segunda-feira, 25 de maio de 2020

Sobre Fotografia - Susan Sontag - 6º Capítulo


O MUNDO-IMAGEM

A realidade sempre foi interpretada por meio das informações fornecidas pelas imagens; e os filósofos, desde Platão, tentaram dirimir nossa dependência das imagens ao evocar o padrão de um modo de apreender o real sem usar imagens. Mas quando, em meados do século XIX, o padrão parecia estar, afinal, ao nosso alcance, o recuo das antigas ilusões religiosas e políticas em face da investida do pensamento científico e humanístico não criou — como se previra — deserções em massa em favor do real. Ao contrário, a nova era da descrença reforçou a lealdade às imagens. A crença que não podia mais ser concedida a realidades compreendidas na forma de imagens passou a ser concedida a realidades compreendidas como se fossem imagens, ilusões. No prefácio à segunda edição (1843) de A essência do cristianismo, Feuerbach observa a respeito da “nossa era” que ela “prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser” — ao mesmo tempo que tem perfeita consciência disso. E seu lamento premonitório transformou-se, no século XX, num diagnóstico amplamente aceito: uma sociedade se torna “moderna” quando uma de suas atividades principais consiste em produzir e consumir imagens, quando imagens que têm poderes excepcionais para determinar nossas necessidades em relação à realidade e são, elas mesmas, cobiçados substitutos da experiência em primeira mão se tornam indispensáveis para a saúde da economia, para a estabilidade do corpo social e para a busca da felicidade privada.

As palavras de Feuerbach — que as escreveu poucos anos após a invenção da câmera — parecem, mais especificamente, um pressentimento do impacto da fotografia. Pois as imagens que desfrutam uma autoridade quase ilimitada em uma sociedade moderna são sobretudo imagens fotográficas; e o alcance dessa autoridade decorre das propriedades peculiares das imagens tiradas por câmeras.

Tais imagens são de fato capazes de usurpar a realidade porque, antes de tudo, uma foto não é apenas uma imagem (como uma pintura é uma imagem), uma interpretação do real; é também um vestígio, algo diretamente decalcado do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária.

Enquanto uma pintura, mesmo quando se equipara aos padrões fotográficos de semelhança, nunca é mais do que a manifestação de uma interpretação, uma foto nunca é menos do que o registro de uma emanação (ondas de luz refletidas pelos objetos) — um vestígio material de seu tema, de um modo que nenhuma pintura pode ser. Entre duas fantasias alternativas, a de que Holbein, o Jovem, tivesse vivido o bastante para pintar um retrato de Shakespeare ou a de que um protótipo da câmera tivesse sido inventado a tempo de fotografá-lo, a maioria dos bardólatras teria escolhido a foto. Não só porque ela, supostamente, mostraria a aparência real de Shakespeare, pois mesmo se a foto hipotética ficasse desbotada, quase indistinta, uma sombra marrom, ainda assim preferiríamos, provavelmente, a foto a mais um esplêndido quadro de Holbein. Ter uma foto de Shakespeare seria como ter um prego da Santa Cruz.

A maioria das expressões contemporâneas de preocupação quanto à possibilidade de um mundo-imagem estar tomando o lugar do mundo real continua a fazer eco, como no caso de Feuerbach, ao menosprezo platônico da imagem: verdadeira na medida em que se assemelha a algo real, falsa porque não passa de uma semelhança. Mas esse venerável realismo ingênuo é um tanto irrelevante na era das imagens fotográficas, pois seu contraste grosseiro entre a imagem (“cópia”) e a coisa retratada (o “original”) — que Platão ilustra repetidas vezes com o exemplo da pintura — não se adapta à foto de um modo tão simples. Tampouco o contraste ajuda a compreender a criação das imagens em suas origens, quando se tratava de uma atividade prática, mágica, um meio de ganhar ou de apropriar-se do poder sobre algo. Quanto mais retrocedermos na história, como observou E. H. Gombrich, menos nítida será a distinção entre imagens e coisas reais; nas sociedades primitivas, a coisa e sua imagem eram apenas duas manifestações diferentes, ou seja, fisicamente distintas, da mesma energia do espírito.

Daí advém a suposta eficácia das imagens para propiciar e ganhar controle sobre presenças poderosas. Esses poderes, essas presenças, estavam presentes nelas. Para os defensores do real, desde Platão até Feuerbach, equiparar a imagem à mera aparência — ou seja, supor que a imagem é absolutamente distinta do objeto retratado — faz parte do processo de dessacralização que nos separa de modo irrevogável do mundo dos tempos e dos lugares sagrados em que se acreditava que uma imagem participava da realidade do objeto retratado. O que define a originalidade da fotografia é que, no exato momento em que o secularismo triunfou por completo na longa, e crescentemente secular, história da pintura, algo semelhante ao status primitivo das imagens renasce — ainda que em termos inteiramente seculares. Nosso sentimento irreprimível de que o processo fotográfico é algo mágico tem uma base genuína. Ninguém supõe que uma pintura de cavalete seja, em nenhum sentido, consubstancial a seu objeto; ela somente representa ou alude. Mas uma foto não é apenas semelhante a seu tema, uma homenagem a seu tema. Ela é uma parte e uma extensão daquele tema; e um meio poderoso de adquiri-lo, de ganhar controle sobre ele.

A fotografia é, de várias maneiras, uma aquisição. Em sua forma mais simples, temos numa foto uma posse vicária de uma pessoa ou de uma coisa querida, uma posse que dá às fotos um pouco do caráter próprio dos objetos únicos. Por meio das fotos, temos também uma relação de consumidores com os eventos, tanto com os eventos que fazem parte de nossa experiência como com aqueles que dela não fazem parte — uma distinção de tipos de experiência que tal consumo de efeito viciante vem turvar. Uma terceira forma de aquisição é que, mediante máquinas que criam imagens e duplicam imagens, podemos adquirir algo como informação (e não como experiência). De fato, a importância das imagens fotográficas como o meio pelo qual cada vez mais eventos entram em nossa experiência é, por fim, apenas um resultado de sua eficiência para fornecer conhecimento dissociado da experiência e dela independente.

Essa é a forma mais inclusiva de aquisição fotográfica. Quando algo é fotografado, torna-se parte de um sistema de informação, adapta-se a esquemas de classificação e de armazenagem que abrangem desde a ordem cruamente cronológica de sequências de instantâneos colados em álbuns de família até o acúmulo obstinado e o arquivamento meticuloso necessários para usar a fotografia na previsão do tempo, na astronomia, na microbiologia, na geologia, na polícia, na formação médica e nos diagnósticos, no reconhecimento militar e na história da arte. As fotos fazem mais do que redefinir a natureza da experiência comum (gente, coisas, fatos, tudo o que vemos — embora de forma diferente e, não raro, desatenta — com a visão natural) e acrescentar uma vasta quantidade de materiais que nunca chegamos a ver. A realidade como tal é redefinida — como uma peça para exposição, como um registro para ser examinado, como um alvo para ser vigiado. A exploração e a duplicação fotográficas do mundo fragmentam continuidades e distribuem os pedaços em um dossiê interminável, propiciando dessa forma possibilidades de controle que não poderiam sequer ser sonhadas sob o anterior sistema de registro de informações: a escrita.

Quando tais poderes ainda se encontravam em sua infância, já se admitia que o registro fotográfico é sempre, potencialmente, um meio de controle. Em 1850, Delacroix anotou em seu Diário o sucesso de certas “experiências em fotografia”, feitas em Cambridge, onde astrônomos fotografavam o Sol e a Lua e haviam conseguido obter uma cópia da estrela Vega do tamanho da cabeça de um alfinete. Acrescentou a seguinte observação “curiosa”: Uma vez que a luz da estrela daguerreotipada levou vinte anos para atravessar o espaço que a separa da Terra, em consequência o raio fixado na chapa partiu da esfera celeste muito tempo antes de Daguerre ter descoberto o processo por meio do qual acabamos de adquirir controle sobre essa luz.

Deixando de lado noções triviais de controle como as de Delacroix, o progresso da fotografia tornou ainda mais literal o sentido em que uma foto permite o controle sobre a coisa fotografada. A tecnologia que já minimizou o efeito da distância entre o fotógrafo e seu tema no tocante à precisão e à magnitude da imagem; proporcionou meios de fotografar coisas inimaginavelmente pequenas, bem como inimaginavelmente distantes, como as estrelas; tornou o ato de tirar fotos independente da própria luz (fotografia infravermelha) e libertou a imagem-objeto de seu confinamento a duas dimensões (holografia); reduziu o intervalo entre tirar a foto e poder segurá-la nas mãos (desde a primeira Kodak, quando revelar um rolo de filme e devolvê-lo às mãos do fotógrafo amador demorava semanas, até a Polaroid, que ejeta a imagem em poucos segundos); não só pôs as imagens em movimento (cinema), mas também conseguiu seu registro e sua transmissão simultâneos (vídeo) — essa tecnologia tornou a fotografia um instrumento incomparável para interpretar o comportamento, prevê-lo e nele interferir.

A fotografia tem poderes que nenhum outro sistema de imagem jamais desfrutou porque, à diferença dos anteriores, ela não é dependente de um criador de imagens. Por mais cuidadosamente que o fotógrafo intervenha para preparar e orientar o processo de criação de imagem, o próprio processo permanece como um processo óptico-químico (ou eletrônico), cujas operações são automáticas, cujos mecanismos serão inevitavelmente modificados a fim de proporcionar mapas do real ainda mais detalhados e, por conseguinte, mais úteis. A gênese mecânica dessas imagens e a eficiência dos poderes que elas conferem redundam numa nova relação entre imagem e realidade. E se também se pode dizer que a fotografia restabelece a mais primitiva forma de relação — a identidade parcial entre imagem e objeto —, agora experimentamos a potência da imagem de um modo muito diferente. A noção primitiva de eficácia das imagens supõe que as imagens possuem os predicados das coisas reais, mas nossa tendência é atribuir a coisas reais os predicados de uma imagem.

Como todos sabem, pessoas de povos primitivos temem que a câmera roube uma parte de seu ser. Nas suas memórias, publicadas em 1900, ao fim de uma vida muito longa, Nadar conta que Balzac tinha um tipo semelhante de “pavor vago” de ser fotografado. Sua explicação, segundo Nadar, era que todo corpo, em seu estado natural, era feito de uma série de imagens fantasmáticas sobrepostas numa infinidade de camadas, revestidas por películas infinitesimais. [...] Uma vez que o homem nunca foi capaz de criar, ou seja, de fazer algo material a partir de uma aparição, de algo impalpável, ou de fazer um objeto a partir do nada — qualquer operação daguerriana, por conseguinte, havia de se apoderar de uma das camadas do corpo que tinha em foco, destacá-la e usá-la.

Parece apropriada a Balzac essa modalidade de perturbação — “Era verdadeiro ou fingido o temor do daguerreótipo que Balzac dizia ter?”, pergunta Nadar. “Era verdadeiro” — uma vez que o processo da fotografia é, por assim dizer, uma materialização do que havia de mais original em seu método de romancista. A operação balzaquiana consistia em ampliar pequenos detalhes, como numa ampliação fotográfica, justapor traços ou elementos incongruentes, como numa exposição fotográfica: dessa maneira, qualquer coisa se torna expressiva e pode ser associada a qualquer coisa. Para Balzac, o espírito de todo um ambiente podia ser revelado por um único detalhe material, por mais insignificante ou arbitrário que parecesse. O conjunto de uma vida pode estar resumido em uma aparência momentânea. * E uma mudança de aparência é uma mudança na pessoa, pois ele não admitia abrigar qualquer pessoa “real” oculta atrás dessas aparências. A extravagante teoria de Balzac, expressada a Nadar, de que o corpo é composto de uma série infinita de “imagens fantasmáticas”, estabelece um misterioso paralelo com a teoria supostamente realista, expressada em seus romances, de que uma pessoa é um conjunto de aparências, as quais podem revelar, mediante um foco adequado, infinitas camadas de significação. Ver a realidade como um conjunto interminável de situações que se espelham mutuamente, extrair analogias das coisas mais díspares, é antecipar a forma característica da percepção estimulada pelas imagens fotográficas. A própria realidade passou a ser entendida como um tipo de escrita, que tem de ser decodificada — enquanto as próprias imagens fotográficas foram, a princípio, comparadas à escrita. (O nome dado por Niepce ao processo pelo qual a imagem aparece na chapa era heliografia, escrita do Sol; Fox Talbot chamava a câmera de “caneta da natureza”.) O problema no contraste feito por Feuerbach entre “original” e “cópia” são suas definições estáticas de realidade e de imagem. Ele supunha que o real persistia, intacto e sem alterações, ao passo que só as imagens mudavam: escoradas pelas mais frouxas exigências de credibilidade, elas de algum modo se tornavam mais sedutoras. Mas as noções de imagem e de realidade são complementares. Quando a noção de realidade muda, o mesmo ocorre com a noção de imagem, e vice-versa. “Nossa era” não prefere imagens a coisas reais por insensatez, mas, em parte, em reação às maneiras como a noção do que é real progressivamente se complicou e se enfraqueceu, e uma das primeiras maneiras, surgida nas classes médias esclarecidas no século XIX, foi a crítica da realidade como uma fachada. (Claro, isso era o exato contrário do efeito pretendido.) Reduzir grandes porções do que, até então, fora visto como real a mera fantasia, como fez Feuerbach quando chamou a religião de “o sonho da mente humana” e desdenhou as ideias teológicas como projeções psicológicas; ou elevar os detalhes aleatórios ou triviais da vida cotidiana a sinais de forças históricas e psicológicas ocultas, como fez Balzac em sua enciclopédia da realidade social em forma de romance — esses são meios de experimentar a realidade como um conjunto de aparências, como uma imagem.

Poucas pessoas nesta sociedade compartilham o pavor primitivo das câmeras que decorre de pensar a foto como uma parte material delas mesmas. Mas algum vestígio da magia perdura: por exemplo, nossa relutância a rasgar ou jogar fora a foto de uma pessoa amada, sobretudo quando morta ou distante. Fazer isso é um gesto cruel de rejeição. Em Judas o obscuro, a descoberta de Judas de que Arabella vendeu a moldura feita de bordo com uma foto dele mesmo que Judas lhe dera no dia do casamento deles significa, para ele, “a morte completa de todo sentimento em sua esposa” e “o golpe definitivo para lançar por terra todo e qualquer sentimento que nele houvesse”. Mas o verdadeiro primitivismo moderno não consiste em ver a imagem como uma coisa real; imagens fotográficas dificilmente são tão reais assim.

Em vez disso, a realidade passou cada vez mais a se parecer com aquilo que as câmeras nos mostram. É comum, agora, que as pessoas, ao se referirem a sua experiência de um fato violento em que se viram envolvidas — um desastre de avião, um tiroteio, um atentado terrorista —, insistam em dizer que “parecia um filme”. Isso é dito a fim de explicar como foi real, pois outras qualificações se mostram insuficientes. Enquanto muitas pessoas, em países não industrializados, ainda se sentem apreensivas ao ser fotografadas, suspeitando tratar-se de algum tipo de transgressão, um ato de desrespeito, um saque sublimado da personalidade ou da cultura, as pessoas de países industrializados procuram ser fotografadas — sentem que são imagens e que as fotos as tornam reais.

Um sentido do real decididamente mais complexo cria seus próprios fervores e simplificações compensatórios, entre os quais o mais viciante é tirar fotos. É como se os fotógrafos, em reação a um sentido de realidade cada vez mais esvaziado, procurassem uma transfusão — viajar para novas experiências, revigorar as antigas. Suas atividades ubíquas redundam na mais radical, e mais segura, versão da mobilidade. A premência de novas experiências se traduz na premência de tirar fotos: a experiência em busca de um modelo à prova de crises.

Assim como tirar fotos parece quase obrigatório para aqueles que viajam, a paixão de colecioná-las tem um apelo especial para os que se acham confinados — por opção, incapacidade ou coerção. As coleções de fotos podem ser usadas para criar um mundo substituto, em harmonia com imagens enaltecedoras, consoladoras ou provocantes. Uma foto pode ser o ponto de partida de um romance (o Judas de Hardy já se apaixonara pela foto de Sue Bridehead antes de conhecê-la pessoalmente), mas é mais comum que uma relação erótica seja não só criada por fotos mas entendida como limitada a fotos. Em Les enfants terribles, de Cocteau, o irmão e a irmã narcisistas partilham a cama, seu “quarto secreto”, com imagens de boxeadores, astros do cinema e assassinos. Isolando-se em seu covil para viver sua lenda particular, os dois adolescentes guardam essas fotos, um panteão privado. Numa parede da cela 46 na prisão de Fresnes no início da década de 1940, Jean Genet colou as fotos de vinte criminosos que ele havia recortado de jornais, vinte rostos em que discernia “o sinal sagrado do monstro”, e em sua honra escreveu Nossa Senhora das Flores; eles lhe serviram de musas, modelos, talismãs eróticos. “Eles velam minhas pequenas rotinas”, escreve Genet — devaneios fluidos, masturbação e escrever —, e “são a única família que tenho e meus únicos amigos”. Para os que ficam em casa, os prisioneiros e os que confinam a si mesmos, viver entre fotos de estranhos glamourosos é uma reação sentimental ao isolamento e um desafio insolente que a ele dirigem.

O romance Crash (1973), de J. G. Ballard, descreve uma coleção de fotos mais especializada, a serviço de uma obsessão sexual: fotos de acidentes de carro que Vaughan, amigo do narrador, coleciona enquanto prepara a própria morte em um acidente de carro. A realização de sua visão erótica da morte num automóvel é antegozada, e a própria fantasia é ainda mais erotizada mediante o exame atento e repetido dessas fotos. Numa ponta do espectro, as fotos são dados objetivos; na outra, são elementos de ficção científica psicológica. E assim como se pode localizar um imperativo sexual mesmo na mais assustadora, ou aparentemente neutra, realidade, também a foto-documento mais banal pode transformar-se num emblema do desejo. A foto do criminoso é uma pista para o detetive e um fetiche erótico para um colega ladrão. Para Hofrat Behrens, em A montanha mágica, os raios X dos pulmões de seus pacientes são instrumentos para o diagnóstico. Para Hans Castorp, que cumpre uma sentença por tempo indeterminado no sanatório de tuberculosos de Behren e caiu de amores pela enigmática e inatingível Clavdia Chauchat, “o raio X de Clavdia, que mostra não seu rosto mas a delicada estrutura óssea da parte superior de seu corpo e os órgãos da cavidade torácica, cercados pelo pálido e espectral invólucro de carne”, é o mais precioso dos troféus. O “retrato transparente” é um vestígio muito mais íntimo de sua amada do que a pintura de Clavdia que Hofrat possui, esse “retrato exterior”, que Hans certa vez contemplou com tamanho desejo.

Fotos são um meio de aprisionar a realidade, entendida como recalcitrante, inacessível; de fazê-la parar. Ou ampliam a realidade, tida por encurtada, esvaziada, perecível, remota. Não se pode possuir a realidade, mas pode-se possuir imagens (e ser possuído por elas) — assim como, segundo Proust, o mais ambicioso dos prisioneiros voluntários, não se pode possuir o presente, mas pode-se possuir o passado. Nada poderia ser mais discrepante da faina autossacrificante de um artista como Proust do que a falta de esforço presente no ato de tirar fotos, provavelmente a única atividade capaz de criar obras de arte respeitadas na qual um simples movimento, um toque do dedo, produz uma obra completa. Enquanto a faina proustiana supõe que a realidade esteja distante, a fotografia subentende um acesso instantâneo ao real. Mas os resultados dessa prática de acesso instantâneo são outro modo de criar distância. Possuir o mundo na forma de imagens é, precisamente, reexperimentar a irrealidade e o caráter distante do real.

A estratégia do realismo de Proust presume a distância daquilo que é normalmente experimentado como real, o presente, a fim de reanimar aquilo que em geral se pode alcançar apenas de forma remota e nebulosa, o passado — que é onde o presente se torna real no sentido de Proust, ou seja, algo que pode ser possuído. Nesse esforço, fotos não ajudavam em nada. Toda vez que Proust menciona fotos, o faz de modo depreciativo: como sinônimo de uma relação superficial com o passado, exclusiva e excessivamente visual, e meramente voluntária, cujo resultado é insignificante quando comparado com as profundas descobertas a serem feitas ao reagir às sugestões oriundas de todos os sentidos — a técnica que ele chamou de “memória involuntária”. É inadmissível imaginar que no fim do preâmbulo de No caminho de Swan o narrador se visse diante de uma foto da igreja paroquial de Combray, e que o sabor dessa migalha visual, em vez do gosto da humilde madeleine embebida no chá, erguesse diante de seus olhos toda uma parte de seu passado. Mas a razão para tal não está na incapacidade de uma foto de evocar memórias (ela é capaz disso, dependendo antes dos predicados do espectador do que da foto), mas sim naquilo que Proust esclarece acerca de suas próprias exigências no que se refere à recordação imaginativa, ou seja, que ela não se mostre apenas ampla e acurada mas dê a textura e a essência das coisas. E ao considerar as fotos apenas na medida em que podia usá-las, como um instrumento da memória, Proust como que entende de forma errada o que são fotos: não tanto um instrumento da memória como uma invenção dela, ou um substituto. Não é a realidade que as fotos tornam imediatamente acessível, mas sim as imagens. Por exemplo, hoje todos os adultos podem saber com exatidão como eles, seus pais e seus avós eram quando crianças — um conhecimento que não era acessível antes da invenção da câmera, nem mesmo para aquela pequena minoria em que era costume encomendar pinturas de seus filhos. A maioria desses retratos era menos informativa do que qualquer instantâneo. E mesmo os muito ricos tinham, em geral, apenas um retrato de si mesmos e de seus antepassados quando crianças, ou seja, uma imagem de um momento da infância, ao passo que hoje é comum a pessoa ter muitas fotos de si mesma em todas as idades, uma vez que a câmera oferece a possibilidade de um registro completo. O sentido dos retratos convencionais na residência burguesa dos séculos XVIII e XIX era confirmar um ideal de modelo (proclamar a posição social, embelezar a aparência pessoal); em vista desse propósito, fica claro o motivo por que seus proprietários não sentiam necessidade de ter mais de um retrato. A foto-registro, mais modestamente, confirma apenas que o tema existe; portanto, por mais fotos que a pessoa tenha, elas nunca serão demais.

O temor de que a singularidade de um tema fosse nivelada ao ser fotografado nunca se exprimiu com mais frequência do que na década de 1850, anos em que a fotografia de retrato deu o primeiro exemplo de como as câmeras podiam criar modas fugazes e indústrias duradouras. Em Pierre, de Melville, publicado no início daquela década, o herói, outro campeão fervoroso do isolamento voluntário, refletia sobre a infinita presteza com que, agora, o retrato mais fiel de qualquer pessoa podia ser tirado pelo daguerreótipo, ao passo que em tempos anteriores um retrato fiel só estava ao alcance do poder dos endinheirados, ou dos aristocratas mentais da terra. Portanto, era bastante natural a inferência de que, em vez de imortalizar um gênio, como nos velhos tempos, um retrato agora apenas dializava um imbecil. Além do mais, quando todos têm seu retrato publicado, a verdadeira distinção consiste em não ter nunca seu retrato publicado.

Mas se fotos rebaixam, pinturas distorcem no sentido oposto: engrandecem. A intuição de Melville é de que todas as formas de retratar na civilização dos negócios são espúrias; pelo menos, assim parece a Pierre, modelo de sensibilidade alienada. Da mesma forma como uma foto é muito pouco numa sociedade de massas, uma pintura é demais. A natureza de uma pintura, observa Pierre, torna-a mais habilitada a reverenciar do que um homem; porquanto nada de desairoso pode ser imaginado com respeito ao retrato, ao passo que muitas coisas inevitavelmente desairosas podem ser concebidas quando se trata de um homem.

Embora tais ironias possam ser vistas como diluídas no completo triunfo da fotografia, a diferença principal entre uma pintura e uma foto no que se refere ao retratismo ainda perdura.

Pinturas invariavelmente resumem; fotos, em geral, não o fazem. Imagens fotográficas são peças comprobatórias numa biografia ou numa história em andamento. E uma foto, ao contrário de uma pintura, implica a existência de outras.

“Sempre — o Documento Humano mantém o presente e o futuro em contato com o passado”, disse Lewis Hine. Porém aquilo que a fotografia fornece não é apenas um registro do passado mas um modo novo de lidar com o presente, como atestam os efeitos dos incontáveis bilhões de documentos fotográficos contemporâneos. Enquanto fotos velhas preenchem nossa imagem mental do passado, as fotos tiradas hoje transformam o que é presente numa imagem mental, como o passado. As câmeras estabelecem uma relação inferencial com o presente (a realidade é conhecida por seus vestígios), proporcionam uma visão imediatamente retroativa da experiência. Fotos fornecem formas simuladas de posse: do passado, do presente e até do futuro. Em Invitation to a beheading [Convite a uma decapitação] (1938), de Nabokov, o prisioneiro Cincinnatus vê o “foto-horóscopo” de uma criança elaborado pelo sinistro M’sieur Pierre: um álbum de fotos da pequena Emmie quando bebê, depois como criança, depois como pré-púbere, tal como é no momento, e depois — por meio de retoques e de fotos da mãe — imagens da Emmie adolescente, noiva, com trinta anos e, por fim, uma foto de Emmie já aos quarenta anos de idade, em seu leito de morte. Uma “paródia da obra do tempo”, assim Nabokov denomina esse artefato exemplar; é também uma paródia da obra da fotografia.

A fotografia, que tem tantos usos narcisistas, é também um poderoso instrumento para despersonalizar nossa relação com o mundo; e os dois usos são complementares. Como um par de binóculos sem um lado certo e outro errado, a câmera torna próximas, íntimas, coisas exóticas; e coisas familiares, ela torna pequenas, abstratas, estranhas, muito distantes. Numa atividade fácil, formadora de um hábito, ela oferece tanto participação quanto alienação em nossa própria vida e na dos outros — permitindo-nos participar, ao mesmo tempo que confirmamos a alienação. Hoje, guerra e fotografia parecem inseparáveis, e desastres de avião e outros acidentes medonhos sempre atraem pessoas com câmeras. Uma sociedade que torna normativo aspirar a nunca ter experiências de fracasso, privação, desgraça, dor, doenças terríveis, e em que a própria morte é vista não como natural e inevitável mas como uma calamidade cruel e imerecida, cria uma tremenda curiosidade em torno desses fatos — curiosidade que é, em parte, satisfeita por meio da atividade de tirar fotos. A sensação de estar isento de calamidades estimula o interesse em olhar fotos dolorosas, e olhar para elas sugere e reforça o sentimento de estar a salvo. Em parte isso ocorre porque a pessoa está “aqui” e não “lá”, e em parte devido ao caráter de inevitabilidade que todos os fatos adquirem quando transmutados em imagens. No mundo real, algo está acontecendo e ninguém sabe o que vai acontecer. No mundo-imagem, aquilo aconteceu e sempre acontecerá daquela maneira.

Ao saber muito do que se passa no mundo (arte, catástrofe, belezas da natureza) por meio de imagens fotográficas, as pessoas não raro se frustram, se surpreendem, se sentem indiferentes quando veem a coisa real. Pois imagens fotográficas tendem a subtrair o sentimento de algo que experimentamos em primeira mão, e os sentimentos que elas despertam, em larga medida, não são os mesmos que temos na vida real. Muitas vezes algo nos perturba mais em forma de fotografia do que quando o experimentamos de fato. Num hospital em Xangai em 1973, ao ver um operário industrial com ulcerações em estágio avançado ter nove décimos do estômago retirados sob o efeito de anestesia por acupuntura, consegui acompanhar a operação de três horas (a primeira operação que testemunhei em minha vida) sem sentir náuseas nem a necessidade, sequer por uma vez, de desviar os olhos. Num cinema de Paris, um ano depois, a cirurgia menos sanguinolenta mostrada no documentário de Antonioni sobre a China intitulado Chuang Kuo fez que eu me encolhesse toda ao primeiro corte do bisturi e desviasse os olhos várias vezes durante a sequência. Somos vulneráveis a fatos perturbadores em forma de imagens fotográficas de um modo que não ocorre diante da realidade. Essa vulnerabilidade faz parte da passividade distintiva de alguém que é duplamente espectador, espectador de fatos já elaborados, primeiro pelos participantes e depois pelo criador da imagem. Para a operação real, tive de ser limpada e escovada, vestir uma bata de cirurgia e depois ficar ao lado dos atarefados cirurgiões e enfermeiras, com meus papéis para desempenhar: adulto inibido, visitante cortês, testemunha respeitosa. A cirurgia no cinema exclui não só essa participação modesta como tudo o que pode haver de ativo em presenciar. Na sala de operações, sou eu que mudo de foco, faço os closes e os planos médios. No cinema, Antonioni já escolheu de antemão que partes da cirurgia eu posso ver; a câmera olha por mim — e me obriga a olhar, deixando a mim, como única opção, não olhar.

Além disso, o filme condensa em minutos algo que leva horas para acontecer, deixando apenas partes interessantes, apresentadas de um modo interessante, ou seja, com o intuito de provocar ou de chocar. O dramático é dramatizado, pela didática da composição e da montagem.

Viramos a página numa revista de fotos, uma nova sequência tem início num filme, e cria-se um contraste mais contundente do que o contraste entre fatos sucessivos em tempo real.

Nada poderia ser mais instrutivo sobre o significado da fotografia para nós — como, entre outras coisas, um método de dar realce ao real — do que as críticas contra o filme de Antonioni publicadas na imprensa chinesa no início de 1974. Elas fornecem um catálogo negativo de todos os expedientes da fotografia moderna, em fotos ou no cinema. ** Enquanto, para nós, a fotografia está intimamente ligada a maneiras descontínuas de ver (a questão é precisamente ver o todo por meio de uma parte — um detalhe impressionante, um tipo surpreendente de corte), na China, está ligada apenas à continuidade. Não só existem temas adequados para a câmera, os temas positivos, inspiradores (atividades exemplares, gente risonha, tempo radioso) e ordeiros, como também há maneiras adequadas de fotografar, derivadas de ideias a respeito da ordem moral do espaço que excluem a própria ideia da visão fotográfica. Assim, Antonioni foi recriminado por fotografar coisas velhas, ou ultrapassadas — “ele procurou e escolheu paredes degradadas e jornais de mural há muito fora de uso”; sem prestar “nenhuma atenção a tratores grandes e pequenos que operavam nos campos, [ele] escolheu apenas um burro que puxava um rolo de pedra” — e por mostrar momentos indecorosos — “de forma repugnante, filmou pessoas que assoam o nariz e vão defecar” — e movimento indisciplinado — “em vez de focalizar alunos em sala de aula em nossas escolas primárias de fábrica, filmou crianças correndo para fora da sala após a aula”.

E foi acusado de denegrir os temas corretos em razão de seu modo de fotografá-los: usando “cores sombrias e tristes” e ocultando pessoas em “sombras escuras”; tratando o mesmo tema em uma variedade de tomadas — “há por vezes tomadas longas, por vezes closes, por vezes tomadas frontais, outras vezes tomadas de trás” — ou seja, por não mostrar as coisas do ponto de vista de um observador único e numa posição ideal; por usar ângulos de cima ou de baixo — “a câmera, diante dessa esplêndida ponte moderna, estava propositalmente posicionada em ângulos muito ruins a fim de mostrá-la torta e claudicante”; e por não fazer tomadas suficientemente detalhadas — “ele espremeu os miolos para inventar closes numa tentativa de distorcer a imagem do povo e enfear sua perspectiva espiritual”.

Além da iconografia fotográfica, produzida em massa, de líderes cultuados, de kitsch revolucionário e de tesouros culturais, veem-se com frequência na China fotos de um tipo privado. Muita gente possui fotos de pessoas queridas, pregadas à parede ou afixadas sob um vidro, colocadas sobre a escrivaninha ou sobre a cômoda. Grande parte dessas fotos é constituída de instantâneos do tipo que se tira aqui em festas de família e em viagens; mas nenhuma é uma foto espontânea, nem mesmo do tipo que o mais simplório fotógrafo de nossa sociedade acha normal — um bebê engatinhando, alguém no correr de um gesto. Fotos de esporte mostram a equipe em um grupo, ou apenas os momentos do jogo mais estilizados e dançados: em geral, o que as pessoas fazem com a câmera é reunir-se diante dela, em seguida dispor-se em uma ou duas fileiras. Não há o menor interesse em captar um tema em movimento. Isso ocorre, é de supor, em parte por causa de certas antigas convenções de decoro no comportamento e na representação pictórica. E é esse o gosto visual característico daqueles que se encontram no primeiro estágio da cultura da câmera, quando a imagem é definida como algo que pode ser roubado de seu proprietário; assim, Antonioni foi recriminado por “fazer tomadas à força, contra a vontade do povo”, como um “ladrão”. A posse de uma câmera não autoriza a intromissão, como acontece em nossa sociedade, quer as pessoas gostem ou não. (As boas maneiras de uma cultura da câmera determinam que a pessoa deve fingir não notar quando está sendo fotografada por um estranho num local público, contanto que o fotógrafo se mantenha a uma distância discreta — ou seja, espera-se que a pessoa não proíba o ato de fotografar nem faça pose.) Ao contrário daqui, onde posamos se possível e nos rendemos quando necessário, na China tirar fotos é sempre um ritual; sempre envolve posar e, necessariamente, consentir. Alguém que “deliberadamente espreitasse pessoas que ignorassem sua intenção de filmá-las” estaria privando pessoas e coisas do seu direito de posar, a fim de se apresentarem da melhor maneira possível.

Em Chuang Kuo, Antonioni dedicou quase toda a sequência sobre a praça Tien An Men, em Pequim, o mais importante local de peregrinação política do país, aos peregrinos que esperam para ser fotografados. O interesse de Antonioni em mostrar os chineses cumprindo esse rito elementar, documentar sua viagem por meio de uma câmera, é evidente: a foto e o ato de ser fotografado são, para a câmera, temas contemporâneos por excelência. Para seus críticos, o desejo que sentem os visitantes da praça Tien An Men de ter um suvenir fotográfico é um reflexo de seus profundos sentimentos revolucionários. Mas, com más intenções, Antonioni, em vez de mostrar essa realidade, fez tomadas apenas da roupa, do movimento e das expressões das pessoas: aqui, uma pessoa arruma o cabelo; ali, pessoas espiam, com os olhos ofuscados pelo sol; num momento, as mangas, no outro, as calças. Os chineses resistem ao desmembramento fotográfico da realidade. Closes não são usados.

Mesmo os cartões-postais de objetos antigos e de obras de arte vendidos em museus não mostram parte de algo; o objeto é sempre fotografado de frente, centrado, claramente iluminado e no seu todo.

Achamos os chineses ingênuos por não perceberem a beleza da porta rachada e descascada, o caráter pitoresco da desordem, a força do ângulo estranho e do detalhe significativo, a poesia do avesso. Temos uma ideia moderna de embelezamento — a beleza não é inerente a nada; deve ser encontrada por outro modo de ver —, bem como uma noção mais larga de significado, que os muitos usos da fotografia ilustram e reforçam vigorosamente. Quanto mais numerosas as variações de algo, mais ricas as possibilidades de significado: assim, hoje, diz-se mais com fotos no Ocidente do que na China. Deixando de lado o que quer que possa haver em Chuang Kuo de uma peça de campanha ideológica (e os chineses não estão errados ao julgar o filme desdenhoso), as imagens de Antonioni apenas significam mais do que quaisquer imagens que os chineses divulguem de si mesmos. Os chineses não querem que as fotos signifiquem muito ou sejam muito interessantes. Não querem ver o mundo de um ângulo inusual, descobrir novos temas. Fotos devem mostrar aquilo que já foi descrito. A fotografia, para nós, é um instrumento de dois gumes, para produzir clichês (palavra francesa que designa uma expressão trivial e também o negativo fotográfico) e para oferecer percepções “inéditas”.

Para as autoridades chinesas, só existem clichês — que elas não consideram clichês, mas percepções “corretas”.

Na China, hoje, só se reconhecem duas realidades. Nós vemos a realidade como inevitável e instigantemente plural. Na China, o que se define como uma questão para debate é aquela em que existem “duas linhas”, a certa e a errada. Nossa sociedade propõe um espectro de escolhas e percepções descontínuas. A deles é construída em torno de um observador único e ideal; e as fotos dão sua contribuição para o Grande Monólogo. Para nós, existem pontos de vista dispersos, intercambiáveis; a fotografia é um polílogo. A ideologia chinesa vigente define a realidade como um processo histórico estruturado por dualismos recorrentes, com significados nitidamente delineados e coloridos moralmente; o passado, em sua maior parte, é simplesmente tido como ruim. Para nós, existem processos históricos com significados espantosamente complexos e por vezes contraditórios; e artes que adquirem muito de seu valor por conta de nossa consciência do tempo como história, como é o caso da fotografia. (É por isso que o passar do tempo incrementa o valor estético das fotos, e as cicatrizes do tempo, na maioria das vezes, tornam os objetos mais instigantes para os fotógrafos.) Com a ideia de história, atestamos nosso interesse em conhecer o maior número de coisas. O único uso que os chineses têm permissão de fazer de sua história é o uso didático: seu interesse por história é estreito, moralista, deformador, sem curiosidade. Portanto, a fotografia, no sentido em que a vemos, não tem lugar na sociedade deles.

Os limites postos para a fotografia na China apenas refletem o caráter dessa sociedade, uma sociedade unificada por uma ideologia de puro e incessante conflito. Nosso uso ilimitado de imagens fotográficas não apenas reflete como dá forma a esta sociedade, unificada pela negação do conflito. Nossa própria ideia do mundo — o “mundo uno” do capitalismo do século XX — é semelhante a um levantamento fotográfico. O mundo é “uno” não por estar unido, mas porque um passeio por seus variados conteúdos não revela um conflito, apenas uma diversidade ainda mais assombrosa. Essa unidade espúria do mundo é obtida mediante a tradução de seus conteúdos em imagens. Imagens são sempre compatíveis, mesmo quando as realidades que retratam não o são.

A fotografia não apenas reproduz o real, recicla-o — um procedimento fundamental numa sociedade moderna. Na forma de imagens fotográficas, coisas e fatos recebem novos usos, destinados a novos significados, que ultrapassam as distinções entre o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o útil e o inútil, bom gosto e mau gosto. A fotografia é um dos principais meios de produzir esse atributo, conferido às coisas e às situações, que apaga aquelas distinções: “o interessante”. O que torna uma coisa interessante é que ela pode ser vista como parecida, ou análoga, a outra coisa. Existe uma arte e existem maneiras de ver coisas a fim de torná-las interessantes; e para suprir essa arte, e essas maneiras, existe uma perseverante reciclagem dos artefatos e dos gostos do passado. Clichês, reciclados, tornam-se metaclichês. 

A reciclagem fotográfica cria clichês a partir de objetos únicos, distintivos; e cria artefatos vívidos a partir de clichês. Imagens de coisas reais são entremeadas com imagens de imagens.

Os chineses circunscrevem o uso da fotografia de modo que não existam camadas ou estratos de imagens, e todas as imagens reforçam e reiteram umas às outras.

Fazemos da fotografia um meio de, precisamente, dizer qualquer coisa, servir a qualquer propósito. O que na realidade está separado, as imagens unem. Na forma de uma foto, a explosão de uma bomba atômica pode ser usada na publicidade de um cofre. Para nós, a diferença entre o fotógrafo como um olho individual e o fotógrafo como um registrador objetivo parece fundamental, uma diferença muitas vezes vista, erradamente, como algo que separa a fotografia artística da fotografia como documento. Mas ambos são extensões lógicas do que a fotografia significa: anotar potencialmente tudo no mundo, de todos os ângulos possíveis. O mesmo Nadar que tirou os retratos de celebridades mais fidedignos de seu tempo e fez as primeiras fotoentrevistas foi também o primeiro fotógrafo a produzir imagens aéreas; e quando realizou “a operação daguerriana” em Paris, do alto de um balão, em 1855, imediatamente se deu conta das vantagens futuras da fotografia para os promotores de guerras.

Duas atitudes estão subjacente a essa presunção de que tudo no mundo é imaterial para a câmera. Uma crê que há beleza ou pelo menos interesse em tudo, visto com um olho aguçado o bastante. (E a estetização da realidade que torna tudo, qualquer coisa, acessível à câmera é também aquilo que permite a cooptação de qualquer foto, mesmo de um tipo absolutamente prático, como arte.) A outra trata tudo como objeto de algum uso presente ou futuro, como matéria de estimativas, decisões e previsões. Segundo uma atitude, nada existe que não deva ser visto; segundo a outra, nada existe que não deva ser registrado. As câmeras implementam uma visão estética da realidade por serem um brinquedo mecânico que estende a todos a possibilidade de fazer julgamentos desinteressados sobre a importância, o interesse e a beleza. (“Isso daria uma boa foto.”) As câmeras implementam a visão instrumental da realidade por reunir informações que nos habilitam a reagir de modo mais acurado e muito mais rápido a tudo o que estiver acontecendo. A reação, é claro, pode ser repressiva ou benevolente: fotos de reconhecimento militar ajudam a aniquilar vidas, radiografias ajudam a salvá-las.

Embora essas duas atitudes, a estética e a instrumental, pareçam produzir sentimentos contraditórios e até incompatíveis sobre pessoas e situações, essa é a típica contradição de atitude que devem compartilhar os membros de uma sociedade que divorcia o público do privado, e com a qual eles devem conviver. Talvez não exista nenhuma atividade que nos prepare tão bem para viver com essas atitudes contraditórias quanto a atividade de tirar fotos, que se presta a ambas de forma tão magnífica. De um lado, câmeras armam a visão a serviço do poder — do Estado, da indústria, da ciência. De outro, câmeras tornam a visão expressiva nesse espaço mítico conhecido como vida privada. Na China, onde nenhum espaço é deixado livre da política e do moralismo para expressões de sensibilidade estética, só se devem fotografar determinadas coisas, e só de determinadas maneiras. Para nós, à medida que nos tornamos mais desprendidos da política, há cada vez mais espaço livre para preencher com exercícios de sensibilidade como aqueles que as câmeras proporcionam. Um dos efeitos da mais recente tecnologia da câmera (vídeo, cinema de revelação instantânea) foi canalizar para usos narcisistas — ou seja, autovigilância — uma quantidade ainda maior daquilo que é produzido com câmeras em caráter privado. Mas tais usos, hoje populares, de imagens exibidas pouco depois de captadas, no quarto de dormir, na sessão de terapia e no simpósio de final de semana, parecem muito menos significativos do que o potencial do vídeo como ferramenta para vigilância em locais públicos. É de supor que os chineses, mais cedo ou mais tarde, venham a fazer da fotografia os mesmos usos instrumentais que nós, exceto este, talvez.

Nossa inclinação para tratar o caráter como equivalente ao comportamento torna mais aceitável uma vasta instalação pública do olhar exterior mecanizado propiciado pelas câmeras. Os padrões de ordem muito mais repressivos vigentes na China requerem não só monitoramento do comportamento mas também modificação dos corações; lá, a vigilância é internalizada a um grau sem precedentes, o que sugere um futuro mais limitado para a câmera como meio de vigilância na sociedade deles.

A China oferece o modelo de um tipo de ditadura cuja ideia mestra é “o bem”, em que os limites mais impiedosos são contrapostos a todas as formas de expressão, incluindo as imagens. O futuro pode oferecer outro tipo de ditadura, cuja ideia mestra será “o interessante”, em que imagens de todos os tipos, estereotipadas e excêntricas, vão proliferar. Algo semelhante é sugerido em Invitation to a beheading, de Nabokov. Seu retrato do modelo de um Estado totalitário contém apenas uma arte onipresente: a fotografia — e o fotógrafo amistoso que ronda a cela de morte do herói revela-se, no fim do romance, como o carrasco. E parece não haver um modo (exceto a imposição de uma vasta amnésia histórica, como ocorre na China) de limitar a proliferação de imagens fotográficas. A única pergunta é se a função do mundo-imagem criado por câmeras poderia ser diferente do que é. A função atual é bastante clara, se considerarmos em que contextos as imagens fotográficas são vistas, que dependências elas criam, que antagonismos pacificam — ou seja, que instituições elas respaldam, a que necessidades de fato servem.

Uma sociedade capitalista requer uma cultura com base em imagens. Precisa fornecer grande quantidade de entretenimento a fim de estimular o consumo e anestesiar as feridas de classe, de raça e de sexo. E precisa reunir uma quantidade ilimitada de informações para melhor explorar as reservas naturais, aumentar a produtividade, manter a ordem, fazer a guerra, dar emprego a burocratas. As faculdades geminadas da câmera, subjetivizar a realidade e objetificá-la, servem idealmente a essas necessidades e as reforçam. As câmeras definem a realidade de duas maneiras essenciais para o funcionamento de uma sociedade industrial avançada: como um espetáculo (para as massas) e como um objeto de vigilância (para os governantes). A produção de imagens também supre uma ideologia dominante. A mudança social é substituída por uma mudança em imagens. A liberdade de consumir uma pluralidade de imagens e de bens é equiparada à liberdade em si. O estreitamento da livre escolha política para libertar o consumo econômico requer a produção e o consumo ilimitados de imagens.

A razão final para a necessidade de fotografar tudo repousa na própria lógica do consumo em si. Consumir significa queimar, esgotar — e, portanto, ter de se reabastecer. À medida que produzimos imagens e as consumimos, precisamos de ainda mais imagens; e mais ainda.

Porém imagens não são um tesouro em cujo benefício o mundo tem de ser saqueado; são exatamente aquilo que está à mão onde quer que o olhar recaia. A posse de uma câmera pode inspirar algo afim à luxúria. E, a exemplo de todas as formas verossímeis de luxúria, algo que não pode ser satisfeito: primeiro, porque as possibilidades da fotografia são infinitas e, segundo, porque o projeto é, no fim, autodevorador. As tentativas feitas por fotógrafos de dar sustentação a um sentido de realidade esvaziado contribuem para o esvaziamento. Nossa opressiva sensação da transitoriedade de tudo é mais aguda, uma vez que as câmeras nos oferecem os meios de “fixar” o momento fugidio. Consumimos imagens num ritmo sempre mais rápido e, assim como Balzac suspeitava que as câmeras exauriam camadas do corpo, as imagens consomem a realidade. As câmeras são o antídoto e a doença, um meio de apropriar-se da realidade e um meio de torná-la obsoleta.

Os poderes da fotografia, de fato, têm desplatonizado nossa compreensão da realidade, tornando cada vez menos plausível refletir nossa experiência à luz da distinção entre imagens e coisas, entre cópias e originais. Condizia com a atitude depreciativa de Platão no tocante às imagens associá-las a sombras — transitórias, minimamente informativas, imateriais, impotentes copresenças das coisas reais que as projetam. Mas a força das imagens fotográficas provém de serem elas realidades materiais por si mesmas, depósitos fartamente informativos deixados no rastro do que quer que as tenha emitido, meios poderosos de tomar o lugar da realidade — ao transformar a realidade numa sombra. As imagens são mais reais do que qualquer um poderia supor. E só por constituírem uma fonte ilimitada, que não pode ser exaurida pelo desgaste consumista, há uma razão tanto maior para aplicar o remédio conservacionista. Se pode haver um modo melhor para o mundo real incluir o mundo das imagens, vai demandar uma ecologia não só de coisas reais mas também de imagens.

* Estou me pautando na exposição do realismo de Balzac feita por Auerbach em Mimesis. A passagem em que Auerbach analisa o início de Père Goriot (1834) — Balzac descreve a sala de jantar da pensão Vauquer às sete horas da manhã e a entrada de Madame Vauquer — dificilmente poderia ser mais explícita (ou protoproustiana). “Toda a sua pessoa”, escreve Balzac, “explica a pensão, assim como a pensão implica a sua pessoa. [...] o embonpoint da mulher corada e de baixa estatura é produto da vida aqui, assim como o tifo é a consequência das emanações de um hospital. Sua anágua de lã tricotada, mais comprida do que a saia que veste por cima (feita de um vestido velho), cujo enchimento escapa pelos rombos no tecido roto, sintetiza a sala de visitas, a sala de jantar, o pequeno jardim, anuncia a culinária e dá uma ideia dos pensionistas. Quando ela está ali, o espetáculo é completo.”

** Ver A vicious motive, despicable tricks — A criticism of antonioni’s anti-China film “China” [Um motivo pérfido, truques baixos — Crítica ao filme antichinês de Antonioni “China”] (Pequim: Edições em Línguas Estrangeiras, 1974), um folheto de dezoito páginas (anônimo) que reproduz um artigo publicado no jornal Renminh Ribao no dia 30 de janeiro de 1974; e “Em repúdio ao filme antichinês de Antonioni”, Peking Review, no 8 (22 de fevereiro de 1974), que fornece versões resumidas de três outros artigos publicados naquele mês. O intuito dos três artigos, está claro, não é formular uma opinião sobre a fotografia — seu interesse a esse respeito é involuntário —, mas sim construir um modelo de inimigo ideológico, como ocorreu em outras campanhas educacionais de massa postas em prática nesse período. Em vista desse intuito, para as dezenas de milhões de pessoas mobilizadas em comícios promovidos em escolas, fábricas, unidades militares e comunas em todo o país, era tão desnecessário ter visto de fato Chung Kuo para “Criticar o filme antichinês de Antonioni” como, para os participantes da campanha “Criticar Lin Piao e Confúcio”, em 1976, era desnecessário ter lido qualquer texto de Confúcio.

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