terça-feira, 4 de outubro de 2022

Susan Sontag - A história de Susan



36. A história de Susan

Sontag produziu Esperando Godot em 1993, em sua segunda visita a Sarajevo. Ela voltaria à Bósnia mais sete vezes antes do final de 1995, quando os Acordos de Dayton foram assinados numa base da Força Aérea em Ohio. O acordo pôs fim ao cerco, mas repartiu a Bósnia nos enclaves produzidos por “limpeza étnica” e tornou o país estagnado em termos econômicos e impotente em termos políticos. Durante os anos do cerco, a vida de Susan estaria ligada de forma inextricável à da Bósnia, e suas ações heroicas prosseguiriam inteiramente sem a publicidade que Godot havia trazido.

A cada viagem, ela trazia maços e maços de marcos alemães, a moeda extraoficial da Bósnia, escondidos em suas roupas, e os distribuía a escritores, atores e associações humanitárias. Trazia cartas a um lugar que estava isolado do mundo e não tinha um correio operante, e levava outras de volta quando saía de lá. Ganhou em 1994 o prêmio Montblanc de la Culture, de patrocínio das artes, e destinou o valor em dinheiro a Sarajevo. Ela tentou criar uma escola de ensino fundamental para crianças impossibilitadas de assistir às aulas por causa da guerra; falou sem parar em defesa da causa bósnia na Europa e nos Estados Unidos; importunou amigos em altas posições para que ajudassem pessoas a escapar de Sarajevo.

Quando teve seu pedido de visto recusado pela embaixada norte-americana em Zagreb, Atka Kafedzić pegou o telefone. “Me dê meia hora e depois volte à embaixada”, ordenou Susan. O visto, desnecessário dizer, foi concedido e acabou ajudando a família toda de Atka, catorze pessoas, a iniciar uma vida nova na Nova Zelândia. Por intermédio do PEN canadense, ela ajudou o poeta Goran Simić, sua esposa Amela e os dois filhos do casal a chegarem ao Canadá. “Susan até organizou a festa de inauguração do novo lar”, diz Ferida Duraković — e para Ferida, que ficou grávida durante a guerra, Susan trouxe montanhas de vitaminas e remédios do pré-natal. E ajudou Hasan Gluhić a fugir para os Estados Unidos, uma vez que seu trabalho como motorista dela durante o período de Godot o colocara em perigo: “Os fundamentalistas [islâmicos] estavam contra ela e contra a peça”, escreveu ele num depoimento oficial do pedido de asilo nos Estados Unidos.

Em 3 de janeiro de 1994, cheguei em casa do trabalho e encontrei minha mulher aos prantos e meus filhos tremendo de medo. Na porta da minha casa tinham sido pichadas as palavras “traidor” e “herege”. No trabalho, no dia seguinte, encontrei na minha mesa um bilhete que dizia: “Gluhić: Lembre-se do que aconteceu a Salman Rushdie. Uma Bósnia islâmica não tem lugar para gente como você”.

Os arquivos de Sontag trazem provas de seus mais de dois anos de esforços em prol de Gluhić. Ela escreveu a todo mundo, do senador Daniel Patrick Moynihan, que providenciou uma moção de interesse público, à Little Red School House, uma escola privada de Nova York, para pedir a admissão dos filhos de Gluhić. E encontrou para ele um emprego junto a Annie Leibovitz.

“Se não tivesse visto eu não acreditaria”, diz John Burns. “Susan se tornou tremendamente popular. Havia uma enorme desenvoltura em seu modo de ser, e nenhum traço de superioridade.” Pašović a conhecia fora da Bósnia e compreendia que, em lugares como Nova York, ela precisava manter certa distância. “Ela não permitia muita proximidade, mas esse era o seu modo de filtrar as pessoas”, diz ele. “Aqui aquela atitude dela desaparecia. 

Ela era simplesmente normal, e as pessoas interagiam com ela.” Um símbolo dessa normalidade era sua recusa em usar um colete à prova de balas. O gesto ficou na lembrança de dezenas de bósnios, para os quais aquele era um modo de enfatizar a igualdade dela com os demais, sua disposição para enfrentar os mesmos riscos — de ser morta, de ser mutilada — que eles enfrentavam todos os dias. Para Miranda Spieler, que estava trabalhando para ela naquela época em Nova York, “ela dizia que gostava do fato de poder ser atingida. Falava sobre como, em certo sentido, era excitante para ela o fato de ser capaz de morrer”.

Duraković relembra a intensa camaradagem e os muitos sentimentos positivos que a guerra suscitava:

Ela trazia bebida e tínhamos conversas maravilhosas, e uma das principais perguntas que ela me fez foi: “Qual é seu sentimento quanto à vida sob o cerco? Você está frustrada? Está deprimida?”. Eu disse: “Nunca na vida” — eu estava com 36 anos —, “nunca na vida me senti tão viva. Eu me sinto maravilhosamente bem. Quero viver, quero escrever, quero ver o dia nascer, quero encontrar pessoas. Tenho fome disso”. E ela disse: “Que interessante, porque quando tive câncer foi a primeira vez na minha vida que pensei no quanto a vida é maravilhosa”.

Kasia Gorska viu a mudança que Sarajevo trouxe a ela. “Quando voltou para cá, ela estava simplesmente plena de energia. Emanava aquela força advinda de estar bem no centro daqueles acontecimentos.” Em 1994, no meio da guerra, ela deu início a um romance chamado Na América, que, quando publicado, em 2000, seria dedicado “A meus amigos em Sarajevo” — e “aquele livro estava repleto de Sarajevo, repleto da energia de Sarajevo”, diz Duraković. “Ela estava cheia de vida aqui.”

Mas, assim como o sucesso e o dinheiro a tornavam infeliz e impiedosa, seu propósito recém-descoberto azedou. Sua acusação aos intelectuais que deixavam de se engajar ao lado da Bósnia indispôs as mesmas pessoas que ela estava tentando recrutar. Se o seu ativismo era uma inspiração, ela o brandia como um dedo acusador, o que era desastroso, porque não havia modo de contestar a análise que ela propôs em 1995:

O individualismo e o culto de si mesmo e do bem-estar privado — em que figura, acima de tudo, o ideal da “saúde” — são os valores mais aptos a receberem o aval dos intelectuais. (“Como você pode passar tanto tempo num lugar onde as pessoas fumam o tempo todo?”, perguntou alguém aqui em Nova York ao meu filho, o escritor David Rieff, referindo-se a suas frequentes viagens à Bósnia.) Seria excessivo esperar que o triunfo do capitalismo consumista deixasse intacta a classe dos intelectuais. Na era do consumo, há de ser mais difícil para os intelectuais, que nada têm de marginais nem de empobrecidos, identificar-se com pessoas menos afortunadas.

Como muitos que haviam testemunhado coisas terríveis, Susan tinha dificuldade para tirar da cabeça suas experiências. Achava difícil, também, estar perto de gente “que não quer saber o que você sabe, não quer que você fale sobre os sentimentos, a perplexidade, o terror e a humilhação dos habitantes da cidade que você acabou de deixar para trás”, escreveu ela em 1995. “Você descobre que as únicas pessoas com quem se sente confortável são aquelas que também estiveram na Bósnia. Ou em alguma outra carnificina.”

Tudo isso era perfeitamente compreensível. Mas se tornou menos compreensível quando, dois anos depois, essa mesma análise a levou a dizer a outros intelectuais, sem rodeios, que calassem a boca.

"Você não tem direito de manifestar publicamente uma opinião a menos que tenha estado lá, que tenha experimentado em primeira mão, no próprio local e por um tempo considerável, o país, a guerra, a injustiça, ou seja qual for o assunto de que está falando. Na ausência de tal conhecimento e de tal experiência em primeira mão: silêncio."

Mas uma pessoa não tinha o direito de deplorar o cerco de Sarajevo sem ter experimentado pessoalmente o “seja qual for” que estava sendo infligido? Não havia nada a ser aprendido sobre o mundo que viesse da literatura, do cinema ou da fotografia — em suma, da arte?

A polícia saiu de folga. “Tudo o que ela dizia sobre a Bósnia era admirável”, diz Stephen Koch. “Seu comportamento a esse respeito era difícil de suportar. Porque se você não tivesse ido a Sarajevo, estava claro que não passava de um ser moralmente inferior. E ela deixava isso muito claro, com uma atitude de superioridade quase zombeteira.” A necessidade de invulnerabilidade moral que levara no passado a flertes com causas políticas questionáveis agora suscitava um comportamento que ofendia pessoas que, de resto, eram solidárias e admiradoras.

Sua atitude podia beirar o cômico, escreveu Terry Castle, que a encontrou “na rua principal, cafoninha e lotada de butiques, de Palo Alto”

Sontag estava vestindo o figurino de diva intelectual que era sua marca registrada: uma blusa preta volumosa e calças pretas folgadas e macias, tendo como acessórios uma porção de lenços exóticos revoltos. Ela os ajustava o tempo todo, ou os arremessava imperiosamente sobre um ombro, parando de quando em quando para dar um trago num cigarro ou soltar uma torrente de tosse catarrosa. (O famoso “look” Sontag sempre me lembra a indicação de palco em Uma mulher do outro mundo: “Entra Madame Arcati, vestindo joias selvagens”.) […]

Ela vinha me falando sobre o cerco e comentando que uma mulher iugoslava com quem buscara abrigo lhe pedira um autógrafo, mesmo quando as bombas caíam ao redor delas. Ela se deleitava com a óbvia inteligência da mulher (“Claro, Terry, que ela havia lido O amante do vulcão, e, como todos os europeus, o admirava tremendamente”) e com seu próprio sangue-frio no episódio. Então se interrompeu abruptamente e perguntou, com fisionomia contraída, se eu alguma vez tive que escapar de francoatiradores. Eu disse não, infelizmente não. De repente ela saiu de si — desembestou numa correria febril, agachando-se entre uma entrada de butique e outra, seus tênis brancos convertidos num borrão, ao longo de toda a rua até a Restoration Hardware e a sorveteria Baskin-Robbins. Cinco ou seis transeuntes perplexos pararam para assistir enquanto ela se agitava de um jeito infantil de um lado para outro, abaixando a cabeça, apontando para atiradores imaginários em cima dos telhados e gesticulando desvairadamente para que eu a seguisse.

Mas ela foi além da comédia involuntária. Numa festa em Nova York, seu comportamento fez com que Salman Rushdie reparasse na cisão da sua personalidade.

Ela era de fato duas Susans, a Susan Boa e a Susan Má, e enquanto a Susan Boa era brilhante, divertida, leal e bastante nobre, a Susan Má podia ser um monstro amedrontador. Um funcionário júnior da agência literária Wylie disse alguma coisa sobre o conflito bósnio que não agradou a Susan, e a Susan Má emergiu rugindo e o agente júnior da Wylie correu o risco de ser devorado.

Richmond Burton via o comportamento antes reservado a Annie Leibovitz transbordar para todas as suas interações, “um complexo de mártir” associado a uma atitude tirânica com as pessoas. “Sua paciência simplesmente se esgotara”, diz ele, “e de algum modo isso estava ligado a Sarajevo. Aquilo meio que se apossou de tudo. Qualquer coisa era motivo para um acesso de fúria. A gente pensava: Não faça isso, Susan. E, no entanto, ela fazia.”

Ela começou a falar de si mesma em termos grandiloquentes:

O que quer que eu fizesse, qualquer que fosse a vocação que eu assumisse, sei que não a assumiria com um espírito egoísta. Se eu tivesse me tornado médica, teria trabalhado num grande hospital — não teria um consultório particular, para ficar sentada num gabinete vendo gente rica chegar com seus probleminhas e ganhando rios de dinheiro. Não, eu teria trabalhado num grande hospital com gente pobre…

“Aconteceu alguma coisa que fez com que ela visse a si mesma como uma figura heroica quase sacrificial, em termos de seu envolvimento em Sarajevo”, diz Burton. “Cheguei a ouvi-la se descrever ao telefone — comparando-se com Joana d’Arc.”

Os anos durante e após seu envolvimento com Sarajevo se tornaram a era dourada da “História de Susan”, cuja protagonista era incapaz de perceber como era percebida.

A mulher que via a si mesma como Joana d’Arc era a mesma que comia tanto caviar no Petrossian, na rua 58, que, nas palavras de Larry McMurtry, “dizimava a espécie”. Uma série de filmes e best-sellers fizera dele um homem rico, e Susan tirava bom proveito de sua boa situação. Uma noite, o voo de McMurtry, vindo de Washington, estava atrasado, e quando ele chegou ao restaurante o maître lhe disse que a srta. Sontag tinha ido embora, deixando-lhe um pedaço de papel: a conta do suntuoso jantar de caviar e vários pratos de que Susan havia se fartado.

Greg Chandler, um novo assistente, testemunhou muitos acessos de mau humor. Um deles aconteceu no verão de 1995, quando ela precisou ir a Madri para o lançamento da edição espanhola de O amante do vulcão. Ela odiava ter que ir. Antes da viagem, entregou a Chandler uma caixa enorme com moedas do mundo todo que vinha colecionando havia décadas, e o instruiu a separar as pesetas. Quando ele finalmente terminou, Susan examinou a triagem e avistou um franco. Brandiu-o de modo acusatório: “Isto é um franco!”, gritou. “Isto é um franco! Que porra eu vou fazer com um franco na Espanha?” Num acesso de fúria, apanhou as moedas e as atirou pela sala toda.

“Limpei devidamente a bagunça”, diz Chandler, “me sentindo como a Christina Crawford.”

“Sempre preferi escrever o mínimo possível sobre minhas relações com minha mãe na última década da sua vida, mas basta dizer que elas foram muitas vezes inamistosas”, reconheceu David.

Mesmo pessoas do entourage de Susan que tinham antipatia ou ressentimento de David concordavam que ele estava numa posição impossível, como mostrava seu envolvimento com a Bósnia. Em 1995, ele publicou Slaughterhouse: Bosnia and the Failure of the West [Matadouro: Bósnia e o fracasso do Ocidente], uma acusação à “comunidade internacional”: as pessoas a que os bósnios se referiam quando faziam a piada “esperando Clinton”. O livro abordava muitas das questões linguísticas que Susan levantara no Vietnã. “Os franceses eram ‘os franceses colonialistas’; os americanos são ‘agressores imperialistas’”, ela escreveu então. Agora, David escrevia que “os chetniks eram agressores fascistas no sentido mais estrito da expressão, e a defesa de Sarajevo foi heroica”. Eles compartilhavam alguns interesses, mas o trabalho de David era o de um jornalista, e não de um esteta, e estava muito mais enraizado na política real do que qualquer coisa que Susan pudesse escrever.

Da perspectiva de David, o envolvimento de Susan na Bósnia era embaraçoso. Em parte porque ele próprio a levara para lá, em parte porque ela não tinha apoiado de modo inequívoco seus escritos. Em janeiro de 1993, Annie organizou um cruzeiro pelo Nilo para o aniversário de sessenta anos de Susan. Entre os convidados estava Howard Hodgkin, que contribuiu com seus quadros para “Assim vivemos agora”, e seu companheiro, Antony Peattie. “Ela ficava falando mal dos escritos [de David], de seus romances, de sua vida”, diz Peattie. E Hodgkin percebeu “o equivalente verbal de cortar as asas do filho sempre que aparecia a oportunidade. Ela era realmente muito desagradável”.

Na Bósnia, David descobrira uma missão. Depois de conhecer refugiados bósnios na Alemanha, ele sentiu “o mais forte sentimento de compulsão que eu já experimentei como escritor… e embarquei num voo para Zagreb”. Confrontado com o horror e a injustiça da guerra bósnia, ele mal conseguia falar de outra coisa. De volta a Nova York, tentou convencer outras pessoas a ir a Sarajevo: “Convidei dezenas de pessoas, mas a única que eu convenci foi minha própria mãe!”.

Ela estava consciente do dilema que sua presença criava para David. Em público, ela cedia o lugar a ele. “Não vou escrever um livro porque acho que nessas questões de família deve haver uma divisão de trabalho — ele escreve o livro”, declarou, em sua primeira visita a Sarajevo. Duas décadas antes, Paul Thek denunciara “a instauração da dinastia Sontag nas Letras Americanas”. Agora, ela ainda pensava na escrita como uma “questão de família”. De início, ela tentou se manter à parte, “porque julgava que aquela era a história de David”, diz Haris Pašović, “mas depois foi inevitável que ela também escrevesse sobre o assunto”. David apenas disse: “Não era uma promessa que ela tivesse condições de cumprir”.

Mesmo antes de ela partir para lá, ele sabia que, caso ela se envolvesse, “seu papel iria inevitavelmente eclipsar o meu”.

Eu estava orgulhoso do que fizera na Bósnia. Eu trabalhara predominantemente no norte, na Banja Luka ocupada pelos sérvios e em torno dos campos de prisioneiros — uma parte terrível do mundo na época. Tinha corrido enormes riscos físicos e pago caro por essa minha disposição (fui gravemente ferido, e para todos os efeitos poderia ter morrido, no outono de 1992 perto de Zenica, na Bósnia Central). E a Bósnia era a minha causa — talvez a única em que acreditei plenamente.

Mas ele tinha uma escolha clara a fazer. “O que era mais importante, a atenção que Sarajevo atrairia se minha mãe assumisse a causa bósnia e trabalhasse lá, ou meu próprio ego e ambição? A Bósnia era infinitamente mais importante que o meu desejo de não ser eclipsado por minha mãe.” David teve o cuidado de dar a Susan o crédito pelo que ela realizou em Sarajevo, mas o que era bom para a Bósnia não era necessariamente bom para o relacionamento entre eles.

Estávamos apartados, mas não houve uma ruptura. Ainda nos víamos, e há momentos nos diários em que ela fala, antes da Bósnia, sobre eu não estar disponível, de eu estar menos presente para ela. Não foi como um golpe do martelo de Thor, como se a Bósnia tivesse feito tudo mudar de repente entre nós. Mas o fato é que não ajudou.

Ela sabia disso — “sentia-se como se estivesse roubando o impacto de David”, conforme confidenciou à irmã — mas, como aconteceu tantas vezes, mostrou-se incapaz de tornar emocionalmente útil algo que ela podia dominar intelectualmente. Mesmo passados sete anos do fim do cerco, quando ela estava preparando seu último livro, Diante da dor dos outros, ela escreveu a seu amigo Paolo Dilonardo:

David se importa, e muito, com o fato de eu fazer esse livro. Para ele, é uma continuação da traição de “Esperando Godot em Sarajevo”, que ele me pediu, em 1993, para não escrever, depois que eu já o prometera para a NYRB [New York Review of Books]. Na noite passada, no Honmura An: “Será que você não podia deixar esse cantinho do mundo como meu assunto?”. Isto é: guerra. Quando eu disse “Mas é uma continuação de Sobre fotografia”, ele respondeu: é sobre história, e sobre guerra, e você não sabe nada de história. Você recebeu tudo isso de mim etc. Você está invadindo meu território.
Estou mortificada. Mas não há nada que eu possa fazer.

Nada que eu possa fazer: a frase remete às mesmas perguntas sobre a utilidade da arte suscitadas por Sarajevo. Qual era o cerne da questão? “A arte estava lá para tornar você uma pessoa mais sensível e mais humana”, diz sua amiga Senada Kreso. “A arte pode fazer você chorar, pode te alegrar, pode te entristecer, mas não pode ajudar.” A arte, por si só, não tinha como arregimentar os exércitos que Sarajevo demandava. Mas, como mostravam muitos dos relacionamentos de Susan — consigo mesma, com os outros —, ela nem sempre podia tornar uma pessoa mais humana.

“Como a gente deveria viver?”, ela perguntava em seu diário no auge do cerco à cidade. “A grande questão da literatura russa do século XIX… Vivo sob a égide da literatura russa do século XIX.” Sontag sempre se voltara para a literatura, para a arte, para ajudá-la a responder àquela pergunta. A arte oferecia um modelo de solidariedade. Mas estetizar é distorcer, ela sustentou ao longo da vida. E sua própria vida ilustra essa tese de modo mais eloquente que qualquer coisa que tenha escrito. Será que a metáfora aprofunda a relação da pessoa com a realidade — ou, pelo contrário, a deturpa e polui? Dito de outra maneira: Dostoiévski pode ajudá-la a se entender com o filho?

Era isso que ela sustentava em 2002, descrevendo “o papel da literatura em si” como meio “de ampliar nossas simpatias; de educar o coração e a mente; de garantir e aprofundar a consciência (com todas as suas consequências) de que outras pessoas, pessoas diferentes de nós, existem de verdade”. No entanto, aprender a respeito de sua vida em seus últimos anos é ver que tal consciência não pode ser assegurada por meio da arte. Na ausência de uma empatia inata, nenhuma quantidade de metáfora pode ajudar, e nenhuma quantidade de conhecimento literário — e quem o tinha mais do que ela? — pode substituir a capacidade de enxergar o outro. Anos depois de ter confidenciado que não era “muito perspicaz quanto às outras pessoas, quanto ao que elas estão pensando e fazendo”, depois de ter dito “estou certa de que tenho em mim a necessidade de ser empática e intuitiva”, ela ainda não havia aprendido a empatia.

Se as histórias em torno de Susan naqueles anos falavam de insensibilidade, falavam também, cada vez mais, de crueldade. Ela não tolerava nem a mais delicada interferência e se esquivava da intimidade toda vez que seus amigos tentavam insinuá-la, como fez sua assistente Karla Eoff um dia, quando ajudava Susan a arrumar as malas para uma viagem. Estavam fazendo brincadeiras, como tinham feito em tempos passados, e Karla, tentando introduzir uma conversa séria, disse: “Susan, é muito bom ter você de volta comigo”. Susan respondeu:

“Só vou me ausentar por alguns dias.” Eu disse: “Não é disso que estou falando. Uma parte de você se afastou, e não vejo a verdadeira Susan com a frequência que eu gostaria, e estou sentindo muita falta dela. É doloroso estar por perto da outra Susan”. Ela disse: “Não sei do que você está falando!”, se levantou e foi embora.

 

“Ela não tinha amigos habituais” em meados dos anos 1990, diz Miranda Spieler. “Estava bastante isolada.” Em 27 de janeiro de 1996, com um volume da Antologia grega de Loeb aberta sobre sua mesa, Brodsky morrera em Nova York. “Estou completamente só”, Susan disse a Marilù Eustachio. “Não tenho com quem conversar, ninguém com quem possa trocar minhas ideias, meus pensamentos.” Brodsky era uma das poucas pessoas que ela admitia como superiores. Agora ele não existia mais.

Em Sobre fotografia, ela escrevera a respeito de “como se tornou plausível, em situações em que o fotógrafo deve escolher entre uma fotografia e uma vida, ele escolher a fotografia”. Agora também ela escolhia a personalidade warholizada, o oposto do que ela havia considerado a meta da obra de Cioran, “impedir que a vida da gente seja transformada num objeto, numa coisa”. Cada vez mais, ela interagia com outros igualmente estetizados. Leon Wieseltier ficou espantado, uma noite, ao ouvir que ela havia estado com Debbie Harry, a vocalista do Blondie. “Ela entrou naquele universo em que a pessoa conhecia Mick Jagger, mas não conhecia os Stones. É um mundo de celebridades. Todos são grandes amigos, e ninguém conhece ninguém.”

Naquele mundo, se alguém fosse famosa o bastante, as regras que submetiam as pessoas comuns não vigoravam mais. Mas, em troca dessa liberdade, a pessoa tinha que escolher a fotografia — a imagem — em detrimento da vida; e isso, como escrevera a jovem Sontag em O benfeitor, era uma espécie de morte.

Ele está acabado: envelhecido, trespassado pelo grande olhar fixo do público, congelado. Agora é completamente famoso. Todos riem de suas zombarias, ele não ofende mais ninguém. Seus atos se transformaram em poses.

O livro seguinte de Sontag, que ela começou em 1994, era sobre uma mulher que ocupava o olhar do público sem dor nem ambivalência, “completamente famosa”.


 

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