sobre uma conjuntura, seja a falta de um programa que se diferencie substantivamente do status quo. No segundo caso, temos a captura liberal das chamadas pautas “identitárias” pelo “neoliberalismo progressista”, tanto mais estridente em ressaltar as virtudes morais de sua política de

reconhecimento quanto menos tem a propor do ponto de vista da distribuição da riqueza. No primeiro, temos a captura dos desejos de transformação por um “capitalismo comunicativo” que tende a fazer da expressão pública de nossa individualidade (construída a partir de uma série de pertencimentos) um substituto da ação política: participar equivale a ser visto participando na mídia e nas redes sociais. 

Ambas são aspectos facilmente reconhecíveis do presente.

Para deixar claro, opor “programa” a “identidade” não implica um retorno incoerente a um racionalismo segundo o qual bastaria apresentar um conjunto de propostas convincentes para conquistar as pessoas. (Pelo contrário: apontar o modo como a afetividade condiciona a recepção das mensagens serve precisamente para impedir que o convencimento seja pensado como uma simples questão de razoabilidade.) A questão aqui é dupla. Por um lado, uma identidade tem apelo reduzido, ou mesmo negativo, para quem não se vê nela. Se o que está em jogo é atrair quem não a compartilha, o que é preciso oferecer não é o conforto simbólico do pertencimento, mas ideias que efetivamente façam sentido para as pessoas; isto é, que lhes ofereçam a perspectiva plausível de uma vida melhor, bem como o desejo de alcançá-la. É isso que “programa” representa aqui. Por outro lado, o que conta como plausível não pode ser medido unicamente em relação àquilo que as pessoas já estão dispostas a considerar como tal, mas precisa igualmente levar em conta a realidade; e aquilo que a realidade exige hoje não pode deixar de parecer “extremo” se comparado aos arranjos políticos e econômicos que temos. É a isso que “radicalização” se refere, e é nesse sentido que uma “radicalização programática” aparece como o meio capaz de explorar o conflito entre a crise de legitimidade do neoliberalismo e a adesão afetiva a ele.

Aqui encontramos talvez os dois principais temas recorrentes deste livro. O primeiro é aquele que identifica o mais importante descompasso de nosso tempo como sendo o que existe entre um consenso estabelecido há três décadas sobre o que é “realista” propor e pensar e uma realidade profundamente transformada. Daí a recusa a aceitar o jogo que opõe o “realista” ao “utópico” para, ao contrário, reivindicar a própria Realpolitik: diante do colapso ambiental e da concentração de poder econômico e político que temos hoje, é o realismo de trinta anos atrás que se tornou irreal, e o que antes parecia absurdo frequentemente contém algo de razoável. Isso se aplica, inclusive, à extrema direita: conforme aponto algumas vezes, há um sentido em que se pode dizer que ela é uma reação mais racional ao atual estado de coisas do que a crença de que tudo poderia simplesmente continuar como antes. Afinal, ela ao menos implicitamente assume os custos cada vez mais altos de manter as coisas em seus lugares e prepara seus seguidores para uma luta cada vez mais sangrenta de todos contra todos.

Se ser realista hoje em dia implica necessariamente atribuir para si objetivos ambiciosos, o segundo grande tema destes ensaios consiste na rejeição de uma alternativa entre operar dentro dos limites do possível e agir com ambição. É bem verdade que não se pode fazer qualquer coisa a qualquer momento. No entanto, isso só vale como argumento contra a ousadia se esquecemos que a política é antes de tudo uma disputa para definir os limites do possível, e que fazer o que se pode fazer agora não precisa ser uma desculpa, mas pode, antes, ser um meio para se aproximar do que ainda não se é capaz de fazer. Os últimos quinze anos foram um período em que o impensável não parou de acontecer, e a extrema direita soube melhor que ninguém usar as muitas crises do presente para trazer o indizível para o centro do debate público e tornar o inconcebível um dado corriqueiro. Fazer frente a ela, e à barbárie ainda pior que se avizinha se apenas deixarmos as coisas seguirem seu rumo atual, exigirá esforço e capacidade ímpares para fazer com que o realismo diante do que é possível esteja cada vez mais em consonância com o realismo diante do que é real.

 

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Susan Sontag - 1926 - Pasternak, Tsvetáieva, Rilke





1926...

Pasternak, Tsvetáieva, Rilke

O que está acontecendo em 1926, quando os três poetas estão escrevendo uns para os outros?

No dia 12 de maio, a “Sinfonia nº1 em fá menor” de Chostakóvitch é executada pela primeira vez, pela Filarmônica de Leningrado; o compositor tem dezenove anos.

No dia 10 de junho, o idoso arquiteto catalão Antonio Gaudí, na caminhada que faz todos os dias do local onde está sendo construída a Catedral da Sagrada Família até uma igreja no mesmo bairro, em Barcelona, para assistir à missa das vésperas, é atropelado por um bonde, fica estirado na rua, sem socorro (porque ninguém o reconheceu, pelo que dizem), e morre.

No dia 6 de agosto, Gertrude Ederle, dezenove anos, americana, nada do cabo Gris-Nez, na França, até Kingsdown, na Inglaterra, em catorze horas e 31 minutos, e se torna a primeira mulher a cruzar a nado o canal da Mancha e a primeira mulher a superar um recordista masculino, competindo num esporte de alto rendimento.

No dia 23 de agosto, o ídolo do cinema Rodolfo Valentino morre de endocardite e septicemia num hospital em Nova York.

No dia 3 de setembro, uma torre de aço de transmissão de rádio (Funkturm), de 138 metros de altura, com um restaurante e um mirante, é inaugurada em Berlim.

Alguns livros: volume 2 do Minha luta, de Hitler, Edifícios brancos, de Hart Crane, Winnie Puff, de A. A. Milne, A terceira fábrica, de Viktor Chklóvski, O camponês de Paris, de Louis Aragon, A serpente emplumada, de D. H. Lawrence, O sol também se levanta, de Hemingway, O assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie, Os sete pilares da sabedoria, de T. E. Lawrence.

Alguns filmes: Metropolis, de Fritz Lang,* A mãe, de Vsevolod Pudóvkin, Nana, de Jean Renoir, Beau Geste, de Herbert Brenon.

Duas peças: Um homem é um homem, de Bertolt Brecht, e Orfeu, de Jean Cocteau.

No dia 6 de dezembro, Walter Benjamin chega a Moscou para uma estada de dois meses. Não se encontra com Boris Pasternak, de 36 anos de idade.

Pasternak não vê Marina Tsvetáieva há quatro anos. Desde que ela deixou a Rússia, em 1922, os dois tornaram-se os mais queridos interlocutores um do outro, e Pasternak, tacitamente reconhecendo em Tsvetáieva a poeta maior, fez dela a sua primeira leitora.

Tsvetáieva, que tem 34 anos, vive na penúria, com o marido e dois filhos, em Paris.

Rilke, que tem 51 anos, está morrendo de leucemia num sanatório na Suíça.

Cartas: Verão de 1926 é um retrato do delírio sagrado da arte. São três participantes: um deus e dois adoradores, que são também adoradores um do outro (e que nós, os leitores de suas cartas, sabemos ser futuros deuses).

Um casal de jovens poetas russos, que durante anos trocaram cartas fervorosas sobre a obra e a vida, passam a corresponder-se com um grande poeta alemão que, para ambos, é a poesia personificada. Essas cartas de amor tridirecionais — pois se trata de cartas de amor — são uma incomparável dramatização do entusiasmo pela poesia e pela vida do espírito.

Retratam uma esfera de sentimento temerário e de pureza de aspiração que seria, para nós, um desperdício descartar como “romântica”.

A literatura escrita na Alemanha e na Rússia era particularmente dedicada à exaltação espiritual. Tsvetáieva e Pasternak sabem alemão e Rilke estudou e alcançou um domínio razoável do russo — os três impregnados pelos sonhos de divindade literária promulgados naquelas línguas. Os russos, amantes da poesia e da música alemãs desde a infância (as mães dos dois eram pianistas), esperam que o grande poeta da época seja alguém que escreva na língua de Hölderlin e Goethe. E o poeta de língua alemã teve como um amor de juventude, e como sua mentora, uma escritora, nascida em São Petersburgo, com quem ele viajou duas vezes à Rússia, e desde então considerou aquele país a sua verdadeira pátria espiritual.

Na segunda viagem à Rússia, em 1900, Pasternak de fato viu e provavelmente foi apresentado ao jovem Rilke.

O pai de Pasternak, pintor famoso, era um estimado conhecido de Rilke. Boris, o futuro poeta, tinha dez anos de idade. É com a sagrada recordação de Rilke ao embarcar num trem com a sua amante, Lou Andreas-Salomé — eles permanecem respeitosamente anônimos —, que Pasternak começa Salvo conduto (1931), a sua maior realização na prosa.

Tsvetáieva, é claro, nunca pôs os olhos em Rilke.

Os três poetas são sacudidos por necessidades aparentemente incompatíveis: a solidão mais absoluta e a mais intensa comunhão com outro espírito de opiniões afins. “Minha voz só consegue soar pura e límpida quando absolutamente solitária”, diz Pasternak ao seu pai, numa carta. O ardor modulado pela intransigência guia todos os escritos de Tsvetáieva. Em “Arte à luz da consciência” (1932), ela escreve: O poeta só pode ter uma prece: não compreender o inaceitável — que eu não compreenda, para que eu não seja seduzida... que eu não ouça, para que eu não responda... A única prece do poeta é uma prece por surdez.

E os dois passos de dança característicos da vida de Rilke, tal como a conhecemos por suas cartas para uma variedade de correspondentes, sobretudo mulheres, são a esquiva de qualquer intimidade e uma oferta de solidariedade e compreensão incondicionais.

Embora os poetas mais jovens se declarem acólitos, as cartas rapidamente se tornam uma troca entre iguais, uma competição de afinidades. Para aqueles familiarizados com os ramos principais da empolada e não raro imponente correspondência de Rilke, pode ser uma surpresa descobri-lo reagindo quase no mesmo tom ávido, jubiloso, que os seus dois admiradores russos. Mas ele nunca tivera interlocutores desse calibre. O Rilke soberano, didático, que conhecemos das Cartas para um jovem poeta, escritas entre 1903 e 1908, desapareceu. Aqui há apenas conversação angélica. Nada a ensinar. Nada a aprender.

A ópera é agora o único meio em que ainda se aceitam exaltações de entusiasmo. O dueto que conclui Ariadne auf Naxos, de Richard Strauss, cujo libreto é de um contemporâneo de Rilke, Hugo von Hofmannsthal, oferece uma efusividade comparável. Sem dúvida, nos sentimos mais confortáveis com o hino ao amor como renascimento e autotransformação, cantado por Ariadne e Baco, do que com os arroubos de sentimento amoroso expressos pelos três poetas.

E essas cartas não são duetos de encerramento. São duetos que tentam, e por fim não conseguem, ser trios. Que tipo de posse mútua os poetas almejam? Em que medida esse tipo de amor consome e é exclusivo? A correspondência começou entre Rilke e Pasternak, tendo o pai de Pasternak como intermediário. Depois, Pasternak sugeriu a Rilke escrever para Tsvetáieva, e a situação se converte numa correspondência à trois. Última a entrar na arena, Tsvetáieva rapidamente se torna a força deflagradora, tão potentes, tão escandalosas são a sua carência, a sua coragem, a sua nudez emocional.

Tsvetáieva é a implacável, superando primeiro Pasternak e depois Rilke.

Pasternak, que não sabe mais o que pedir a Rilke, retira-se (e Tsvetáieva também pede uma pausa na correspondência entre eles); Tsvetáieva pode pensar numa ligação erótica, avassaladora. Implorando que Rilke conceda um encontro, tudo o que consegue é afastá-lo. 
Rilke, por seu turno, fica em silêncio. (Sua última carta para ela foi no dia 19 de agosto.)

O fluxo de retórica alcança o precipício do sublime e desaba na histeria, na angústia, no terror.

Porém, curiosamente, a morte parece bastante irreal. Como os russos ficam aturdidos e chocados quando “esse fenômeno da natureza” (assim consideravam Rilke), em certo sentido, não mais existe. O silêncio havia de ser completo. O silêncio que agora tem o nome de morte parece uma depreciação grande demais.

Portanto, a correspondência tinha de continuar.

Tsvetáieva escreve uma carta para Rilke alguns dias depois de saber que ele havia morrido no fim de dezembro e dedica a ele uma longa ode em prosa (“Sua morte”) no ano seguinte. O manuscrito de Salvo-conduto, que Pasternak completa quase cinco anos após a morte de Rilke, termina com uma carta a Rilke. (“Se você estivesse vivo, esta é a carta que eu lhe enviaria hoje.”) Guiando o leitor por um labirinto de prosa memorialística elíptica até o âmago da interioridade do poeta, Salvo-conduto é escrito sob o signo de Rilke e, ainda que de forma inconsciente, em competição com Rilke, tentando equiparar-se ou mesmo ultrapassar Os cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), a obra máxima de Rilke em prosa.

No início de Salvo-conduto, Pasternak fala sobre viver ao máximo e dedicar-se aos momentos em que “um sentimento completo irrompe no espaço com toda a vastidão do espaço à sua frente”. Nunca antes se fez, de modo tão agudo, tão arrebatador, uma síntese dos poderes da poesia lírica como nessas cartas. A poesia não pode ser abandonada, não se pode renunciar a ela, quando a pessoa é “o servo da lira”, como Tsvetáieva ensina a Pasternak numa carta em julho de 1925. “Com a poesia, caro amigo, é como no amor; não há separação, até que ela nos largue.”

Ou até que a morte intervenha. Tsvetáieva e Pasternak não desconfiavam que Rilke estava gravemente enfermo. Ao saber que havia morrido, os dois poetas se mostraram incrédulos: falando de modo cômico, parecia injusto. E quinze anos depois, Pasternak ficaria surpreso e com remorsos ao receber a notícia do suicídio de Tsvetáieva, em agosto de 1941. Reconheceu que não havia entendido a inevitabilidade da desgraça que a aguardava, caso ela resolvesse voltar para a União Soviética com a família, como fez em 1939.

A separação tornou tudo repleto. O que teriam dito Rilke e Tsvetáieva um para o outro, caso se encontrassem de fato? Sabemos o que Pasternak não disse para Tsvetáieva quando se reencontraram rapidamente após treze anos, em junho de 1935, no dia em que ele chegou a Paris no terrível papel de delegado soviético oficial para o Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura: não a avisou que não devia voltar para Moscou, não devia pensar em voltar.

Talvez os êxtases canalizados nessa correspondência pudessem apenas ser expressos em separado, e em resposta à maneira como eles se frustraram mutuamente (assim como os grandes escritores invariavelmente exigem demais dos leitores e são frustrados por eles). Nada consegue empalidecer a incandescência daquelas trocas ao longo de alguns meses, no ano de 1926, quando eles se exprimiam com veemência uns para os outros e faziam suas exigências impossíveis, gloriosas. Hoje, quando “tudo está naufragando na vulgaridade” — a expressão é de Pasternak —, seus entusiasmos e sua perseverança parecem uma jangada, um farol, uma praia.

* Metropolis foi filmado em 1926 e estreou em janeiro de 1927. (N. E.)


 

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Susan Sontag - A história de Susan



36. A história de Susan

Sontag produziu Esperando Godot em 1993, em sua segunda visita a Sarajevo. Ela voltaria à Bósnia mais sete vezes antes do final de 1995, quando os Acordos de Dayton foram assinados numa base da Força Aérea em Ohio. O acordo pôs fim ao cerco, mas repartiu a Bósnia nos enclaves produzidos por “limpeza étnica” e tornou o país estagnado em termos econômicos e impotente em termos políticos. Durante os anos do cerco, a vida de Susan estaria ligada de forma inextricável à da Bósnia, e suas ações heroicas prosseguiriam inteiramente sem a publicidade que Godot havia trazido.

A cada viagem, ela trazia maços e maços de marcos alemães, a moeda extraoficial da Bósnia, escondidos em suas roupas, e os distribuía a escritores, atores e associações humanitárias. Trazia cartas a um lugar que estava isolado do mundo e não tinha um correio operante, e levava outras de volta quando saía de lá. Ganhou em 1994 o prêmio Montblanc de la Culture, de patrocínio das artes, e destinou o valor em dinheiro a Sarajevo. Ela tentou criar uma escola de ensino fundamental para crianças impossibilitadas de assistir às aulas por causa da guerra; falou sem parar em defesa da causa bósnia na Europa e nos Estados Unidos; importunou amigos em altas posições para que ajudassem pessoas a escapar de Sarajevo.

Quando teve seu pedido de visto recusado pela embaixada norte-americana em Zagreb, Atka Kafedzić pegou o telefone. “Me dê meia hora e depois volte à embaixada”, ordenou Susan. O visto, desnecessário dizer, foi concedido e acabou ajudando a família toda de Atka, catorze pessoas, a iniciar uma vida nova na Nova Zelândia. Por intermédio do PEN canadense, ela ajudou o poeta Goran Simić, sua esposa Amela e os dois filhos do casal a chegarem ao Canadá. “Susan até organizou a festa de inauguração do novo lar”, diz Ferida Duraković — e para Ferida, que ficou grávida durante a guerra, Susan trouxe montanhas de vitaminas e remédios do pré-natal. E ajudou Hasan Gluhić a fugir para os Estados Unidos, uma vez que seu trabalho como motorista dela durante o período de Godot o colocara em perigo: “Os fundamentalistas [islâmicos] estavam contra ela e contra a peça”, escreveu ele num depoimento oficial do pedido de asilo nos Estados Unidos.

Em 3 de janeiro de 1994, cheguei em casa do trabalho e encontrei minha mulher aos prantos e meus filhos tremendo de medo. Na porta da minha casa tinham sido pichadas as palavras “traidor” e “herege”. No trabalho, no dia seguinte, encontrei na minha mesa um bilhete que dizia: “Gluhić: Lembre-se do que aconteceu a Salman Rushdie. Uma Bósnia islâmica não tem lugar para gente como você”.

Os arquivos de Sontag trazem provas de seus mais de dois anos de esforços em prol de Gluhić. Ela escreveu a todo mundo, do senador Daniel Patrick Moynihan, que providenciou uma moção de interesse público, à Little Red School House, uma escola privada de Nova York, para pedir a admissão dos filhos de Gluhić. E encontrou para ele um emprego junto a Annie Leibovitz.

“Se não tivesse visto eu não acreditaria”, diz John Burns. “Susan se tornou tremendamente popular. Havia uma enorme desenvoltura em seu modo de ser, e nenhum traço de superioridade.” Pašović a conhecia fora da Bósnia e compreendia que, em lugares como Nova York, ela precisava manter certa distância. “Ela não permitia muita proximidade, mas esse era o seu modo de filtrar as pessoas”, diz ele. “Aqui aquela atitude dela desaparecia. 

Ela era simplesmente normal, e as pessoas interagiam com ela.” Um símbolo dessa normalidade era sua recusa em usar um colete à prova de balas. O gesto ficou na lembrança de dezenas de bósnios, para os quais aquele era um modo de enfatizar a igualdade dela com os demais, sua disposição para enfrentar os mesmos riscos — de ser morta, de ser mutilada — que eles enfrentavam todos os dias. Para Miranda Spieler, que estava trabalhando para ela naquela época em Nova York, “ela dizia que gostava do fato de poder ser atingida. Falava sobre como, em certo sentido, era excitante para ela o fato de ser capaz de morrer”.

Duraković relembra a intensa camaradagem e os muitos sentimentos positivos que a guerra suscitava:

Ela trazia bebida e tínhamos conversas maravilhosas, e uma das principais perguntas que ela me fez foi: “Qual é seu sentimento quanto à vida sob o cerco? Você está frustrada? Está deprimida?”. Eu disse: “Nunca na vida” — eu estava com 36 anos —, “nunca na vida me senti tão viva. Eu me sinto maravilhosamente bem. Quero viver, quero escrever, quero ver o dia nascer, quero encontrar pessoas. Tenho fome disso”. E ela disse: “Que interessante, porque quando tive câncer foi a primeira vez na minha vida que pensei no quanto a vida é maravilhosa”.

Kasia Gorska viu a mudança que Sarajevo trouxe a ela. “Quando voltou para cá, ela estava simplesmente plena de energia. Emanava aquela força advinda de estar bem no centro daqueles acontecimentos.” Em 1994, no meio da guerra, ela deu início a um romance chamado Na América, que, quando publicado, em 2000, seria dedicado “A meus amigos em Sarajevo” — e “aquele livro estava repleto de Sarajevo, repleto da energia de Sarajevo”, diz Duraković. “Ela estava cheia de vida aqui.”

Mas, assim como o sucesso e o dinheiro a tornavam infeliz e impiedosa, seu propósito recém-descoberto azedou. Sua acusação aos intelectuais que deixavam de se engajar ao lado da Bósnia indispôs as mesmas pessoas que ela estava tentando recrutar. Se o seu ativismo era uma inspiração, ela o brandia como um dedo acusador, o que era desastroso, porque não havia modo de contestar a análise que ela propôs em 1995:

O individualismo e o culto de si mesmo e do bem-estar privado — em que figura, acima de tudo, o ideal da “saúde” — são os valores mais aptos a receberem o aval dos intelectuais. (“Como você pode passar tanto tempo num lugar onde as pessoas fumam o tempo todo?”, perguntou alguém aqui em Nova York ao meu filho, o escritor David Rieff, referindo-se a suas frequentes viagens à Bósnia.) Seria excessivo esperar que o triunfo do capitalismo consumista deixasse intacta a classe dos intelectuais. Na era do consumo, há de ser mais difícil para os intelectuais, que nada têm de marginais nem de empobrecidos, identificar-se com pessoas menos afortunadas.

Como muitos que haviam testemunhado coisas terríveis, Susan tinha dificuldade para tirar da cabeça suas experiências. Achava difícil, também, estar perto de gente “que não quer saber o que você sabe, não quer que você fale sobre os sentimentos, a perplexidade, o terror e a humilhação dos habitantes da cidade que você acabou de deixar para trás”, escreveu ela em 1995. “Você descobre que as únicas pessoas com quem se sente confortável são aquelas que também estiveram na Bósnia. Ou em alguma outra carnificina.”

Tudo isso era perfeitamente compreensível. Mas se tornou menos compreensível quando, dois anos depois, essa mesma análise a levou a dizer a outros intelectuais, sem rodeios, que calassem a boca.

"Você não tem direito de manifestar publicamente uma opinião a menos que tenha estado lá, que tenha experimentado em primeira mão, no próprio local e por um tempo considerável, o país, a guerra, a injustiça, ou seja qual for o assunto de que está falando. Na ausência de tal conhecimento e de tal experiência em primeira mão: silêncio."

Mas uma pessoa não tinha o direito de deplorar o cerco de Sarajevo sem ter experimentado pessoalmente o “seja qual for” que estava sendo infligido? Não havia nada a ser aprendido sobre o mundo que viesse da literatura, do cinema ou da fotografia — em suma, da arte?

A polícia saiu de folga. “Tudo o que ela dizia sobre a Bósnia era admirável”, diz Stephen Koch. “Seu comportamento a esse respeito era difícil de suportar. Porque se você não tivesse ido a Sarajevo, estava claro que não passava de um ser moralmente inferior. E ela deixava isso muito claro, com uma atitude de superioridade quase zombeteira.” A necessidade de invulnerabilidade moral que levara no passado a flertes com causas políticas questionáveis agora suscitava um comportamento que ofendia pessoas que, de resto, eram solidárias e admiradoras.

Sua atitude podia beirar o cômico, escreveu Terry Castle, que a encontrou “na rua principal, cafoninha e lotada de butiques, de Palo Alto”

Sontag estava vestindo o figurino de diva intelectual que era sua marca registrada: uma blusa preta volumosa e calças pretas folgadas e macias, tendo como acessórios uma porção de lenços exóticos revoltos. Ela os ajustava o tempo todo, ou os arremessava imperiosamente sobre um ombro, parando de quando em quando para dar um trago num cigarro ou soltar uma torrente de tosse catarrosa. (O famoso “look” Sontag sempre me lembra a indicação de palco em Uma mulher do outro mundo: “Entra Madame Arcati, vestindo joias selvagens”.) […]

Ela vinha me falando sobre o cerco e comentando que uma mulher iugoslava com quem buscara abrigo lhe pedira um autógrafo, mesmo quando as bombas caíam ao redor delas. Ela se deleitava com a óbvia inteligência da mulher (“Claro, Terry, que ela havia lido O amante do vulcão, e, como todos os europeus, o admirava tremendamente”) e com seu próprio sangue-frio no episódio. Então se interrompeu abruptamente e perguntou, com fisionomia contraída, se eu alguma vez tive que escapar de francoatiradores. Eu disse não, infelizmente não. De repente ela saiu de si — desembestou numa correria febril, agachando-se entre uma entrada de butique e outra, seus tênis brancos convertidos num borrão, ao longo de toda a rua até a Restoration Hardware e a sorveteria Baskin-Robbins. Cinco ou seis transeuntes perplexos pararam para assistir enquanto ela se agitava de um jeito infantil de um lado para outro, abaixando a cabeça, apontando para atiradores imaginários em cima dos telhados e gesticulando desvairadamente para que eu a seguisse.

Mas ela foi além da comédia involuntária. Numa festa em Nova York, seu comportamento fez com que Salman Rushdie reparasse na cisão da sua personalidade.

Ela era de fato duas Susans, a Susan Boa e a Susan Má, e enquanto a Susan Boa era brilhante, divertida, leal e bastante nobre, a Susan Má podia ser um monstro amedrontador. Um funcionário júnior da agência literária Wylie disse alguma coisa sobre o conflito bósnio que não agradou a Susan, e a Susan Má emergiu rugindo e o agente júnior da Wylie correu o risco de ser devorado.

Richmond Burton via o comportamento antes reservado a Annie Leibovitz transbordar para todas as suas interações, “um complexo de mártir” associado a uma atitude tirânica com as pessoas. “Sua paciência simplesmente se esgotara”, diz ele, “e de algum modo isso estava ligado a Sarajevo. Aquilo meio que se apossou de tudo. Qualquer coisa era motivo para um acesso de fúria. A gente pensava: Não faça isso, Susan. E, no entanto, ela fazia.”

Ela começou a falar de si mesma em termos grandiloquentes:

O que quer que eu fizesse, qualquer que fosse a vocação que eu assumisse, sei que não a assumiria com um espírito egoísta. Se eu tivesse me tornado médica, teria trabalhado num grande hospital — não teria um consultório particular, para ficar sentada num gabinete vendo gente rica chegar com seus probleminhas e ganhando rios de dinheiro. Não, eu teria trabalhado num grande hospital com gente pobre…

“Aconteceu alguma coisa que fez com que ela visse a si mesma como uma figura heroica quase sacrificial, em termos de seu envolvimento em Sarajevo”, diz Burton. “Cheguei a ouvi-la se descrever ao telefone — comparando-se com Joana d’Arc.”

Os anos durante e após seu envolvimento com Sarajevo se tornaram a era dourada da “História de Susan”, cuja protagonista era incapaz de perceber como era percebida.

A mulher que via a si mesma como Joana d’Arc era a mesma que comia tanto caviar no Petrossian, na rua 58, que, nas palavras de Larry McMurtry, “dizimava a espécie”. Uma série de filmes e best-sellers fizera dele um homem rico, e Susan tirava bom proveito de sua boa situação. Uma noite, o voo de McMurtry, vindo de Washington, estava atrasado, e quando ele chegou ao restaurante o maître lhe disse que a srta. Sontag tinha ido embora, deixando-lhe um pedaço de papel: a conta do suntuoso jantar de caviar e vários pratos de que Susan havia se fartado.

Greg Chandler, um novo assistente, testemunhou muitos acessos de mau humor. Um deles aconteceu no verão de 1995, quando ela precisou ir a Madri para o lançamento da edição espanhola de O amante do vulcão. Ela odiava ter que ir. Antes da viagem, entregou a Chandler uma caixa enorme com moedas do mundo todo que vinha colecionando havia décadas, e o instruiu a separar as pesetas. Quando ele finalmente terminou, Susan examinou a triagem e avistou um franco. Brandiu-o de modo acusatório: “Isto é um franco!”, gritou. “Isto é um franco! Que porra eu vou fazer com um franco na Espanha?” Num acesso de fúria, apanhou as moedas e as atirou pela sala toda.

“Limpei devidamente a bagunça”, diz Chandler, “me sentindo como a Christina Crawford.”

“Sempre preferi escrever o mínimo possível sobre minhas relações com minha mãe na última década da sua vida, mas basta dizer que elas foram muitas vezes inamistosas”, reconheceu David.

Mesmo pessoas do entourage de Susan que tinham antipatia ou ressentimento de David concordavam que ele estava numa posição impossível, como mostrava seu envolvimento com a Bósnia. Em 1995, ele publicou Slaughterhouse: Bosnia and the Failure of the West [Matadouro: Bósnia e o fracasso do Ocidente], uma acusação à “comunidade internacional”: as pessoas a que os bósnios se referiam quando faziam a piada “esperando Clinton”. O livro abordava muitas das questões linguísticas que Susan levantara no Vietnã. “Os franceses eram ‘os franceses colonialistas’; os americanos são ‘agressores imperialistas’”, ela escreveu então. Agora, David escrevia que “os chetniks eram agressores fascistas no sentido mais estrito da expressão, e a defesa de Sarajevo foi heroica”. Eles compartilhavam alguns interesses, mas o trabalho de David era o de um jornalista, e não de um esteta, e estava muito mais enraizado na política real do que qualquer coisa que Susan pudesse escrever.

Da perspectiva de David, o envolvimento de Susan na Bósnia era embaraçoso. Em parte porque ele próprio a levara para lá, em parte porque ela não tinha apoiado de modo inequívoco seus escritos. Em janeiro de 1993, Annie organizou um cruzeiro pelo Nilo para o aniversário de sessenta anos de Susan. Entre os convidados estava Howard Hodgkin, que contribuiu com seus quadros para “Assim vivemos agora”, e seu companheiro, Antony Peattie. “Ela ficava falando mal dos escritos [de David], de seus romances, de sua vida”, diz Peattie. E Hodgkin percebeu “o equivalente verbal de cortar as asas do filho sempre que aparecia a oportunidade. Ela era realmente muito desagradável”.

Na Bósnia, David descobrira uma missão. Depois de conhecer refugiados bósnios na Alemanha, ele sentiu “o mais forte sentimento de compulsão que eu já experimentei como escritor… e embarquei num voo para Zagreb”. Confrontado com o horror e a injustiça da guerra bósnia, ele mal conseguia falar de outra coisa. De volta a Nova York, tentou convencer outras pessoas a ir a Sarajevo: “Convidei dezenas de pessoas, mas a única que eu convenci foi minha própria mãe!”.

Ela estava consciente do dilema que sua presença criava para David. Em público, ela cedia o lugar a ele. “Não vou escrever um livro porque acho que nessas questões de família deve haver uma divisão de trabalho — ele escreve o livro”, declarou, em sua primeira visita a Sarajevo. Duas décadas antes, Paul Thek denunciara “a instauração da dinastia Sontag nas Letras Americanas”. Agora, ela ainda pensava na escrita como uma “questão de família”. De início, ela tentou se manter à parte, “porque julgava que aquela era a história de David”, diz Haris Pašović, “mas depois foi inevitável que ela também escrevesse sobre o assunto”. David apenas disse: “Não era uma promessa que ela tivesse condições de cumprir”.

Mesmo antes de ela partir para lá, ele sabia que, caso ela se envolvesse, “seu papel iria inevitavelmente eclipsar o meu”.

Eu estava orgulhoso do que fizera na Bósnia. Eu trabalhara predominantemente no norte, na Banja Luka ocupada pelos sérvios e em torno dos campos de prisioneiros — uma parte terrível do mundo na época. Tinha corrido enormes riscos físicos e pago caro por essa minha disposição (fui gravemente ferido, e para todos os efeitos poderia ter morrido, no outono de 1992 perto de Zenica, na Bósnia Central). E a Bósnia era a minha causa — talvez a única em que acreditei plenamente.

Mas ele tinha uma escolha clara a fazer. “O que era mais importante, a atenção que Sarajevo atrairia se minha mãe assumisse a causa bósnia e trabalhasse lá, ou meu próprio ego e ambição? A Bósnia era infinitamente mais importante que o meu desejo de não ser eclipsado por minha mãe.” David teve o cuidado de dar a Susan o crédito pelo que ela realizou em Sarajevo, mas o que era bom para a Bósnia não era necessariamente bom para o relacionamento entre eles.

Estávamos apartados, mas não houve uma ruptura. Ainda nos víamos, e há momentos nos diários em que ela fala, antes da Bósnia, sobre eu não estar disponível, de eu estar menos presente para ela. Não foi como um golpe do martelo de Thor, como se a Bósnia tivesse feito tudo mudar de repente entre nós. Mas o fato é que não ajudou.

Ela sabia disso — “sentia-se como se estivesse roubando o impacto de David”, conforme confidenciou à irmã — mas, como aconteceu tantas vezes, mostrou-se incapaz de tornar emocionalmente útil algo que ela podia dominar intelectualmente. Mesmo passados sete anos do fim do cerco, quando ela estava preparando seu último livro, Diante da dor dos outros, ela escreveu a seu amigo Paolo Dilonardo:

David se importa, e muito, com o fato de eu fazer esse livro. Para ele, é uma continuação da traição de “Esperando Godot em Sarajevo”, que ele me pediu, em 1993, para não escrever, depois que eu já o prometera para a NYRB [New York Review of Books]. Na noite passada, no Honmura An: “Será que você não podia deixar esse cantinho do mundo como meu assunto?”. Isto é: guerra. Quando eu disse “Mas é uma continuação de Sobre fotografia”, ele respondeu: é sobre história, e sobre guerra, e você não sabe nada de história. Você recebeu tudo isso de mim etc. Você está invadindo meu território.
Estou mortificada. Mas não há nada que eu possa fazer.

Nada que eu possa fazer: a frase remete às mesmas perguntas sobre a utilidade da arte suscitadas por Sarajevo. Qual era o cerne da questão? “A arte estava lá para tornar você uma pessoa mais sensível e mais humana”, diz sua amiga Senada Kreso. “A arte pode fazer você chorar, pode te alegrar, pode te entristecer, mas não pode ajudar.” A arte, por si só, não tinha como arregimentar os exércitos que Sarajevo demandava. Mas, como mostravam muitos dos relacionamentos de Susan — consigo mesma, com os outros —, ela nem sempre podia tornar uma pessoa mais humana.

“Como a gente deveria viver?”, ela perguntava em seu diário no auge do cerco à cidade. “A grande questão da literatura russa do século XIX… Vivo sob a égide da literatura russa do século XIX.” Sontag sempre se voltara para a literatura, para a arte, para ajudá-la a responder àquela pergunta. A arte oferecia um modelo de solidariedade. Mas estetizar é distorcer, ela sustentou ao longo da vida. E sua própria vida ilustra essa tese de modo mais eloquente que qualquer coisa que tenha escrito. Será que a metáfora aprofunda a relação da pessoa com a realidade — ou, pelo contrário, a deturpa e polui? Dito de outra maneira: Dostoiévski pode ajudá-la a se entender com o filho?

Era isso que ela sustentava em 2002, descrevendo “o papel da literatura em si” como meio “de ampliar nossas simpatias; de educar o coração e a mente; de garantir e aprofundar a consciência (com todas as suas consequências) de que outras pessoas, pessoas diferentes de nós, existem de verdade”. No entanto, aprender a respeito de sua vida em seus últimos anos é ver que tal consciência não pode ser assegurada por meio da arte. Na ausência de uma empatia inata, nenhuma quantidade de metáfora pode ajudar, e nenhuma quantidade de conhecimento literário — e quem o tinha mais do que ela? — pode substituir a capacidade de enxergar o outro. Anos depois de ter confidenciado que não era “muito perspicaz quanto às outras pessoas, quanto ao que elas estão pensando e fazendo”, depois de ter dito “estou certa de que tenho em mim a necessidade de ser empática e intuitiva”, ela ainda não havia aprendido a empatia.

Se as histórias em torno de Susan naqueles anos falavam de insensibilidade, falavam também, cada vez mais, de crueldade. Ela não tolerava nem a mais delicada interferência e se esquivava da intimidade toda vez que seus amigos tentavam insinuá-la, como fez sua assistente Karla Eoff um dia, quando ajudava Susan a arrumar as malas para uma viagem. Estavam fazendo brincadeiras, como tinham feito em tempos passados, e Karla, tentando introduzir uma conversa séria, disse: “Susan, é muito bom ter você de volta comigo”. Susan respondeu:

“Só vou me ausentar por alguns dias.” Eu disse: “Não é disso que estou falando. Uma parte de você se afastou, e não vejo a verdadeira Susan com a frequência que eu gostaria, e estou sentindo muita falta dela. É doloroso estar por perto da outra Susan”. Ela disse: “Não sei do que você está falando!”, se levantou e foi embora.

 

“Ela não tinha amigos habituais” em meados dos anos 1990, diz Miranda Spieler. “Estava bastante isolada.” Em 27 de janeiro de 1996, com um volume da Antologia grega de Loeb aberta sobre sua mesa, Brodsky morrera em Nova York. “Estou completamente só”, Susan disse a Marilù Eustachio. “Não tenho com quem conversar, ninguém com quem possa trocar minhas ideias, meus pensamentos.” Brodsky era uma das poucas pessoas que ela admitia como superiores. Agora ele não existia mais.

Em Sobre fotografia, ela escrevera a respeito de “como se tornou plausível, em situações em que o fotógrafo deve escolher entre uma fotografia e uma vida, ele escolher a fotografia”. Agora também ela escolhia a personalidade warholizada, o oposto do que ela havia considerado a meta da obra de Cioran, “impedir que a vida da gente seja transformada num objeto, numa coisa”. Cada vez mais, ela interagia com outros igualmente estetizados. Leon Wieseltier ficou espantado, uma noite, ao ouvir que ela havia estado com Debbie Harry, a vocalista do Blondie. “Ela entrou naquele universo em que a pessoa conhecia Mick Jagger, mas não conhecia os Stones. É um mundo de celebridades. Todos são grandes amigos, e ninguém conhece ninguém.”

Naquele mundo, se alguém fosse famosa o bastante, as regras que submetiam as pessoas comuns não vigoravam mais. Mas, em troca dessa liberdade, a pessoa tinha que escolher a fotografia — a imagem — em detrimento da vida; e isso, como escrevera a jovem Sontag em O benfeitor, era uma espécie de morte.

Ele está acabado: envelhecido, trespassado pelo grande olhar fixo do público, congelado. Agora é completamente famoso. Todos riem de suas zombarias, ele não ofende mais ninguém. Seus atos se transformaram em poses.

O livro seguinte de Sontag, que ela começou em 1994, era sobre uma mulher que ocupava o olhar do público sem dor nem ambivalência, “completamente famosa”.