sexta-feira, 8 de maio de 2020

A foto imortal


A foto imortal

De efeito quase hipnótico, a imagem de beleza perturbadora exige mais que mera contemplação. Quem a vê pela primeira vez é compelido a escrutinar cada detalhe, decifrar o oculto por trás do enquadramento perfeito. Passados quase setenta anos desde sua publicação na Life, ela mantém seu poder de sedução e impacto.

Estampada em página inteira na edição de 12 de maio de 1947, a intrigante fotografia apresentava uma legenda fora dos padrões da revista: “Ao pé do Empire State Building, o corpo de Evelyn McHale repousa serenamente num grotesco esquife. Ao cair, o corpo estraçalhou o teto de um carro estacionado”. Um texto de parágrafo único informava o resto. Apesar da brevidade, era extraordinário: Pouco depois de se despedir do noivo no dia 1 o de maio a jovem Evelyn McHale, de 23 anos, escreveu um bilhete do qual riscara a frase “Ele ficará muito melhor sem mim... eu não seria boa esposa para ninguém”. Depois de subir no deque do observatório do Empire State Building, ela procurou o chão 86 andares abaixo e saltou. Em sua desesperada determinação, impulsionou-se além dos recuos do prédio e caiu sobre uma limusine pertencente às Nações Unidas. Do outro lado da rua o estudante de fotografia Robert C. Wiles ouviu o estrondo. Quatro minutos depois fez esta foto de violência e compostura na morte.

Peritos estimaram em dez segundos a duração da queda até o baque sobre a limusine. A cena captada por Wiles revela uma composição absurdamente harmoniosa: o corpo inerte repousa intacto em meio ao metal retorcido, e da fisionomia de Evelyn emana uma placidez desconcertante. As pernas da jovem estão cruzadas com recato e a mão esquerda, enluvada, toca de leve o colar de pérolas também intacto. Não fosse pelas meias de náilon que lhe descem sobre os pés descalços, nada está em desalinho no flagrante imortalizado por Wiles. Mas a realidade de uma foto não ultrapassa seu instante. Pelo relato dos jornais, a composição harmoniosa se desintegrou por completo pouco depois, no momento da remoção do corpo. As vísceras de Evelyn estavam liquefeitas. O mais belo suicídio, como o instantâneo passou a ser conhecido, continua a ser republicado até os dias de hoje. Além de integrar todas as antologias de fotografia do século XX , já serviu de inspiração para músicos, poetas, artistas. Andy Warhol foi um dos que dele se apropriaram para criar o quadro Suicide (Fallen Body), da sua série de múltiplos. A foto também chegou a ser usada em publicidade: a capa do catálogo de outono de 2011 do magazine americano Neiman Marcus retratou a atriz Drew Barrymore em pose e composição semelhantes. Acumulando fama e cultuada mundo afora, a imagem adquiriu vida própria à revelia do autor, de quem nunca mais se ouviu falar. O mais belo suicídio terá sido a primeira e única fotografia publicada por Robert C. Wiles.

Na época ninguém parece ter se interessado em saber mais sobre o jovem aspirante a fotógrafo que o destino colocara na esquina da Quinta Avenida com a rua 34. Tampouco foi registrada a narrativa do que ele sentiu e de como reagiu ao que presenciou. Em contrapartida, a publicação do instantâneo desencadeou um interesse insaciável e duradouro por aquela desconhecida de sina tão trágica. Quem seria a bela adormecida que saltara para a morte de uma altura de 301 metros?

Até aquele dia primaveril, a vida parecia sorrir para Evelyn McHale. Bem-nascida, bonita e elegante, seu casamento estava marcado para o mês seguinte, junho. Caçula de sete irmãos, nascera em Berkeley, Califórnia, mas cresceu na Costa Leste entre Washington e Nova York. Era pré-adolescente quando a mãe se desligara da família, pedira o divórcio por motivo não revelado e abrira mão da custódia dos oito filhos, que passaram à guarda do pai. Evelyn, depois de completar o ensino secundário no auge da Segunda Guerra Mundial, alistara-se no recém-criado e polêmico Programa Militar para Mulheres. Ao concluir o tempo de serviço, Ebby, como era chamada, incinerou o uniforme sem explicar o motivo e foi morar em Nova York com um dos irmãos. No mesmo ano em que começou a trabalhar numa gráfica, conheceu o jovem de quem ficaria noiva, Barry Rhodes, que acabara de ser liberado da Força Aérea e estudava numa universidade da Pensilvânia.

No dia do 24 o aniversário do noivo, 30 de abril, Evelyn decidira visitá-lo no campus para comemorarem a data juntos. Retornou a Manhattan já na manhã seguinte, numa viagem de trem de pouco mais de uma hora. “Quando nos despedimos com um beijo”, contou Barry, “ela estava alegre como qualquer jovem às vésperas do casamento.”

Em vez de voltar para casa, porém, Evelyn registrou-se no Governor Clinton da Sétima Avenida, hotel a três quadras do Empire State Building. Foi no quarto do hotel que redigiu o bilhete de despedida. Às dez e meia estava na bilheteria do célebre arranha-céu de estilo art déco comprando o ingresso para o observatório panorâmico do 86 o andar. Dez minutos depois um guarda de trânsito de plantão naquele trecho da Quinta Avenida avistou uma echarpe branca flutuando no alto do Empire State. O potente estrondo que se seguiu foi ouvido a quarteirões de distância e assinalou o impacto do corpo de Evelyn sobre o capô do Cadillac estacionado. A revista Life comprou todas as chapas batidas por Wiles. Optou por publicar apenas uma.

O primeiro detetive a chegar ao observatório ainda encontrou sobre a mureta protetora o capote de tecido claro que Evelyn dobrara com cuidado, além de um nécessaire com fotos da família da jovem e uma carteira preta contendo o bilhete de despedida.

“Não desejo que ninguém da família nem fora dela veja qualquer parte de mim”, dizia um trecho. “Peço que destruam meu corpo por cremação. Peço a vocês e à minha família: não façam nenhum serviço fúnebre para mim. Digam a meu pai que tenho tendências demais da minha mãe.”

Coube a uma das irmãs de Evelyn fazer o reconhecimento do corpo e zelar pelo cumprimento dos pedidos finais: não existe túmulo em nome de Evelyn McHale, não houve homenagem e suas cinzas jamais foram vistas. Mas quem escolhe saltar em plena luz do dia de um monumento arquitetônico fincado no miolo mais densamente povoado de Manhattan não deve esperar ter direito a uma morte silenciosa.

O Empire State Building, colosso de 102 andares erguidos em apenas 401 dias de trabalho insano, fora aberto ao público em 1 o de maio de 1931 e recebido como símbolo de esperança no país traumatizado pelo colapso financeiro de dois anos antes. “Ele conseguiu alcançar o ponto mais alto do céu no momento mais baixo da Grande Depressão”, escreveu E. B. White. Até ser  ultrapassado pela Torre Norte do World Trade Center de cruel memória, o Empire State reinou por quatro décadas como o edifício mais alto dos Estados Unidos.

Mais de 1 milhão de pessoas visitaram o seu observatório só no primeiro ano de funcionamento, entre elas o F. Scott Fitzgerald de “Minha cidade perdida”. Mas o ilustre arranha-céu também sempre serviu de ímã para desesperançados terminais — antes mesmo de o prédio ser inaugurado, um dos operários que o construíram foi o primeiro a ejetar-se de suas alturas.

Esclarecidos os dados básicos da biografia de Evelyn McHale, e revelada a cronologia factual de seu suicídio, faltava encontrar resposta para a pergunta-chave: o que a levou a abreviar a própria vida? Quem está mais perto de equacionar o enigma é Lauren Anne Rice, aluna de criação literária na Universidade do Arizona. Ela nasceu no dia 12 de maio de 1991, 44 anos depois da publicação da imagem-ícone na Life. Desde que dela tomou conhecimento, a universitária descobriu-se obcecada pelo caso e passou a varar noites vasculhando a internet em busca de pistas. Encontrou tãopouco que decidiu fazer um estudo mais aprofundado da passagem de Evelyn pela vida. Ao longo de dez meses de pesquisa fuçou, investigou, entrevistou, anotou. Em 2014, aos 23 anos — mesma idade de Evelyn ao morrer —, Lauren percebeu-se pronta para escrever uma biografia.

Sem meios para bancar o projeto, lançou uma campanha de financiamento coletivo que nas três semanas iniciais arrecadou seiscentos dólares — pouco, mas o suficiente para a elaboração de uma primeira versão de um futuro livro. Além disso, começou a receber orientação editorial gratuita de alguns professores e escritores.

Sua investigação não tomou como ponto de partida a frase do bilhete riscada na última hora (“Ele ficará muito melhor sem mim... eu não seria boa esposa para ninguém”). Foi outra frase do mesmo bilhete (“Digam a meu pai que tenho tendências demais da minha mãe”) que despertou na pesquisadora a compulsão para desvendar o enigma. A tese de Lauren Anne Rice é que Evelyn  cHale sofria do transtorno, na época ainda não batizado, de bipolaridade e que ela, Lauren, conhece a fundo por tê-lo herdado da mãe.

Esse estranho entrelaçamento de vidas parece longe de esgotado. A começar pelo filão até hoje inexplorado do garoto de câmera na mão que numa manhã de 1947 acionou o disparador e sumiu. 

Novembro de 2014

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