INTRODUÇÃO
Os ensaios reunidos neste livro foram escritos entre setembro de 2019 e fevereiro de 2022, cobrindo, portanto, um período de dois anos e meio, que coincidiu tanto com a maior parte do mandato presidencial de Jair Bolsonaro como com o início e (esperamos) o auge da pandemia da covid-19. Sua gestação, no entanto, foi um pouco mais longa e complexa. O germe de algumas das ideias desenvolvidas aqui já estava comigo pelo menos desde a campanha eleitoral de 2018, quando os eventos no Brasil me apanharam na costa leste dos Estados Unidos, durante uma temporada na Brown University, aonde eu havia ido para trabalhar em outro livro. A produção deste último, que me manteria ocupado até o início de 2020, me impediria de dar vazão a boa parte destas ideias no calor da hora.
Essa relativa distância das polêmicas do dia a dia resultava em um modo diferente de perceber o momento como um todo e, particularmente, o fenômeno do bolsonarismo. Por trás de cada gesto, fala ou medida do novo governo, o que me interessava era entender o pano de fundo das dinâmicas de mais longa escala em que eles se encaixavam. Com isso, o que se insinuava era a oportunidade – e o desafio – de construir o bolsonarismo, a ascensão global da extrema direita e as polarizações políticas da última década como objetos de estudo complexos, multifacetados, compostos de diferentes dimensões e temporalidades, sem a pretensão de encontrar soluções imediatas ou grandes chaves gerais a partir das quais explicá-los.
Se esta reflexão aparece com algum atraso em relação a outros livros que buscaram oferecer respostas mais diretas e tempestivas, não creio que essa demora implique uma perda de urgência. Uma derrota do bolsonarismo nas urnas não o fará desaparecer, e menos ainda as condições que têm alimentado a extrema direita no Brasil e no mundo.
Aquilo que estamos vivendo tem raízes suficientemente profundas para que uma simples mudança de orientação política no topo não baste para mudar o que ocorre na base da sociedade, e um possível sucesso da esquerda será apenas o início de um período em que não só as condições serão menos favoráveis do que foram vinte anos atrás, como haverá muito mais em jogo. Uma análise que tenta dar conta de diferentes níveis e escalas talvez possa revelar-se, então, como um guia útil para esse período.
Embora escritos em ocasiões diferentes, conforme as oportunidades se apresentavam, a maioria dos ensaios reunidos aqui são como partes de um único texto que, na impossibilidade de ser escrito de maneira contínua, foi existindo aos poucos, como que extraído de um fluxo maior.
O primeiro capítulo, em particular, é uma espécie de mapa geral ou hipertexto do qual os três capítulos seguintes são zonas em detalhe, links nos quais se pode clicar para se aprofundar um pouco mais em um ou outro tema. Assim, por exemplo, o capítulo 1 conclui falando do negacionismo como um fator afetivo central do nosso tempo, um componente essencial de nosso estado anímico coletivo; e é justamente sobre esse tema, e sua relação com as fantasias mobilizadas pela extrema direita, que o capítulo 2 se debruça.
Do mesmo modo, o capítulo 4 desenvolve a ideia da relação entre bolsonarismo e empreendedorismo, e do bolsonarismo como fenômeno em si mesmo empreendorístico, esboçada no primeiro.
Já a relação do capítulo 3 com os demais é um pouco diversa. Por um lado, trata-se do único texto reunido aqui que está mais diretamente ligado a um evento específico: a performance de inspiração nazista que encerrou a breve passagem do secretário da Cultura Roberto Alvim pelo governo Bolsonaro, no longínquo mês de janeiro de 2020.
Por outro lado, o artigo explora uma relação implícita com o ensaio de abertura, já que a figura do troll concentra em um complexo várias das condições afetivas às quais aquele faz alusão (dissociação, dessensitização), e seu emprego tático depende não apenas de certa infraestrutura comunicacional mas também de dinâmicas (de captura da atenção, de formação de in- e out-groups, de “memeficação” da realidade) cuja influência sobre nossa “noosfera” – para retomar a expressão de Deleuze e Guattari recuperada por Maurizio Lazzarato – foi generalizada pelo ambiente altamente midiatizado em que vivemos.Se o nexo entre os dois textos ficou menos evidente, isso foi menos por desígnio que pela pressão externa do acaso. Não tendo encontrado uma boa maneira de expandir o terceiro capítulo de modo a transformá-lo em uma análise mais ampla de como a web 2.0 alterou as condições estruturais e subjetivas em que fazemos política e nos relacionamos uns com os outros, optei por retocá-lo minimamente, deixando
este objetivo mais amplo para outra oportunidade.
Tais relações ajudam a explicar, também, a organização temática do livro e o fato de que ele começa in medias res, discutindo o bolsonarismo, para depois recuar progressivamente no tempo. Assim, o capítulo 5 discute a questão da “polarização” política, tópico onipresente no período entre a campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff e as eleições de 2018, fazendo uma genealogia do uso desse termo para propor outro diagnóstico do problema que ele designa. O capítulo 6, que dá nome ao livro, aborda, pela via indireta da comparação entre a filmografia recente e aquela provocada pelo golpe de 1964, a reação da esquerda brasileira à chicana parlamentar que derrubou a presidente petista em 2016, identificando um sintomático mal-entendido na comparação entre os dois períodos.
Finalmente, o capítulo 7 remonta a Junho de 2013 a fim de investigar o grande enigma da política brasileira da última década: o que aconteceu para nos levar, no curto espaço de cinco anos, do maior movimento de massas desde a redemocratização a uma contraofensiva brutal da classe dominante assistida sem reação por muitos – e entusiasticamente apoiada por outros tantos?
O que essa organização temporal regressiva faz é expandir, lateral e verticalmente, o objeto delineado nos capítulos iniciais, preenchendo-lhe o contexto sincrônico e diacrônico, situando os outros com que o bolsonarismo interage (a esquerda, o “centro” liberal) e identificando os processos por meio dos quais esses diferentes polos, suas identidades e estratégias, foram se constituindo ao longo da última década.
Mas esse movimento retrospectivo é também um recurso que permite um redirecionamento para o futuro.
Primeiro, no sentido de assumir uma posição definida diante da pergunta mais importante quando a discussão é 2013 e seus desdobramentos: era necessário que tudo desse no que deu? Essa questão é fundamental na medida em que sua resposta determina os limites daquilo que imaginamos ser politicamente possível, e se havia algo que poderia ter sido feito para que as coisas tomassem outro rumo. Responder à pergunta na negativa – o resultado efetivamente negativo era evitável – implica automaticamente abrir cenários alternativos dos quais podemos, pela comparação com aquele que se realizou, extrair lições para outras situações por vir. Quem diz “poderia ter sido diferente” também diz “poderíamos ter feito outras escolhas”. No entanto, a extrema dificuldade de tirar lições de 2013 que os mais variados setores da esquerda demonstram sugere que há ali um núcleo traumático em que o pensamento trava sem conseguir avançar.
Portanto, retornar a esse ponto do passado recente também é importante porque elaborar esses traumas é condição para liberar o pensamento e a ação. E isso é essencial porque os desafios que a esquerda encontrará num possível retorno ao poder são muito distintos daqueles de duas décadas atrás – e permanecer preso à incapacidade de superar os eventos dos últimos anos, ou às certezas de um período que já se esgotou, impede-nos de encará-los como se deve. A expressão “do transe à vertigem”, que aparece no capítulo 6 em referência às diferentes reações da esquerda a duas grandes derrotas históricas, 1964 e 2016, funciona, assim, em outro sentido no contexto do livro como um todo: a passagem do transe do presente (negacionismo, teorias conspiratórias, sofrimento psíquico, a grande dessublimação dos desejos fascistas) à vertigem de confrontar as questões ainda mais sérias e profundas que estão por trás dele.
É nessa direção futura, finalmente, que estes textos, mesmo quando se resumem a analisar aquilo que existe, pretendem apontar. Mas isso não é a única coisa que eles têm em comum; alguns temas, ideias e abordagens se mantêm constantes ao longo do livro. Para começar, há a referência a um pano de fundo compartilhado por todos os processos analisados aqui: o contexto global aberto pela crise financeira de 2008, no interior do qual tiveram lugar tanto o ciclo de protestos que se iniciou com a Primavera Árabe em 2011 como a ascensão da extrema direita. O destaque dado à Grande Recessão não deriva de um determinismo econômico simplista que supõe uma relação linear entre piora das condições de vida e aumento da mobilização social. Ele é consequência, ao contrário, do entendimento de que, para além de seus efeitos materiais imediatos, os eventos de quase quinze anos atrás inauguraram um momento histórico em que a intensificação de algumas das tendências mais deletérias do neoliberalismo coincide com uma crise de legitimidade deste último e, por extensão, de sistemas e partidos políticos que permanecem incapazes de colocá-lo em questão. É essa conjuntura mais ampla que serve para explicar por que, mundialmente, a política na última década tendeu aos extremos, desestabilizando aquilo que se constituíra, desde a consolidação da hegemonia neoliberal nos anos 1990, como seu centro de gravidade “natural”. É ela, ainda, que nos ajuda a compreender o recrudescimento recente das “guerras culturais” que acompanharam a ascensão de figuras como Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 1980, e que hoje são mobilizadas pela extrema direita para defender uma forma ainda mais extrema de privatização dos riscos e de suspensão das proteções sociais contra o neoliberalismo “progressista” ou “normativo” – para tomar as expressões de Nancy Fraser e Will Davies, respectivamente – que foi dominante dos anos 1990 até 2008.
A crise de legitimidade do neoliberalismo tem um aspecto simbólico e outro material. O simbólico decorre da maneira como a resposta estatal ao colapso financeiro, que protegeu aqueles que o causaram e transferiu os custos do resgate econômico para a população em geral, escancarou a convertibilidade do poder econômico em poder político que torna as promessas de uma ordem estritamente meritocrática e autorregulada inevitavelmente falsas. Ao contrário do que afiançava o ordoliberal alemão Wilhelm Röpke, a desigualdade não é, no fim das contas, a mesma para todos. Mas a outra coisa que 2008 expôs foi o vazio por sob os pés do sistema econômico mundial. Se a financeirização introduzida a partir dos anos 1970 foi uma tentativa de sustentar os lucros do capital e o consentimento da população num cenário em que a expansão do pós-guerra começava a se esgotar, o que a debacle do fim da década retrasada fez ver é que não só o problema de fundo continua irresoluto como a última solução encontrada para “comprar tempo” gerou seus próprios problemas. Por um lado, a taxa de crescimento da economia global continua em queda há cinco décadas. Por outro, desde a segunda metade dos anos 1990 temos assistido ao “espetáculo extraordinário de uma economia mundial em que a continuidade da acumulação de capital passou a literalmente depender de ondas especulativas de dimensões históricas”, financiadas pela oferta de crédito barato que simultaneamente soterrou famílias e corporações em dívidas e tornou o sistema global muito mais sujeito a crises. Se não destruiu a fé nesse arranjo por completo, a revelação dessa fragilidade, a falta de uma receita alternativa para pôr em seu lugar, e o aumento do subemprego e da precarização que veio com a retomada pós-recessão não só tornaram as promessas de prosperidade futura menos críveis como demonstraram o quão facilmente elas podem ser rescindidas. Basta lembrar que, nos Estados Unidos apenas, mais de 6 milhões de famílias que haviam sido atraídas para a bolha especulativa do mercado imobiliário pela miragem da casa própria acabaram despejadas.
Essa crise de legitimidade, no entanto, não implica necessariamente um recuo do neoliberalismo. Pelo contrário, a austeridade da última década representou sua intensificação, e ainda não está claro que o expansionismo fiscal instigado pela pandemia vá significar uma inflexão real a longo prazo. Isso se explica, em parte, pelo relativo descompasso entre instituições políticas e sociedade. Dado que a crise de legitimidade não gerou um desafio suficientemente forte à ascendência do capital financeiro e corporativo, esses setores continuam capazes de impor sua vontade à população em geral, e é justamente porque viram seu poder balançar, mas não cair, que eles agora o usam para pisar no acelerador em vez do freio. (Esse descompasso, como sugiro no capítulo 2, é uma das explicações possíveis para a popularidade da figura do zumbi na cultura popular da última década.) Mas há um outro descompasso que passa por dentro da própria sociedade ou, antes, de cada indivíduo: o abalo simbólico e material sofrido pela autoridade do neoliberalismo se encontra parcialmente cancelado pela hegemonia neoliberal no campo dos afetos – e a atenção a essa dimensão afetiva da vida social é outra das constantes neste livro.
Aquilo a que me refiro é a dimensão constituída pelos efeitos que as experiências por que passam os indivíduos produzem em seus prazeres, desprazeres e desejos, estabelecendo, ao longo do tempo, amores, ódios, medos, esperanças, objetos de repulsa e de admiração. Na medida em que afetos são produtos de interações, e as interações são sempre condicionadas (e até certo ponto fixadas e padronizadas) pelos arranjos materiais que determinam nosso lugar no mundo e por instituições como a família, a polícia e o trabalho assalariado, o afetivo nunca é simplesmente privado: ele é sempre social. Contudo, não se trata de fazer do afeto um dado bruto e imediato. Na verdade, afetos sempre se encontram numa relação circular com os sistemas (de novo, nunca meramente individuais) mediante os quais interpretamos, concatenamos e justificamos aquilo que nos acontece. A regularidade de nossas experiências produz afetos que consolidam esquemas valorativos, mas esses esquemas valorativos podem continuar operando mesmo quando elementos da experiência vivida começam a entrar em contradição com eles.
É essa força inercial do hábito que explica o descompasso mencionado acima. O nosso é um tempo em que convivem, lado a lado, um sentimento difuso de que, por diversos motivos, as coisas não podem continuar como estão (e que, se continuam, é simplesmente porque quem delas se beneficia tem a força necessária para impor sua vontade); e a sensação de que as coisas não poderiam ser de outro jeito, sustentada pelo fato de que o modo como vivemos, nos relacionamos e nos compreendemos está completamente atravessado por dispositivos como o consumo, o individualismo, a concorrência, o punitivismo e o “empreendedorismo de si mesmo”. Se de um ponto de vista mais ou menos consciente (ainda que frequentemente renegado), as promessas de boa vida do capitalismo contemporâneo parecem cada vez mais suspeitas, nossa “servidão passional” ao atual estado de coisas permanece profundamente enraizada – mesmo entre aqueles que conscientemente se opõem a ele.
Esse conflito produz monstros, como o negacionismo (no sentido que dou à palavra nos capítulos 1 e 2), o niilismo casual do troll (capítulo 3) e a proliferação de fraudes e contos do vigário, característica do “empreendedorismo político” que marcou a ascensão da extrema direita (capítulo 4) e cada vez mais ubíqua na cultura contemporânea. Com efeito, se fôssemos reduzir os dois caminhos que se abrem a partir da atual conjuntura a fórmulas simples, poderíamos dizer que enquanto à esquerda caberia propor um jogo alternativo àquele que se esgotou, à extrema direita basta assumir que, quando a competição se torna cada vez mais questão de vida ou morte, excluir os adversários se torna uma opção válida.
Trata-se, em resumo, de don’t hate the player, hate the game [não odeie o jogador, odeie o jogo] contra don’t hate the game, hate the other players [não odeie o jogo, odeie os outros jogadores] – sendo que a segunda opção tem a grande vantagem de estar de acordo com a tendência natural das coisas hoje.
Da escolha por atentar à dimensão afetiva seguem algumas consequências que também perpassam estes ensaios. Para começar, a ênfase na necessidade do perspectivismo para a política. Se a afetividade nos constitui como indivíduos dotados de hábitos e disposições ao mesmo tempo únicos (porque pertencem a nossa experiência singular) e largamente compartilhados (com aqueles cujas condições de vida se assemelham às nossas), é de se esperar que o espaço político se apresente de maneiras distintas conforme o lugar desde onde se olha.
Isso quer dizer que ideias, práticas, palavras de ordem e mesmo personagens públicos podem aparecer de diferentes maneiras para diferentes pessoas, e apreender o sistema dessas variações é essencial para saber se mover entre diferentes pontos. Esse é um elemento crucial para a compreensão do bolsonarismo (capítulo 1) e mais ainda da polarização política (capítulo 6), que supõe justamente a tendência de diferentes perspectivas a se organizarem cada vez mais por oposição uma à outra. Dois corolários dessa abordagem, que aparecem em mais de uma análise proposta aqui, são o aspecto fundamentalmente comparativo da experiência de classe e a distinção entre radicalização programática e radicalização identitária.
O primeiro desses pontos se refere ao fato de que as comparações que as pessoas fazem de suas condições de vida atuais com sua situação anterior, sua posição esperada e a realidade daqueles em sua vizinhança imediata são determinantes para o modo como elas identificam seus interesses e respondem politicamente a diferentes cenários.
É isso que explica que mesmo grupos cuja vida melhorou possam sentir-se pior se outros a sua volta aparentam ter se beneficiado mais (capítulo 4); que protestos ocorram não porque as coisas pioraram, mas porque as expectativas cresceram (capítulo 7); e é também o que facilita a manobra da extrema direita de associar as perdas que muitos têm acumulado aos ganhos relativos obtidos por minorias e setores historicamente marginalizados (capítulos 1 e 5).
O segundo ponto, por sua vez, chama atenção para o risco de confundir a adesão a princípios e valores de esquerda com a adesão a um conjunto de marcadores externos que compõem uma identidade (códigos linguísticos, preferências estéticas, objetos de amor e ódio).
Por mais que a fronteira entre as duas coisas possa ser fluida, a capacidade de diferenciá-las importa por motivos que aparecem de diferentes maneiras nos capítulos 5, 6 e 7.
Um deles é que, ao permitir identificar situações em que os obstáculos à comunicação estão mais no nível das associações e dos preconceitos que dos conteúdos, essa capacidade ajuda tanto a evitar que a forma com que se comunica uma mensagem acabe por impedir que ela chegue aos destinatários, como a descobrir possibilidades de diálogo e convergência mesmo quando os interlocutores não falam exatamente a mesma língua. Outro é o fato de ela revelar o erro, muito comum à esquerda, que consiste em tratar as identidades políticas como plenamente constituídas, de tal maneira que, de uma diferença de vocabulário ou gosto, seria automaticamente possível deduzir um conjunto completo de crenças e convicções.
Conforme sugiro no capítulo 5, apenas aqueles que entendem a orientação política como elemento central da própria identidade costumam pretender que todas as suas posições sejam consistentes entre si. A maioria das pessoas, para quem a política é menos relevante, tende a ser menos consistente, mas por isso mesmo suas ideias e atitudes contêm contradições a serem exploradas.
Por último, discernir entre os dois tipos de radicalização nos ajuda a perceber que frequentemente a ênfase na própria identidade política é uma maneira de compensar seja a falta de capacidade de incidir efetivamente sobre uma conjuntura, seja a falta de um programa que se diferencie substantivamente do status quo. No segundo caso, temos a captura liberal das chamadas pautas “identitárias” pelo “neoliberalismo progressista”, tanto mais estridente em ressaltar as virtudes morais de sua política de
reconhecimento quanto menos tem a propor do ponto de vista da distribuição da riqueza. No primeiro, temos a captura dos desejos de transformação por um “capitalismo comunicativo” que tende a fazer da expressão pública de nossa individualidade (construída a partir de uma série de pertencimentos) um substituto da ação política: participar equivale a ser visto participando na mídia e nas redes sociais.
Ambas são aspectos facilmente reconhecíveis do presente.
Para deixar claro, opor “programa” a “identidade” não implica um retorno incoerente a um racionalismo segundo o qual bastaria apresentar um conjunto de propostas convincentes para conquistar as pessoas. (Pelo contrário: apontar o modo como a afetividade condiciona a recepção das mensagens serve precisamente para impedir que o convencimento seja pensado como uma simples questão de razoabilidade.) A questão aqui é dupla. Por um lado, uma identidade tem apelo reduzido, ou mesmo negativo, para quem não se vê nela. Se o que está em jogo é atrair quem não a compartilha, o que é preciso oferecer não é o conforto simbólico do pertencimento, mas ideias que efetivamente façam sentido para as pessoas; isto é, que lhes ofereçam a perspectiva plausível de uma vida melhor, bem como o desejo de alcançá-la. É isso que “programa” representa aqui. Por outro lado, o que conta como plausível não pode ser medido unicamente em relação àquilo que as pessoas já estão dispostas a considerar como tal, mas precisa igualmente levar em conta a realidade; e aquilo que a realidade exige hoje não pode deixar de parecer “extremo” se comparado aos arranjos políticos e econômicos que temos. É a isso que “radicalização” se refere, e é nesse sentido que uma “radicalização programática” aparece como o meio capaz de explorar o conflito entre a crise de legitimidade do neoliberalismo e a adesão afetiva a ele.
Aqui encontramos talvez os dois principais temas recorrentes deste livro. O primeiro é aquele que identifica o mais importante descompasso de nosso tempo como sendo o que existe entre um consenso estabelecido há três décadas sobre o que é “realista” propor e pensar e uma realidade profundamente transformada. Daí a recusa a aceitar o jogo que opõe o “realista” ao “utópico” para, ao contrário, reivindicar a própria Realpolitik: diante do colapso ambiental e da concentração de poder econômico e político que temos hoje, é o realismo de trinta anos atrás que se tornou irreal, e o que antes parecia absurdo frequentemente contém algo de razoável. Isso se aplica, inclusive, à extrema direita: conforme aponto algumas vezes, há um sentido em que se pode dizer que ela é uma reação mais racional ao atual estado de coisas do que a crença de que tudo poderia simplesmente continuar como antes. Afinal, ela ao menos implicitamente assume os custos cada vez mais altos de manter as coisas em seus lugares e prepara seus seguidores para uma luta cada vez mais sangrenta de todos contra todos.
Se ser realista hoje em dia implica necessariamente atribuir para si objetivos ambiciosos, o segundo grande tema destes ensaios consiste na rejeição de uma alternativa entre operar dentro dos limites do possível e agir com ambição. É bem verdade que não se pode fazer qualquer coisa a qualquer momento. No entanto, isso só vale como argumento contra a ousadia se esquecemos que a política é antes de tudo uma disputa para definir os limites do possível, e que fazer o que se pode fazer agora não precisa ser uma desculpa, mas pode, antes, ser um meio para se aproximar do que ainda não se é capaz de fazer. Os últimos quinze anos foram um período em que o impensável não parou de acontecer, e a extrema direita soube melhor que ninguém usar as muitas crises do presente para trazer o indizível para o centro do debate público e tornar o inconcebível um dado corriqueiro. Fazer frente a ela, e à barbárie ainda pior que se avizinha se apenas deixarmos as coisas seguirem seu rumo atual, exigirá esforço e capacidade ímpares para fazer com que o realismo diante do que é possível esteja cada vez mais em consonância com o realismo diante do que é real.
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