segunda-feira, 11 de maio de 2020

O Instante Certo - Marc Asnin na veia....


Marc Asnin na veia

Para quem conhece o americano Marc Asnin pelo seminal trabalho anterior — a estupenda biografia fotográfica Uncle Charlie, da qual aqui se falará mais adiante —, seu projeto atual é, no mínimo, surpreendente. Final Words inclui uma única imagem de sua autoria: um autorretrato. E, ainda por cima, uma selfie.

Asnin recorreu à selfie para alavancar uma cruzada contra a pena de morte nos Estados Unidos. Primeiro convocou os colegas de profissão para participarem da campanha. Pediu que postassem uma selfie nas redes sociais e anexassem um comentário de não mais de 140 caracteres sobre a pena capital. A suposição de que buscariam instigantes formas visuais para retratar seu posicionamento foi acertada.

Alguns criaram algo literal, outros foram mais conceituais. O documentarista britânico Can Sengunes, por exemplo, participou com uma selfie de cabeça para baixo e a legenda: “Ô carrasco... como você dorme à noite?”. Seu compatriota Gary Knight, cofundador da VII Photo Agency, acrescentou à imagem a máxima “Olho por olho acaba tornando cego o mundo inteiro”, de Gandhi. O autorretrato em exposição dupla postado pelo americano Ed Kashi o mostra com o rosto voltado para polos opostos. Uma série de dez participações pinçada pela revista American Photo confirma a variedade de caminhos.

Lançada na internet dois meses atrás, a campanha de Asnin, que em poucos dias extravasou das fronteiras da profissão, visa captar 320 mil dólares através de financiamento coletivo. Com os recursos obtidos ele pretende publicar o livro Final Words, destinado às 14 mil escolas públicas dos 32 estados americanos onde ainda vigora a pena capital. Simultaneamente, uma exposição itinerante com o material do volume mais a coletânea de selfies rodará pelo país.

“Não quero ser um fotógrafo de 51 anos que não sabe abrir espaço para a nova mídia. Seria enfiar a cabeça na areia. A selfie não faz parte da minha geração nem é a maneira como eu confronto injustiças sociais, mas é a linguagem de hoje para comunicar algo”, explicou ao New York Times.

Final Words será a compilação das últimas palavras pronunciadas por 517 condenados, minutos antes de serem executadas. Para Asnin, é essencial incorporar tais vozes ao debate nacional, disseminá-las, sem abrir mão do rigor de documento. “Não me proponho a glorificar essas pessoas, elas foram condenadas por terem praticado crimes hediondos. Apenas acho que suas vozes precisam ser ouvidas”, diz.

O compêndio em formato de caderno espiral terá uma página dedicada a cada condenado. Nela se encontrará sua ficha criminal, com número de matrícula, data e local de nascimento, data do crime, data da condenação, data da execução, escolaridade, raça, descrição do crime pelo qual foi condenado e foto. Além disso, apenas a íntegra das palavras finais que articulou em vida. Em algumas dessas despedidas verbais transparece o medo, em outras, o remorso. Há revolta, há fé, há expressão da vontade de que tudo acabe logo. “Espero que o lugar para onde eu vou seja melhor do que aqui.”

De acordo com as normas processuais, todo condenado tem direito a fazer um pronunciamento derradeiro quando já estiver na sala de execuções, afivelado à maca, prestes a receber a injeção de pentobarbital. Um microfone suspenso à sua frente capta cada palavra, mesmo que proferida em tom baixo. Uma estenógrafa instalada longe dali faz a transcrição do que é dito. Na ficha dos que ficam calados consta uma anotação obrigatória: “O criminoso se recusou a fazer uma última declaração”. A maioria, contudo, quer falar — nem que seja para ouvir a própria voz balbuciando frases como “Eu te amo, mamãe, adeus”, ou “Vou esperá-lo do outro lado. Seja forte, meu filho... Jesus, me perdoa”. Alguns jorram frases inteiras, outros optam por se despedir da vida em espanhol: “Pela dor que lhes causei, tenho vergonha até de olhar em seus rostos. Vocês são maravilhosos, meus irmãos do corredor da morte. México, México...”. No fim, a frase de praxe endereçada ao carrasco: “Estou pronto”.

Um dos libelos mais contundentes a figurar no planejado livro é o de Henry Porter, duplo homicida executado em 1985. “Não afivelei ninguém a uma maca. Não injetei veneno nas veias de ninguém numa sala fechada à chave. Vocês chamam isso de justiça. Eu chamo isso e chamo essa sociedade de bando de matadores a sangue-frio”, disse Porter, que vivenciou a agonia adicional de ver sua execução suspensa por duas vezes na hora extrema.

Introduzida na América colonial ainda antes de os Estados Unidos se tornarem nação independente, a pena de morte esteve próxima de ser abolida em 1972, quando a Corte Suprema impôs uma moratória em todo o país. Mas a decisão foi revertida quatro anos mais tarde e, desde a retomada dos procedimentos, é a penitenciária de Huntsville, no Texas, que produz os dados mais estarrecedores: ao longo dos últimos 32 anos, ali se realiza mais de uma execução por mês.

O propósito de Final Words é evocar a complexidade e as diferenças de cada indivíduo que passou pelo corredor da morte de Huntsville. Dar-lhes voz e conferir-lhes humanidade, em suma. Na concepção do fotógrafo, o livro constituirá uma espécie de testamento para a História do tipo de sociedade que os americanos escolheram ter. “Embora o livro seja um documento sobre a morte, tanto dos criminosos como de suas vítimas, a obra vai tentar construir um debate sobre a vida”, explica. Para ele, avaliar a pena de morte à luz do seu amplo leque de consequências é uma forma de honrar o sistema democrático americano.

Foi uma visita ao site do Departamento de Justiça Criminal do Texas que levou Asnin a querer difundir as vozes dos executados além da câmara da morte e para fora do formato de planilha burocrático-administrativa em que são arquivadas. O site oficial da Justiça texana fornece um retrato valioso do tratamento estatístico dado à matança institucionalizada. É difícil não se surpreender com o volume e a precisão de dados à disposição do interessado. Há até mesmo uma seção de “Perguntas mais frequentes” e de faits divers. Qual o menor e maior tempo de espera de um condenado até ser executado? Nove meses e 31 anos, respectivamente. Qual o mais jovem e o mais velho até hoje? Vinte e quatro anos e 66 anos. Quantas vezes ocorreram execuções de irmãos? Seis. A página conta com uma versão em espanhol (40% dos executados em 2014 eram hispânicos) e se mantém constantemente atualizada para acompanhar o ritmo das execuções.

Marc Asnin tem consciência do quanto uma campanha de cunho social movida a selfies está distante de sua trajetória de fotógrafo documental. Mas também sabe que já não existe espaço nem verba para os clássicos ensaios visuais do passado, considerados onerosos e demorados demais para a atual realidade da indústria da comunicação. Hoje dificilmente alguém designaria o indomável mestre do gênero W. Eugene Smith, autor de épicos como Pittsburgh e Minamata, para perseguir um tema até exauri-lo.

“Não se ganha mais a vida como fotógrafo documental.” Exceto mestres da arte como o próprio Asnin, de currículo nobre e com uma obra tão marcante quanto autoral. Nascido e criado na comunidade judaica do Brooklyn, ele é formado pela Escola de Artes Visuais de Nova York, egresso da defunta Life, presença frequente nas maiores publicações do mundo e objeto de mostras individuais nos museus que contam.

Nem precisava tanto. Apenas pelo seu trabalho mais seminal, já teria assegurado lugar de honra na galeria dos grandes. Uncle Charlie é a narrativa visual de uma vida vivida no fio da navalha. Definido pelo crítico de arte Michael Kimmelman como talvez o retrato mais íntimo e perturbador da história da fotografia americana, o ensaio de Asnin reunido em forma de livro homônimo não tem similar. Nem poderia ter, dadas as suas características.

Foi no início da década de 1980, quando tinha pouco mais de vinte anos, que Asnin começou a fotografar seu padrinho e tio predileto, Charles Henschke. A princípio, tratava-se de mero trabalho de faculdade. Aos poucos, contudo, foi adquirindo contornos de projeto sem prazo para acabar a que o sobrinho fotógrafo se dedicou de forma obsessiva ao longo de mais de duas décadas.

Concluído só em 2007, esse documentário fotográfico em preto e branco, propositalmente granulado, narra não apenas a existência aflita do cidadão Charles. Revela também a evolução do olhar de Asnin sobre o seu herói de infância. “No começo, quando eu procurava a figura de um durão para emular, encontrei no tio Charles o cara que reunia tudo o que eu queria ser”, escreve o autor no prefácio do livro. Mas a admiração incontida pelo padrinho tatuado que não tinha medo da marginália, era inteligente e rufião, amoral e amoroso, virou desencanto com um homem atormentado por distúrbios psicológicos, carências afetivas, abuso de drogas, destituído de tudo. Um homem à deriva, completamente só num abissal vazio.

Asnin teve a magistral ideia de pontuar seu testemunho fotográfico com as reflexões sem complacência que o tio fazia sobre a própria vida. Por si só, a transcrição dessas reflexões na primeira pessoa já é um soco no estômago. E, no conjunto, texto e imagens, reunidos em mais de quatrocentas páginas de diagramação cortante, tornam Uncle Charlie uma experiência ímpar para o leitor.

Ali convergem crueza e honestidade. Asnin conseguiu fundir numa linguagem particular, como já escreveu alguém, o estilo visceral de Nan Goldin com o humanismo sereno de W. Eugene Smith.

É uma viagem sem volta: somente um insensível sai dela da mesma forma que entrou. Um pouco como ler Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline, pela primeira vez, na idade certa.

Dezembro de 2014

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