terça-feira, 22 de novembro de 2022
Os Engenheiros do Caos - Cap 2 - A NetFlix da Política
Os Engenheiros do Caos - Cap 1 - O Vale do Silício do Populismo
O Vale do Silício do Populismo
Os americanos têm sempre um ar inofensivo. Principalmente quando estão imersos no calor cínico e indolente de uma cidade como Roma. Isso deve, com certeza, estar ligado à expressão de seus rostos, ou talvez à maneira como se vestem. O americano sentado à minha frente não é uma exceção à regra. Aliás, ainda nem tive tempo de me sentar no sofá da suíte de seu hotel e ele já está me oferecendo um muffin. No entanto, seria, pelo que dizem por aí, o diabo em pessoa. Ou o “Grande Manipulador”, segundo a Time Magazine. O “personagem político mais perigoso dos Estados Unidos”, em citação da Bloomberg News. E tudo isso antes mesmo de ter contribuído decisivamente para a eleição de Donald Trump à Casa Branca, em 8 de novembro de 2016.
Os amigos de Steve Bannon dizem que se você ouve alguma explosão, não importa onde, significa que ele deve estar na área, brincando com uma caixa de fósforos. É por isso que, já há algum tempo, Bannon vem com frequência a Roma – pelo menos uma vez por mês. Na Cidade Eterna, todos sabem, o risco de terminar como o marciano do conto de Ennio Flaiano (Um marciano em Roma” (1960), conto de Ennio Flaiano (1910-1972), escritor, crítico e dramaturgo italiano que escreveu os roteiros de nove filmes de Federico Fellini. [N.T.]) não é remoto: você desembarca pela primeira vez e é recebido como um santo, o mundo para e as pessoas o carregam em triunfo. Mas, passados alguns instantes, os romanos se habituam à sua presença, do mesmo modo como acabaram se habituando a tudo, e a qualquer coisa, nos últimos dez mil anos. No final, você é interpelado por crianças nas ruas: “Ei, marciano!...”.
Mas, por enquanto, Bannon ainda está em estado de graça. Ele dá entrevistas, participa de encontros, troca ideias intermináveis com Matteo Salvini e Luigi Di Maio, por quem manifesta uma admiração sem limites. Nos intervalos dos compromissos, faz as refeições no Hôtel de Russie. No fundo, esse endereço lendário, onde dormiram princesas e conselheiros do Czar, é perfeito para ele. Não por motivos relacionados aos tempos atuais, em que reinam os oligarcas e o sistema de manipulação eleitoral. Mas sobretudo porque Bannon é, de certo modo, o Trotsky da revolução populista, misto de ideólogo e homem de ação que ambiciona, com seu “Movimento”, levar as massas europeias à revolta contra o que ele chama de “o partido de Davos”. Se lhe perguntamos qual é seu papel nesse movimento, Bannon faz beicinho: “Sou só um estudante global do movimento populista. Estou aqui para aprender”. Mas a resposta oculta e verdadeira é mais audaciosa.
Sempre vestido com camisas de botão superpostas, Steve Bannon é um produto da classe trabalhadora americana que, graças a seu talento e sua avidez, passou por todos os locais simbólicos do poder americano – o exército, Virginia Tech, Georgetown, Harvard Business School, Goldman Sachs, Hollywood e, enfim, Washington – sem jamais abrir mão de sua raiva original. Ao contrário, Bannon acumulou, por onde passasse, munição nova para incendiar e sangrar o mundo dessas elites que ele considera como uma casta blindada formada pelos traidores do povo.
Seguindo os passos de seu mestre Andrew Breitbart, fundador do site homônimo de contrainformação, Bannon foi um dos primeiros entre os novos populistas a entender que “politics is downstream from culture ” – “a política deriva da cultura”. Desde o começo, ele luta para arrancar da intelligentsia liberal o espectro de hegemonia cultural. Assim, em Hollywood, dedica-se à produção de documentários superkitsch, recheados de citações filosóficas e melodias wagnerianas. Esses filmes versam sobre o espírito americano, o choque de civilizações e a alternância de gerações que, assim, modelam a História e determinam o curso dos acontecimentos. Pelo mesmo motivo, a morte de seu fundador transformou o Breitbart News em ponto de convergência para a direita alternativa americana – uma tropa heterogênea de nacionalistas, conspiracionistas, militaristas ou, simplesmente, indivíduos raivosos – todos decididos a impor um ponto de vista diferente sobre as principais questões no centro do debate: a imigração, o livre-comércio, o papel das minorias e os direitos civis. Abrindo uma redação no Texas para seguir de perto o fenômeno da imigração clandestina, Bannon financiou think tanks, grupos de pesquisa destinados a estudar os malefícios do establishment em geral e da família Clinton em particular. Mobilizou blogueiros e trolls para dominar o debate nas redes sociais, participando do lançamento de uma sociedade de Big Data aplicada à política – a Cambridge Analytica, que mais adiante estará no centro de um escândalo global. Assim Bannon converteu-se em “banda de um homem só” do populismo americano. Portanto, quando o furacão Trump devastou as primárias republicanas em 2016, ele estava lá, a poucos passos de virar o inspirador oculto, depois o estrategista oficial, da campanha mais transgressora da história política dos Estados Unidos.
Claro, após as eleições, Steve perdeu um pouco a cabeça. Instalado no gabinete do conselheiro político do presidente, não resistiu à tentação de exibir-se à luz dos holofotes. É sempre uma péssima jogada, para um estrategista, sair revelando suas próprias ideias aos principais jornais em vez de sussurrá-las nos ouvidos do príncipe, ainda mais quando se trabalha para o símbolo vivo da Era do Narcisismo. Não à toa, ao fim de um ano Bannon foi expulso da Casa Branca, enquanto o chefe do mundo livre tuitava este tipo de mensagem: “Steve, o babão, chorou e me suplicou por seu emprego quando eu o demiti. Desde então, praticamente todo mundo o abandonou como um cão. Que pena!” (Tweet presidencial de 6/1/2018).
Mas, entre os frequentadores do circuito dos populistas soberanistas, poucos têm o cérebro, a experiência e as relações de Bannon. Assim, no espaço de alguns meses, uma perspectiva ainda mais ambiciosa se apresentou: “O que eu quero”, declarou em março ao correspondente romano do New York Times , “é construir uma infraestrutura global para o movimento populista mundial. Eu entendi isso quando Marine Le Pen me convidou para o congresso de seu partido em Lille. ‘O que você quer que eu diga?’, perguntei a ela. ‘Diga que nós não estamos sozinhos’, ela respondeu”. Naquele momento, Bannon compreendeu que há espaço para os oximoros: a Internacional dos Nacionalistas, plataforma criada para compartilhar as experiências, as ideias e os recursos de diferentes movimentos ativos na Europa e na América. “Nós estamos do lado certo da História. Até George Soros disse, tempos atrás, que vivemos tempos revolucionários…”
Soros, o bilionário húngaro que financiou movimentos democratas no mundo inteiro com sua Open Society, é, ao mesmo tempo, a besta do Apocalipse e o sonho proibido dos novos populistas globais. “Ele é brilhante”, admite Bannon. “Maléfico mas brilhante.” Seu amigo Orban o declarou fora da lei na Hungria, mas Bannon queria criar uma fundação inspirada no modelo de Soros, com o mesmo impacto, mas a serviço de uma agenda completamente diferente: fechar as fronteiras, interromper o processo de globalização e de integração europeia e voltar aos estados-nações de outrora.
“As ideias mais revolucionárias de nosso tempo começam sempre com a frase ‘Era uma vez’”, ensina o politólogo Mark Lilla. E, de acordo com Bannon, o epicentro dessa revolução é, hoje, a Itália.
Por isso ele está aqui, sentado à minha frente na suíte do Hôtel de Russie, enquanto, em seu entorno, agita-se sua guarda real – o ex-braço direito de Nigel Farage (Político britânico conservador e eurocético, um dos estrategistas do Brexit. [N.T.]), Raheem Kassam, fundador do Instituto Dignitatis Humanae Benjamin Harnwell, o sobrinho em trajes esportivos, Sean Bannon, e um curioso ariano que parece ser fruto de uma experiência eugenista sueca dos anos 1930. Todos ocupados, como uns desvairados, em produzir um clima saturado de testosterona que caracteriza os QGs de todas as revoluções, em particular as nacionais-populistas.
“Roma é, de novo, o centro do universo político”, prossegue Bannon. “Aqui se produz um evento único. Aqui, os populistas de direita, e os de esquerda, aceitaram deixar de lado suas diferenças e se uniram para devolver aos italianos o poder usurpado pelo partido de Davos. É como se Bernie Sanders e Donald Trump entrassem num acordo. Nos Estados Unidos nós não conseguimos, mas vocês, vocês realizaram isso. O que está em jogo na Itália é a própria natureza da soberania: do resultado dessa experiência depende o destino da revolta dos povos que querem recuperar o poder das mãos das elites globais que o roubaram. Se dá certo na Itália, pode dar certo em qualquer lugar. É por isso que vocês representam o futuro da política mundial.”
O discurso de Bannon é lisonjeiro, mas na realidade não é a primeira vez que um observador anglo-saxônico enxerga as invenções políticas da península como um modelo a seguir. “Seu movimento prestou um grande serviço ao mundo”, proclamava Winston Churchill, dirigindo-se aos fascistas italianos no fim dos anos 1920. “A Itália demonstrou que existe uma maneira de combater as forças subversivas. Essa maneira consiste em chamar as massas a cooperar para defender a honra e a estabilidade da sociedade civilizada. Ela produziu o antídoto necessário contra o veneno soviético. A partir de agora, nenhuma nação estará desprovida dos meios para se proteger desse câncer, e cada líder responsável em cada país sente que seus pés estão plantados mais firmemente na resistência face às doutrinas do nivelamento e do cinismo.”
No decorrer de todo o século XX, a Itália foi o laboratório onde foram conduzidas experiências políticas vertiginosas, frequentemente destinadas a serem reproduzidas, sob diversos formatos, em outras partes do mundo. O fascismo foi a primeira e a que trouxe consequências mais pesadas, mas após a queda do movimento, a Itália também deu à luz o maior partido comunista da Europa Ocidental, tornando-se, assim, o teatro privilegiado de todas as manobras e tensões da Guerra Fria. E quando o Muro de Berlim caiu, a península se transformou no Vale do Silício do populismo, antecipando em mais de vinte anos a grande revolta contra o establishment que hoje agita como um todo o hemisfério Norte.
Se Heinrich Mann dizia que Napoleão era uma bala de canhão lançada pela Revolução Francesa, seria possível dizer, guardadas as proporções, que Grillo e Salvini são as balas de canhão lançadas por Tangentopoli – a revolução judiciária que decapitou a classe política italiana no início dos anos 1990, inaugurando a interminável era da rejeição às elites e da fuga da política. Entre 1992 e 1994, a classe política do país foi eliminada: metade dos membros do parlamento que pertenciam a partidos do governo foi posta sob investigações, alguns líderes foram presos, outros fugiram para o exterior. Os dois partidos que governavam a república desde sempre, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, desapareceram no espaço de algumas semanas. A operação “Mãos Limpas” já representava, em sua essência, uma abordagem populista: os pequenos juízes contra as elites corruptas. “Quando as pessoas aplaudem, elas aplaudem a si mesmas”, declarava à época o procurador geral de Milão, Francesco Saverio Borrelli. E não é por acaso que diferentes magistrados que protagonizavam as devassas anticorrupção tenham em seguida entrado na política, fundando partidos, fazendo-se eleger no parlamento e tornando-se ministros ou prefeitos de grandes cidades.
A partir desse momento, bastou aos italianos sair em busca de elites alternativas para governar o país no lugar dos políticos profissionais, desacreditados, corruptos e incompetentes. Foi a esquerda que começou, sustentando com vigor as ações dos magistrados da operação “Mãos Limpas”, para, em seguida, dar vida, na primavera de 1993, ao primeiro governo “técnico” da história republicana: um Executivo presidido pelo ex-governante do Banco da Itália, Carlo Azeglio Ciampi, e composto exclusivamente de ministros não políticos, pinçados das fileiras do mundo acadêmico e da administração pública. Durante esse período, começou a florescer, entre os progressistas, o mito de uma “sociedade civil” virtuosa e não corrompida da qual teria emergido a nova classe dirigente do país. Mas, imediatamente depois, Berlusconi chegou para explicar que o poder devia ser gerido pelos empresários e os managers, ou gestores, verdadeiros produtores da riqueza do país, contrariamente a uma classe política formada por inúteis. Com ele, chegaram ao governo os regionalistas da Liga e os ex-fascistas da Aliança Nacional, um bloco heterogêneo unido pela rejeição à “Roma ladrona ” – “Roma ladra”.
Nos anos que se seguiram, o Cavaliere, como era chamado Berlusconi, continuou a dominar a política italiana quase até o fim de 2011, quando foi obrigado a renunciar por causa de escândalos ligados à sua vida pessoal. A partir de então, sucederam-se a tentativa de Mario Monti de instaurar um “governo de competentes” e a empreitada da centro-esquerda para recuperar o fôlego da política tradicional com a liderança inovadora de Matteo Renzi.
As eleições de 4 de março de 2018, que levaram ao triunfo o Movimento 5 Estrelas e a Liga, marcaram a falência definitiva desses esforços, dando lugar à transformação da Itália em terra prometida do populismo real. Realizou-se também, pela primeira vez num grande país ocidental, a convergência entre populismo de direita e de esquerda que tanto inflamou a imaginação – e a ambição – de Steve Bannon. Para ele, o que se está vivendo nada mais é que um choque de civilizações.
“Se há algo que eu admiro em Merkel e Macron”, diz Bannon, “é que eles não escondem seus programas. É importante que as pessoas compreendam: não há nenhum complô! Tudo é dito abertamente à luz do dia. Há um ano, Macron fez um discurso no qual apresentou, de forma detalhada e coerente, as consequências lógicas do projeto europeu, a partir da visão de Jean Monnet (Político francês (1888-1979) de tendência internacionalista, considerado um dos principais arquitetos do pensamento de unificação europeia. [N.T.]). É um projeto que prevê uma integração comercial suplementar e uma integração de mercados de capital suplementar. Na prática, são os Estados Unidos da Europa, onde a Itália faz o papel de Carolina do Sul, enquanto a França é a Carolina do Norte, Ok? Então, se você crê nesse projeto, se ele agrada você, isso quer dizer que você acredita no projeto de Macron. Salvini, Orban, Marine Le Pen e as outras vozes do movimento populista, por sua vez, dizem ‘não’. A oposição reside, aqui, entre aqueles que, na Europa, pensam que os estados nacionais são um obstáculo a superar e outros que consideram que os estados nacionais são uma joia a ser preservada.”
Desde nosso encontro, o projeto de Steve Bannon sofreu várias derrotas: a maioria dos partidos que deveriam estar sob o comando da organização do ideólogo americano faltaram com suas promessas. O estado italiano chegou mesmo a expulsá-lo do mosteiro do século XIII que Bannon tinha a intenção de transformar em uma escola de formação para seus “gladiadores do povo”. Mas sua ideia paradoxal de uma Internacional Nacionalista não parou de progredir mundo afora. A ponto de, como notou a cientista política espanhola Astrid Barrio-Lopez, a única verdadeira campanha comum para as eleições europeias de maio de 2019 ter sido conduzida pelos partidos antieuropeístas, que se reuniram no átrio do Duomo, em Milão.
As trocas e colaborações entre nacionalistas se multiplicam em todos os níveis. Graças ao apoio financeiro da Secure America Now Foundation, a agência de comunicação digital Harris Media pôde criar vídeos antimuçulmanos e contra a imigração que atingiram uma dimensão viral dos dois lados do Atlântico. Essa mesma agência teve um papel determinante na propaganda da AFD na Alemanha, difundindo na rede campanhas publicitárias dirigidas a diferentes públicos: mensagens sobre a segurança para as mães de família; mensagens sobre o desemprego para os operários, e assim por diante. Na Espanha, o poder crescente do partido de extrema-direita Vox contou com a ajuda de uma cadeia internacional de doadores que vai dos bilionários ultraconservadores americanos aos oligarcas russos, passando pela princesa Von Thurn und Taxis, todos reunidos no seio da fundação madrilenha Citizen Go, organização que ganhou visibilidade com cartazes afixados em ônibus que circulavam por todas as cidades espanholas mostrando Adolf Hitler maquiado com batom e acompanhado da hashtag #feminazis.
Se, no passado, os movimentos nacionalistas europeus eram divididos por suas origens e seus programas, que os punham automaticamente em conflito uns com os outros, hoje os pontos em comum tendem cada vez mais a ganhar a dianteira. Basta pensar na questão do Tirol do Sul, anexado à Itália, que por muito tempo dividiu os nacionalistas italianos e austríacos. Nos dias atuais, como escreve Anne Applebaum, “a aversão aos casamentos gays e aos motoristas de táxi africanos é um sentimento que mesmo os austríacos e os italianos, que vivem em desacordo sobre a localização de sua fronteira, podem partilhar”. Quando era ministro do Interior, Matteo Salvini, a propósito, inspirou-se em grande medida no seu homólogo austríaco, o ideólogo ultranacionalista Herbert Kickl, que propagava as injúrias anti-imigração e anti-islã utilizando a máquina do Estado e, em especial, a polícia, para reforçar sua propaganda identitária.
A internacional dos nacionalistas se desenvolve bem além das fronteiras da velha Europa. Em primeiro de janeiro de 2019, em Brasília, a cerimônia de posse do novo presidente Jair Bolsonaro foi celebrada com entusiasmo por seus dois principais aliados ideológicos na Europa e no Oriente Médio, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban e o israelense Benjamin Netanyahu, que estiveram presentes à capital brasileira. Mesmo ausente, Donald Trump fez questão de participar da festa expressando sua alegria no Twitter: “Os Estados Unidos estão com você!”. Resposta de Bolsonaro: “Juntos, sob a proteção de Deus, nós traremos prosperidade e progresso a nossos povos!”. Alguns dias depois, por ocasião da primeira visita oficial de Bolsonaro à Casa Branca, Steve Bannon organizou a projeção de um documentário sobre o ideólogo do presidente brasileiro, o filósofo/astrólogo Olavo de Carvalho, com quem ele partilha várias ideias e a quem considera, em suas próprias palavras, “um pensador seminal”. O terceiro filho de Bolsonaro, Eduardo, encarregado das relações internacionais de seu pai, compareceu à projeção – que ocorreu, evidentemente, no hotel Trump Internacional – exibindo um boné com as palavras “Make Brazil Great Again”.
Bem longe de se resumir ao aspecto anedótico, essa colaboração tem consequências consideráveis no plano geopolítico, e já modificou os contornos do ciberespaço, pelo desenvolvimento de uma cadeia global de pessoas capazes de conduzir operações de desinformação de um canto a outro do planeta. Além do mais, gera relações e trocas de experiências que permitem aos nacional-populistas replicar, por diversos países, os modelos de campanhas mais eficazes.
Nesse contexto, a Itália continua no papel de laboratório mais avançado da inovação política, um Vale do Silício do populismo para onde os engenheiros do caos – e não apenas Bannon – afluem em peregrinações destinadas a detectar as últimas invenções dos netos de Maquiavel. O Guardian contou, numa longa reportagem, a maneira pela qual Nigel Farage e Arron Banks conseguiram criar, em apenas dois meses, um partido político, o Brexit Party, que ganhou as eleições europeias de 2019 com 32% dos votos na Grã-Bretanha, adotando o modelo do Movimento 5 Estrelas italiano. “O Brexit Party é a cópia fiel do M5E”, diz Banks. “O que o 5 Estrelas fez, e que nós estamos fazendo como Brexit Party, é ter uma estrutura central hipercontrolada, quase uma ditadura ao centro, o que impede os lunáticos de tomarem as rédeas”. Antes de Banks, Nigel Farage já se havia explicado numa entrevista, em 2015: “Se eu fosse criar o UKIP (UK Independence Party) hoje, será que passaria 20 anos organizando reuniões nas cidades, ou fundaria um partido sob o modelo Grillo? Sei exatamente o que eu faria”.
O exemplo de Banks e Farage é importante porque ilustra o ponto essencial do caso italiano, ignorado no âmbito dos alarmes sobre a ascensão da direita e o retorno do fascismo que se espalharam nos últimos tempos. O que está em jogo na Itália não é a reedição dos anos 1920 ou 1930 do século passado, mas a emergência de uma nova forma política moldada pela internet e pelas novas tecnologias.
Desse ponto de vista, se Matteo Salvini representa sem dúvida a personalidade mais marcante da temporada política atual, o fenômeno mais intrigante é, na verdade, o do Movimento 5 Estrelas. Foi esse último que fez Salvini entrar no jogo, ao permitir que uma força extremista minoritária como a Liga chegasse ao governo com 17% dos votos, aumentando seu apoio e instaurando, assim, uma verdadeira hegemonia cultural no país.
E é esse mesmo Movimento que, depois, o privou do poder ao aliar-se à esquerda na base de um programa pró-europeu, completamente oposto àquele sobre o qual se baseava sua aliança com a Liga.
Partidos xenófobos de direita existem mais ou menos em toda a Europa, com taxas de adesão similares ou até superiores às da Liga antes da primavera de 2018. Mas eles não atingem a maioria, e em geral não encontram aliados dispostos a governar a seu lado. A verdadeira especificidade italiana é o algoritmo pós-ideológico do Movimento 5 Estrelas, que colheu um terço dos votos dos italianos nas eleições graças a uma plataforma sem nenhum conteúdo político e, portanto, pronta a ser utilizada por qualquer um para chegar ao poder – seja Salvini ou seus adversários pró-europeus do Partido Democrata.
O que faz da Itália, mais uma vez, o Vale do Silício do populismo é que lá, pela primeira vez, o poder foi conquistado por uma forma nova de tecnopopulismo pós-ideológico, fundado não em ideias, mas em algoritmos disponibilizados pelos engenheiros do caos. Não se trata, como em outros países, de homens políticos que empregam técnicos, mas de técnicos que tomam diretamente as rédeas do movimento, fundam partidos e escolhem os candidatos mais aptos a encarnar sua visão, até assumir o controle do governo de toda a nação.
Essa história é pouco conhecida fora da Itália, mas merece ser contada para que se possa começar a delimitar as fronteiras da terra incognita na qual nossas democracias começaram a afundar.
Os Engenheiros do Caos - Introdução
Em 19 de fevereiro de 1787, Goethe está em Roma. Chegou à cidade no início de outono e tratou de ocupar um apartamento anônimo na Via del Corso, de onde pode contemplar, sem ser visto, a animação da principal artéria do centro histórico. O poeta veio procurar na cidade eterna tudo o que, até agora, foi negado à sua vida de filho prodígio da literatura alemã, conselheiro privado do grande duque de Weimar e responsável pelas minas e vias públicas do ducado. Acima de tudo, Goethe veio em busca da liberdade de dispor de seu tempo como bem entender. Para não ser importunado pelos admiradores do Jovem Werther (Marco inicial do Romantismo, Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, provocou, por toda a Europa após sua publicação, além de admiração, uma onda de suicídios, o chamado “efeito Werther”. [N.T.] – que o seguem há anos, onde quer que vá – decidiu assumir a falsa identidade de um pintor, Jean Philippe Möller, o que lhe vem garantindo, até o momento, a tranquilidade que tanto almeja.
Nesse dia 19 de fevereiro, o poeta nota uma forte agitação do lado de fora. Então, inclina-se à janela e vê uma cena inesperada: nas varandas e diante das portas dos prédios vizinhos, os moradores instalaram cadeiras e tapetes. Como se, de repente, quisessem transformar a rua em salão. Ao mesmo tempo, ao longo da Via del Corso, o sentido do trânsito de carroças se inverteu, produzindo o caos, e personagens curiosos começaram a despontar na multidão. “Rapazes disfarçados de mulheres do povo, com seus trajes de festa, o peito descoberto, audaciosos até a insolência, acariciam os homens com quem cruzam, tratam, com familiaridade e sem cerimônia, as mulheres como suas colegas e se deixam levar por todos os excessos, ao sabor dos caprichos, do espírito e da vulgaridade”. Simetricamente, “as mulheres também se divertem prazerosamente ao mostrar-se em trajes masculinos”, produzindo resultados que o poeta não hesita em definir como “muito interessantes”. Há até, no meio do povo, um personagem com duas faces: “Não se entende se é sua frente ou sua traseira, nem se ele vai ou vem”.
É o começo do Carnaval, a festa que tem por hábito virar o mundo de cabeça para baixo, invertendo não somente as relações entre os sexos mas também entre as classes e todas as hierarquias – que, em tempos normais, regem a vida social. “Aqui, basta um sinal”, prossegue Goethe em seu relato, “para anunciar que cada um pode enlouquecer do modo que deseja e que, à exceção de golpes de porrete ou de faca, quase tudo é permitido. A diferença entre castas alta e baixa parece, por um instante, suspensa; todos se aproximam uns dos outros, todos aceitam com desenvoltura seus destinos, enquanto a liberdade e a permissividade são mantidas em equilíbrio pelo bom humor universal.”
Dentro desse espírito, os cocheiros se fantasiam de senhores e os senhores, de cocheiros. E mesmo os abades, com suas túnicas negras, geralmente merecedoras do maior respeito, viram alvos ideais dos lançadores de confetes de gesso e argila. Assim, os pobres coitados ficam rapidamente cobertos, dos pés à cabeça, de manchas brancas e cinzentas. Ninguém está imune a um ataque, muito menos os membros das famílias mais bem situadas. Esses se concentram à altura do Palazzo Ruspoli, onde se desencadeiam, por sinal, os “assaltos” mais cruéis e as “batalhas” mais sangrentas. Ao mesmo tempo, os polichinelos, às centenas, surgem e se reú nem em outro endereço. Depois, elegem um rei, entregam-lhe um cetro, acompanham-no ao som de música e conduzem-no aos urros à frente do Corso, num pequeno carro decorado.
Tudo isso se dá numa atmosfera de alegria coletiva, mesmo que Goethe não se furte a perceber algumas notas desafinadas: “Não é raro”, ele observa em dado momento, “que a batalha fique séria e se generalize; então, é assustador testemunhar a obstinação e o ódio pessoal que vai tomando conta de todos”. Ou ainda, descrevendo a corrida de cavalos que passa pelo Corso, ele menciona graves incidentes e as “numerosas tragédias, que, no entanto, passam despercebidas, e às quais não se dá nenhuma importância”. É a face obscura do Carnaval, a combinação inextricável da festa e da violência sobre a qual se ergue seu potencial subversivo. E que deixa no peito dos participantes, quase sempre, uma dúvida sobre a natureza real daquilo que se passou. O Carnaval não é uma festa como as outras, mas a expressão de um sentimento profundo e impossível de se deter, latente sob as cinzas da cultura dos povos. Não é por acaso, como observa Goethe, que não se trata de uma celebração oferecida ao povo pelas autoridades, mas sim uma “festa que o povo oferece a si mesmo”.
Desde a Idade Média, o Carnaval é a ocasião para o povo derrubar, de forma simbólica e por um tempo limitado, todas as hierarquias instituídas entre o poder e os dominados, entre o nobre e o trivial, entre o alto e o baixo, entre o refinado e o vulgar, entre o sagrado e o profano. Nesse clima, os loucos viram sábios, os reis, mendigos, e a realidade se confunde com a fantasia. Um golpe de Estado simbólico que termina quase sempre com a eleição de um rei, substituto temporário da autoridade oficial.
Não se deve, portanto, estranhar que a fronteira entre a dimensão lúdica e a dimensão política do Carnaval sempre tenha sido, em essência, frágil. A prova está nos vários episódios durante os quais a festa se transformou em revolta, a ponto de gerar verdadeiros massacres, sempre que a multidão não se contentou em destituir os poderosos para rir – mas, em vez disso, tentou assassiná-los de fato. Não é tampouco surpreendente que essa festa tenha sido abolida, em algum momento, em quase todos os lugares, inclusive em Roma, ao raiar da Revolução Francesa, por temor de que se produzisse um contágio. Na França, foram os jacobinos, eles mesmos, que suspenderam o Carnaval, chegando ao extremo de punir com a pena de morte aqueles que tivessem a audácia de se fantasiar. “É uma festa boa para os povos escravos”, diria Marat (Jean-Paul Marat (1743-1793), jornalista, filósofo, médico, teórico e político radical da Revolução Francesa. [N.T.]). Ou seja, a Revolução realizou, efetivamente e de uma vez por todas, a grande virada. Logo, é inútil insistir em se disfarçar: circulem, não há nada para ver.
Contudo, nenhum poder jamais conseguiu se libertar completamente do Carnaval e de seu espírito subversivo. Ao longo de séculos, esse espírito percorreu infatigavelmente as ruas para se estampar nos panfletos e nas caricaturas dos jornais populares. Até reaparecer, mais recentemente, nas sátiras dos shows de TV e nos ataques dos trolls (na linguagem da internet, designa usuários que disseminam a discórdia, a fúria e o caos nas redes sociais, aleatoriamente ou com estratégias definidas. [N.T.]) na internet. Mas só muito recentemente o Carnaval deixou, por fim, sua praça preferida, às margens da consciência do homem moderno, para adquirir uma centralidade inédita, posicionando-se como o novo paradigma da vida política global.
Em Roma, mais de dois séculos após a visita de Goethe, o Carnaval reconquista seus direitos. Em primeiro de julho de 2018, um novo governo assume. Seu chefe é Mister Chance, o jardineiro do filme com Peter Sellers. Como em Muito além do jardim, Giuseppe Conte – o novo presidente do Conselho de Ministros – é um anônimo sempre meio deslocado que, por uma série de estranhas coincidências, chega ao topo do poder. Mas, ao contrário do jardineiro de Sellers, no dia seguinte à nomeação desse desconhecido professor sem a menor experiência política, os principais jornais estrangeiros tentam desmascará-lo. Assim, eles revelam que o único elemento de informação disponível sobre Mister Conte, seu curriculum vitae on-line, está repleto de fake news. A partir desse momento, começam a chover nos quatro cantos do planeta os desmentidos das universidades mais prestigiosas do mundo – New York University (NYU), Cambridge, Sorbonne – citadas no CV do jardineiro como “locais de aperfeiçoamento”. As instituições confirmam, de imediato, não terem achado qualquer traço de sua passagem pelos corredores de suas escolas.
No entanto, mesmo tendo sido pego de calças curtas em cadeia global, o imperturbável Mister Conte persiste em sua ascensão à cúpula das instituições italianas. O que permite aos dois líderes políticos do Movimento 5 Estrelas e da Liga, verdadeiros homens fortes do novo governo, atingir seu objetivo: ocupar tranquilamente seus lugares no pódio logo abaixo dele. Ao menos o primeiro, à frente do Movimento 5 Estrelas, Luigi Di Maio – nomeado vice-presidente do Conselho e ministro da Indústria e do Trabalho – não tem problemas de currículo. Aos 30 anos e sem diploma universitário, ele só conta com uma única experiência em seu ativo profissional antes de virar deputado graças aos 189 votos obtidos nas primárias do Movimento 5 Estrelas: guia do estádio San Paolo de Nápoles. “Eu trabalhava no mais alto nível”, declarou ao jornal Corriere della Sera, “acompanhei muitos VIP até seus lugares”. Mas isso não o impede de assumir rapidamente um dos principais papéis do novo “Carnaval” romano, distinguindo-se graças à sua inefável capacidade de dizer tudo – e também o contrário – no espaço de poucas horas, e de protagonizar gafes e fake news em série. Como quando declarou que o governo estava imprimindo seis milhões de cartões de salário-cidadão, quando a adoção do benefício não havia sido aprovada nem sequer apresentada ao parlamento. Ou quando, em visita oficial à China, dirige-se ao líder supremo Xi Jinping chamando-o de “Senhor Ping”.
O verdadeiro homem forte, coroado pela Time Magazine como a nova cara da Europa, é, no entanto, o outro vice-presidente, Matteo Salvini, que, desde que assumiu a função, dá vida ao espetáculo de um ministro do Interior que tuíta diariamente para espalhar o medo e incitar o ódio racial. A partir do início de seu mandato, muitas dezenas de vídeos virais postados por Salvini referem-se a delitos cometidos por negros ou clandestinos, de casos mais graves a acontecimentos os mais triviais. “Hoje, em toda a Itália”, ele comenta, por exemplo, durante o verão de 2018, “fiéis muçulmanos celebraram a festa do sacrifício, que prevê o martírio de um animal, degolando-o. Em Nápoles, este cabrito foi salvo no último minuto, mas no resto do país centenas de milhares de bestas foram abatidas sem piedade”.
Fica bastante claro que, mesmo ocupando uma função institucional, “o Capitão”, como o chamam os partidários, não se importa muito com a veracidade dos fatos que dissemina. Ele não hesita em difundir uma falsa informação sobre os que reivindicam asilo, que teriam organizado uma manifestação em Vicenza para poderem assistir ao canal de televisão a cabo Sky. Uma história que foi desmentida pela prefeitura, ou seja, por um órgão que integra o ministério que o próprio Salvini dirige.
*
Em sua aparição inaugural na cena política, os demais membros do governo são, do primeiro ao último, desconhecidos do público italiano. Mas eles não demoram a se aclimatar. Assim, no dia mesmo em que assume o cargo, o novo ministro da Família declara que “não existem famílias gays”. O ministro da Saúde, interpelado sobre o tema das vacinas, responde que, no que depender dele, é pessoalmente favorável, mas nada impede que se sustentem opiniões contrárias. Por sua vez, o ministro da Justiça põe imediatamente na ordem do dia uma das medidas centrais de seu programa: a abolição da prescrição de crimes e contravenções. Ou seja, no país do populismo real, deve ser possível mover um processo contra qualquer pessoa a qualquer momento. Não por acaso, ao pedir o apoio do parlamento a seu governo, Mister Conte, num ato falho flagrante, declara estar pronto para defender a “presunção de culpa”.
Dias depois, para completar as fileiras do governo, apresentam-se outros personagens que, por sua vez, parecem ter sido selecionados para uma filmagem de Monty Python.
Maurizio Santangelo, o novo secretário de Estado, encarregado da articulação no parlamento, é adepto da teoria dos “traços químicos”, segundo a qual os aviões de linhas comerciais seriam utilizados por governos para espalhar na atmosfera agentes químicos ou biológicos nocivos à população. Para confirmar essa teoria, ele posta de tempos em tempos, nas redes sociais, fotos de rastros brancos no céu que considera suspeitos, acompanhadas de comentários do tipo “Em que este céu faz você pensar?”.
O subsecretário de Estado do Interior, Carlo Sibilia, por sua vez, não é do tipo que se deixa enganar: a ideia segundo a qual os americanos desembarcaram na Lua ainda não o convence. “Hoje, festeja-se o aniversário da chegada à Lua”, tuitou Sibilia. “Será possível que ninguém tenha a coragem de dizer que foi tudo uma grande farsa?”
O mais afiado em matéria de teorias da conspiração, porém, é, sem dúvida, o secretário de Relações Exteriores com a Europa, Luciano Barra Caracciolo. No seu blog Orizzonte48, ele ataca o euro, compara a União Europeia à Alemanha nazista e lança teses conspiratórias como a Hazard Circular, pregando que forças financeiras obscuras teriam abolido a escravidão em troca de uma forma de opressão sutil fundada sobre o controle da moeda.
Só o Carnaval político romano consegue ir ainda mais longe em sua loucura do que a fantasia de Barra Caracciolo. De fato, a cena política de Roma viu a maioria de seus personagens mudar de máscara durante o verão de 2019, passando de um governo soberanista antieuropeu, guiado por Mister Conte, a um governo progressista pró-europeu, também dirigido pelo inefável jardineiro Conte, acompanhado de seu cortejo de polichinelos – entre os quais o líder do Movimento 5 Estrelas, Luigi Di Maio, promovido a ministro das Relações Exteriores graças, principalmente, às suas excelentes relações com o “senhor Ping”.
Mas se a Itália se destaca, como de hábito, nesse quesito, a volta por cima do Carnaval vai bem além da península. Onde quer que seja, na Europa ou em outros continentes, o crescimento dos populismos tomou a forma de uma dança frenética que atropela e vira ao avesso todas as regras estabelecidas. Os defeitos e vícios dos líderes populistas se transformam, aos olhos dos eleitores, em qualidades. Sua inexperiência é a prova de que eles não pertencem ao círculo corrompido das elites. E sua incompetência é vista como garantia de autenticidade. As tensões que eles produzem em nível internacional ilustram sua independência, e as fake news que balizam sua propaganda são a marca de sua liberdade de espírito.
No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por um outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática. Diante desse espetáculo, é grande a tentação, para muitos observadores, de levar as mãos aos céus e dar razão ao bardo: “O tempo está fora do eixo!” (Fala de Hamlet (IV), de William Shakespeare, também traduzida como “o mundo está fora do eixo”. [N.T.]). No entanto, por trás das aparências extremadas do Carnaval populista, esconde-se o trabalho feroz de dezenas de spin doctors (Consultores políticos que se ocupam, diante de determinada situação de impasse, crise ou estagnação, em identificar a direção capaz de mudar a tendência a favor de um candidato ou campanha. [N.T.]), ideólogos e, cada vez mais, cientistas especializados em Big Data (Área do conhecimento que se dedica a lidar com quantidade de dados tão extensa que é impossível analisá-los pelos sistemas tradicionais. Presente também na ciência e em diversos campos, tem sido amplamente utilizada para potencializar e monetizar dados de usuários das redes sociais. [N.T.]), sem os quais os líderes do novo populismo jamais teriam chegado ao poder.
Este livro conta a história deles.
*
É a história de um especialista em marketing italiano que, no início dos anos 2000, compreende que a internet irá revolucionar a política, mesmo sabendo que não é chegada ainda a hora de formar um partido puramente digital. Assim, Gianroberto Casaleggio contratará um comediante, Beppe Grillo, para o papel de primeiro avatar de carne e osso de um partido-algoritmo. É o Movimento 5 Estrelas, inteiramente fundado na coleta de dados de eleitores sobre a satisfação de suas demandas, independentemente de qualquer base ideológica. Mais ou menos como se, em vez de ser recrutada por Donald Trump, uma empresa de Big Data como a Cambridge Analytica tivesse tomado o poder diretamente e escolhesse seu próprio candidato.
É a história de Dominic Cummings, diretor da campanha do Brexit, que afirma: “Se você quer fazer progressos em política, não contrate experts ou comunicadores. É melhor utilizar os físicos”. Graças ao trabalho de uma equipe de cientistas de dados, Cummings pôde atingir milhões de eleitores indecisos, de cuja existência os adversários sequer supunham, e dirigir a eles exatamente as mensagens que precisavam receber, no momento certo, a fim de fazê-los pender a balança para o lado do Brexit.
É a história de Steve Bannon, o homem-orquestra do populismo americano, que, depois de conduzir Donald Trump à vitória, sonha, hoje, fundar uma Internacional Populista para combater aquilo que ele chama de “o partido de Davos das elites globais”.
É a história de Milo Yiannopoulos, o blogueiro inglês graças ao qual a transgressão mudou de campo. Se, nos anos 1960, os gestos de provocação dos manifestantes visavam sobretudo atingir a moral comum e quebrar os tabus de uma sociedade conservadora, hoje os nacional-populistas adotam um estilo transgressor em sentido oposto: quebrar os códigos das esquerdas e do politicamente correto tornou-se a regra número 1 de sua comunicação.
É a história de Arthur Finkelstein, um judeu homossexual de Nova York que se tornou o mais eficaz conselheiro de Viktor Orban, o porta-estandarte da Europa reacionária, engajado num combate impiedoso em defesa dos valores tradicionais na Hungria.
Juntos, esses engenheiros do caos estão em vias de reinventar uma propaganda adaptada à era dos selfies e das redes sociais, e, como consequência, transformar a própria natureza do jogo democrático. Sua ação é a tradução política do Facebook e do Google. É naturalmente populista, pois, como as redes sociais, não suporta nenhum tipo de intermediação e situa todo mundo no mesmo plano, com um só parâmetro de avaliação: os likes, ou curtidas. É uma ação indiferente aos conteúdos porque, como as redes sociais, só tem um objetivo: aquilo que os pequenos gênios do Vale do Silício chamam de “engajamento” e que, em política, significa adesão imediata.
Se o algoritmo das redes sociais é programado para oferecer ao usuário qualquer conteúdo capaz de atraí-lo com maior frequência e por mais tempo à plataforma, o algoritmo dos engenheiros do caos os força a sustentar não importa que posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica, desde que ela interprete as aspirações e os medos – principalmente os medos – dos eleitores.
Para os novos Doutores Fantásticos da política, o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los, mesmo à revelia. Para conquistar uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir-se aos extremos.
Cultivando a cólera de cada um sem se preocupar com a coerência do coletivo, o algoritmo dos engenheiros do caos dilui as antigas barreiras ideológicas e rearticula o conflito político tendo como base uma simples oposição entre “o povo” e “as elites”. No caso do Brexit, assim como nos casos de Trump e da Itália, o sucesso dos nacional-populistas se mede pela capacidade de fazer explodir a cisão esquerda/direita para captar os votos de todos os revoltados e furiosos, e não apenas dos fascistas.
Naturalmente, como as redes sociais, a nova propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem a maior participação, daí o sucesso das fake news e das teorias da conspiração. Mas tal tipo de comunicação possui também um lado festivo e libertário, comumente desconhecido daqueles que enfatizam unicamente a faceta sombria do Carnaval populista. O escárnio vem sendo, desde então, a ferramenta mais eficiente para dissolver as hierarquias. Durante o Carnaval, um bom e libertador ataque de riso é capaz de enterrar a ostentação do poder, suas regras e suas pretensões. Nada mais devastador para a autoridade que o impertinente, que a transforma em objeto de ridículo.
Diante da seriedade programática do poder, do tédio arrogante que emana de cada um de seus gestos, o bufão transgressor à la Trump, ou a explosão contestatória dos Gilets Jaunes – os Coletes Amarelos franceses – funcionam como uma boa chicotada no lombo para liberar as energias. Os tabus, a hipocrisia e as convenções da língua desmoronam em meio às aclamações da multidão em delírio.
Durante o Carnaval, não há lugar para o espectador. Todos participam juntos da celebração desvairada do mundo ao avesso, e nenhum insulto ou piada é vulgar se contribui para a demolição da ordem dominante e sua substituição por alguma dimensão de liberdade e fraternidade. O Carnaval produz, naquele que dele participa, uma intensa sensação de plenitude e de renascimento – o sentimento de pertencer a um corpo coletivo que se renova. De espectador, cada um se torna ator, sem nenhuma distinção baseada em grau de instrução. A opinião do primeiro que passa vale tanto quanto, ou talvez mais, que a do expert. Enquanto isso, a máscara coletiva se mudou para a internet, em que o anonimato tem o mesmo efeito de desinibição que, tempos atrás, nascia no momento de se vestir uma fantasia. Os trolls são, assim, os novos polichinelos, que jogam gasolina no fogo libertador do Carnaval populista.
Nesse clima, não há nada mais inconveniente que interpretar o papel do espírito de porco. O fact-checker (Checador de fatos”. O fact-checking é uma das tendências mais profusas das mídias tradicionais de hoje, cuja atividade é ameaçada pelas ondas de fake news . [N.T.]) que demonstra o erro com caneta de marcador vermelha, o liberal (Aqui e nas demais menções neste livro, utilizado na acepção anglófona política do termo, no sentido de progressista , e não no âmbito do liberalismo econômico, como é mais corrente no Brasil. [N.T.]) com a sobrancelha elevada de indignação contra a vulgaridade dos novos bárbaros. “É por isso que a esquerda é tão infeliz”, diz Milo Yiannopoulos, “ela não tem a menor tendência à comédia e à celebração”. Aos olhos do populista em estado festivo, o progressista é um pedante com o dedo mindinho empinado. Seu pragmatismo virou sinônimo de fatalismo, enquanto os reis do Carnaval prometem dinamitar a realidade existente.
A vida não é feita de direitos e deveres, de números a serem respeitados e de formulários a preencher. O novo Carnaval não se afina com o senso comum – ele tem sua própria lógica, mais próxima daquela de um teatro do que de uma sala de aula, mais ávida de corpos e imagens que de textos e ideias, mais concentrada na intensidade da narrativa que na exatidão dos fatos. Uma razão com certeza muito distante das abstrações cartesianas – mas não desprovida de uma coerência inesperada, em especial no que se refere à sua maneira sistemática de revirar as normas consolidadas para afirmar outras, de sinal contrário.
Por trás do aparente absurdo das fake news e das teorias da conspiração, oculta-se uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda. Contrariamente às informações verdadeiras, elas constituem um formidável vetor de coesão. “Por vários ângulos, o absurdo é uma ferramenta organizacional mais eficaz que a verdade”, escreveu o blogueiro da direita alternativa americana Mencius Moldbug.
“Qualquer um pode crer na verdade, enquanto acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade – e que possui um uniforme, e um exército.”
Assim, o líder de um movimento que agregue as fake news à construção de sua própria visão de mundo se destaca da manada dos comuns. Não é um burocrata pragmático e fatalista como os outros, mas um homem de ação, que constrói sua própria realidade para responder aos anseios de seus discípulos. Na Europa, como no resto do mundo, as mentiras têm a dianteira, pois são inseridas numa narrativa política que capta os temores e as aspirações de uma massa crescente do eleitorado, enquanto os fatos dos que as combatem inserem-se em um discurso que não é mais tido como crível. Na prática, para os adeptos dos populistas, a verdade dos fatos, tomados um a um, não conta. O que é verdadeiro é a mensagem no seu conjunto, que corresponde a seus sentimentos e suas sensações.
Diante disso, é inútil acumular dados e correções, se a visão do conjunto dos governantes e dos partidos tradicionais continua a ser percebida por um número crescente de eleitores como pouco pertinentes em relação à realidade.
Para combater a grande onda populista é preciso, primeiro, compreendê-la e não se limitar a condená-la ou liquidá-la como uma nova “Idade da desrazão”, como faz George Osborne, o último chanceler do tesouro de David Cameron, no título de seu livro mais recente. O Carnaval contemporâneo se alimenta de dois ingredientes que nada têm de irracional: a cólera de alguns meios populares, que se fundamenta sobre causas sociais e econômicas reais; e uma máquina de comunicação superpotente, concebida em sua origem para fins comerciais, transformada em instrumento privilegiado de todos aqueles que têm por meta multiplicar o caos.
Se escolhi, para este livro, me concentrar no segundo aspecto, não é de modo algum para negar a importância das fontes reais da revolta. As ações dos engenheiros do caos não explicam tudo, longe disso. O que torna tais personagens interessantes, mais que o fato de terem sabido captar antes dos outros os sinais da mudança em curso, é a forma pela qual se aproveitaram disso para avançar da margem para o centro do sistema. Para o bem e, sobretudo, para o mal, suas intuições, suas contradições e suas idiossincrasias são aquelas que marcam o nosso tempo.