quinta-feira, 21 de maio de 2020

Sobre Fotografia - Susan Sontag - 5º Capítulo


EVANGELHOS FOTOGRÁFICOS

A exemplo de outras atividades francamente enobrecedoras, a fotografia inspirou em seus mais destacados praticantes uma necessidade de explicar, seguidas vezes, o que fazem e por que é valioso. A época em que a fotografia foi amplamente atacada (como parricida, com relação à pintura, e predatória, com relação às pessoas) foi breve. A pintura, está claro, não se extinguiu em 1839, como previu afoitamente um pintor francês; os ressentidos logo pararam de denegrir a fotografia como uma cópia servil; e em 1854 um grande pintor, Delacroix, declarou gentilmente como lamentava que uma invenção tão admirável tivesse chegado tão tarde. Nada é mais aceitável, hoje, do que a reciclagem fotográfica da realidade, aceitável como uma atividade cotidiana e como um ramo da arte elevada. Porém algo na fotografia ainda mantém os profissionais de primeira linha numa atitude defensiva e exortatória: quase todo fotógrafo importante, até o presente, redigiu manifestos e profissões de fé em que expõe a missão moral e estética da fotografia. E os fotógrafos dão as explicações mais contraditórias do tipo de conhecimento que possuem e do tipo de arte que praticam.

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A desconcertante tranquilidade com que os fotógrafos podem ser acatados, a inevitável, mesmo quando inadvertida, autoridade dos produtos da câmera sugerem uma relação muito tênue com o saber. Ninguém discute que a fotografia deu um tremendo impulso às pretensões cognitivas da visão, porque — mediante o close e a sondagem à distância — ampliou enormemente o reino do visível. Porém, sobre as maneiras como qualquer tema ao alcance do olho nu será mais bem conhecido por meio de uma foto, ou sobre o grau de conhecimento que as pessoas precisam ter a respeito daquilo que fotografam a fim de obter uma boa foto, não existe acordo. Tirar fotos foi interpretado de duas maneiras completamente distintas: como um ato de conhecimento lúcido e preciso, de inteligência consciente, ou como um modo de confronto pré-intelectual e intuitivo. Assim, Nadar, ao comentar suas fotos respeitosas e expressivas de Baudelaire, Doré, Michelet, Hugo, Berlioz, Nerval, Gautier, Sand, Delacroix e outros amigos famosos, disse que “os retratos que faço melhor são das pessoas que conheço melhor”, ao passo que Avedon observou que a maioria de seus bons retratos é de pessoas que viu pela primeira vez quando foi fotografá-las.

No século XX, a geração de fotógrafos mais velhos definiu a fotografia como um esforço heroico de atenção, uma disciplina ascética, uma receptividade mística ao mundo, que requer que o fotógrafo atravesse uma nuvem de desconhecimento. Segundo Minor White, “o estado mental do fotógrafo ao criar é um vazio [...] quando em busca de imagens. [...] O fotógrafo projeta a si mesmo em tudo o que vê, identifica-se com tudo a fim de conhecê-lo e senti-lo melhor”. Cartier-Bresson comparou-se a um arqueiro zen, que tem de transformar-se no alvo para ser capaz de atingi-lo; “pensar é algo que tem de ser feito antes e depois”, diz ele, “nunca durante o processo de tirar uma foto”. O pensamento é visto como algo que turva a transparência da consciência do fotógrafo e infringe a autonomia daquilo que é fotografado.Decididos a provar que as fotos podiam transcender o literal — e, quando são boas, sempre o fazem —, muitos fotógrafos sérios fizeram da fotografia um paradoxo noético. A fotografia é apresentada como uma forma de conhecer sem conhecer: um modo de ludibriar o mundo, em lugar de lançar contra ele um ataque frontal.

Mas, mesmo quando profissionais ambiciosos desacreditam o pensamento — a desconfiança contra o intelecto é um tema recorrente nos elogios à fotografia —, em geral querem deixar claro a que ponto essa visualização permissiva tem de ser rigorosa. “Uma foto não é um acidente — é um conceito”, insiste Ansel Adams. “Abordar a fotografia à maneira de uma metralhadora — atirando muitos negativos na esperança de que uma será boa — é fatal para a pretensão de obter resultados sérios.” Para se tirar uma foto boa, reza a regra comum, é preciso que a pessoa esteja vendo a foto. Ou seja, a imagem deve existir na mente do fotógrafo, no momento, ou antes do momento, em que o negativo é exposto. Na maioria dos casos, justificar a fotografia impediu que se admitisse que o método de atirar para todos os lados, sobretudo quando usado por uma pessoa experiente, pode produzir um resultado perfeitamente satisfatório. Mas, apesar de sua relutância em dizê-lo, a maioria dos fotógrafos sempre teve — com bons motivos — uma confiança quase supersticiosa no acidente de sorte.

Ultimamente, o segredo está se tornando confessável. À medida que a defesa da fotografia entra na sua atual fase retrospectiva, verifica-se uma crescente timidez nas pretensões a respeito do estado mental alerta e consciente, que fazia parte dos requisitos para se tirar fotos.

As declarações anti-intelectuais dos fotógrafos, lugares-comuns do pensamento modernista sobre as artes, prepararam o caminho para a gradual inclinação da fotografia séria para uma investigação cética acerca de seus próprios poderes, um lugar-comum da prática modernista na arte. À fotografia como conhecimento seguiu-se a fotografia como — fotografia. Numa veemente reação contra qualquer ideal de representação fidedigna, os jovens fotógrafos americanos mais influentes rejeitam qualquer ambição de pré-visualizar a imagem e concebem sua obra procurando demonstrar como as coisas parecem diferentes quando fotografadas.

Quando as pretensões de conhecimento perdem o ímpeto, as pretensões de criatividade ocupam-lhes o espaço. Como para contestar o fato de que muitas fotos excelentes são tiradas por fotógrafos destituídos de quaisquer intenções sérias ou interessantes, a insistência em que a atividade de tirar fotos é, antes de tudo, o foco de um temperamento, e apenas secundariamente de uma máquina, sempre constituiu uma das teses principais da defesa da fotografia. Essa é a tese preconizada de modo tão eloquente no mais apurado ensaio já escrito em louvor à fotografia, o capítulo de Paul Rosenfeld acerca de Stieglitz em Port of New York.


Ao empregar “seu maquinário”, como diz Rosenfeld, “de modo não mecânico”, Stieglitz mostra que a câmera não só “lhe deu uma oportunidade de expressar-se” como forneceu imagens com uma gama mais larga e “mais refinada do que a mão pode obter”. De forma semelhante, Weston insiste repetidas vezes em que a fotografia é uma oportunidade suprema para a autoexpressão, muito superior à oferecida pela pintura. Para a fotografia, competir com a pintura significa invocar a originalidade como um importante critério de avaliação da obra de um fotógrafo, uma vez que a originalidade equivale à chancela de uma sensibilidade única e poderosa. O estimulante “são fotos que dizem algo de um modo novo”, escreveu Harry Callahan, “não pelo gosto de ser diferente, mas porque o indivíduo é diferente, e o indivíduo expressa a si mesmo”. Para Ansel Adams, “uma grande foto” tem de ser “uma expressão plena daquilo que a pessoa sente a respeito do que é fotografado, no sentido mais profundo, e é portanto uma expressão verdadeira daquilo que a pessoa sente a respeito da vida em seu todo”.

É evidente que existe uma diferença entre a fotografia entendida como “expressão verdadeira” e a fotografia entendida (o que é o mais comum) como um registro fiel; embora a maioria dos arrazoados acerca da missão da fotografia tente velar essa diferença, ela está implícita nos termos rigorosamente polarizados que os fotógrafos empregam a fim de dramatizar aquilo que fazem. A exemplo do que fazem em geral as formas de busca de autoexpressão, a fotografia retoma os dois modos tradicionais de opor radicalmente o eu e o mundo. A fotografia é vista como uma aguda manifestação do “eu” individualizado, o eu recolhido a si mesmo e desabrigado, perdido em um mundo avassalador — que domina a realidade mediante uma rápida compilação visual dessa realidade. Ou a fotografia é vista como um meio de encontrar um lugar no mundo (ainda vivenciado como avassalador, alheio), ao ser capaz de relacionar-se com ele de modo distanciado — desviando-se das insolentes e inoportunas pretensões do eu. Mas, entre a defesa da fotografia como um meio superior de autoexpressão e o louvor da fotografia como um meio superior de pôr o eu a serviço da realidade, não há tanta diferença como pode parecer. Ambos supõem que a fotografia proporciona um sistema especial de revelação: que nos mostra a realidade como não a víamos antes.

Esse caráter revelador da fotografia passa, em geral, pelo nome polêmico de realismo. Do ponto de vista de Fox Talbot, de que a câmera produz “imagens naturais”, à denúncia de Berenice Abbott contra a fotografia “pictórica”, e à advertência de Cartier-Bresson de que “o que mais se deve temer é aquilo que se obtém por meio de artifícios”, a maioria das declarações contraditórias dos fotógrafos converge para confissões contritas de respeito pelas coisas tais como são. Para um veículo visto, com tanta frequência, como meramente realista, era de pensar que os fotógrafos não se conduzissem como o fazem, exortando-se mutuamente a se manter aferrados ao realismo. Mas as exortações continuam — outro exemplo da necessidade que têm os fotógrafos de tornar misterioso e premente o processo pelo qual se apropriam do mundo.

Insistir, como faz Abbott, em que o realismo é a própria essência da fotografia não estabelece, como poderia parecer, a superioridade de determinado procedimento ou critério; não significa necessariamente que fotos-documentos (palavra de Abbott) são melhores do que fotos pictóricas. * O compromisso da fotografia com o realismo pode adaptar-se a qualquer estilo, a qualquer abordagem do tema. Às vezes, ele será definido mais rigidamente como a criação de imagens que se assemelham ao mundo e nos informam a seu respeito. Interpretado de modo mais amplo, fazendo eco à suspeita contra a mera similitude que inspirou a pintura durante mais de um século, o realismo fotográfico pode ser — e é, cada vez mais — definido não como o que “realmente” existe, mas como aquilo que eu “realmente” percebo. Embora todas as formas modernas de arte reclamem para si alguma relação privilegiada com a realidade, a pretensão parece especialmente justificada no caso da fotografia. Mas a fotografia, no final, não se mostrou mais imune do que a pintura às dúvidas modernas mais características a respeito de qualquer relação direta com a realidade — a incapacidade de aceitar como algo fora de questão o mundo tal como observado. Mesmo Abbott não pôde evitar a suposição de uma alteração na própria natureza da realidade: de que ela precisa do olhar seletivo e mais aguçado da câmera, uma vez que simplesmente existe muito mais realidade do que antes. “Hoje, nos defrontamos com a realidade na mais ampla escala que a humanidade já conheceu”, declara ela, e isso impõe “uma responsabilidade maior para o fotógrafo”.

Tudo o que o programa de realismo da fotografia de fato implica é a crença de que a realidade está oculta. E, estando oculta, é algo que deve ser desvelado. Tudo o que a câmera registra é um desvelamento — quer se trate de algo imperceptível, partes fugazes de um movimento, uma ordem de coisas que a visão natural é incapaz de perceber ou uma “realidade realçada” (expressão de Moholy-Nagy), quer se trate apenas de um modo elíptico de ver. O que Stieglitz define como sua “paciente espera pelo momento de equilíbrio” compreende a mesma suposição acerca do caráter essencialmente oculto do real que a espera de Robert Frank pelo momento de desequilíbrio revelador, para apanhar a realidade desprevenida, no que ele chama de “momentos intermediários”.

Na visão fotográfica, mostrar algo, seja o que for, é mostrar que isso está oculto. Mas, para os fotógrafos, não é necessário enfatizar o mistério com temas exóticos ou extraordinariamente chocantes. Quando Dorothea Lange exorta seus colegas a concentrar-se no “familiar”, é com o entendimento de que o familiar, interpretado por um emprego sensível da câmera, se tornará, desse modo, misterioso. O compromisso da fotografia com o realismo não a restringe a determinados temas, tidos como mais reais do que outros, mas antes ilustra o entendimento formalista do que se passa em toda obra de arte: a realidade é, nos termos de Viktor Chklóvski, desfamiliarizada. O que se exige é uma relação agressiva com todos os temas.

Munidos de suas máquinas, cabe aos fotógrafos tomar de assalto a realidade — que é vista como recalcitrante, enganosamente disponível, irreal. “As fotos têm, para mim, uma realidade que as pessoas não têm”, declarou Avedon. “É por meio da fotografia que eu as conheço.” Pretender que a fotografia deva ser realista não é incompatível com um alargamento ainda maior do abismo entre imagem e realidade, em que o conhecimento misterioso (e o realce da realidade) propiciado pelas fotos supõe uma desvalorização ou uma prévia alienação da realidade.

Como os fotógrafos o descrevem, tirar fotos é uma técnica ilimitada de apropriar-se do mundo objetivo e também uma expressão inevitavelmente solipsista do eu singular. As fotos retratam realidades que já existem, embora só a câmera possa desvelá-las. E retratam um temperamento individual, que se descobre por meio da colheita da realidade feita pela câmera. Para Moholy-Nagy, o gênio da fotografia reside na capacidade de transmitir “um retrato objetivo: o indivíduo a ser fotografado, de sorte que o resultado fotográfico não seja embaraçado pela intenção subjetiva”. Para Lange, todo retrato de outra pessoa é um “autorretrato” do fotógrafo, assim como para Minor White — ao promover “a autodescoberta por meio da câmera” — as fotos de paisagem são, na verdade, “paisagens interiores”. Os ideais são antitéticos. Na medida em que a fotografia é (ou deveria ser) sobre o mundo, o fotógrafo conta pouco, mas na medida em que é o instrumento de uma subjetividade questionadora e intrépida, o fotógrafo é tudo.

A exigência de Moholy-Nagy de um autoapagamento do fotógrafo decorre de sua avaliação do caráter edificante da fotografia: ela conserva e aprimora nossos poderes de observação, enseja “uma transformação psicológica de nossa visão”. (Num ensaio publicado em 1936, ele diz que a fotografia cria ou amplia oito variedades de visão: abstrata, exata, rápida, lenta, intensificada, penetrante, simultânea e distorcida.) Mas o autoapagamento é também a exigência que respalda abordagens da fotografia completamente distintas e anticientíficas, como as que se manifestam no credo de Robert Frank: “Há uma coisa que o fotógrafo precisa abrigar, a humanidade do momento”. Nas duas concepções, o fotógrafo é proposto como uma espécie de observador ideal — para Moholy-Nagy, ele vê com a isenção de um pesquisador; para Frank, ele vê “simplesmente através dos olhos do homem comum das ruas”.

Um atrativo de qualquer concepção do fotógrafo como o observador ideal — seja impessoal (Moholy-Nagy), seja solidário (Frank) — consiste em que, implicitamente, ela nega que tirar fotos seja, em qualquer aspecto, um ato agressivo. A circunstância de que sua atividade pode ser apresentada dessa maneira torna a maioria dos fotógrafos profissionais extremamente defensiva. Cartier-Bresson e Avedon estão entre os muito poucos que falaram com honestidade (ainda que de modo pesaroso) sobre o aspecto explorador da atividade do fotógrafo. Em geral, os fotógrafos sentem-se obrigados a protestar a inocência da fotografia, afirmam que a atitude predatória é incompatível com uma foto boa e esperam que um vocabulário mais positivo venha pôr o assunto em pratos limpos. Um dos exemplos mais memoráveis desse tipo de palavrório é a definição que Ansel Adams faz da câmera como “um instrumento de amor e de revelação”; Adams também nos exorta a parar de dizer que “tiramos” fotos e, em lugar disso, dizer sempre que “fazemos” fotos. O título dado por Stieglitz para os estudos de nuvens que fez em fins da década de 1920 — Equivalentes, ou seja, manifestações dos seus sentimentos interiores — é outro exemplo, mais moderado, do persistente esforço dos fotógrafos para enfatizar o caráter benévolo da atividade de tirar fotos e não levar em conta suas implicações predatórias. O que fotógrafos talentosos fazem não pode, está claro, ser caracterizado como simplesmente predatório, nem como simplesmente, e essencialmente, benévolo. A fotografia é o paradigma de uma relação intrinsecamente equívoca entre o eu e o mundo — sua versão da ideologia do realismo às vezes prescreve um apagamento do eu em favor do mundo, outras vezes autoriza uma atitude agressiva diante do mundo, a qual celebra o eu. Um lado ou outro da relação é sempre redescoberto e defendido.

Um efeito importante da coexistência desses dois ideais — tomar de assalto a realidade e submeter-se a ela — é uma recorrente ambivalência com respeito ao significado da fotografia.

Quaisquer que sejam as pretensões da fotografia como uma forma de expressão pessoal em paridade de condições com a pintura, continua a ser verdade que sua originalidade está inextricavelmente ligada aos poderes da máquina: ninguém pode negar o conteúdo informacional e a beleza formal de muitas fotos que se tornaram possíveis graças ao aumento constante desses poderes, como as fotos em alta velocidade, tiradas por Harold Edgerton, de uma bala no instante em que atinge o alvo e dos rodopios e torvelinhos de uma raquetada de tênis, ou as fotos endoscópicas, tiradas por Lennart Nilsson, do interior do corpo humano. Mas à medida que as câmeras se tornam cada vez mais sofisticadas, mais automatizadas, mais acuradas, alguns fotógrafos sentem-se tentados a desarmar-se ou a sugerir que não estão de fato armados, e preferem submeter-se aos limites impostos por uma tecnologia de câmera pré-moderna — acredita-se que um mecanismo mais tosco, menos poderoso, produza resultados mais interessantes ou expressivos, deixe mais espaço para o acidente criativo. Não usar equipamentos complicados tem sido uma questão de honra para muitos fotógrafos — entre eles Weston, Brandt, Evans, Cartier-Bresson, Frank —; alguns se aferram a uma câmera já bastante surrada, de desenho simples e lentes vagarosas que compraram no início de sua carreira, alguns continuam a tirar suas provas de contato sem nada mais sofisticado do que umas poucas bandejas, um frasco de revelador e um frasco de fixador.

A câmera é, de fato, o instrumento para “ver rápido”, como afirmou um modernista confiante, Alvin Langdon Coburn, em 1918, fazendo eco à apoteose futurista das máquinas e da velocidade. A atual atitude de dúvida da fotografia pode ser aferida pela recente afirmação de Cartier-Bresson de que ela pode ser rápida demais. O culto do futuro (de uma visão cada vez mais rápida) alterna com o desejo de voltar a um passado mais puro e mais artesanal — quando as imagens ainda tinham um atributo de manufatura, uma aura. A nostalgia de um estado ancestral da atividade fotográfica se encontra subjacente ao atual entusiasmo por daguerreótipos, cartões estereográficos, cartes de visite fotográficas, instantâneos de família, fotos de esquecidos fotógrafos provincianos e comerciais século XIX e início do XX.

Mas a relutância em usar o mais novo equipamento de alta potência não é a única nem, de fato, a mais interessante maneira como os fotógrafos expressam sua atração pelo passado da fotografia. Os anseios primitivistas que plasmam o gosto fotográfico atual são, na verdade, respaldados pelas incessantes inovações tecnológicas da câmera. Pois muitos desses avanços não apenas ampliam os poderes da câmera como também recapitulam — de um modo mais engenhoso, menos complicado — antigas possibilidades da fotografia, descartadas com o tempo. Assim, o desenvolvimento da fotografia depende da substituição do processo do daguerreótipo, em que se aplica diretamente o positivo sobre uma chapa de metal, pelo processo negativo-positivo, por meio do qual se pode obter um número ilimitado de cópias (positivos) a partir de um original (negativo). (Embora criadas simultaneamente em fins da década de 1830, não foi a invenção de Fox Talbot do processo negativo-positivo, mas sim a invenção de Daguerre, apoiada pelo governo e anunciada em 1839 com grande publicidade, que se tornou o primeiro processo fotográfico de uso geral.) Mas agora se pode dizer que a câmera está se voltando sobre os próprios passos. A câmera Polaroid revive o princípio da câmera de daguerreótipo: cada cópia é um objeto único. O holograma (uma imagem tridimensional criada com luz laser) poderia ser considerado uma variante dos heliogramas — as primeiras fotos feitas sem câmera, na década de 1820, por Nicéphore Niepce. E o emprego cada vez mais popular da câmera para produzir diapositivos — imagens que não podem ser expostas em caráter permanente, nem guardadas na carteira e em álbuns, mas que só podem ser projetadas na parede ou no papel (como um subsídio para desenhar) — remonta a uma época ainda mais antiga da pré-história da câmera, pois remete ao uso da câmera fotográfica para cumprir a função da camera obscura.

“A história está nos empurrando para o limiar de uma era realista”, segundo Abbott, que exorta os fotógrafos a dar o salto por si mesmos. Porém, enquanto os fotógrafos exortam-se perpetuamente uns aos outros a ser mais corajosos, persiste uma dúvida em torno do valor do realismo, que os faz oscilar entre simplicidade e ironia, entre insistir no controle e cultivar o inesperado, entre a sofreguidão para tirar partido da complexa evolução dos equipamentos e o desejo de reinventar a fotografia a partir do zero. Os fotógrafos parecem precisar, periodicamente, resistir a seus conhecimentos e remistificar o que fazem.


Historicamente, questões acerca do conhecimento não figuram na primeira linha de defesa da fotografia. As primeiras controvérsias giravam em torno da questão de saber se a fidelidade da fotografia às aparências e sua dependência de uma máquina a impediam de ser uma das belas-artes — distinta de uma simples arte prática, de um ramo da ciência e de um negócio. (Era óbvio, desde o início, que a fotografia fornecia úteis e, muitas vezes, surpreendentes tipos de informação. Os fotógrafos só passaram a se preocupar com o que sabiam, e com que tipo de conhecimento, num sentido mais profundo, uma foto proporciona, após a fotografia ter sido aceita como uma arte.) Durante um século, a defesa da fotografia se identificou com a luta para estabelecê-la como uma bela-arte. Contra a crítica de que a fotografia era uma cópia mecânica e sem alma da realidade, os fotógrafos alegavam que se tratava de uma revolta de vanguarda contra os padrões comuns de visão, uma arte tão digna quanto a pintura.

Agora, os fotógrafos são mais seletivos em suas pretensões. Desde que a fotografia se tornou inteiramente respeitável como um ramo das belas-artes, eles não buscam mais o abrigo que a ideia de arte proporcionou de forma intermitente à atividade fotográfica. A despeito de todos os importantes fotógrafos americanos que orgulhosamente identificaram sua obra com os objetivos da arte (como Stieglitz, White, Siskind, Callahan, Lange, Laughlin), há outros muito mais numerosos que repudiam a questão em si mesma. Saber se “os produtos de uma câmera se enquadram na categoria de Arte é irrelevante”, escreveu Strand na década de 1920; e Moholy-Nagy declarou ser “totalmente impertinente discutir se a fotografia produz ‘arte’ ou não”. Os fotógrafos que chegaram à maturidade na década de 1940 ou depois são mais ousados, afrontam abertamente a arte, equiparam arte a rebuscamento vazio. Declaram, em geral, estar descobrindo, registrando, observando imparcialmente, testemunhando, explorando a si mesmos — tudo, enfim, menos criando obras de arte. No início, foi o compromisso da fotografia com o realismo que a pôs numa relação perpetuamente ambígua com a arte; agora, é sua herança modernista. O fato de fotógrafos importantes não mais desejarem discutir se a fotografia é ou não uma bela-arte e limitarem-se a proclamar que sua obra não está envolvida com arte mostra a que ponto eles simplesmente consideram como inquestionável o conceito de arte imposto pelo triunfo do modernismo: quanto melhor a arte, mais subverterá os objetivos tradicionais da arte. E o gosto modernista saudou com aplausos essa atividade despretensiosa que, quase a despeito de si mesma, pode ser consumida como arte.

Mesmo no século XIX, quando se julgava que a fotografia carecia, de um modo tão flagrante, ser defendida como uma bela-arte, a linha de defesa nada teve de estável. A tese de Julia Margaret Cameron de que a fotografia se qualifica como arte porque, a exemplo da pintura, almeja a beleza foi seguida pela tese wildiana de Henry Peach Robinson de que a fotografia é uma arte porque pode mentir. No início do século XX, o elogio de Alvin Langdon Coburn à fotografia como “a mais moderna das artes” por ser um modo rápido e impessoal de ver rivalizou com o elogio de Weston à fotografia como um novo meio de criação visual individual. Em décadas recentes, a ideia de arte se exauriu como um instrumento de polêmica; a rigor, boa parte do enorme prestígio adquirido pela fotografia como uma forma de arte decorre de sua declarada ambivalência quanto a se tornar uma arte. Quando os fotógrafos, hoje, negam que fazem obras de arte, a causa é pensarem que fazem algo melhor. Seus repúdios nos revelam mais sobre a condição sitiada de qualquer noção de arte do que sobre ser a fotografia uma arte ou não.

Apesar dos esforços de fotógrafos contemporâneos para exorcizar o fantasma da arte, algo perdura. Por exemplo, quando os profissionais se opõem a ter suas fotos impressas até a borda da página, em livros e revistas, invocam o exemplo de outra arte: assim como as pinturas são postas em molduras, deveriam as fotos ser emolduradas em espaços em branco. Outro exemplo: muitos fotógrafos continuam a preferir imagens em preto e branco, tidas por mais delicadas, mais decorosas do que as imagens em cores — ou menos voyeurísticas, ou menos sentimentais, ou cruamente reais. Mas o verdadeiro fundamento para tal preferência é, mais uma vez, uma comparação implícita com a pintura. Na introdução ao seu livro sobre fotos O momento decisivo (1952), Cartier-Bresson justificou sua resistência ao uso de cores citando limitações técnicas: a baixa velocidade do filme colorido, que reduz a profundidade do foco.

Mas, com o rápido progresso da tecnologia do filme colorido nas duas últimas décadas, que permitiu toda a sutileza de tons e toda a alta resolução que se podia desejar, Cartier-Bresson teve de mudar sua argumentação, e agora propõe que os fotógrafos renunciem às cores por uma questão de princípio. Na versão de Cartier-Bresson do persistente mito segundo o qual — após a invenção da câmera — ocorreu uma divisão de territórios entre a fotografia e a pintura, a cor pertence à pintura. Ele recomenda aos fotógrafos que resistam à tentação e mantenham a sua parte do pacto.

Aqueles ainda empenhados em definir a fotografia como uma arte sempre tentam persistir numa linha de argumentação. Mas é impossível persistir na mesma linha: toda tentativa de restringir a fotografia a certos temas ou certas técnicas, por mais frutífera que se revele, está condenada a ser contestada e a sucumbir. Pois é da própria natureza da fotografia ser uma forma de ver promíscua e, em mãos talentosas, um meio de criação infalível. (Como observa John Szarkowski, “um fotógrafo hábil pode fotografar bem qualquer coisa”.) Daí sua antiga desavença com a arte, termo que (até recentemente) designava os frutos de uma forma de ver purificada e discriminatória e um meio de criação regido por padrões que tornavam uma realização genuína uma raridade. De forma compreensível, os fotógrafos têm se mostrado relutantes a desistir da tentativa de definir mais restritamente o que é a boa fotografia. A história da fotografia é marcada por uma série de controvérsias dualistas — como a da cópia direta contra a cópia modificada, ou a da fotografia pictórica contra a fotografia documental —, cada uma delas uma forma distinta do debate sobre a relação entre a fotografia e a arte: até que ponto pode a fotografia se aproximar da arte sem abrir mão de suas pretensões de aquisição visual ilimitada? Recentemente, tornou-se comum afirmar que todas essas controvérsias estão superadas, o que sugere que o debate se encerrou. Mas é improvável que a defesa da fotografia como arte um dia venha a cessar completamente. Enquanto a fotografia não for apenas um modo voraz de ver, mas sim um modo de ver que precisa ter a pretensão de ser especial e distintivo, os fotógrafos continuarão a buscar abrigo (quando não cobertura) no santuário profanado mas ainda prestigioso da arte.

Fotógrafos que, ao tirar fotos, supõem afastar-se das pretensões à arte tal como exemplificadas na pintura fazem-nos recordar aqueles pintores expressionistas abstratos que imaginaram estar afastando-se da arte, ou da Arte, pelo ato de pintar (ou seja, ao tratar a tela como um campo de ação e não como um objeto). E grande parte do prestígio que a fotografia adquiriu recentemente como arte se baseia na convergência de suas pretensões com aquelas da pintura e da escultura mais recente. ** O apetite aparentemente insaciável por fotografia na década de 1970 expressa mais do que o prazer de descobrir e explorar uma forma de arte relativamente relegada; boa parte de seu fervor decorre do desejo de reafirmar a rejeição da arte abstrata, uma das mensagens do gosto pop da década de 1960. Prestar mais e mais atenção a fotos constitui um grande alívio para sensibilidades cansadas dos esforços mentais exigidos pela arte abstrata, ou ansiosas para evitar tais esforços. A pintura modernista clássica pressupõe habilidades altamente desenvolvidas de olhar, de par com uma familiaridade com outras artes e com certas ideias sobre a história da arte. A fotografia, como a arte pop, tranquiliza os espectadores mostrando que a arte não é difícil; parece ter mais a ver com os temas do que com a arte.

A fotografia é o mais bem-sucedido veículo do gosto modernista em sua versão pop, com seu zelo para desmascarar a alta cultura do passado (concentrando-se em cacos, lixo, velharias; sem excluir nada); com sua corte consciente à vulgaridade; sua afeição pelo kitsch; sua habilidade para conciliar as ambições da vanguarda com as compensações do comercialismo; seu desprezo pseudo radical da arte como reacionária, elitista, esnobe, insincera, artificial, sem contato com as verdades amplas da vida cotidiana; sua transformação da arte em documento cultural. Ao mesmo tempo, a fotografia incorporou gradualmente todas as inquietações e todos os escrúpulos de uma arte modernista clássica. Muitos profissionais agora se preocupam com terem levado essa estratégia populista longe demais e temem que o público se esqueça de que a fotografia é, afinal, uma atividade nobre e louvável — em suma, uma arte. Pois o incentivo modernista à arte ingênua contém uma cláusula disfarçada no contrato: que se deve continuar a respeitar sua oculta pretensão à sofisticação.

Não pode ser coincidência o fato de que, exatamente no momento em que os fotógrafos pararam de discutir se a fotografia é ou não uma arte, ela passou a ser aclamada como tal pelo público em geral e ingressou, à força, nos museus. A naturalização da fotografia como arte pelo museu é a vitória conclusiva da campanha de um século travada pelo gosto modernista em favor de uma definição de arte sem fronteiras, uma vez que a fotografia oferecia um campo muito mais conveniente do que a pintura para esse esforço. Pois a fronteira, na fotografia, entre amador e profissional, primitivo e sofisticado, não é só mais difícil de traçar do que na pintura — ela tem pouco sentido. A fotografia ingênua, comercial ou apenas utilitária não difere, no tipo, da fotografia praticada pelos profissionais mais talentosos: há fotos tiradas por amadores anônimos tão interessantes, tão formalmente complexas, tão representativas das potencialidades características da fotografia quanto uma foto de Stieglitz ou de Evans.

A circunstância de todos os tipos de fotografia formarem uma tradição contínua e interdependente exprime a premissa outrora surpreendente, e hoje aparentemente óbvia, que se encontra subjacente ao gosto fotográfico contemporâneo e autoriza a expansão indefinida desse gosto. Essa premissa só se tornou plausível quando a fotografia foi aceita por curadores e historiadores e passou a ser exposta normalmente em museus e galerias de arte. A carreira da fotografia no museu não contempla um estilo em particular; em vez disso, apresenta a fotografia como uma coleção de intenções e de estilos simultâneos que, por mais diferentes que se mostrem, não são absolutamente entendidos como contraditórios. Porém, embora a manobra tenha alcançado um enorme sucesso com o público, a reação dos profissionais da fotografia é dúbia. Mesmo quando saúdam a nova legitimidade da fotografia, muitos deles se sentem ameaçados quando as imagens mais ambiciosas são discutidas em continuidade direta com todos os tipos de imagens, desde o fotojornalismo até a fotografia científica e instantâneos tirados em família — protestando que isso reduz a fotografia a algo trivial, vulgar, um mero ofício.

O verdadeiro problema de trazer fotos funcionais, fotos tiradas com fins práticos, sob encomenda comercial, ou como suvenires, para o veio mais importante da atividade fotográfica não reside em que isso rebaixa a fotografia, vista como uma bela-arte, mas sim em que o processo contradiz a natureza da maioria das fotos. Na maior parte do uso que se faz da câmera, a função ingênua ou descritiva da foto é a predominante. Mas, quando vista em seu novo contexto, o museu ou a galeria, as fotos deixam de ser “sobre” seus temas desse modo direto ou primário; tornam-se estudos das possibilidades da fotografia. A adoção da fotografia pelo museu faz com que a própria fotografia pareça problemática, de um modo vivenciado apenas por um pequeno número de fotógrafos escrupulosos, cuja obra consiste justamente em questionar a capacidade da câmera para apreender a realidade. As coleções ecléticas dos museus reforçam o caráter arbitrário e subjetivo de todas as fotos, incluindo as mais francamente descritivas.

Montar exposições de fotos tornou-se uma típica atividade dos museus, assim como montar exposições individuais de pintores. Mas um fotógrafo não é como um pintor, pois o papel do fotógrafo é recessivo em boa parte da fotografia séria, e quase irrelevante em todos os seus demais usos comuns. Na medida em que o tema fotografado nos interessa, esperamos que o fotógrafo seja uma presença extremamente discreta. Assim, o próprio sucesso do fotojornalismo repousa na dificuldade de distinguir a obra de um fotógrafo superior da obra de outro, exceto quando o fotógrafo monopolizou um tema específico. Tais fotos têm seu poder como imagens (ou cópias) do mundo, e não da consciência individual de um artista. E na grande maioria das fotos — com fins científicos e industriais, tiradas pela imprensa, pelos militares e pela polícia, pelas famílias —, qualquer traço da visão pessoal de quem quer que esteja atrás da câmera interfere no requisito básico da foto: que ela registre, diagnostique,
informe.

Faz sentido que uma pintura seja assinada e uma foto não (ou que pareça mau gosto assinar uma foto). A própria natureza da fotografia implica uma relação equívoca com o fotógrafo como auteur; e quanto maior e mais variada a obra de um fotógrafo talentoso, mais ela parece adquirir uma espécie de autoria antes corporativa do que individual. Muitas fotos publicadas pelos maiores nomes da fotografia parecem obras que poderiam ter sido feitas por outros profissionais de talento do mesmo período. É preciso um conceito formal (como as fotos superexpostas à luz de Todd Walker, ou as fotos de sequência narrativa de Duane Michal) ou uma obsessão temática (como o nu masculino em Eakins, ou o velho Sul dos Estados Unidos em Laughlin) para tornar uma obra facilmente identificável. Pois os fotógrafos que não se limitam dessa maneira, têm um conjunto de obra sem a mesma integridade que se verifica, no caso de obras igualmente diversificadas, em outras formas de arte. Mesmo nas carreiras com as mais marcadas rupturas de fase e de estilo — pensemos em Picasso, ou em Stravinski —, pode-se perceber a unidade de preocupações que transcende essas rupturas e pode-se ver (retrospectivamente) a relação interna entre uma fase e outra. Conhecendo o conjunto completo da obra, pode-se ver como o mesmo compositor poderia ter composto A sagração da primavera, o Concerto de Dumbarton Oaks e as obras neoschoenberguianas tardias; reconhecemos a mão de Stravinski em todas essas composições. Mas não existe nenhum traço interno que permita identificar como obra de um fotógrafo individual (na verdade, um dos fotógrafos mais interessantes e originais) aqueles estudos de movimento humano e animal, os documentos trazidos de expedições fotográficas pela América Central, os levantamentos fotográficos do Alasca e do vale Yosemite patrocinados pelo governo, e as séries Nuvens e Árvores. Mesmo depois de saber que foram todas tiradas por Muybridge, ainda não é possível relacionar essas séries de fotos umas com as outras (embora cada série tenha um estilo coerente e identificável), assim como não se poderia inferir o modo como Atget fotografou árvores a partir do modo como fotografou as vitrines de Paris, ou associar os retratos de judeus do pré-guerra tirados por Roman Vishniac com as microfotografias científicas que ele tirou a partir de 1945. Na fotografia, o assunto sempre prevalece, e assuntos diferentes criam abismos intransponíveis entre um período e outro no vasto corpo de uma obra, confundindo a assinatura.

De fato, a própria presença de um estilo fotográfico coerente — pensemos no fundo branco e na luz sem contraste dos retratos de Avedon, na grisalha típica dos estudos de rua de Paris feitos por Atget — parece indicar um material unificado. E parece caber ao assunto o papel predominante na determinação das preferências do espectador. Mesmo quando as fotos se encontram isoladas do contexto prático em que podem, originalmente, ter sido tiradas e são vistas como obras de arte, preferir uma foto a outra raramente significa apenas que a foto é julgada formalmente superior; quase sempre significa — como em tipos de visão mais informais — que o espectador prefere aquele tipo de estado de ânimo, ou que respeita aquela intenção, ou que está intrigado por aquele assunto (ou sente-se nostálgico em relação a ele).

As abordagens formalistas da fotografia não podem dar conta do poder do que foi fotografado, nem do modo como a distância no tempo e a distância cultural da foto aumentam nosso interesse.

Porém parece lógico que o gosto fotográfico contemporâneo tenha tomado um rumo amplamente formalista. Embora o status natural ou ingênuo do assunto na fotografia se encontre mais seguro do que em qualquer outra arte representacional, a própria pluralidade das situações em que as fotos são vistas complica e, no fim, enfraquece a primazia do assunto.

O conflito de interesse entre objetividade e subjetividade, entre demonstração e suposição, é insolúvel. Embora a autoridade de uma fotografia sempre dependa da relação com um tema (de ser a foto de alguma coisa), todas as pretensões da fotografia como arte devem enfatizar a subjetividade da visão. Existe um equívoco no cerne de toda avaliação estética de fotos; e isso explica a crônica atitude defensiva e a extrema mutabilidade do gosto fotográfico.

Por um breve tempo — digamos, de Stieglitz até o reinado de Weston —, pareceu que se havia assentado um ponto de vista sólido para avaliar fotos: luz impecável, habilidade de composição, clareza de tema, precisão de foco, perfeição de qualidade da cópia. Mas essa posição, vista em geral como westoniana — critérios essencialmente técnicos quanto ao que torna uma foto boa —, agora está falida. (O julgamento depreciativo de Weston com relação ao grande Atget como “um técnico fraco” demonstra suas limitações.) Que posição substitui a de Weston? Uma posição muito mais inclusiva, com critérios que deslocam o centro do juízo da foto individual, tida como um objeto acabado, para a foto vista como um exemplo de “visão fotográfica”. O que se entende por visão fotográfica dificilmente excluiria a obra de Weston, mas incluiria também um grande número de fotos anônimas, não posadas, toscamente iluminadas, compostas de forma assimétrica, antes desdenhadas por sua falta de composição.

A nova posição almeja liberar a fotografia, como arte, dos padrões opressivos da perfeição técnica; liberar a fotografia da beleza, também. Abre a possibilidade de um gosto global, em que nenhum tema (ou ausência de tema), nenhuma técnica (ou ausência de técnica) desqualifica a fotografia.

Embora, em princípio, todos os temas sejam pretextos válidos para exercitar o modo de ver fotográfico, formou-se a convenção de que a visão fotográfica é mais nítida quando se trata de assuntos excêntricos ou triviais. Os temas são escolhidos por serem enfadonhos ou banais.

Porque somos indiferentes a eles, revelam melhor a capacidade que a câmera tem de “ver”.

Quando Irving Penn, conhecido por suas belas fotos de celebridades e de comida para revistas de moda e agências de publicidade, teve montada uma exposição no Museu de Arte Moderna, em 1975, tratava-se de uma série de closes de guimbas de cigarros. “Alguém talvez suponha”, comentou o diretor do departamento de fotografia do museu, John Szarkowski, “que [Penn] apenas raramente provou um interesse mais do que superficial pelos temas nominais de suas fotos.” Escrevendo sobre outro fotógrafo, Szarkowski elogia o que “pode ser extraído de um assunto” que é “profundamente banal”. A adoção da fotografia pelo museu está hoje firmemente associada a estes importantes conceitos modernistas: o “tema nominal” e o “profundamente banal”. Mas essa abordagem não só reduz a importância do assunto; também afrouxa o laço que une a foto a um fotógrafo individual. O modo fotográfico de ver está longe de ser exaustivamente ilustrado pelas muitas exposições e retrospectivas individuais de fotógrafos promovidas por museus hoje em dia. Para ser legítima como arte, a fotografia deve cultivar a ideia do fotógrafo como auteur e de que todas as fotos tiradas pelo mesmo fotógrafo constituem o corpo de uma obra. Tais ideias são mais fáceis de aplicar a certos fotógrafos do que a outros. Parecem mais aplicáveis, digamos, a Man Ray, cujos propósitos e estilo abarcam
normas fotográficas e pictóricas, do que a Steichen, cuja obra inclui abstrações, retratos, anúncios de bens de consumo, fotos de moda e de reconhecimento aéreo (tiradas durante seu serviço militar, nas duas guerras mundiais). Mas os significados que uma foto adquire quando vista como parte do corpo de uma obra individual não são particularmente pertinentes quando o critério é a visão fotográfica. Em lugar disso, tal abordagem deve forçosamente favorecer os novos significados que qualquer foto adquire quando justaposta — em antologias ideais, na parede de museus ou em livros — à obra de outros fotógrafos.

Tais antologias destinam-se a educar o gosto fotográfico em geral; ensinar uma forma de ver que torna equivalentes todos os temas. Quando Szarkowski descreve postos de gasolina, salas vazias e outros temas áridos como “padrões de fatos aleatórios a serviço da imaginação [do fotógrafo]”, o que ele quer dizer na verdade é que esses temas são ideais para a câmera. Os critérios ostensivamente formalistas e neutros da visão fotográfica são, na realidade, fortemente judicativos acerca de temas e de estilos. A reavaliação de fotos ingênuas ou fortuitas do século XIX, em especial aquelas tiradas como registros modestos, se deve em parte a seu estilo de foco bem definido — um corretivo pedagógico para o suave foco “pictórico” que, de Cameron a Stieglitz, esteve associado à pretensão da fotografia de se tornar arte.

Contudo, as normas da visão fotográfica não implicam um compromisso inalterável com o foco bem definido. Quando se sentiu que a fotografia séria se havia purgado de relações antiquadas com a arte e com a beleza, ela pôde igualmente adaptar-se a um gosto pela fotografia pictórica, pela abstração, por temas nobres, em detrimento de guimbas de cigarros, postos de gasolina e pessoas de costas.

A linguagem em que, em geral, se avaliam fotos é extremamente pobre. Às vezes, é parasitária em relação ao vocabulário da pintura: composição, luz etc. Mais frequentemente, consiste nos tipos mais vagos de julgamento, como quando se elogiam fotos por serem sutis, interessantes, fortes, complexas, simples, ou — uma das favoritas — enganosamente simples. O motivo por que a linguagem é pobre não é acidental: trata-se da ausência de uma rica tradição de crítica fotográfica. Isso é algo inerente à fotografia, sempre que é vista como arte.

A fotografia propõe um processo de imaginação e um apelo ao gosto totalmente distintos daqueles que a pintura propõe (ao menos como é concebida tradicionalmente). De fato, a diferença entre uma foto boa e uma ruim não é, em absoluto, igual à diferença entre uma pintura boa e uma ruim. As normas de avaliação estética elaboradas para a pintura dependem de critérios de autenticidade (e de falsidade), e de perícia técnica — critérios que, para a fotografia, são mais permissivos até ou inexistentes. E enquanto as tarefas de um especialista em pintura invariavelmente supõem a relação orgânica de um quadro com o corpo de uma obra individual, dotado de integridade própria, e com escolas e tradições iconográficas, na fotografia, o vasto corpo de uma obra individual não tem necessariamente uma coerência estilística interna, e a relação de um fotógrafo individual com escolas de fotografia é uma questão muito mais superficial.

Um critério de avaliação que a pintura e a fotografia de fato compartilham é a inovação; tanto pintores como fotógrafos são muitas vezes valorizados porque impõem novos esquemas formais ou mudanças na linguagem visual. Outro critério que podem compartilhar é a faculdade da presença, que Walter Benjamin considerava a característica decisiva da obra de arte. Benjamin pensava que uma foto, por ser um objeto mecanicamente reproduzido, não podia ter uma presença genuína. Contudo, pode-se argumentar que a própria situação que é agora determinante do gosto na fotografia, sua exposição em museus e galerias, revelou que as fotos têm, de fato, uma espécie de autenticidade. Além disso, embora nenhuma foto seja um original no sentido em que sempre é original uma pintura, existe uma grande diferença qualitativa entre o que poderia ser chamado de originais — cópias feitas do negativo original, na época (ou seja, no mesmo momento da evolução tecnológica da fotografia) em que foi tirada a foto — e gerações subsequentes da mesma foto. (O que a maioria das pessoas conhece das fotos famosas — em livros, jornais, revistas etc. — são fotos de fotos; os originais, que só será possível ver em museus ou galerias, proporcionam prazeres visuais que não são reproduzíveis.) O resultado da reprodução mecânica, diz Benjamin, é “pôr a cópia do original em situações fora do alcance do original propriamente dito”. Mas, na medida em que se pode dizer que, por exemplo, um Giotto tem uma aura em situação de exposição num museu, onde também foi deslocado de seu contexto original e, como a foto, “faz concessões ao espectador” (no sentido mais estrito da ideia de aura de Benjamin, não o faz), nessa mesma medida também se pode dizer que possui uma aura uma foto de Atget copiada por ele num papel que hoje não se pode mais obter.

A verdadeira diferença entre a aura que pode ter uma foto e a aura de uma pintura repousa na relação diferente com o tempo. A devastação do tempo tende a agir contra as pinturas. Mas parte do interesse incorporado às fotos, e uma fonte importante de seu valor estético, são precisamente as transformações que o tempo opera sobre elas, o modo como as fotos escapam das intenções de seus criadores. Após o tempo necessário, as fotos adquirem de fato uma aura.

(A circunstância de as fotos coloridas não envelhecerem como as fotos em preto e branco pode explicar, em parte, o status marginal da cor até muito recentemente, no gosto fotográfico sério. A intimidade fria da cor parece imunizar a foto contra a pátina.) Pois, enquanto pinturas ou poemas não se tornam melhores, mais atraentes, apenas por envelhecer, todas as fotos são
interessantes, além de comoventes, se forem velhas o bastante. Não está completamente errado dizer que não existem fotos ruins — apenas fotos menos interessantes, menos relevantes, menos misteriosas. A adoção da fotografia pelo museu só acelera um processo que o tempo trará, de um modo ou de outro: tornar toda obra valiosa.

Nunca é demais destacar o papel do museu na formação do gosto fotográfico contemporâneo. Mais do que arbitrar que fotos são boas e que fotos são ruins, os museus proporcionam condições novas para ver todas elas. Esse processo, que parece criar padrões de avaliação, a rigor abole tais padrões. Não se pode dizer que o museu criou um cânone seguro para a obra fotográfica do passado, como fez no caso da pintura. Mesmo quando parece patrocinar um tipo específico de gosto fotográfico, o museu solapa a própria ideia de gosto normativo. Seu papel consiste em mostrar que não existem padrões fixos de avaliação, que não existe tradição de obra canônica. Sob os cuidados do museu, a própria ideia de tradição canônica é desmascarada como redundante.

O que mantém a Grande Tradição da fotografia sempre em fluxo, em constante reordenação, não é o fato de ser a fotografia uma arte nova e, portanto, algo insegura — isso faz parte do que é o gosto fotográfico. Existe na fotografia uma sequência mais rápida de redescoberta do que em qualquer outra arte. Ilustrando aquela lei do gosto que recebeu de T. S. Eliot sua formulação definitiva, segundo a qual toda nova obra importante altera necessariamente nossa percepção da herança do passado, fotos novas modificam a maneira como vemos as fotos do passado. (Por exemplo, a obra de Arbus tornou mais fácil apreciar a grandeza da obra de Hine, outro fotógrafo dedicado a retratar a opaca dignidade das vítimas.) Mas as oscilações do gosto fotográfico contemporâneo não refletem apenas esses processos coerentes e sequenciais de reavaliação, em que o semelhante realça o semelhante. O que expressam, mais comumente, é o valor complementar e equivalente de estilos e temas antitéticos.

Durante várias décadas, a fotografia americana foi dominada por uma reação contra o “westonismo” — ou seja, contra a fotografia contemplativa, a fotografia considerada como uma independente exploração visual do mundo, sem nenhum apelo social flagrante. A perfeição técnica das fotos de Weston, as belezas calculadas de White e Siskind, as construções poéticas de Fredrick Sommer, as ironias presunçosas de Cartier-Bresson — tudo isso foi contestado pela fotografia que, ao menos em termos programáticos, é mais ingênua, mais direta; ou seja, hesitante e mesmo canhestra. Mas o gosto na fotografia não é tão linear assim. Sem qualquer enfraquecimento dos compromissos atuais com a fotografia informal e com a fotografia como documento social, ocorre agora uma perceptível recuperação de Weston — como se, após a passagem de um tempo suficiente, a obra de Weston não mais parecesse atemporal; como se, em virtude da definição bem mais ampla de ingenuidade com que opera o gosto fotográfico, a obra de Weston também parecesse ingênua.

Por fim, não existe razão para excluir nenhum fotógrafo do cânone. Neste exato momento, há minirrecuperações de pictóricos por muito tempo desprezados, de uma outra era, como Oscar Gustav Rejlander, Henry Peach Robinson e Robert Demachy. Uma vez que a fotografia toma o mundo inteiro como seu tema, existe espaço para todo tipo de gosto. O gosto literário exclui: o sucesso do movimento modernista na poesia elevou Donne e rebaixou Dryden. Na literatura, pode-se ser eclético até certo ponto, mas não se pode gostar de tudo. Na fotografia, o ecletismo não tem limite. As fotos corriqueiras tiradas na década de 1870 de crianças abandonadas acolhidas em uma instituição de caridade em Londres chamada Doctor Barnardo’s Home (tiradas como “registros”) são tão comoventes quanto os complexos retratos tirados por David Octavius Hill, de pessoas ilustres da Escócia na década de 1840 (tidos como “arte”). O olhar limpo do estilo moderno clássico de Weston não é refutado, digamos, pela recente e engenhosa recuperação do embaçamento pictórico por Benno Friedman.

Não se deve negar que cada espectador gosta da obra de certos fotógrafos mais que da obra de outros: por exemplo, a maioria dos espectadores experientes, hoje, prefere Atget a Weston.

Na verdade, isso significa que, pela natureza da fotografia, a pessoa não é de fato obrigada a escolher; e que preferências desse tipo são, em sua maioria, meramente reativas. O gosto na fotografia tende a ser, talvez necessariamente, global, eclético, permissivo, o que significa que, no fim, deve negar a diferença entre bom gosto e mau gosto. É isso o que faz parecer ingênua ou ignorante toda tentativa dos polemistas da fotografia de erigir um cânone. Pois existe algo falso em todas as controvérsias fotográficas — e as atenções do museu desempenharam um papel crucial em tornar isso claro. O museu nivela por cima todas as escolas de fotografia. A rigor, faz pouco sentido até falar em escolas. Na história da pintura, os movimentos têm vida e função genuínas: os pintores, não raro, são muito mais bem compreendidos em termos da escola ou do movimento a que pertenceram. Mas os movimentos na história da fotografia são efêmeros, adventícios, por vezes meramente perfunctórios, e nenhum fotógrafo de primeira classe é mais bem compreendido como membro de um grupo. (Pensemos em Stieglitz e a Photo-Secession, Weston e a f64, Renger-Patzsch e a Nova Objetividade, Walker Evans e o projeto da Secretaria de Segurança no Trabalho Rural, Cartier-Bresson e a Magnum.) Agrupar fotógrafos em escolas ou em movimentos parece um tipo de mal-entendido, que (mais uma vez) tem por base a irreprimível, mas invariável, analogia enganosa entre fotografia e pintura.

O papel predominante hoje desempenhado pelos museus na formação e no esclarecimento da natureza do gosto fotográfico parece assinalar um novo estágio, do qual a fotografia não pode retornar. De par com seu respeito tendencioso pelo profundamente banal está a difusão de uma visão historicista gerada pelo museu, visão que promove inexoravelmente toda a história da fotografia. Não admira que os críticos fotográficos e os fotógrafos se mostrem preocupados. Subjacente a muitas defesas recentes da fotografia, encontra-se o temor de que ela já seja uma arte senil, desagregada em movimentos espúrios ou mortos; que as únicas tarefas que restam seja curadoria e historiografia. (Enquanto os preços de fotos velhas e novas chegam à estratosfera.) Não surpreende que essa desmoralização seja sentida no momento da máxima aceitação da fotografia, pois a verdadeira amplitude do triunfo da fotografia como arte, e de seu triunfo sobre a arte, não foi de fato compreendida.

A fotografia entrou em cena como uma atividade arrogante, que parecia ultrapassar e rebaixar uma arte estabelecida: a pintura. Para Baudelaire, a fotografia era “inimiga mortal” da pintura; mas, no fim, elaborou-se uma trégua, segundo a qual a fotografia era tida como libertadora da pintura. Weston empregou a fórmula mais comum que existe para atenuar o ânimo defensivo dos pintores quando, em 1930, escreveu: “A fotografia negou, ou virá a negar, mais cedo ou mais tarde, boa parte da pintura — pelo que os pintores deveriam ser muito gratos”. Libertada, pela fotografia, da cansativa faina da representação fiel, a pintura pôde partir no encalço de uma tarefa mais elevada: a abstração. *** De fato, a ideia mais persistente nas histórias da fotografia e na crítica fotográfica é o pacto mítico selado entre pintura e fotografia, que autorizou ambas a perseguir tarefas distintas mas igualmente válidas, ao mesmo tempo que influenciavam criativamente uma à outra. Na verdade, a lenda falsifica boa parte da história da pintura e da fotografia. O modo como a câmera fixava a aparência do mundo exterior sugeriu novos padrões de composição pictórica e novos temas para os pintores: criar uma preferência pelo fragmento, realçar o interesse por lampejos da vida humilde e por estudos de movimentos fugazes e dos efeitos da luz. A pintura, mais do que se voltar para a abstração, adotou o olho da câmera, tornando-se (para empregar as palavras de Mario Praz) telescópica, microscópica e fotoscópica em sua estrutura. Mas os pintores jamais pararam de tentar imitar os efeitos realistas da fotografia. E, longe de restringir-se a representações realistas e deixar a abstração ao encargo dos pintores, a fotografia manteve-se em dia com todas as conquistas antinaturalistas da pintura e as absorveu.

Em termos mais gerais, essa lenda não leva em conta a voracidade da atividade fotográfica.

Nas negociações entre fotografia e pintura, a fotografia sempre levou vantagem. Nada há de surpreendente no fato de os pintores, de Delacroix e Turner a Picasso e Bacon, terem usado fotos como subsídios visuais, mas ninguém espera que os fotógrafos recebam auxílio da pintura. As fotos podem ser incorporadas ou transcritas numa pintura (ou numa colagem, ou numa combinação de ambas), mas a fotografia enclausura a própria arte. A experiência de ver pinturas pode ajudar-nos a ver melhor as fotos. Mas a fotografia enfraqueceu nossa experiência da pintura. (Em mais de um sentido, Baudelaire tinha razão.) Ninguém jamais encontrou uma litografia ou uma gravura — métodos populares mais antigos de reprodução mecânica — de uma pintura que fosse mais satisfatória ou mais estimulante do que a própria pintura. Mas fotos, que transformam detalhes interessantes em composições autônomas, que transformam cores naturais em cores fulgurantes, proporcionam satisfações novas e irresistíveis. O destino da fotografia levou-a muito além do papel ao qual se supôs, de início, que ela estivesse restrita: fornecer informações mais acuradas sobre a realidade (inclusive sobre obras de arte). A fotografia é a realidade; o objeto real é, não raro, experimentado como uma decepção. As fotos tornam normativa uma experiência de arte que é mediada, de segunda mão, intensa de um modo diferente. (Lamentar que, para muitas pessoas, fotos de pinturas tenham se tornado substitutos de pinturas não significa apoiar nenhuma mística do “original” que se apresenta ao espectador sem mediação. Ver é um ato complexo e nenhuma grande pintura comunica seu valor e sua excelência sem alguma forma de preparação e instrução.

Além disso, as pessoas que ficam desapontadas diante do original de uma obra de arte depois de vê-la em uma cópia fotográfica são, em geral, pessoas que teriam visto muito pouco no original.)

Uma vez que muitas obras de arte (incluindo as fotos) são, hoje, conhecidas por meio de cópias fotográficas, a fotografia — e as atividades de arte derivadas do modelo da fotografia, e o estilo de gosto derivado do gosto fotográfico — transformou de modo decisivo as belas-artes tradicionais e as normas de gosto tradicionais, inclusive a própria ideia de obra de arte.

A obra de arte depende cada vez menos de ser um objeto único, um original feito por um artista individual. Grande parte da pintura hoje em dia aspira aos predicados dos objetos reproduzíveis. Por fim, as fotos tornaram-se a tal ponto a experiência visual predominante que agora temos obras de arte produzidas a fim de ser fotografadas. Em boa parte da arte conceitual, no empacotamento das paisagens por Christo, nos aterros de Walter De Maria e Robert Smithson, a obra do artista é conhecida sobretudo pela reportagem fotográfica exposta em galerias e museus; por vezes, o tamanho é tal que ela só pode ser conhecida mediante uma foto (ou vista de um avião). A foto não se destina, e isso de modo ostensivo, a levar-nos de volta a uma experiência original.

Com base nessa suposta trégua entre a fotografia e a pintura, a fotografia foi — primeiro, de má vontade, depois, com entusiasmo — reconhecida como uma bela-arte. Mas a própria questão de ser ou não a fotografia uma arte é essencialmente enganosa. Embora gere obras que podem ser chamadas de arte — requerem subjetividade, podem mentir, proporcionam prazer estético —, a fotografia não é, antes de tudo, uma forma de arte. Como a língua, é um meio em que as obras de arte (entre outras coisas) são feitas. Com a língua, podem-se fazer discursos científicos, memorandos burocráticos, cartas de amor, listas de compras no mercado e a Paris de Balzac. Com a fotografia, podem-se fazer fotos de passaporte, fotos meteorológicas, fotos pornográficas, raios X, fotos de casamento e a Paris de Atget. A fotografia não é uma arte como, digamos, a pintura e a poesia. Embora as atividades de certos fotógrafos se adaptem à ideia tradicional de bela-arte, a atividade de indivíduos excepcionalmente talentosos que produzem objetos específicos dotados de um valor próprio, a fotografia desde o início também se prestou a essa ideia de arte que afirma que a arte está obsoleta. O poder da fotografia — e seu papel central nas preocupações estéticas atuais — reside em que ela confirma ambas as ideias de arte. Mas o modo como a fotografia torna a arte obsoleta é, a longo prazo, mais forte.

A pintura e a fotografia não são dois sistemas potencialmente competitivos para produzir e reproduzir imagens, circunstância em que bastaria chegar a uma adequada divisão de territórios para conciliá-las. A fotografia é uma atividade de outra ordem. A fotografia, conquanto não seja uma forma de arte em si mesma, tem a faculdade peculiar de transformar todos os seus temas em obras de arte. Mais importante do que a questão de ser ou a não a fotografia uma arte é o fato de que ela anuncia (e cria) ambições novas para a arte. É o protótipo da direção característica assumida em nosso tempo pela alta arte modernista e também pela arte comercial: a transformação da arte em meta-arte ou mídia. (Invenções como o cinema, a televisão, o vídeo, a música de Cage, Stockhausen e Steve Reich executada em fita gravada são extensões lógicas do modelo estabelecido pela fotografia.) As belas-artes tradicionais são elitistas: sua forma característica é uma obra singular, produzida por um indivíduo; implicam uma hierarquia de temas em que alguns deles são tidos como importantes, profundos, nobres, e outros, como irrelevantes, triviais, rasteiros. As mídias são democráticas: enfraquecem o papel do produtor especializado ou auteur (por usar processos que têm por base o acaso, ou técnicas mecânicas que qualquer pessoa pode aprender; e por constituírem esforços em conjunto ou em associação); encaram o mundo todo como sua matéria. As belas-artes tradicionais apoiam-se na distinção entre autêntico e falso, entre original e cópia, entre bom gosto e mau gosto; as mídias turvam, quando não abolem de todo, tais distinções. As belas-artes supõem que determinadas experiências ou temas têm um significado. As mídias são essencialmente sem conteúdo (esta é a verdade por trás da célebre afirmação de Marshall McLuhan de que a mensagem é o próprio meio); seu tom característico é irônico, ou indiferente, ou parodístico. É inevitável que a arte esteja, cada vez mais, destinada a terminar como fotos. Um modernista teria de reescrever a máxima de Pater de que toda arte aspira à condição da música. Hoje, toda arte aspira à condição da fotografia.

* O significado original de pictórico era, está claro, o sentido positivo popularizado pelo fotógrafo de arte mais famoso do século XIX, Henry Peach Robinson, em seu livro Efeito pictórico na fotografia (1896). “Seu método consistia em lisonjear tudo”, diz Abbott num manifesto que redigiu em 1951, “O dilema da fotografia”. Elogiando Nadar, Brady, Atget e Hine como mestres da foto-documento, Abbott repudia Stieglitz como um herdeiro de Robinson, fundador de uma “escola superpictórica”, na qual, novamente, “a subjetividade predominava”.

** As pretensões da fotografia são, é claro, muito mais antigas. Para a prática, hoje familiar, de substituir a fabricação pelo encontro, substituir objetos ou situações produzidos (ou inventados) por aqueles encontrados, substituir o esforço pela decisão, o protótipo é a arte instantânea da fotografia com a mediação de uma máquina. Foi a fotografia que primeiro pôs em circulação a ideia de uma arte produzida não por meio de gravidez e parto, mas por meio de um encontro marcado com um desconhecido. (A teoria do “rendez-vous”, de Duchamp.) Mas os fotógrafos profissionais são muito menos seguros do que seus contemporâneos influenciados por Duchamp no terreno das belas-artes estabelecidas, e em geral se apressam em sublinhar que uma decisão de momento pressupõe um treino demorado da sensibilidade, do olho, e em insistir que a falta de esforço no ato de tirar fotos não torna o fotógrafo menos artífice do que um pintor.

*** Valéry afirmou que a fotografia prestou o mesmo serviço à escrita, ao pôr a nu a pretensão “ilusória” da língua de “comunicar a ideia de um objeto visual com algum grau de precisão”. Mas os escritores não deviam temer que a fotografia “pudesse, em última instância, restringir a importância da arte da escrita e agir como seu substituto”, diz Valéry, em “O centenário da fotografia” (1929). Se a fotografia “nos desestimula a descrever”, argumenta ele, somos assim lembrados dos limites da língua e advertidos, como escritores, a dar a nossos instrumentos um uso mais adequado à sua verdadeira natureza. Uma literatura se purificaria caso deixasse a outras modalidades de expressão e de produção as tarefas que elas podem executar de modo muito mais eficaz, e se dedicasse a fins que só ela pode l evar a bom termo [...] um dos quais [é] o aprimoramento da linguagem que constrói ou expõe o pensamento abstrato, e outro, a exploração de toda a diversidade de padrões e de ressonâncias poéticas.

A argumentação de Valéry não é convincente. Embora se possa dizer que uma foto registra ou mostra o presente, ela nem sempre “descreve”, propriamente falando; só a língua descreve, pois é um evento no tempo. Valéry sugere, como “prova” da sua tese, abrir um passaporte: “a descrição aí anotada não resiste a uma comparação com a foto grampeada a seu lado”. Mas isso é usar a descrição em seu sentido mais degradado, empobrecido; há trechos em Dickens e Nabokov que descrevem um rosto ou uma parte do corpo melhor do que qualquer foto. A tese do poder descritivo inferior da literatura não se demonstra tampouco ao se dizer, como faz Valéry, que “o escritor que retrata uma paisagem ou um rosto, por mais hábil que seja em seu ofício, sugerirá tantas visões diferentes quantos forem seus leitores”. O mesmo vale para uma foto.

Assim como se considera que a foto libertou os escritores da obrigação de descrever, muitas vezes se considera que o cinema usurpou do romancista a tarefa de narrar ou de contar uma história — e assim, preconizam alguns, libertou o romance para outras tarefas, menos realistas. Essa versão da tese é mais plausível porque o cinema é uma arte temporal. Mas não faz justiça à relação existente entre os romances e os filmes.

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