terça-feira, 11 de outubro de 2022

Susan Sontag - 1926 - Pasternak, Tsvetáieva, Rilke





1926...

Pasternak, Tsvetáieva, Rilke

O que está acontecendo em 1926, quando os três poetas estão escrevendo uns para os outros?

No dia 12 de maio, a “Sinfonia nº1 em fá menor” de Chostakóvitch é executada pela primeira vez, pela Filarmônica de Leningrado; o compositor tem dezenove anos.

No dia 10 de junho, o idoso arquiteto catalão Antonio Gaudí, na caminhada que faz todos os dias do local onde está sendo construída a Catedral da Sagrada Família até uma igreja no mesmo bairro, em Barcelona, para assistir à missa das vésperas, é atropelado por um bonde, fica estirado na rua, sem socorro (porque ninguém o reconheceu, pelo que dizem), e morre.

No dia 6 de agosto, Gertrude Ederle, dezenove anos, americana, nada do cabo Gris-Nez, na França, até Kingsdown, na Inglaterra, em catorze horas e 31 minutos, e se torna a primeira mulher a cruzar a nado o canal da Mancha e a primeira mulher a superar um recordista masculino, competindo num esporte de alto rendimento.

No dia 23 de agosto, o ídolo do cinema Rodolfo Valentino morre de endocardite e septicemia num hospital em Nova York.

No dia 3 de setembro, uma torre de aço de transmissão de rádio (Funkturm), de 138 metros de altura, com um restaurante e um mirante, é inaugurada em Berlim.

Alguns livros: volume 2 do Minha luta, de Hitler, Edifícios brancos, de Hart Crane, Winnie Puff, de A. A. Milne, A terceira fábrica, de Viktor Chklóvski, O camponês de Paris, de Louis Aragon, A serpente emplumada, de D. H. Lawrence, O sol também se levanta, de Hemingway, O assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie, Os sete pilares da sabedoria, de T. E. Lawrence.

Alguns filmes: Metropolis, de Fritz Lang,* A mãe, de Vsevolod Pudóvkin, Nana, de Jean Renoir, Beau Geste, de Herbert Brenon.

Duas peças: Um homem é um homem, de Bertolt Brecht, e Orfeu, de Jean Cocteau.

No dia 6 de dezembro, Walter Benjamin chega a Moscou para uma estada de dois meses. Não se encontra com Boris Pasternak, de 36 anos de idade.

Pasternak não vê Marina Tsvetáieva há quatro anos. Desde que ela deixou a Rússia, em 1922, os dois tornaram-se os mais queridos interlocutores um do outro, e Pasternak, tacitamente reconhecendo em Tsvetáieva a poeta maior, fez dela a sua primeira leitora.

Tsvetáieva, que tem 34 anos, vive na penúria, com o marido e dois filhos, em Paris.

Rilke, que tem 51 anos, está morrendo de leucemia num sanatório na Suíça.

Cartas: Verão de 1926 é um retrato do delírio sagrado da arte. São três participantes: um deus e dois adoradores, que são também adoradores um do outro (e que nós, os leitores de suas cartas, sabemos ser futuros deuses).

Um casal de jovens poetas russos, que durante anos trocaram cartas fervorosas sobre a obra e a vida, passam a corresponder-se com um grande poeta alemão que, para ambos, é a poesia personificada. Essas cartas de amor tridirecionais — pois se trata de cartas de amor — são uma incomparável dramatização do entusiasmo pela poesia e pela vida do espírito.

Retratam uma esfera de sentimento temerário e de pureza de aspiração que seria, para nós, um desperdício descartar como “romântica”.

A literatura escrita na Alemanha e na Rússia era particularmente dedicada à exaltação espiritual. Tsvetáieva e Pasternak sabem alemão e Rilke estudou e alcançou um domínio razoável do russo — os três impregnados pelos sonhos de divindade literária promulgados naquelas línguas. Os russos, amantes da poesia e da música alemãs desde a infância (as mães dos dois eram pianistas), esperam que o grande poeta da época seja alguém que escreva na língua de Hölderlin e Goethe. E o poeta de língua alemã teve como um amor de juventude, e como sua mentora, uma escritora, nascida em São Petersburgo, com quem ele viajou duas vezes à Rússia, e desde então considerou aquele país a sua verdadeira pátria espiritual.

Na segunda viagem à Rússia, em 1900, Pasternak de fato viu e provavelmente foi apresentado ao jovem Rilke.

O pai de Pasternak, pintor famoso, era um estimado conhecido de Rilke. Boris, o futuro poeta, tinha dez anos de idade. É com a sagrada recordação de Rilke ao embarcar num trem com a sua amante, Lou Andreas-Salomé — eles permanecem respeitosamente anônimos —, que Pasternak começa Salvo conduto (1931), a sua maior realização na prosa.

Tsvetáieva, é claro, nunca pôs os olhos em Rilke.

Os três poetas são sacudidos por necessidades aparentemente incompatíveis: a solidão mais absoluta e a mais intensa comunhão com outro espírito de opiniões afins. “Minha voz só consegue soar pura e límpida quando absolutamente solitária”, diz Pasternak ao seu pai, numa carta. O ardor modulado pela intransigência guia todos os escritos de Tsvetáieva. Em “Arte à luz da consciência” (1932), ela escreve: O poeta só pode ter uma prece: não compreender o inaceitável — que eu não compreenda, para que eu não seja seduzida... que eu não ouça, para que eu não responda... A única prece do poeta é uma prece por surdez.

E os dois passos de dança característicos da vida de Rilke, tal como a conhecemos por suas cartas para uma variedade de correspondentes, sobretudo mulheres, são a esquiva de qualquer intimidade e uma oferta de solidariedade e compreensão incondicionais.

Embora os poetas mais jovens se declarem acólitos, as cartas rapidamente se tornam uma troca entre iguais, uma competição de afinidades. Para aqueles familiarizados com os ramos principais da empolada e não raro imponente correspondência de Rilke, pode ser uma surpresa descobri-lo reagindo quase no mesmo tom ávido, jubiloso, que os seus dois admiradores russos. Mas ele nunca tivera interlocutores desse calibre. O Rilke soberano, didático, que conhecemos das Cartas para um jovem poeta, escritas entre 1903 e 1908, desapareceu. Aqui há apenas conversação angélica. Nada a ensinar. Nada a aprender.

A ópera é agora o único meio em que ainda se aceitam exaltações de entusiasmo. O dueto que conclui Ariadne auf Naxos, de Richard Strauss, cujo libreto é de um contemporâneo de Rilke, Hugo von Hofmannsthal, oferece uma efusividade comparável. Sem dúvida, nos sentimos mais confortáveis com o hino ao amor como renascimento e autotransformação, cantado por Ariadne e Baco, do que com os arroubos de sentimento amoroso expressos pelos três poetas.

E essas cartas não são duetos de encerramento. São duetos que tentam, e por fim não conseguem, ser trios. Que tipo de posse mútua os poetas almejam? Em que medida esse tipo de amor consome e é exclusivo? A correspondência começou entre Rilke e Pasternak, tendo o pai de Pasternak como intermediário. Depois, Pasternak sugeriu a Rilke escrever para Tsvetáieva, e a situação se converte numa correspondência à trois. Última a entrar na arena, Tsvetáieva rapidamente se torna a força deflagradora, tão potentes, tão escandalosas são a sua carência, a sua coragem, a sua nudez emocional.

Tsvetáieva é a implacável, superando primeiro Pasternak e depois Rilke.

Pasternak, que não sabe mais o que pedir a Rilke, retira-se (e Tsvetáieva também pede uma pausa na correspondência entre eles); Tsvetáieva pode pensar numa ligação erótica, avassaladora. Implorando que Rilke conceda um encontro, tudo o que consegue é afastá-lo. 
Rilke, por seu turno, fica em silêncio. (Sua última carta para ela foi no dia 19 de agosto.)

O fluxo de retórica alcança o precipício do sublime e desaba na histeria, na angústia, no terror.

Porém, curiosamente, a morte parece bastante irreal. Como os russos ficam aturdidos e chocados quando “esse fenômeno da natureza” (assim consideravam Rilke), em certo sentido, não mais existe. O silêncio havia de ser completo. O silêncio que agora tem o nome de morte parece uma depreciação grande demais.

Portanto, a correspondência tinha de continuar.

Tsvetáieva escreve uma carta para Rilke alguns dias depois de saber que ele havia morrido no fim de dezembro e dedica a ele uma longa ode em prosa (“Sua morte”) no ano seguinte. O manuscrito de Salvo-conduto, que Pasternak completa quase cinco anos após a morte de Rilke, termina com uma carta a Rilke. (“Se você estivesse vivo, esta é a carta que eu lhe enviaria hoje.”) Guiando o leitor por um labirinto de prosa memorialística elíptica até o âmago da interioridade do poeta, Salvo-conduto é escrito sob o signo de Rilke e, ainda que de forma inconsciente, em competição com Rilke, tentando equiparar-se ou mesmo ultrapassar Os cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), a obra máxima de Rilke em prosa.

No início de Salvo-conduto, Pasternak fala sobre viver ao máximo e dedicar-se aos momentos em que “um sentimento completo irrompe no espaço com toda a vastidão do espaço à sua frente”. Nunca antes se fez, de modo tão agudo, tão arrebatador, uma síntese dos poderes da poesia lírica como nessas cartas. A poesia não pode ser abandonada, não se pode renunciar a ela, quando a pessoa é “o servo da lira”, como Tsvetáieva ensina a Pasternak numa carta em julho de 1925. “Com a poesia, caro amigo, é como no amor; não há separação, até que ela nos largue.”

Ou até que a morte intervenha. Tsvetáieva e Pasternak não desconfiavam que Rilke estava gravemente enfermo. Ao saber que havia morrido, os dois poetas se mostraram incrédulos: falando de modo cômico, parecia injusto. E quinze anos depois, Pasternak ficaria surpreso e com remorsos ao receber a notícia do suicídio de Tsvetáieva, em agosto de 1941. Reconheceu que não havia entendido a inevitabilidade da desgraça que a aguardava, caso ela resolvesse voltar para a União Soviética com a família, como fez em 1939.

A separação tornou tudo repleto. O que teriam dito Rilke e Tsvetáieva um para o outro, caso se encontrassem de fato? Sabemos o que Pasternak não disse para Tsvetáieva quando se reencontraram rapidamente após treze anos, em junho de 1935, no dia em que ele chegou a Paris no terrível papel de delegado soviético oficial para o Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura: não a avisou que não devia voltar para Moscou, não devia pensar em voltar.

Talvez os êxtases canalizados nessa correspondência pudessem apenas ser expressos em separado, e em resposta à maneira como eles se frustraram mutuamente (assim como os grandes escritores invariavelmente exigem demais dos leitores e são frustrados por eles). Nada consegue empalidecer a incandescência daquelas trocas ao longo de alguns meses, no ano de 1926, quando eles se exprimiam com veemência uns para os outros e faziam suas exigências impossíveis, gloriosas. Hoje, quando “tudo está naufragando na vulgaridade” — a expressão é de Pasternak —, seus entusiasmos e sua perseverança parecem uma jangada, um farol, uma praia.

* Metropolis foi filmado em 1926 e estreou em janeiro de 1927. (N. E.)


 

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