CONCLUSÃO
O ESGOTAMENTO DA DEMOCRACIA LIBERAL
Quais traços caracterizam a razão neoliberal? Ao fim deste estudo, podemos destacar quatro.
Em primeiro lugar, ao contrário do que pensavam os economistas clássicos, o mercado apresenta-se não como um dado natural, mas como uma realidade construída que, como tal, requer a intervenção ativa do Estado, assim como a instauração de um sistema de direito específico. Nesse sentido, o discurso neoliberal não é diretamente articulado a uma ontologia da ordem mercantil, pois, longe de buscar em algum “curso natural das coisas” o fundamento de sua própria legitimidade, ele assume deliberada e explicitamente seu caráter de “projeto construtivista”[1].
Em segundo lugar, a essência da ordem de mercado reside não na troca, mas na concorrência, definida como relação de desigualdade entre diferentes unidades de produção ou “empresas”. Por conseguinte, construir o mercado implica fazer valer a concorrência como norma geral das práticas econômicas[2]. Nesse sentido, é forçoso reconhecer que a principal lição dos ordoliberais prevaleceu: a missão dada ao Estado, que vai muito além do tradicional papel de “vigia noturno”, é instaurar a “ordem-quadro” a partir do princípio “constituinte” da concorrência, “supervisionar o quadro geral”[3] e zelar para que este seja respeitado por todos os agentes econômicos.
Em terceiro lugar, o que é ainda mais novo, tanto relativamente ao primeiro liberalismo quanto ao liberalismo “reformador” dos anos 1890-1920, o Estado não é simplesmente o guardião vigilante desse quadro; ele próprio, em sua ação, é submetido à norma da concorrência. Segundo esse ideal de uma “sociedade de direito privado”[4], não existe nenhuma razão para que o Estado seja exceção às regras de direito que ele próprio é encarregado de fazer aplicar. Muito pelo contrário, toda forma de autoisenção ou autodispensa de sua parte apenas o desqualificaria em seu papel de guardião inflexível dessas mesmas regras. Resulta dessa primazia absoluta do direito privado um esvaziamento progressivo de todas as categorias do direito público que vai no sentido não de uma ab-rogação formal destas últimas, mas de uma desativação de sua validade operatória. O Estado é obrigado a ver a si mesmo como uma empresa, tanto em seu funcionamento interno como em sua relação com os outros Estados. Assim, o Estado, ao qual compete construir o mercado, tem ao mesmo tempo de construir-se de acordo com as normas do mercado.
Em quarto lugar, a exigência de uma universalização da norma da concorrência ultrapassa largamente as fronteiras do Estado, atingindo diretamente até mesmo os indivíduos em sua relação consigo mesmos. De fato, a “governamentalidade empresarial” que deve prevalecer no plano da ação do Estado tem um modo de prolongar-se no governo de si do “indivíduo-empresa” ou, mais exatamente, o Estado empreendedor deve, como os atores privados da “governança”, conduzir indiretamente os indivíduos a conduzir-se como empreendedores. Portanto, o modo de governamentalidade própria do neoliberalismo cobre o “conjunto das técnicas de governo que ultrapassam a estrita ação de Estado e orquestram a forma como os sujeitos se conduzem por si mesmos”[5]. A empresa é promovida a modelo de subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar.
Uma racionalidade ademocrática
Da construção do mercado à concorrência como norma dessa construção, da concorrência como norma da atividade dos agentes econômicos à concorrência como norma da construção do Estado e de sua ação e, por fim, da concorrência como norma do Estado-empresa à concorrência como norma da conduta do sujeito-empresa, essas são as etapas pelas quais se realiza a extensão da racionalidade mercantil a todas as esferas da existência humana e que fazem da razão neoliberal uma verdadeira razão-mundo.
Mas que o leitor não se engane: não se trata aqui de voltar ao tema habermasiano da “colonização do mundo vivido”, simplesmente porque jamais existiu um “mundo da vida” (Lebenswelt) que não fosse sempre já pego em discursos ou invadido por dispositivos de poder. Trata-se de mostrar a que ponto essa extensão, fazendo desaparecer a separação entre esfera privada e esfera pública, corrói até os fundamentos da própria democracia liberal. De fato, esta última pressupunha certa irredutibilidade da política e da moral ao econômico, algo de que se encontra eco direto na obra de Adam Smith e Adam Ferguson. Além do mais, pressupunha certa primazia da lei como ato do Legislativo e, nessa medida, certa forma de subordinação do poder Executivo ao poder Legislativo[6]. Também implicava, se não uma preeminência do direito público sobre o direito privado, ao menos uma consciência aguda da necessária delimitação de suas respectivas esferas. Correlativamente, vivia de certa relação do cidadão com o “bem comum”, ou “bem público”. Por isso mesmo, pressupunha uma valorização da participação direta do cidadão nas questões públicas, em particular nos momentos em que está em jogo a própria existência da comunidade política.
A racionalidade neoliberal, ao mesmo tempo que se adapta perfeitamente ao que restou dessas distinções no plano da ideologia, opera uma desativação sem precedentes do caráter normativo destas últimas. Diluição do direito público em benefício do direito privado, conformação da ação pública aos critérios da rentabilidade e da produtividade, depreciação simbólica da lei como ato próprio do Legislativo, fortalecimento do Executivo, valorização dos procedimentos, tendência dos poderes de polícia a isentar-se de todo controle judicial, promoção do “cidadão-consumidor” encarregado de arbitrar entre “ofertas políticas” concorrentes, todas são tendências comprovadas que mostram o esgotamento da democracia liberal como norma política.
Um dos principais sintomas dessa desativação é a importância que o tema da “boa governança” ganhou no discurso de gestão. Toda a reflexão sobre a administração pública adquire um caráter técnico, em detrimento das considerações políticas e sociais que permitiriam evidenciar tanto o contexto da ação pública como a pluralidade das opções possíveis[7]. A concepção dos bens públicos, assim como os princípios de sua distribuição, é profundamente afetada. A igualdade de tratamento e a universalidade dos benefícios são questionadas tanto pela individualização do auxílio e pela seleção dos beneficiados, na qualidade de amostras de um “público-alvo”, quanto pela concepção consumista do serviço público. As categorias da gestão tendem, nesse sentido, a ocupar o lugar dos princípios simbólicos comuns que até então se encontravam no fundamento da cidadania[8]. A única questão autorizada no debate público é a da capacidade de levar a cabo “reformas” cujo sentido não é explicitado, sem que se saiba muito bem quais resultados se tenta obter por essa ação sobre a sociedade.
Além do modo de gestão e suas ferramentas técnicas, a relação entre governantes e governados é radicalmente subvertida. De fato, é toda a cidadania, tal como se construiu nos países ocidentais desde o século XVIII, que é questionada até em suas raízes. É o que se vê em especial pelo questionamento prático de direitos até então ligados à cidadania, a começar pelo direito à proteção social, que foi historicamente estabelecido como consequência lógica da democracia política. “Nada de direitos se não houver contrapartidas” é o refrão para obrigar os desempregados a aceitar um emprego inferior, para fazer os doentes ou os estudantes pagarem por um serviço cujo benefício é visto estritamente como individual, para condicionar os auxílios concedidos à família às formas desejáveis de educação parental. O acesso a certos bens e serviços não é mais considerado ligado a um status que abre portas para direitos, mas o resultado de uma transação entre um subsídio e um comportamento esperado ou um custo direto para o usuário. A figura do “cidadão” investido de uma responsabilidade coletiva desaparece pouco a pouco e dá lugar ao homem empreendedor. Este não é apenas o “consumidor soberano” da retórica neoliberal, mas o sujeito ao qual a sociedade não deve nada, aquele que “tem de se esforçar para conseguir o que quer” e deve “trabalhar mais para ganhar mais”, para retomarmos alguns dos clichês do novo modo de governo. A referência da ação pública não é mais o sujeito de direitos, mas um ator autoempreendedor que faz os mais variados contratos privados com outros atores autoempreendedores. Dessa forma, os modos de transação negociados caso a caso para “resolver os problemas” tendem a substituir as regras de direito público e os processos de decisão política legitimados pelo sufrágio universal. Longe de ser “neutra”, a reforma gerencial da ação pública atenta diretamente contra a lógica democrática da cidadania social; reforçando as desigualdades sociais na distribuição dos auxílios e no acesso aos recursos em matéria de emprego, saúde e educação[9], ela reforça as lógicas sociais de exclusão que fabricam um número crescente de “subcidadãos” e “não cidadãos”.
Seria um erro, porém, ver a racionalidade neoliberal somente como uma contestação da “terceira fase” da democratização, a que presenciou a instauração de uma “cidadania social” no século XX, completando a “cidadania civil” do século XVIII e a “cidadania política” do século XIX[10]. O welfarismo não foi apenas uma simples gestão biopolítica das populações, tampouco teve como consequência apenas o consumo de massa na regulação fordista do pós-guerra; como bem sublinhou Robert Castel, a razão do welfarismo era a integração dos assalariados no espaço político mediante o estabelecimento das condições concretas da cidadania[11]. Portanto, a corrosão progressiva dos direitos sociais do cidadão não afeta apenas a chamada cidadania “social”, ela abre caminho para uma contestação geral dos fundamentos da cidadania como tal, na medida em que a história tornou esses fundamentos solidários uns com os outros. Com isso, ela leva a uma nova fase da história das sociedades ocidentais[12].
Sob esse aspecto, é espantoso constatar a que ponto a contestação dos direitos sociais está intimamente ligada à contestação prática dos fundamentos culturais e morais, e não só políticos, das democracias liberais. O cinismo, a mentira, o menosprezo, a aversão à arte e à cultura, o desleixo da linguagem e dos modos, a ignorância, a arrogância do dinheiro e a brutalidade da dominação valem como títulos para governar em nome apenas da “eficácia”. Quando o desempenho é o único critério de uma política, que importância tem o respeito à consciência e à liberdade de pensamento e expressão? Que importância tem o respeito às formas legais e aos procedimentos democráticos? A nova racionalidade promove seus próprios critérios de validação, que não têm mais nada a ver com os princípios morais e jurídicos da democracia liberal. Sendo uma racionalidade estritamente gerencial, vê as leis e as normas simplesmente como instrumentos cujo valor relativo depende exclusivamente da realização dos objetivos. Nesse sentido, não estamos lidando com um simples “desencantamento democrático” passageiro, mas com uma mutação muito mais radical, cuja extensão é revelada, a sua maneira, pela dessimbolização que afeta a política.
É nesse sentido que Wendy Brown tem sólidas razões para utilizar o neologismo “desdemocratização”: a inutilização prática das categorias fundadoras da democracia liberal, tal como se manifesta em especial na suspensão da lei e na transformação do estado de exceção em estado permanente, tão bem analisadas por Giorgio Agamben[13], não equivale a nem prenuncia a instauração de um novo regime político[14]. Ao contrário, é a tradução de uma propensão acentuada da nova lógica normativa a apagar as diferenças entre regimes políticos, a ponto de relegá-los a uma relativa indiferenciação, a qual in fine ameaça até mesmo a pertinência da noção de “regime político” herdada da tradição clássica.
Contudo, devemos notar que essa indiferença, longe de ser um simples “acidente de percurso”, está inscrita desde o princípio no projeto intelectual e político do neoliberalismo. A oposição “democracia versus totalitarismo”, contemporânea da Guerra Fria, cuja melhor formulação foi dada por Raymond Aron[15], ocultou outra oposição igualmente importante entre duas formas de democracia. De fato, para Friedrich Hayek, a única oposição pertinente é entre liberalismo e totalitarismo, não entre democracia e totalitarismo. Fundamentar essa nova oposição exigiria, em primeiro lugar, reduzir a democracia a um procedimento de seleção dos dirigentes que deve ser julgado, antes de tudo, por seu resultado prático, e não pelos valores que pretensamente o fundamentam[16]. Enquanto a democracia diz respeito apenas à maneira de escolher os dirigentes (por eleição), o liberalismo define-se essencialmente pela exigência de uma limitação do poder (ainda que seja o da maioria). Consequentemente, mesmo que os dirigentes sejam eleitos pela maioria, basta que o poder exercido por essa maioria seja ilimitado para que haja uma “democracia totalitária”. Inversamente, o liberalismo pode ser democrático ou autoritário, conforme o modo de designação dos dirigentes. No entanto, seja democrático, seja autoritário, o liberalismo é sempre preferível à “tirania da maioria”[17].
O que está em questão aqui é a ideia de que a democracia se identifica com a soberania do povo. Para Hayek, há aí uma confusão tipicamente “construtivista” entre a origem da escolha dos representantes e o campo legítimo de exercício do poder – a doutrina da soberania do povo, na realidade, só pode resultar no reconhecimento do direito do governo de intervir de forma ilimitada nos negócios da coletividade, ao capricho das maiorias eleitorais. Não surpreende, portanto, que a atribuição direta da liberdade a um povo, tão essencial à especificidade do conceito de liberdade política, pareça suspeita enquanto tal a Hayek. Dizer de um povo que ele é livre é simplesmente operar uma “transposição do conceito de liberdade individual a grupos de homens considerados como um todo”. Ora, como observa ainda Hayek, “um povo livre nesse sentido não é necessariamente um povo de homens livres”[18]: um indivíduo pode ser oprimido num sistema democrático, assim como pode ser livre num sistema ditatorial. O valor supremo, portanto, é a liberdade individual, compreendida como a faculdade dada aos indivíduos de criar para si mesmos um domínio protegido (a “propriedade”)[19], e não a liberdade política, como participação direta dos homens na escolha de seus dirigentes. O essencial aqui é que a redução da democracia a um modo técnico de designação dos governantes permite que ela não seja mais vista como um regime político distinto dos outros e, nesse sentido, já abre caminho para a relativização dos critérios de diferenciação comumente admitidos na classificação dos regimes políticos. Se, ao contrário, sustentarmos que a democracia repousa sobre a soberania de um povo, o que aparece então é que, enquanto doutrina, o neoliberalismo é, não acidentalmente, mas essencialmente, um antidemocratismo. É isso, em particular, que o separa irredutivelmente do liberalismo de um Bentham, que, como sabemos, é favorável à democracia radical.
Um dispositivo de natureza estratégica
O fato fundamental é que o neoliberalismo se tornou hoje a racionalidade dominante, não deixando da democracia liberal nada além de um envelope vazio, condenada a sobreviver na forma degradada de uma retórica ora “comemorativa”, ora “marcial”. Enquanto tal, essa racionalidade tomou corpo num conjunto de dispositivos discursivos, institucionais, políticos, jurídicos e econômicos que formam uma rede complexa e movediça, sujeita a retomadas e ajustes em função do surgimento de efeitos não desejados, às vezes contraditórios com o que se buscava inicialmente. Podemos falar, nesse sentido, de um dispositivo global que, como qualquer dispositivo, é de natureza essencialmente “estratégica”, para empregarmos um dos termos preferidos de Foucault[20]. Isso quer dizer que esse dispositivo se constituiu a partir de uma intervenção concertada em determinadas relações de força, com o intuito de modificá-las em certa direção de acordo com um “objetivo estratégico”[21]. Esse objetivo não diz respeito a um estratagema urdido por um sujeito coletivo especializado em manipulação, mas impôs-se aos atores e, desse modo, produziu seu próprio sujeito. Como vimos antes[22], foi exatamente isso que aconteceu nos anos 1970 e 1980 com a vinculação de um projeto político a uma dinâmica endógena de regulação, vinculação entre duas lógicas cujo efeito foi a imposição do objetivo estratégico da concorrência generalizada. Apesar disso, não houve um projeto consciente de passagem do modelo fordista de regulação para outro modelo que teria primeiro de ser concebido intelectualmente para depois, numa segunda fase, ser posto em prática de forma planejada.
O caráter estratégico do dispositivo, como podemos ver, pressupõe que sejam levadas em consideração as situações históricas que permitem seu desenvolvimento e explicam a série de reajustes que o alteram no tempo e a variedade de formas que ele assume no espaço. Apenas desse modo é que se pode compreender a “virada” imposta pela extensão da crise financeira aos dirigentes dos países capitalistas dominantes. Como vimos, essa crise financeira inicia uma crise na governamentalidade neoliberal. O que temos diante de nós, além do primeiro “reparo” de emergência (implantação de novas normas contábeis, controle a minima dos paraísos fiscais, reforma das agências de classificação de riscos etc.), é muito provavelmente um reajuste de conjunto do dispositivo Estado/mercado. Questionar-se, como certos economistas, sobre a eventualidade de um novo “regime de acumulação do capital”, substituindo o regime financeiro baseado no endividamento excessivo das famílias, é absolutamente natural. Em compensação, aventurar-se a deduzir daí que esse novo regime de crescimento, valendo-se de outros mecanismos além da inflação dos ativos imobiliários e financeiros, coincidirá espontaneamente com uma contestação direta da racionalidade neoliberal é algo muito imprudente. Mas prognosticar o advento iminente de um “capitalismo bom”, com normas de funcionamento saneadas, ancorado duradouramente na “economia real”, que respeita o meio ambiente, preocupa-se com as necessidades das populações e – por que não? – zela pelo bem comum da humanidade, isso é, com toda a certeza, se não uma história edificante, ao menos uma ilusão tão nociva quanto a utopia de um mercado autorregulador. É mais certo que estejamos entrando em uma nova fase do neoliberalismo.
Pode ocorrer que, no plano da ideologia, essa nova fase seja acompanhada de certa forma de “retorno às fontes”. Afinal, o apelo à “refundação do capitalismo regulado” não recupera as tônicas dos refundadores dos anos 1930, opondo o bom “código de trânsito” das regras do direito à “lei natural” cega dos velhos adeptos do laissez-faire? Talvez venhamos a assistir, quem sabe, por um desses movimentos pendulares cujo segredo só a ideologia possui, a um vigoroso retorno da variante especificamente ordoliberal. Essa possibilidade não está excluída, sobretudo porque durante muito tempo a variante ordoliberal foi relegada por sua concorrente austro-americana a uma posição subordinada, se não pura e simplesmente ignorada[23].
Também não reconheceríamos o caráter estratégico do dispositivo neoliberal se o assimilássemos ao Gestell do último Heidegger ou à oikonomia da teologia cristã do século II de nossa era, como Agamben sugere indiretamente em O que é um dispositivo?[24]. Falar como ele de uma “genealogia teológica” dos “dispositivos” de Foucault é não compreender que, embora os dispositivos não tenham efetivamente “nenhum fundamento no ser” e, consequentemente, estejam fadados a “produzir seu próprio sujeito”, nem por isso repetem a “cesura que em Deus separa ser e ação, ontologia e práxis”[25]: ao contrário do governo dos homens por Deus, que remete ao problema teológico da encarnação, eles se constituem a partir de condições históricas sempre singulares e contingentes e, portanto, possuem um caráter exclusivamente “estratégico”, e não “destinal” ou “epocal”. Sobre esse ponto, convém recordar a observação de Foucault sobre a especificidade da nova problematização do governo, tal como ela aparece entre 1580 e 1660: se nessa ocasião a ação de governar dá lugar à tematização, é porque não conseguiu encontrar um modelo “nem da parte de Deus nem da parte da natureza”[26]. Em outras palavras, não é a “herança teológica” do governo dos homens e do mundo por Deus que explica o fato de o governo dos homens pelos homens ter se tornado um problema, mas é, na verdade, a crise do modelo do “governo pastoral” do mundo por Deus que libera a reflexão sobre a arte de governar os homens. O que é verdadeiro para o surgimento do problema geral do governo é verdadeiro também para a constituição da forma especificamente neoliberal da governamentalidade. Esta última não é a sequência necessária do regime de acumulação do capital nem um avatar da lógica geral da encarnação nem um misterioso “envio do Ser”, do mesmo modo que não é uma simples doutrina intelectual ou uma forma efêmera de “falsa consciência”.
No entanto, a racionalidade neoliberal pode articular-se a ideologias estranhas à pura lógica mercantil sem deixar de ser a racionalidade dominante. Como diz muito acertadamente Wendy Brown, “o neoliberalismo pode impor-se como governamentalidade sem ser a ideologia dominante”[27]. Mas não há dúvida de que isso não acontece sem tensões ou contradições. Nesse sentido, o exemplo norte-americano é cheio de ensinamentos. O neoconservadorismo se impôs nos Estados Unidos como a ideologia de referência da nova direita, embora o “teor altamente moralizador” dessa ideologia pareça incompatível com o caráter “amoral” da racionalidade neoliberal[28]. Uma análise superficial poderia nos levar a pensar que estamos diante de um “jogo duplo”. Na realidade, entre neoliberalismo e neoconservadorismo existe uma concordância que não é nada fortuita: se a racionalidade neoliberal eleva a empresa a modelo de subjetivação, é simplesmente porque a forma-empresa é a “forma celular” de moralização do indivíduo trabalhador, do mesmo modo que a família é a “forma celular” da moralização da criança[29]. Daí a exaltação incessante do indivíduo calculador e responsável, na maior parte das vezes pela figura do pai de família trabalhador, econômico e previdente, que acompanha o desmantelamento dos sistemas de aposentadoria, educação pública e saúde. Muito mais do que uma simples “zona de contato”, a articulação da empresa com a família é o ponto de convergência ou intersecção entre normatividade neoliberal e moralismo neoconservador. Por isso, é sempre perigoso criticar o conservadorismo moral e cultural em nome do pretenso “liberalismo” de seus partidários no campo da política econômica, porque, ao tentarmos mostrar a “incoerência” destes últimos, revelamos sobretudo nossa incompreensão da diferença que separa o neoliberalismo do “laissez-faire” e, ainda por cima, corremos o risco de ter de assumir uma espécie de laissez-faire integral e sistemático para salvar a coerência de nossa própria crítica.
Mas a concordância entre neoconservadorismo e neoliberalismo não significa que um amálgama ideológico, combinando ingredientes de procedências diversas, não possa tomar o lugar de uma corrente de ideias que hoje se apresenta largamente anêmica. A esquerda de inspiração blairista já mostrou no passado que a celebração lírica da modernidade em todos os seus aspectos, inclusive o da liberalização dos costumes, poderia perfeitamente articular-se à racionalidade neoliberal. Não é impossível que em outro plano, o da política econômica, certos elementos da doutrina keynesiana venham prestar apoio à prática do governo empresarial – retomada orçamentária temporária, suspensão provisória dos critérios de estabilidade monetária, medidas para conter a especulação dos mercados etc., todos elementos que não implicam uma mudança na divisão fundamental dos rendimentos entre capital e trabalho, ou seja, a reativação de um compromisso salarial comparável ao que se instaurou no pós-guerra. Por si só, no entanto, esse apoio puramente circunstancial e “pragmático” não é capaz de afetar a lógica normativa do neoliberalismo, uma vez que esta só poderia ser derrotada por revoltas de grandes extensões.
Inventar outra governamentalidade
A nova racionalidade propõe um tremendo desafio à esquerda: não podendo contentar-se com uma crítica incisiva à “mercantilização generalizada”, ela tem de inventar uma resposta política “à altura” do que o regime normativo dominante tem de inédito. Na medida em que este último implica o definhamento irreversível da democracia liberal, a esquerda não pode contentar-se em defender a democracia liberal, como tende a fazer. Não que ela não deva mais defender as liberdades públicas, mas deve evitar fazê-lo em nome dessa democracia, por exemplo, opondo “autoritarismo neoliberal” e “democracia liberal”. Para citar mais uma vez Wendy Brown:
"Defender a democracia liberal em termos liberais é não só sacrificar uma visão de esquerda, mas é também, por esse sacrifício, desacreditar a esquerda, reduzindo-a tacitamente a nada mais do que uma objeção permanente ao regime estabelecido: um partido de reclamações, em vez de um partido com visão política, social e econômica alternativa.[30]"
Por essa mesma razão, não poderíamos retomar a crítica marxista da “democracia formal”, porque seria ignorar que o esgotamento da democracia liberal priva essa crítica de qualquer fundamento: a governamentalidade neoliberal não é democrática na forma e antidemocrática nos fatos; ela simplesmente não é mais democrática, nem mesmo no sentido formal, mas nem por isso identifica-se com um exercício ditatorial ou autoritário do poder. Ela é ademocrática. A cisão entre o “cidadão” e o “burguês” é coisa do passado, assim como o apelo a uma reunificação do homem com ele próprio. Ainda pela mesma razão, a esquerda não pode propor-se a “dar novo fôlego a sistemas decadentes”, amparando a combalida democracia representativa com as escoras bambas da “democracia participativa”[31]. Também não pode estacionar numa linha de recuo que consiste em opor “liberalismo político” e “liberalismo econômico”, pois tal posição equivaleria a desconhecer que as próprias bases do liberalismo “puramente político” foram minadas por um neoliberalismo que é tudo, menos “puramente econômico”. De modo mais amplo, todo o espaço ocupado por aquilo que se convencionava chamar “social-democracia” é direta e radicalmente contestado, já que essa denominação devia seu sentido à possibilidade de estender a democracia política mediante o reconhecimento de direitos sociais que definem certa cidadania social, como complemento e reforço da cidadania política clássica.
A esse respeito, devemos dizer a que ponto certo léxico contribui para obscurecer as coisas. Não há e não poderia haver “social-liberalismo”, simplesmente porque o neoliberalismo, sendo uma racionalidade global que invade todas as dimensões da existência humana, veda qualquer possibilidade de prolongamento de si mesmo no plano social. Portanto, é enganadora a analogia que sugere que o “social-liberalismo” é para o neoliberalismo o que a “social-democracia” foi para democracia política. Por outro lado, o que existe realmente é um neoliberalismo de esquerda que não tem mais nada a ver com a social-democracia ou com a democracia política liberal[32]. Na verdade, o que o prefixo “social” dissimula mal é a equação sumária pela qual o liberalismo é abusivamente identificado com o laissez-faire econômico. O mesmo pode ser dito da etiqueta de “ultraliberalismo”, distribuída generosamente por grande parte da esquerda – mais generosamente ainda, aliás, porque ela se sente tentada a aproximar-se vergonhosamente da ortodoxia neoliberal ambiente[33]. Também nesse caso, devemos recordar que o neoliberalismo não se confunde com o todo-mercado, de modo que não há sentido algum em designá-lo como “ultraliberalismo” para dar a entender que existiria um liberalismo “respeitável”, que não renunciaria aos instrumentos de intervenção de Estado. Nunca é demais repetir: Hayek não é um “ultraliberal”, mas um “neoliberal” partidário de um Estado forte, como muitos outros neoliberais[34]. Quanto ao libertarismo, quer defenda o Estado mínimo, quer exija a abolição do Estado, ele não é um “ultraliberalismo”, mas outro liberalismo, cuja relação com o neoliberalismo não pode ser reduzida a uma simples diferença de grau.
A única pergunta que vale a pena fazer, na realidade, é se a esquerda pode opor uma governamentalidade alternativa à governamentalidade neoliberal. Ao final de sua aula de 31 de janeiro de 1979 sobre o Nascimento da biopolítica, Foucault se pergunta se existiu algum dia algo como uma “governamentalidade socialista autônoma”. Sua resposta é inequívoca: sempre faltou tal governamentalidade. O que a experiência histórica revela é que o socialismo sempre esteve “associado” a outras governamentalidades. Assim, pôde associar-se a uma governamentalidade “liberal” ou, ainda, a uma governamentalidade “administrativa”. Daí a questão: o que seria uma governamentalidade intrinsecamente socialista? O que Foucault afirma é que essa governamentalidade é inencontrável no socialismo e em seus textos. E, como não se pode encontrá-la, “é preciso inventá-la”[35].
Para compreender a necessidade dessa invenção, devemos retornar um breve instante à própria ideia de “governo”. Segundo Foucault, governar consiste em “dispor as coisas”, estando entendido que “coisas” não são as coisas por oposição aos homens, mas todos os “intricamentos entre os homens e as coisas”[36]. De certo modo, portanto, a ideia de governamentalidade une a ideia do governo dos homens à ideia da administração das coisas, ao passo que o paradigma da soberania faz prevalecer a relação direta do soberano com esses homens que são sujeitos dele[37].
Essa correlação entre um governo dos homens preocupado em não contrariar a natureza das coisas e uma administração das coisas que se vale da liberdade dos homens é que vai dar um impulso decisivo à reflexão sobre a arte de governar, permitindo que ela se liberte do antigo quadro jurídico da soberania. Porque, no interior desse quadro, a primazia da lei não faz mais do que refletir a relação direta da vontade do soberano com a vontade dos súditos, esta última sempre suspeita de tentar desobedecer e sempre chamada ao dever de obedecer. Assim, todas as tentativas de refundar a teoria da soberania sobre novas bases estavam fadadas a conservar essa primazia, ou até mesmo a acentuá-la, a ponto de torná-la uma verdadeira sacralização da lei. Isso vale em particular para a tentativa de Jean-Jacques Rousseau: ao mesmo tempo que tenta construir um espaço para a administração das coisas e para o governo dos homens, ele se empenha em subsumir estes últimos ao princípio da soberania. Assim, no verbete “economia política” da Enciclopédia, distingue “economia pública”, ou “governo”, de “autoridade suprema”, ou “soberania”. O governo, do qual dependem tanto o governo das pessoas quanto a administração dos bens, deve ser estritamente subordinado ao soberano, que é o único a deter o poder de fazer as leis. Daí o problema que, segundo ele, é para a política o que o problema da “quadratura do círculo” é para geometria: “pôr a lei acima do homem”[38]. Há somente uma maneira de fazer isso: “substituir o homem pela lei”[39]. O ideal, portanto, seria que as leis políticas adquirissem a mesma inflexibilidade e a mesma imutabilidade das leis da natureza, de modo que seja impossível aos homens desobedecê-las, já que então a dependência em relação às leis se identificaria pura e simplesmente com a dependência em relação às coisas[40]. O princípio da soberania da lei, elevado a absoluto por uma espécie de cruzamento do limite, tende a tornar o governo dos homens totalmente supérfluo; na medida em que, nesse caso, governar consiste em assegurar a execução das leis, temos o direito de nos perguntar que tipo de atividade restaria a um governo que não teme mais que as leis sejam violadas. O ideal seria, no fim das contas, que a invencibilidade das leis permitisse aos homens prescindir de qualquer governo.
Alguns se perguntarão, sem dúvida, o que esse reconhecimento-denegação da governamentalidade por parte de Rousseau tem a ver com a necessidade de inventar uma governamentalidade de esquerda. Essa relação é indireta, mas nem por isso é menos real. A esquerda se construiu historicamente em torno da referência ao marxismo. Ora, este último deve a Saint-Simon certa concepção de governo. Em Do socialismo utópico ao socialismo científico (1883), Engels refere-se em termos elogiosos a uma obra de Saint-Simon intitulada L’industrie: “A passagem do governo político dos homens a uma administração das coisas e a uma direção das operações de produção, portanto a ‘abolição do Estado’ acerca da qual se fez tanto barulho ultimamente, encontra-se já claramente enunciada aqui”[41]. De fato, foi Saint-Simon que elaborou a distinção fundamental entre governo e administração. Essa distinção coincide com uma verdadeira oposição entre dois tipos de regime: o “governamental ou militar”, de um lado, e o “administrativo ou industrial”, de outro[42]. Nas sociedades pré-industriais, também chamadas sociedade “militares”, a ordem social procede inteiramente do comando, o que explica a predominância do governo: a ação de governar consiste no exercício do poder de comandar outros homens por parte de certos homens e, como tal, é necessariamente arbitrária. Isso não se deve em absoluto à forma do governo (monarquia absoluta ou parlamentarismo), mas à essência dessa ação – a arbitrariedade encontra-se na própria essência de toda vontade, e a ação de governar consiste em homens dar ordens a outros homens[43].
Nas sociedades industriais modernas, as coisas são muito diferentes. Os cientistas e os industriais é que são investidos das funções de direção, não em razão de sua aptidão para conseguir que os outros obedeçam a sua vontade, isto é, em razão de seu poder, mas unicamente porque sabem mais do que os outros. Nessas condições, não são mais os homens que dirigem os homens, mas é a verdade que fala diretamente pela boca dos cientistas e dos industriais, e é sabido que nada é menos arbitrário do que a verdade. É impossível resistir à verdade, só se pode tender a ela, porque ela não comanda, mas impõe-se por si mesma, fazendo-se reconhecer. Portanto, a coerção governamental está fadada a desaparecer, da mesma forma que a arbitrariedade. Na sociedade industrial, a ação governamental é reduzida ao mínimo e tende a zero, de modo que o governo orientado pela verdade é o governo que governa o mínimo possível e tende à própria supressão. O ideal saint-simoniano é precisamente o da substituição total do governo baseado na arbitrariedade do comando pela administração baseada no conhecimento da verdade.
Esse ideal, retomado pelo marxismo, pressupõe uma dissociação radical entre a ação dos homens sobre as coisas, ou “administração”, e a ação dos homens sobre os homens, ou “governo”: “Nunca é demais repetir que não há ação útil exercida pelo homem, senão a do homem sobre as coisas. A ação do homem sobre o homem é sempre, em si mesma, prejudicial à espécie, pela dupla destruição de forças que acarreta”[44]. Como vemos, essa concepção absolutamente negativa do governo só quer desfazer o nó que a própria ideia de governamentalidade deu entre ação sobre os homens e ação sobre as coisas, reduzindo a ação de governar a coerção e comando.
Como em Rousseau, aqui também a especificidade da arte de governar é escamoteada. Obviamente, Saint-Simon não cochila em atacar Rousseau, que para ele é mais um daqueles “legistas” que submetem a sociedade à arbitrariedade das leis. A seu ver, na nova ordem das coisas “não há mais lugar para a arbitrariedade dos homens, nem mesmo para a arbitrariedade das leis, porque uma e outra somente podem exercer-se no vago que é, por assim dizer, seu elemento natural”[45]. É justamente esse “vago” que a verdade da ciência vence, e é por isso que “a ação de governar é nula, ou quase nula, enquanto ‘ação de comandar’”. Portanto, se existe soberania, ela só pode consistir “num princípio derivado da própria natureza das coisas”, não “numa opinião arbitrária alçada a lei pela massa”[46]. Em todo caso, tanto no rousseaunismo como no saint-simonismo, a atividade do governo é subalterna, seja porque a soberania pertence às leis oriundas da vontade, seja porque equivale à própria verdade. No saint-simonismo, o marxismo retomará duas ideias-chave: primeiro, que o governo tem, antes de tudo, uma função de polícia que repousa essencialmente sobre a violência e a coerção; segundo, que o governo regulado pela verdade é aquele que tende a sua própria supressão na administração das coisas. Mas ele entenderá por verdade não mais aquele “princípio imutável derivado da natureza das coisas”, mas a verdade que a história faz advir e que sua racionalidade manifesta. Seja como for, soberania das leis ou administração científica das coisas têm em comum o fato de retirar da ação de governar qualquer justificação. Conduzir os homens não é curvá-los sob o jugo inflexível da lei nem fazê-los reconhecer a força de uma verdade. É por nunca ter sabido reconhecer isso que a esquerda esteve sempre condenada a regular-se por governamentalidades emprestadas. É precisamente nisso que a governamentalidade de esquerda ainda está por se inventar.
As “contracondutas” como práticas de subjetivação
Contudo, a governamentalidade não poderia ser reduzida ao governo dos outros. Em sua outra faceta, ela compreende o governo de si. O tour de force do neoliberalismo foi unir essas duas facetas de maneira singular, fazendo do governo de si o ponto de aplicação e o objetivo do governo dos outros. O efeito desse dispositivo foi, e ainda é, a produção do sujeito neoliberal, ou neossujeito. A esquerda não pode ignorar essa realidade; ao contrário, deve reconhecê-la para melhor enfrentá-la. A pior das atitudes de sua parte seria preconizar um retorno ao compromisso social-democrata, keynesiano e fordista, em âmbito nacional ou europeu, sem se dar conta de que a dimensão dos problemas mudou, as forças presentes não são mais as mesmas e a globalização do capital destruiu até as bases de tal compromisso. No entanto, é essa atitude que se vê com frequência despontar por trás da redução do neoliberalismo a uma regressão ao “capitalismo puro” das origens. Sem ousar regozijar-se abertamente, a esquerda pega-se espreitando os sinais precursores de um retorno do pêndulo a uma regulação direta da parte dos governos. Presta pouca atenção ao fato de que esse “retorno” se opera em benefício de um Estado empresarial. De bom grado, contrapõe a “boa” racionalidade da regulação do Estado à “má” racionalidade da concorrência. Fazendo isso, negligencia o fato de que a racionalidade do capitalismo neoliberal não é uma racionalidade puramente econômica e, ao mesmo tempo, perde de vista a diferença das condições históricas, que impede qualquer retorno a uma racionalidade econômica administrativa e planificadora (supondo-se que esse retorno seja desejável, o que no mínimo é contestável). A questão não é como impor ao capital um retorno ao compromisso anterior ao neoliberalismo, mas como sair da racionalidade neoliberal.
Sabemos, porém, que é mais fácil fugir de uma prisão do que sair de uma racionalidade, porque isso significa livrar-se de um sistema de normas instaurado por meio de todo um trabalho de interiorização. Isso vale em particular para a racionalidade neoliberal, na medida em que esta tende a trancar o sujeito na pequena “jaula de aço” que ele próprio construiu para si. Assim, a questão é, primeiro e acima de tudo, como preparar o caminho para essa saída, isto é, como resistir aqui e agora à racionalidade dominante. O único caminho praticável é promover desde já formas de subjetivação alternativas ao modelo da empresa de si. A esquerda poderá argumentar que o neossujeito se formou a partir de condições que foram criadas em grande parte por uma reorientação radical da política governamental. Portanto, pode ceder à tentação, caindo na armadilha de uma analogia enganosa, de esperar que uma mudança de política consecutiva a uma mudança de governo crie as condições da construção desse outro sujeito. Isso seria ignorar que a reorientação operada pelo neoliberalismo, sendo voluntarista, não teve nada de criação ex nihilo. Ela se apoiou num movimento da economia mundial alinhado à nova norma da concorrência, de modo que os sujeitos foram como que internamente “vergados” a essa norma por múltiplas técnicas de poder. Além do mais, significaria esquecer que não se sai de uma racionalidade ou um dispositivo por uma simples mudança de política, assim como não se inventa outra maneira de governar os homens mudando de governo. Isso não significa que devemos ser indiferentes às mudanças de governo ou à política de qualquer novo governo. Seguramente, significa que a atitude que se deve adotar em tal circunstância deve obedecer a um único critério: em que medida os atos desse governo favorecem ou, ao contrário, entravam a resistência à racionalidade neoliberal? Consequentemente, nesse caso a questão do governo enquanto instituição é secundária em relação à questão do governo como atividade que estabelece uma relação consigo mesmo e, ao mesmo tempo, uma relação com os outros. Ora, essa relação dupla diz respeito precisamente à constituição do sujeito ou, em outras palavras, às práticas de subjetivação.
Compreender isso requer desfazer-se da ilusão de que o sujeito alternativo poderia ser encontrado de uma forma ou de outra como “já aí”, à maneira de um dado que quando muito se deve ativar ou estimular. Uma primeira forma dessa ilusão, da qual o marxismo sofreu no passado, é a de uma localização ontológica do sujeito da emancipação humana: haveria no ser social um local determinado que levaria a opressão a seu cúmulo, ou seja, uma classe que seria ao mesmo tempo uma “não classe”, uma “classe universal” que realizaria em suas condições de existência a “perda total do homem” e à qual caberia, por consequência, realizar a “reconquista total” do homem[47]. Essa ilusão se apoia na ideia de um privilégio ontológico de exterioridade, em virtude do qual esse sujeito social estaria situado num “fora” radical relativamente às relações de poder em que sempre são pegos os atores de uma sociedade. Encontramos semelhante ilusão de exterioridade na tese de uma “autonomia ontológica da multidão”, defendida por Michael Hardt e Antonio Negri[48]. Obviamente, esses autores repetem que nenhum lugar dentro do espaço do “Império” escapa à investida do biopoder, mas isso é para conferir à multidão um lugar ontológico próprio, que lhe permite subtrair-se – ao menos em parte – ao controle imperial[49]. O desconhecimento do processo de subjetivação posto em prática pelo neoliberalismo é tal que Negri chega a afirmar que os “homens novos” do comunismo já estão aí, produzidos pela própria dinâmica do novo “capitalismo cognitivo”[50].
Outra forma dessa mesma ilusão de um sujeito pré-dado encontrou uma formulação precisa na renovação da “teoria crítica” tentada por Axel Honneth em sua análise da “reificação”[51]. No capítulo 5 de seu tratado, ele analisa o fenômeno da autorreificação. Sob esse termo, devemos pensar uma conduta reificante de si mesmo que seria uma “espécie de engano” da relação de reconhecimento que teríamos de imediato com nós mesmos. O que está em questão aqui, portanto, não é nada mais do que a primazia dessa relação consigo mesmo “do ponto de vista da ontologia social”[52]. A afirmação dessa primazia encontra-se no fundamento de toda a análise: “nós sempre já nos reconhecemos”[53]. Certamente não se trata mais de fundamentar essa primazia na posição privilegiada de uma classe social qualquer. A questão ainda é saber se “é preciso supor previamente uma forma de relação consigo mesmo ‘originária’, normal, que permitiria descrever a reificação como um desvio problemático”[54]. Referindo-se à temática heideggeriana da “preocupação”, Honneth nos remete para além da reelaboração de Foucault do conceito de “cuidado de si”[55]. Isso significa ignorar que, para Heidegger, a “preocupação” não é o equivalente de uma relação originária de familiaridade consigo mesmo, mas antes um modo de dispersão e imersão no mundo que faz da apropriação de si mesmo uma tarefa atribuída ao Dasein. “Primeiro e no mais das vezes”, para falarmos como Heidegger, em Honneth o que predomina é o esquecimento de si, não o reconhecimento de si. A mesma observação vale mais ainda para Foucault. O volume 3 de História da sexualidade, intitulado O cuidado de si (1984), bem como o curso do Collège de France dedicado à Hermenêutica do sujeito (1981-1982), insistem num mesmo ponto: o cuidado de si está ligado não a uma relação primordial consigo mesmo, mas com uma verdadeira tekhné, a tekhné tou biou [arte da vida], que faz do “si” o término de toda uma ascese (askésis).
Isso mostra a que ponto devemos assimilar a nossa maneira a lição do neoliberalismo: o sujeito está sempre por construir. A questão se resume, então, em saber como articular a subjetivação à resistência ao poder. Ora, essa questão está precisamente no centro de todo o pensamento de Foucault. Mas, como mostrou Jeffrey T. Nealon, parte da literatura secundária norte-americana deu ênfase, ao contrário, à fratura que existiria entre as pesquisas de Foucault sobre o poder e as do último período, que tratam da história da subjetividade[56]. Segundo esse “Foucault consensus”, como jovialmente o batizou Nealon, os sucessivos impasses do neoestruturalismo dos primórdios e da análise totalizante do poder panóptico teriam levado o “último Foucault” a abandonar a questão do poder e a interessar-se exclusivamente pela invenção estética de um estilo de existência desprovido de qualquer dimensão política. Mais ainda, se seguirmos essa leitura despolitizante de Foucault, essa estetização da ética teria antecipado a mutação neoliberal, fazendo precisamente da invenção de si uma nova norma. Na realidade, longe de ser ignoradas, essas questões acerca do poder e do sujeito sempre estiveram intimamente articuladas, mesmo nos últimos trabalhos de Foucault sobre os modos de subjetivação.
Se há um conceito que teve papel decisivo a esse respeito, foi o da “contraconduta”, tal como elaborado na aula de 1º de março de 1978[57]. Essa aula trata, em grande parte, da crise do pastorado. Tenta precisar a especificidade das “revoltas”, ou “resistências de conduta”, que são como o correlato do modo de poder pastoral: se tais resistências são denominadas “resistências de conduta”, é porque são resistências ao poder enquanto conduta e, como tais, elas próprias são formas de conduta, contrárias a esse “poder-conduta”.
O termo “conduta” admite dois sentidos: o de uma atividade que consiste em conduzir os outros, ou “condução”, e o que remete à maneira como o indivíduo conduz a si mesmo sob o efeito dessa atividade de condução[58]. A ideia de “contraconduta” apresenta a vantagem, portanto, de significar diretamente uma “luta contra os procedimentos postos em ação para conduzir os outros”, ao contrário do termo “inconduta”, que se refere apenas ao sentido passivo da palavra[59]. Pela contraconduta, tenta-se tanto escapar da conduta dos outros como definir para si mesmo a maneira de se conduzir com relação aos outros.
Que interesse pode ter essa observação para uma reflexão sobre a resistência à governamentalidade neoliberal? Pode-se argumentar que esse conceito é introduzido no âmbito de uma análise do pastorado, não da governamentalidade. Precisamente, a governamentalidade, ao menos em sua forma especificamente neoliberal, faz da conduta dos outros pela conduta deles para com eles mesmos o verdadeiro objetivo que se deseja alcançar. A característica própria dessa conduta para consigo mesmo, isto é, conduzir-se como uma empresa de si mesmo, é induzir imediata e diretamente certa conduta com relação aos outros: a da concorrência com os outros, vistos como empresas de si mesmos. A consequência disso é que a contraconduta como forma de resistência a essa governamentalidade deve corresponder a uma conduta que seja indissociavelmente uma conduta para consigo mesmo e uma conduta para com os outros. Não se poderia lutar contra um modo de condução tão indireto por uma conclamação à revolta contra uma autoridade que supostamente se exerce por uma coerção externa aos indivíduos. Se “a política não é nada mais, nada menos do que aquilo que nasce com a resistência à governamentalidade, a primeira sublevação, o primeiro confronto” [60], isso quer dizer que ética e política são absolutamente inseparáveis.
À subjetivação-sujeição constituída pela ultrassubjetivação, devemos opor uma subjetivação pelas contracondutas; à governamentalidade neoliberal como maneira específica de conduzir a conduta dos outros, devemos opor, portanto, uma dupla recusa não menos específica: a recusa de se conduzir em relação a si mesmo como uma empresa de si e a recusa de se conduzir em relação aos outros de acordo com a norma da concorrência. Nisso, essa dupla recusa não está ligada a uma “desobediência passiva”[61]. Porque, se é verdade que a relação consigo da empresa de si determina imediata e diretamente certo tipo de relação com os outros (a concorrência generalizada), inversamente a recusa de funcionar como uma empresa de si, que é distanciamento de si mesmo e recusa do total autoengajamento na corrida ao bom desempenho, na prática só pode valer se forem estabelecidas, com relação aos outros, relações de cooperação, compartilhamento e comunhão. De fato, que sentido teria um distanciamento de si mesmo que não tivesse nenhuma ligação com a prática cooperativa? Na pior das hipóteses, o de um cinismo misturado ao desprezo pelos trouxas; na melhor, o de uma simulação ou um jogo duplo, talvez ditado por uma preocupação plenamente justificada de preservação pessoal, porém extenuante em longo prazo para o sujeito; seguramente, não o de uma contraconduta. Sobretudo porque esse jogo poderia levar o sujeito a refugiar-se – na falta de coisa melhor – numa identidade de compensação, que ao menos tem a vantagem de certa estabilidade, em contraste com o imperativo de superação infinita de si mesmo. Ora, a fixação da identidade, seja de que natureza for, longe de ameaçar a ordem neoliberal, aparece, ao contrário, como bater em retirada para os sujeitos cansados de si mesmos, para todos os que abandonaram a corrida ou foram excluídos dela logo de saída; pior, ela reproduz a lógica da concorrência no nível das relações entre as “pequenas comunidades”. Longe de valer por si mesma, independentemente de qualquer articulação com a política, a subjetivação individual está ligada no mais profundo de si mesma à subjetivação coletiva. Pura estetização da ética é, nesse sentido, pura e simples renúncia a uma verdadeira atitude ética. A invenção de novas formas de vida somente pode ser uma invenção coletiva, devida à multiplicação e à intensificação das contracondutas de cooperação. A recusa coletiva de “trabalhar mais”, ainda que seja apenas local, constitui um bom exemplo de atitude que pode abrir o caminho para essas contracondutas: ela rompe o que o saudoso André Gorz denominava com muita justiça “cumplicidade estrutural” que une o trabalhador ao capital, na medida em que “ganhar dinheiro”, cada vez mais dinheiro, é o objetivo determinante de ambos. Ela abre uma primeira brecha na “coerção imanente do ‘sempre mais’, ‘sempre mais rápido’”[62].
A genealogia do neoliberalismo que ensaiamos nesta obra ensina que a nova razão do mundo não é um destino necessário que subjuga a humanidade. Ao contrário da Razão hegeliana, ela não é a razão da história humana; ela é, de ponta a ponta, histórica, isto é, relativa a condições estritamente singulares que nada permite que sejam pensadas como insuperáveis. O fundamental é compreender que nada pode nos eximir da tarefa de promover outra racionalidade. É por isso que a crença de que a crise financeira anuncia por si só o fim do capitalismo neoliberal é a pior das crenças. Talvez agrade aos que pensam ver a realidade antecipar-se a seus desejos sem que precisem mexer um único dedo. Seguramente conforta os que encontram motivo nisso para congratular-se por sua “clarividência” passada. No fundo, é a forma menos aceitável de renúncia intelectual e política. O capitalismo neoliberal não cairá como uma “fruta madura” por suas contradições internas, e os traders não serão a contragosto os “coveiros” inopinados desse capitalismo. Marx já dizia com força: “A história não faz nada”[63]. Existem apenas homens que agem em condições dadas e, por sua ação, tentam abrir um futuro para eles. Cabe a nós permitir que um novo sentido do possível abra caminho. O governo dos homens pode alinhar-se a outros horizontes, além daqueles da maximização do desempenho, da produção ilimitada, do controle generalizado. Ele pode sustentar-se num governo de si mesmo que leva a outras relações com os outros, além daquelas da concorrência entre “atores autoempreendedores”. As práticas de “comunização” do saber, de assistência mútua, de trabalho cooperativo podem indicar os traços de outra razão do mundo. Não saberíamos designar melhor essa razão alternativa senão pela razão do comum.
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[1] Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale. Néolibéralisme et néoconservatisme (Paris, Les Prairies ordinaires, 2007), p. 51 e 97.
[2] Essa norma não exclui, mas, ao contrário, implica estratégias de “alianças” praticadas pelas empresas para reforçar suas “vantagens concorrenciais”. Daí a voga do termo “cooperação” no vocabulário gerencial, evidenciando o recurso a uma combinação flexível de “cooperação” e “concorrência”. Contudo, assim como a “cooperação voluntária”, exaltada por Spencer sob a forma de contrato, as relações informais pelas quais se opera a “troca de saber” entre empresas concorrentes não se referem a uma cooperação genuína, no sentido de um compartilhamento não transacional.
[3] Sobre o sentido dessas expressões, ver, para a primeira, o capítulo 3 e, para a segunda, o capítulo 6 deste volume.
[4] Sobre essa expressão de Franz Böhm, ver capítulo 3; sobre sua retomada e aprofundamento por Friedrich Hayek, ver capítulo 5 deste volume.
[5] Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, cit., p. 56.
[6] Como pode ser verificado em Locke (ver capítulo 5 deste volume).
[7] Ver Patrick Le Galès, “Gouvernance”, em Laurie Boussaguet, Sophie Jacquot e Pauline Ravinet (orgs.), Dictionnaire des politiques publiques (Paris, Presses de Sciences Po, 2004), p. 244.
[8] Marc Hufty (org.), La pensée comptable. État, néolibéralisme, nouvelle gestion publique (Paris, Presses Universitaires de France, 1998), p. 19.
[9] Ver Sharon Gewirtz, The Managerial School: Post-Welfarism and Social Justice in Education (Londres, Routledge, 2002). Todas as pesquisas sobre os efeitos da “escola gerencial” realizadas nos países mais adiantados nessa via mostram o crescimento das desigualdades escolares e a marginalização da fração mais pobre da população em estabelecimentos de tipo gueto.
[10] Esse esquema histórico foi apresentado pelo sociólogo Thomas Humphrey Marshall em 1949, durante uma conferência intitulada “Citizenship and Social Class”, citada por Albert O. Hirschmann, Deux siècles de rhétorique réactionnaire (Paris, Fayard, 1995), p. 14 e seg.
[11] Robert Castel, Les métamorphoses de la question sociale (Paris, Fayard, 1995; reed., Paris, Gallimard, 1999, Coleção Folio) [ed. bras.: As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, trad. Iraci D. Poleti, 23. ed., Petrópolis, Vozes, 2013].
[12] Fase que Crouch propôs denominar “pós-democracia”. Ver Colin Crouch, Post-Democracy (Cambridge, Polity Press, 2004).
[13] Giorgio Agamben, État d’exception: homo sacer (Paris, Seuil, 2003) [ed. bras.: Estado de exceção, homo sacer, II, 1, trad. Iraci D. Poleti, 2. ed. rev., São Paulo, Boitempo, 2011].
[14] Ao contrário do que pensa Jean-Claude Paye, que defende que a suspensão do direito significa a constituição de uma “ditadura soberana” no sentido de Carl Schmitt, isto é, uma ditadura fundadora de uma nova ordem de direito; ver Jean-Claude Paye, La fin de l’État de droit: la lutte antiterroriste, de l’état d’exception à la dictature (Paris, La Dispute, 2004), p. 197 e seg. Wendy Brown é mais prudente e fala de uma “nova configuração política” ou de uma “forma política e social para a qual ainda não temos um nome”, Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, cit., p. 69-70.
[15] Raymon Aron, Démocratie et totalitarisme (Paris, Gallimard, 1987, Coleção Folio). Lembramos que, segundo essa oposição, a democracia repousa sobre o pluralismo político, ao passo que o totalitarismo remete ao monopólio do partido único.
[16] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté (Paris, Litec, 1994), p. 104.
[17] Isso esclarece mais uma vez a atitude de Hayek e Friedman diante da ditadura de Pinochet (ver capítulo 5 deste volume).
[18] Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 13.
[19] Idem, Droit, législation et liberté, v. III (Paris, PUF, 1981), p. 181.
[20] Sobre o conceito ampliado de “dispositivo” como rede de elementos heterogêneos que pertencem tanto ao discursivo como ao “social não discursivo”, ver Michel Foucault, Dits et écrits II, 1976-1988 (Paris, Gallimard, 2001), p. 299-301.
[21] Idem.
[22] Ver capítulo 6 deste volume.
[23] Com toda a certeza, essa ignorância, que pode chegar à pura e simples denegação (o ordoliberalismo não é neoliberalismo), é uma das razões da redução do neoliberalismo à ideologia do livre mercado; a outra é a inversão da relação de causalidade entre globalização das finanças e razão neoliberal à qual fizemos alusão no capítulo 8. Desse modo, instaurou-se uma dupla identificação: o neoliberalismo nada mais é do que o mercado autorregulador acarretado pelas finanças. Daí a conclusão precipitada de que a crise financeira assina o atestado de óbito do neoliberalismo.
[24] Giorgio Agamben, Qu’est-ce qu’un dispositif? (Paris, Rivages, 2007), p. 22-8 [ed. bras.: O amigo & O que é um dispositivo?, trad. Vinicius Nicastro Honesko, Chapecó, Argos, 2014]. O termo Gestell significa o arranjo que dispõe do homem obrigando-o a desvelar o real “no modo do comando”, o que para Heidegger define a essência da técnica moderna. Quanto à oikonomia dos teólogos, ela permite pensar o governo dos homens e do mundo como aquele que Deus confia a seu Filho. É significativo que Agamben dê ao conceito de “dispositivo” uma extensão dificilmente compatível com a preocupação foucaultiana da singularidade histórica (ibidem, p. 31).
[25] Ibidem, p. 25. Essa ideia é retomada e aprofundada em Giorgio Agamben, “Être et agir”, em Le règne et la gloire: homo sacer, II, 2 (Paris, Seuil, 2008), cap. 3, p. 93-109 [ed. bras.: O reino e a glória: homo sacer, II, 2, trad. Selvino J. Assmann, São Paulo, Boitempo, 2011].
[26] Michel Foucault, Sécurité, territoire, population (Paris, Gallimard/Seuil, 2004, Coleção Hautes Études), p. 242.
[27] A autora acrescenta logo em seguida: “A primeira remete ao exercício do poder, a segunda, a uma ordem de crenças populares que pode ou não ser perfeitamente conforme com a primeira e que pode até mesmo oferecer um lugar de resistência à governamentalidade”, Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, cit., p. 67.
[28] Ibidem, p. 86, nota 6. Devemos observar que, na mesma nota, a autora trata o neoconservadorismo como uma “ideologia”: “Neoliberalismo e neoconservadorismo diferem sensivelmente, em especial porque o primeiro funciona como racionalidade política, enquanto o segundo permanece uma ideologia”. No prefácio da edição francesa e no segundo ensaio (“Le cauchemar américain”), ela fala do neoliberalismo e do neoconservadorismo como duas “racionalidades políticas”. De nossa parte, acreditamos que não há simetria possível entre a racionalidade neoliberal e a ideologia neoconservadora.
[29] A empresa constitui a “base ético-política” do neoliberalismo. Na realidade, desde as origens do neoliberalismo em Wilhelm Röpke, a forma-empresa é pensada como forma de “moralização-responsabilização” do indivíduo (ver capítulo 3 deste volume).
[30] Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, cit., p. 78.
[31] Como sugere Loïc Blondiaux em Le nouvel esprit de la démocratie (Paris, Seuil, 2008), p. 100.
[32] Ver capítulo 6 deste volume.
[33] Como observam com razão Gérard Desportes e Laurent Mauduit em L’adieu au socialisme (Paris, Grasset, 2002), p. 290. A atitude adotada por Michel Rocard diante da crise financeira é muito esclarecedora nesse sentido: “A crise atual não põe o liberalismo em questão. Em compensação, anuncia o fim do ultraliberalismo, essa escola de pensamento criminosa fundada por Milton Friedman” (entrevista publicada no jornal Le Monde, 2-3 nov. 2008). A “criminalização” da Escola de Chicago apresenta duas vantagens. Em primeiro lugar, permite fingir que não existiu nada entre Adam Smith e Milton Friedman, portanto, permite resumir o neoliberalismo a sua versão friedmaniana! Em segundo lugar, tem a função de acobertar a direita francesa, considerada “ainda muito gaullista” (sic), o que indiretamente diz muito sobre as razões íntimas da impotência da esquerda francesa com respeito a essa direita.
[34] Ver capítulo 9 deste volume. Serge Audier não se esforça muito para evitar essa simplificação, fazendo de Friedrich Hayek o autor de uma “nova utopia ultraliberal” para melhor opô-lo ao liberalismo “anticapitalista” de Wilhelm Röpke. Ver Serge Audier, Le Colloque Walter Lippmann. Aux origines du néolibéralisme (Latresne, Le Bord de l’Eau, 2008), p. 234.
[35] Sobre todo esse desenvolvimento, ver Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Gallimard/Seuil, 2004), p. 93-5.
[36] Idem, Dits et écrits II, cit., p. 643-4.
[37] Idem, Sécurité, territoire, population, cit., p. 50.
[38] Jean-Jacques Rousseau, “Considérations sur le gouvernement de Pologne”, em Œuvres complètes (Paris, Gallimard, 1995, Coleção La Pléiade), t. III, p. 955.
[39] Idem, “Émile”, em Œuvres complètes, cit., t. IV, p. 311.
[40] Idem.
[41] Friedrich Engels, Socialisme utopique et socialisme scientifique (Paris, Éditions Sociales, 1977), p. 99 [ed. bras.: Do socialismo utópico ao socialismo científico, trad. Rubens Eduardo Frias, 2. ed., São Paulo, Centauro, 2005].
[42] Saint-Simon diz, em essência, que a espécie humana “está destinada a passar do regime governamental ou militar para o regime administrativo ou industrial”. Citado em Émile Durkheim, Le socialisme (Paris, PUF, 1992, Coleção Quadrige), p. 179.
[43] Retomamos aqui a argumentação de Durkheim (ibidem, p. 177-8).
[44] Saint-Simon, Écrits politiques et économiques (Paris, Pocket, 2005, Coleção Agora), p. 327.
[45] Ibidem, p. 330; grifo nosso.
[46] Idem.
[47] Reconhece-se aqui a tese enunciada por Marx a respeito do proletariado em Crítica da filosofia do direito de Hegel [trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus, 3. ed., São Paulo, Boitempo, 2013] e A ideologia alemã [trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano, 1. ed. rev., São Paulo, Boitempo, 2011].
[48] Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (Paris, Exils, 2000) e Multitude (Paris, 10/18, 2006) [ed. bras.: Multidão: guerra e democracia na era do império, trad. Clóvis Marques, Rio de Janeiro, Record, 2005].
[49] Para uma crítica a essa tese, ver Pierre Dardot, Christian Laval e El Mouhoub Mouhoud, Sauver Marx? (Paris, La Découverte, 2007).
[50] “Nous sommes déjà des hommes nouveaux”, entrevista de Jean Birnbaum com Antonio Negri, Le Monde, 13 jul. 2007.
[51] Axel Honneth, La réification: petit traité de théorie critique (Paris, Gallimard, 2007).
[52] Ibidem, p. 93.
[53] Ibidem, p. 105.
[54] Ibidem, p. 94. Essa pretensa “originalidade” tem certa relação com a pressuposição de uma exterioridade da liberdade no que diz respeito às relações de poder contra a qual se construiu a noção foucaultiana de governamentalidade. Ver a Introdução deste volume.
[55] Ibidem, p. 101-2 e p. 136, nota 17.
[56] Jeffrey T. Nealon, Foucault Beyond Foucault: Power and its Intensifications Since 1984 (Stanford, Stanford University Press, 2008).
[57] Michel Foucault, Sécurité, territoire, population, cit., p. 195-232 (sobre a etapa fundamental constituída por esse conceito, ver p. 221, nota 5).
[58] Ibidem, p. 196-7.
[59] Ibidem, p. 205.
[60] Ibidem, p. 221, nota 5.
[61] Atitude que seria como que o puro negativo da “obediência passiva” aos poderes estabelecidos preconizada por Berkeley (De l’obéissance passive, Paris, Vrin, 1983).
[62] André Gorz, Ecologica (Paris, Galilée, 2008), p. 115 e 133 [ed. bras.: Ecológica, trad. Celso Azzan Júnior, São Paulo, Annablume, 2010].
[63] Karl Marx, Œuvres III (Paris, Gallimard, 1982, Coleção La Pléiade), p. 526