domingo, 10 de maio de 2020

O Instante Certo - O clique único de Assis Horta


O clique único de Assis Horta

Na edição de 5 de maio de 1916, a revista ilustrada A Cigarra, quinzenal, publicada numa São Paulo que começava a viver profundas mudanças urbanas, trazia um breve ensaio intitulado “O retrato: usos e funções”. Assinado por Luís Carlos, de quem nunca mais se ouviu falar, o texto abordava um tema borbulhante na época: a permanência do retrato fotográfico, sua função como registro factual.

O ensaio, reproduzido na Antologia Brasil, 1890-1930: Pensamento crítico em fotografia (2013), de Ricardo Mendes, anunciava: A invenção da fotografia trai um duplo anseio de fundo inconfessável do homem: vaidade e eternização. [...] um retrato antigo sempre desperta [...] toda a época afastada a que se remonta como se ele fosse um mudo gemido do passado [...]. A despeito do esmaecimento da obra, a expressão do momento evolutivo do homem que ele fixou ganha longevidade, que já é uma forma aproximada da imortalização. E o intuito vaidoso fica justificado.

O miúdo Assis Horta, ainda hoje chamado de Assisinho pelos amigos de geração, não leu nada disso. Até por ter nascido só dois anos depois, em 1918, na Diamantina de garimpeiros e de Juscelino Kubitschek, da lendária escrava Chica da Silva e do futuro clássico Minha vida de menina, de Helena Morley.

Mas tanto as revistas ilustradas das primeiras décadas do século XX como as lentes de Assis Horta construíram o retrato desse Brasil mutante. Com uma diferença capital: enquanto A Cigarra e suas congêneres disseminavam a imagem do status e do convívio social das elites, o mineiro de Diamantina deu rosto, identidade e visibilidade fotográfica ao trabalhador. Alforriou-o do anonimato, revelando-o como classe e como indivíduo na história visual do país.

E, como se não fosse pouco, com grande arte.É fácil reconhecer o Assis Horta de hoje num domingão ensolarado de agosto, flanando entre os frequentadores da praça da Liberdade, marco republicano de Belo Horizonte. Seu figurino começa pelo chapéu, sem o qual se consideraria nu. Veste um cardigã de lã azul-marinho sobre uma camisa listrada, e uma agulha de época lhe garante a posição da gravata xadrez, bordô. Não solta uma bengala de madeira talhada — “trabalho de satisfação”, elogia o dono.

Observado de longe, ele poderia ser um típico senhorzinho de antanho que ainda encara uma passeggiatina em família. Basta perguntar-lhe algo de seu interesse, contudo, para seu Assis, como é chamado pelos não íntimos, revelar curiosidade juvenil, mostrar-se informado sobre o presente e exercitar uma memória valiosa de vivências do passado.

Nada consegue torná-lo tão tagarela quanto a lembrança de Maria, a companheira com quem partilhou tudo ao longo de 71 anos. Até a morte da esposa, o casal circulava pela vida de mãos dadas — inclusive em casa. O nome dos dez filhos foi escolhido de caso pensado para que as iniciais formassem os acrósticos MARIA ASSIS . Conforme nasciam, foram batizados de Marluce, Assis, Rosileia, Isnard, Aglaé, Argel, Sérgio, Sílvia, Izabel e Sávio. “Mas nunca fiz retrato de Maria de barriga”, orgulha-se o marido fotógrafo, apreciador de um recato. “Também nunca tirei foto de mulher nua.

Nem no Moulin Rouge de Paris — aliás, passei mal quando o casal de amigos com quem viajei me pediu para fotografar lá dentro.” Órfão de pai aos cinco anos, Assisinho morou no Grande Hotel da rua da Quitanda administrado pela mãe, até se casar com Maria, a “primeira namorada de conversar”. Começou a fazer pequenos serviços a partir dos nove, sem ter concluído o curso primário — nada atípico na Diamantina da década de 1930, onde boa parte dos garotos entre os dez e os dezoito anos trabalhava em comércio, agricultura, pecuária, indústria extrativa ou nas fábricas.Pelo hotel costumavam transitar desde forasteiros com grandes negócios nas minas de diamante da região, sempre à procura de mais mão de obra, até hóspedes locais. Assisinho teve sorte: ainda adolescente, foi empurrado pela mãe para as asas do advogado, jornalista e escritor Rodrigo Melo Franco de Andrade, que procurava um prestador de serviços gerais com noções de fotografia para ajudá-lo a fazer o levantamento fotográfico do lugar.

Conhecido na cidade como “dr.” Rodrigo, o fundador e presidente por três décadas do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (precursor do Iphan), criado em 1937, tinha um projeto. Apenas vinte anos mais velho que Assisinho, o pai do futuro cineasta Joaquim Pedro de Andrade queria repetir ali o feito de Ouro Preto, oficializada quatro anos antes como “monumento nacional”.

Conseguiu: o centro histórico de Diamantina foi tombado em nível federal em 1938.

Para isso, era preciso mapear cada ruela, moradia, casa de comércio, igreja, órgão público e constituir um acervo de imagens destinado a alavancar o processo de tombamento da cidade. Pois Assis Horta revelou-se talhado para a empreitada, embora sua formação em fotografia fosse ancorada em curiosidade e experimentação, observação e zelo. Passou ao largo de qualquer academia, escola ou curso de técnica. Sua iniciação no métier, ainda rapazote de catorze anos, dera-se como ajudante de Celso Tavares Werneck Machado, comerciante, construtor e dono de um estúdio local. Foi em 1936, aos dezoito anos de idade, que Assisinho teve a audácia de comprar o ateliê onde trabalhara como aprendiz, rebatizando de Photo Assis — Materiaes Photográficos das Principais Marcas e Cinematográficos para Amadores e Collegios o antigo Estúdio Werneck. Apesar de se equilibrar entre as duas ocupações — seu emprego no Sphan e o trabalho no estúdio —, começou a viajar com frequência até o Rio de Janeiro, de trem, para comprar material e equipamento escassos em Diamantina.

De uma dessas expedições, voltou com uma câmera de madeira gravada com a marca “Marc Ferrez, 88, rua S. José, Rio deJaneiro”. De outra, trouxe o Annuaire Général de Photographie de 1899. Só que no Photo Assis daqueles primórdios não se discutia a obra de Ferrez, nem a de Militão Augusto de Azevedo, nem a de Augusto Malta. O nome mais reverenciado do retratismo na cidade era o de Francisco Augusto Alkmin, o Chichico (1886-1978), de uma geração anterior à de Assis. Filho de proprietários rurais e irmão de José Maria Alkmin, ministro da Fazenda de Juscelino Kubitschek e vice-presidente da República do marechal Castello Branco, fora Chichico o pioneiro da fotografia de estúdio no município e o primeiro cronista visual da Diamantina do início do século XX . Sua obra múltipla de quase 5 mil negativos em vidro compõe um registro único da vida cultural, política e social da época, de sua arquitetura, religiosidade e costumes.

O olhar fotográfico de Chichico Alkmin, alimentado essencialmente na escola francesa de retratistas e pintores do século XIX , acabou produzindo um rico e aclamado material de “paisagens humanas e urbanas”, título de uma exposição de 2013 no Memorial Minas Gerais Vale.

Coube ao autodidata do Photo Assis, instalado inicialmente na rua do Bonfim, esquina com rua do Contrato, abrir caminho próprio e sair da sombra do cultuado Chichico. Ele começou pelo básico, procurando freguesia em segmentos sociais pouco familiarizados com a experiência de serem retratados. Os forasteiros de passagem pelo Grande Hotel apreciavam ouvir as espirituosas histórias contadas por Assisinho, e o contratavam para documentar o trabalho de extração mineral e fazer o registro fotográfico de diamantes famosos.

Um segundo filão de renda caiu no colo do fotógrafo em 1941, com a Segunda Guerra Mundial em plena expansão. Foi solicitado a retratar uma centena de soldados do 3 o Batalhão da Polícia Militar do Estado de Minas, aquartelado na região desde 1890. De frente e de perfil. “A PM pagava bem”, relembra o contratado.

Àquela altura da vida, Assis Horta já havia encontrado uma metodologia para contornar seu desvio precoce da escolaridade. Deacordo com o filho Isnard, “o pai desenvolveu uma estratégia própria para ler e escrever”. Isnard é o quarto da prole de dez e o único autorizado a frequentar o monumental acervo guardado no subsolo da atual residência do fotógrafo, em Belo Horizonte. Engenheiro e urbanista, admira no pai o gosto pela leitura.

Ele lê a seu modo, mas lê, decifra e cifra, fazendo anotações no próprio livro. Quando o assunto interessa muito, como escritos e pesquisas sobre Diamantina, ele vai fazendo anotações à parte. À margem de um livro com informações sobre um personagem da cidade, por exemplo, ele acrescenta: “Tenho muitas fotos dele e de seus filhos” ou “Tenho foto antiga da casa dele”.

Minha vida de menina, da brasileira de ascendência inglesa Helena Morley (batizada Alice Caldeira Brant), que descreve a vida em Diamantina na virada do século, foi um dos livros que marcaram seu Assis logo que publicado, em 1942. Uma de suas maiores satisfações foi ter arrematado num leilão uma bolsa com fios de prata que pertencera à escritora. Conserva em cofre o adereço com o nome Alice gravado na divisória interna.

Assis Horta tinha apenas 25 anos de idade e mal completara um ano de casado quando um decreto de 1 o de maio de 1943, 122 o ano da Independência e 55 o da República, assinado pelo presidente Getúlio Vargas, revolucionou a legislação trabalhista no Brasil. “Fica aprovada a Consolidação das Leis do Trabalho, que a este decreto-lei acompanha, com as alterações por ela introduzidas na legislação vigente”, anunciava o artigo 1 o do histórico texto. Pela nova CLT , a Carteira de Trabalho e Previdência Social tornava-se obrigatória para o exercício de qualquer emprego, inclusive de natureza rural e ainda que em caráter temporário. A mesma norma passava a valer “para o exercício por conta própria de atividade profissional remunerada”. E, de acordo com o artigo 16, na nova carteira profissional era obrigatório constar, além do número, série e data de emissão, uma fotografia do portador, “com menção da data em que houver sido tirada”.Para o cidadão Assisinho nada mudava, uma vez que ele tinha carteira de trabalho desde os dezessete anos. Já para o fotógrafo profissional Assis Horta, dono do entrementes renomado estúdio Photo, em novo endereço, o decreto getulista foi decisivo: possibilitou que sua carreira desse um pinote e revelasse a dimensão histórico-documental de sua obra.

Estreou numa fábrica de fiação e tecidos em Biribiri, nas franjas de Diamantina, com a incumbência de fotografar suas quase trezentas operárias para a emissão das novas carteiras de trabalho.

Era uma tarefa e tanto. Construída em 1876 pelo bispo d. João Antônio dos Santos para gerar empregos a ex-escravas, mulheres de lavradores e de peões e órfãs do Colégio Nossa Senhora das Dores, a Fábrica de Tecidos de Biribiri também provia alojamento para essa mão de obra feminina. Um ano antes, por coincidência, Assis Horta e Maria haviam passado a lua de mel numa das trinta casas anexas à tecelagem.

A primeira sessão de retratos em série na fábrica começou sessenta dias depois da instituição da CLT . Assis Horta iniciava os trabalhos pouco antes do almoço e prosseguia a labuta logo após a pausa da refeição. Procurava interferir o mínimo possível na rotina do estabelecimento.

Chegava com a câmera que continua sendo o seu xodó — uma Compur de fole, com lente original Voigtländer Braunschweig Heliar 1:45f, um tripé e um rebatedor. O formato de sua preferência sempre foi 9 por 12 centímetros. Instalava a câmera sanfonada no tripé, montava o rebatedor e só trabalhava com luz natural, em exposição lenta. Era um clique por foto — aliás, até hoje ele considera normal sempre ter feito apenas um clique por foto.

Conversava pouco com suas retratadas. Indicava-lhes a única cadeira da sala onde deveriam sentar, pedia que empunhassem uma plaqueta com data e perguntava como se chamavam. Para identificá-las mais tarde, fazia uma pequena anotação numérica no canto inferior de cada plaqueta. Biribiri lhe consumiu cerca de quatro dias de trabalho e abriu as portas de outras fábricas têxteis, como aCia. Industrial São Roberto, de mão de obra mista. “Foi ótimo para mim, financeiramente”, relembra. Cobrava três cruzeiros por foto 3×4 ou de tamanho postal.

Nunca teve uma decepção ao ver as chapas de vidro reveladas? “Nunca. Ou dava certo, ou não dava; mas dava sempre”, garante, ajeitando um pouco a biografia. Acredita jamais ter queimado uma foto nem ter precisado jogar nenhuma no lixo. Só não gostava mesmo era de ver um retrato entortado, “por isso todas as minhas câmeras tinham nível de bolha”.

Para grande parcela das trabalhadoras têxteis que se aprumaram, sérias, compenetradas e algo tensas na cadeira colocada à frente de Assis Horta, a sessão talvez tenha sido intimidante. “As moças se preparavam como podiam”, relembra o retratista. “Trabalhavam bem o cabelo e, embora estivessem no local de trabalho, revelavam esmero para a ocasião.” Guilherme Horta (o sobrenome é mera coincidência), curador da exposição Assis Horta: A Democratização do Retrato Fotográfico, montada no Palácio do Planalto em comemoração aos setenta anos da CLT , declara-se solidário com a tensão presumível das operárias. “Até eu, caramba, quando fui tirar minha carteira, fiz questão de botar terno e gravata. E olha que eu era da contracultura, roqueiro, rebelde do início dos anos 1980”, admite.

Em compensação, quando as operárias finalmente tiveram em mãos seu retrato 3×4, e ainda por cima levaram a cópia em papel para mostrar a quem quisessem, o impacto deve ter sido memorável. Para muitas daquelas mulheres, e homens também, aquele fora o primeiro retrato de toda uma vida. E permanente, não mais só a imagem refletida em alguma superfície espelhada.

Embora a fotografia tivesse sido desbravada na Europa mais de um século antes, e apesar de grandes ateliês e estúdios fotográficos já fazerem parte do cenário cultural brasileiro havia décadas, foi a exigência de foto datada da CLT que desencadeou nos trabalhadores urbanos da região o gosto, o desejo e a corrida pela fotografia social.Pioneiro na captação da imagem individual de uma classe até então quase invisível, Assis Horta conferiu-lhe identidade visual e forneceu uma ferramenta preciosa aos estudiosos da história social do Brasil. Para os retratados, foi um deleite só. Embora os 3×4 se destinassem a simples registros profissionais, Assis Horta fotografou cada retratado com reverência absoluta, zelo na técnica e cuidados na luz.

Resultado: boa parte dessa clientela de ocasião queria mais e começou a se reapresentar para nova sessão. Só que agora no estúdio do mestre, em grande estilo, sozinhos ou acompanhados de cônjuges, filhos, amigos. Antecipando a inevitável demanda por uma variedade maior de retratos, Assis Horta tomara algumas providências.

Logo na vitrine externa do ateliê, à vista de quem passasse pela rua, ele afixara amostras de vários tamanhos: do mero 3×4 a uma imponente cópia de 50 por 60 centímetros. E no interior do estúdio montou um guarda-roupa masculino básico para uso gratuito de clientes em apuros — camisa, paletó, chapéus, gravatas e lenços de bolso diversos. As mulheres raras vezes careciam de ajuda; já se apresentavam com o garbo desejado. Um amplo painel de tecido pintado por três artistas locais servia de pano de fundo único. E um oportuno espelho portátil permanecia à disposição para tirar eventuais dúvidas. Como de hábito, Assis Horta só trabalhava com luz natural e um rebatedor.

Toda sessão começava com a mesma pergunta: “Como o(a) senhor(a) quer tirar retrato?”. Cabia a cada um decidir se preferia ficar de pé, sentado ou fazendo pose. O fotógrafo só interferia na cena para corrigir algum colarinho imperfeito, acertar desníveis ou ajustar a composição. Como sempre, disparava um só clique por foto — ainda que uma mosca pousasse na manga do paletó branco de um cliente, poluindo o visual, ou quando o sapato de uma criança caía do pé no momento-chave.

Setenta anos depois daquelas sessões no ateliê, Assis Horta guarda lembranças agudas de muitos retratados. A uma jovem quese apresentou num severo terninho escuro e com sapatos pouco femininos, ele ofereceu uma ensolarada flor natural para colocar na lapela. A moça retraída ficou tão encantada com o resultado conferido no espelho, que levou a flor para casa. Do cliente que optara por sentar numa cadeira de braço para poder ostentar o anel que portava no dedo mínimo e considerava indispensável constar da foto, seu Assis não esquece: “O problema não era o anel, era o paletó de seis botões que o deixava todo travado. Paletó cruzado, só de quatro botões”, ensina, pesaroso.

A um professor de ginástica que desejava valorizar os músculos, o fotógrafo ordenou que tirasse a camisa. E a uma jovem de queixo caído por obra da natureza injusta sugeriu que o amparasse aproximando a mão do rosto — essa foto resultou num dos retratos mais expressivos da série. Outra figura feminina, retratada de um ângulo oblíquo, evoca de forma desconcertante o quadro Menina, de Guignard.

De maneira geral, todos os retratados no Photo Assis mantinham uma postura solene. Nem as crianças sorriam. “Eles levavam a sessão no estúdio muito a sério”, sustenta Assis Horta. Com a ligeira exceção de um marido que lhe pediu para mostrar o dente de ouro no retrato e por isso arriscou um meio sorriso. A seu modo, os muitos brasileiros que passaram pelas lentes de Assis Horta acabaram dando razão a um comentário escrito por José Teixeira Coelho, crítico e ex-curador do Masp, por ocasião da mostra Olhar e Ser Visto, de 2010: “O retrato tanto se entrega ao olhar do observador como o observa atentamente”. Uma vez estabelecido na profissão, Assis Horta embarcou numa aventurosa viagem de três meses à Europa, no ano de 1954, a convite de dois casais amigos que, por serem abastados, bancaram toda a empreitada. De pouca desenvoltura social e escasso cosmopolitismo, os quatro receavam circular por terras estrangeiras sem a companhia de um amigo débrouillard — Assisinho, é claro. E com a bênção de Maria, que tinha uma prole para cuidar em Diamantina, os cinco embarcaram no transatlântico Augustus nocais do Rio de Janeiro — um dos quase mil navios de passageiros que então faziam o trajeto Europa-Brasil —, cruzaram o oceano e desembarcaram duas semanas mais tarde no porto de Gênova.

No passaporte que Assis Horta guarda numa “caixinha pessoal” e mostra para poucos, constam vistos de entrada na Itália, Suíça, Alemanha, França, Espanha, Portugal, Bélgica, Inglaterra, Áustria e Holanda. Um giro e tanto para marinheiros de primeira viagem, mas tudo transcorreu sem percalços. Embora não falasse nenhum dos idiomas úteis naquelas paragens, Assisinho se fazia entender no essencial: conseguiu alugar uma Mercedes, e com ela percorreram o Velho Mundo. Conseguiu, sobretudo, localizar a fábrica da Rolleiflex em Berlim e comprou o kit completo da época, que incluía filtros de lente, cabeças de tripé variadas e até uma panorâmica.

Ainda guarda a nota fiscal da extravagância. Tampouco deixou de postar uma só das 74 cartas escritas a Maria. Hoje, ao narrar a aventura, reclamou apenas de uma banana que comprou na Holanda: “A mais cara que já comi”.

No retorno a Diamantina, passou a ninar a novíssima Rolleiflex como se ela fosse uma companheira. Data desse período um de seus únicos autorretratos — está posicionado de perfil com a Rollei pronta para disparar na altura da cintura.

Data também desse período uma notável panorâmica de 360 graus que o fotógrafo conseguiu fazer do topo de uma das igrejas mais cultuadas de Diamantina, a Capela Imperial do Amparo. A fim de obter o resultado desejado, ele aguardou o dia de céu mais limpo da temporada e mirou no horário do meio-dia, para evitar sombras e
nuvens.

“O pai aproveitou uma das inúmeras reformas da igreja e se posicionou no andaime montado em volta do galo que encima a torre”, explica Isnard. A sucessão de chapas batidas com a cabeça panorâmica, em movimentos rotativos, resultou numa imagem de tirar o fôlego. Uma imensa cópia medindo seis metros pode ser admirada no Museu do Diamante local.Somando-se sua notoriedade como retratista quase oficioso da cidade, a longa e reconhecida atuação como servidor público do 3 o Distrito do Sphan e a teimosa dedicação à preservação de bens tombados, foi inevitável que seu Assis também fosse chamado para resolver questões esdrúxulas. Único morador de Diamantina a saber operar um aparelho de raios X, ele atendia a emergências e ainda revelava as chapas clínicas no laboratório de casa. Tampouco deixava de atender a chamadas de dentistas da região que precisavam do retrato da boca de algum paciente com revelação de qualidade garantida.

Não foi fácil a mudança da família para Belo Horizonte, em 1967, deixando em Diamantina lembranças, afetos e uma rotina de trabalho consolidada. A começar pelo desmonte, transporte e instalação em novo habitat dos equipamentos fotográficos, do acervo de décadas de atividade e do laboratório — sem os quais seu Assis se sentiria órfão. Um dos complicadores não foi resolvido até hoje: nem seus filhos, nem o pesquisador Guilherme Horta, nem o próprio fotógrafo sabem ao certo a extensão do acervo acumulado. Só o número de chapas de vidro não processadas pode variar entre 20 mil e 50 mil. Ou seriam mais? A sorte de futuros historiadores e curadores é que Assis Horta adquiriu o hábito de catalogar e anotar tudo desde seus tempos de inventariante fotográfico. E habituou-se a guardar cada negativo em envelope individual, com registro da data, local e identificação do que havia fotografado.

A mudança para o bairro Alto Barroca exigiu uma adaptação e tanto. Ciumento de seu acervo, seu Assis se apossou do subsolo da casa da rua Rio Negro e ali instalou toda a sua produção fotográfica e material de trabalho — com acesso proibido a terceiros. À exceção do filho Isnard e de um ou outro convidado, ninguém está autorizado a descer os treze degraus da escada e entrar no inestimável tugúrio. Os próprios filhos respeitam a regra pétrea do patriarca.Chamado a consultar o acervo para preparar a grande mostra do Palácio do Planalto, o curador Guilherme Horta surpreendeu-se com a existência de um laboratório completo, com banheiras, ampliadores e tanques de revelação. “É surreal, e impecável”, garante.

Nas máquinas fotográficas de Assis Horta, ninguém toca. Só ele as limpa. Atualmente sua coleção consiste em uma dúzia de câmeras antigas, além de uma variedade de outras da era pós-Rollei. Filmadoras 16 mm a corda e super-8 também não faltam. Há, ainda, meia dúzia de câmeras tipo caixotinho, que ele costumava alugar por dia nos tempos do Photo Assis de Diamantina. O carinho mais escrachado, além do reservado à imbatível Compur de fole, vai para a “Marc Ferrez” e seu conjunto de lentes presas em bases intercambiáveis de madeira, comprada no Rio. “Linda!”, exclama o dono, exibindo-a.

Isnard e o pai estabeleceram um modus operandi seguido à risca para processar a valiosa obra. “Ele tira os negativos das caixinhas, separa-os por temas em envelopes individuais e anota informações pertinentes”, explica Isnard. “Eu pego cada foto liberada por ele, classifico-a e jogo-a no computador com a identificação completa.” Até agora, foram catalogadas cerca de 5 mil imagens, e digitalizadas apenas algumas centenas de negativos, uma parte ínfima do acervo.

Aos 96 anos, Assis Horta ainda desce todas as manhãs os degraus íngremes que levam ao subsolo, e ali fica em companhia de suas imagens e lembranças. Reaparece para almoçar. Depois da sesta, torna a descer. “Lá, exercita a memória. No trajeto de ida e volta, exercita o coração”, resigna-se a família.

E o futuro desse material que liga Assis Horta umbilicalmente à vida presente e a seu rico passado? Só mesmo Isnard para lhe fazer essa pergunta. “É meu enquanto eu estiver aqui”, responde o pai. “Depois, você resolve.”

Perguntado se carrega alguma foto in pectore, por considerá-la a mais bela, histórica, difícil ou única, Assis Horta não hesitou.Apontando para um porta-retratos em destaque na sala, foi enfático: “Aquela ali”. Era uma foto de seu casamento com Maria. “Eu mesmo levei a máquina para o Chichico fazer o retrato.”

Pelo visto, o homem e o retratista renomado não brigam entre si. São poucos os grandes artistas tão despojados de vaidade inútil. A fotografia de que mais gosta não leva sua assinatura. Mas lhe trouxe felicidade.

Dezembro de 2014

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