segunda-feira, 18 de maio de 2020

Sobre Fotografia - Susan Sontag - 1º Capítulo


NA CAVERNA DE PLATÃO

A humanidade permanece, de forma impenitente, na caverna de Platão, ainda se regozijando, segundo seu costume ancestral, com meras imagens da verdade. Mas ser educado por fotos não é o mesmo que ser educado por imagens mais antigas, mais artesanais. Em primeiro lugar, existem à nossa volta muito mais imagens que solicitam nossa atenção. O inventário teve início em 1839, e, desde então, praticamente tudo foi fotografado, ou pelo menos assim parece. Essa insaciabilidade do olho que fotografa altera as condições do confinamento na caverna: o nosso mundo. Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça — como uma antologia de imagens.

Colecionar fotos é colecionar o mundo. Filmes e programas de televisão iluminam paredes, reluzem e se apagam; mas, com fotos, a imagem é também um objeto, leve, de produção barata, fácil de transportar, de acumular, de armazenar. No filme Les carabiniers (1963), de Godard, dois lúmpen-camponeses preguiçosos são induzidos a ingressar no Exército do rei mediante a promessa de que poderão saquear, estuprar, matar ou fazer o que bem entenderem com os inimigos, e ficar ricos. Mas a mala com o butim que Michel-Ange e Ulysse trazem, em triunfo, para casa, anos depois, para suas esposas, contém apenas centenas de cartões-postais de monumentos, de lojas de departamentos, de mamíferos, de maravilhas da natureza, de meios de transporte, de obras de arte e de outros tesouros catalogados de todo o mundo. O chiste de Godard parodia, nitidamente, a magia equívoca da imagem fotográfica. As fotos são, talvez, os mais misteriosos de todos os objetos que compõem e adensam o ambiente que identificamos como moderno. As fotos são, de fato, experiência capturada, e a câmera é o braço ideal da consciência, em sua disposição aquisitiva.

Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento — e, portanto, ao poder. Supõe-se que uma queda primordial — e malvista, hoje em dia — na alienação, a saber, acostumar as pessoas a resumir o mundo na forma de palavras impressas, tenha engendrado aquele excedente de energia fáustica e de dano psíquico necessário para construir as modernas sociedades inorgânicas. Mas a imprensa parece uma forma menos traiçoeira de dissolver o mundo, de transformá-lo em um objeto mental, do que as imagens fotográficas, que fornecem a maior parte do conhecimento que se possui acerca do aspecto do passado e do alcance do presente.

O que está escrito sobre uma pessoa ou um fato é, declaradamente, uma interpretação, do mesmo modo que as manifestações visuais feitas à mão, como pinturas e desenhos. Imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir.

As fotos, que brincam com a escala do mundo, são também reduzidas, ampliadas, recortadas, retocadas, adaptadas, adulteradas. Elas envelhecem, afetadas pelas mazelas habituais dos objetos de papel; desaparecem; tornam-se valiosas e são vendidas e compradas; são reproduzidas. Fotos, que enfeixam o mundo, parecem solicitar que as enfeixemos também.

São afixadas em álbuns, emolduradas e expostas em mesas, pregadas em paredes, projetadas como diapositivos. Jornais e revistas as publicam; a polícia as dispõe em ordem alfabética; os museus as expõem; os editores as compilam. Durante muitas décadas, o livro foi o mais influente meio de organizar (e, em geral, miniaturizar) fotos, assegurando desse modo sua longevidade, se não sua imortalidade — fotos são objetos frágeis, fáceis de rasgar e de extraviar —, e um público mais amplo. A foto em um livro é, obviamente, a imagem de uma imagem. Mas como é, antes de tudo, um objeto impresso, plano, uma foto, quando reproduzida em um livro, perde muito menos de sua característica essencial do que ocorre com uma pintura. Contudo, o livro não é um instrumento plenamente satisfatório para pôr grupos de fotos em ampla circulação. A sequência em que as fotos devem ser vistas está sugerida pela ordem das páginas, mas nada constrange o leitor a seguir a ordem recomendada, nem indica o tempo a ser gasto em cada foto. O filme Si j’avais quatre dromadaires (1966), de Chris Maker, uma reflexão argutamente orquestrada sobre fotos de todos os tipos e temas, sugere um modo mais sutil e mais rigoroso de enfeixar (e ampliar) fotos. Tanto a ordem como o tempo exato para olhar cada foto são impostos; e há um ganho em termos de legibilidade visual e impacto emocional. Mas fotos transcritas em um filme deixam de ser objetos colecionáveis, como ainda são quando oferecidas em livros.

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Fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram uma foto. Numa das versões da sua utilidade, o registro da câmera incrimina. Depois de inaugurado seu uso pela polícia parisiense, no cerco aos communards, em junho de 1871, as fotos tornaram-se uma útil ferramenta dos Estados modernos na vigilância e no controle de suas populações cada vez mais móveis. Numa outra versão de sua utilidade, o registro da câmera justifica. Uma foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa aconteceu. A foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou existiu, e era semelhante ao que está na imagem. Quaisquer que sejam as limitações (por amadorismo) ou as pretensões (por talento artístico) do fotógrafo individual, uma foto — qualquer foto — parece ter uma relação mais inocente, e portanto mais acurada, com a realidade visível do que outros objetos miméticos. Os virtuoses da imagem nobre, como Alfred Stieglitz e Paul Strand, que compuseram fotos de grande força, e inesquecíveis durante décadas, ainda tencionavam, antes de tudo, mostrar algo “que existe”, assim como o dono de uma Polaroid, para quem as fotos são uma forma prática e rápida de tomar notas, ou o fotógrafo compulsivo com sua Brownie que tira instantâneos como suvenires da vida cotidiana.

Enquanto uma pintura ou uma descrição em prosa jamais podem ser outra coisa que não uma interpretação estritamente seletiva, pode-se tratar uma foto como uma transparência estritamente seletiva. Porém, apesar da presunção de veracidade que confere autoridade, interesse e sedução a todas as fotos, a obra que os fotógrafos produzem não constitui uma exceção genérica ao comércio usualmente nebuloso entre arte e verdade. Mesmo quando os fotógrafos estão muito mais preocupados em espelhar a realidade, ainda são assediados por imperativos de gosto e de consciência. Os componentes imensamente talentosos do projeto fotográfico do final da década de 1930 chamado Contribuição para a Segurança no Trabalho nas Fazendas (entre os quais estavam Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn, Russel Lee) tiravam inúmeras fotos frontais de um de seus meeiros até se convencerem de que haviam captado no filme a feição exata — a expressão precisa do rosto da figura fotografada, capaz de amparar suas próprias ideias sobre pobreza, luz, dignidade, textura, exploração e geometria. Ao decidir que aspecto deveria ter uma imagem, ao preferir uma exposição a outra, os fotógrafos sempre impõem padrões a seus temas. Embora em certo sentido a câmera de fato capture a realidade, e não apenas a interprete, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos. Aquelas ocasiões em que tirar fotos é relativamente imparcial, indiscriminado e desinteressado não reduzem o didatismo da atividade em seu todo. Essa mesma passividade — e ubiquidade — do registro fotográfico constitui a “mensagem” da fotografia, sua agressão.

Imagens que idealizam (a exemplo da maioria das fotografias de moda e de animais) não são menos agressivas do que obras que fazem da banalidade uma virtude (como fotos de turmas escolares, naturezas-mortas do tipo mais árido e retratos de frente e de perfil de um criminoso). Existe uma agressão implícita em qualquer emprego da câmera. Isso está tão evidente nas duas primeiras décadas gloriosas da fotografia, 1840 e 1850, quanto em todas as décadas seguintes, durante as quais a tecnologia permitiu uma difusão sempre crescente da mentalidade que encara o mundo como uma coleção de fotos potenciais. Mesmo para mestres tão pioneiros como David Octavius Hill e Julia Margaret Cameron, que usavam a câmera como um meio de obter imagens à maneira de um pintor, o intuito de tirar fotos situava-se a uma grande distância dos propósitos dos pintores. Desde o seu início, a fotografia implicava a captura do maior número possível de temas. A pintura jamais teve um objetivo tão imperioso. A subsequente industrialização da tecnologia da câmera apenas cumpriu uma promessa inerente à fotografia, desde o seu início: democratizar todas as experiências ao traduzi-las em imagens.

Aquela época em que tirar fotos demandava um aparato caro e complicado — o passatempo dos hábeis, dos ricos e dos obsessivos — parece, de fato, distante da era das cômodas câmeras de bolso que convidam qualquer um a tirar fotos. As primeiras câmeras, feitas na França e na Inglaterra no início da década de 1840, só contavam com os inventores e os aficionados para operá-las. Uma vez que, na época, não existiam fotógrafos profissionais, não poderia tampouco haver amadores, e tirar fotos não tinha nenhuma utilidade social clara; tratava-se de uma atividade gratuita, ou seja, artística, embora com poucas pretensões a ser uma arte. Foi apenas com a industrialização que a fotografia adquiriu a merecida reputação de arte. Assim como a industrialização propiciou os usos sociais para as atividades do fotógrafo, a reação contra esses usos reforçou a consciência da fotografia como arte.

Em época recente, a fotografia tornou-se um passatempo quase tão difundido quanto o sexo e a dança — o que significa que, como toda forma de arte de massa, a fotografia não é praticada pela maioria das pessoas como uma arte. É sobretudo um rito social, uma proteção contra a ansiedade e um instrumento de poder.

Comemorar as conquistas de indivíduos tidos como membros da família (e também de outros grupos) é o uso popular mais antigo da fotografia. Durante pelo menos um século a foto de casamento foi uma parte da cerimônia tanto quanto as fórmulas verbais prescritas. As câmeras acompanham a vida da família. Segundo um estudo sociológico feito na França, a maioria das casas tem uma câmera, mas as casas em que há crianças têm uma probabilidade duas vezes maior de ter pelo menos uma câmera, em comparação com as casas sem crianças.

Não tirar fotos dos filhos, sobretudo quando pequenos, é sinal de indiferença paterna, assim como não comparecer à foto de formatura é um gesto de rebeldia juvenil. Por meio de fotos, cada família constrói uma crônica visual de si mesma — um conjunto portátil de imagens que dá testemunho da sua coesão. Pouco importam as atividades fotografadas, contanto que as fotos sejam tiradas e estimadas. A fotografia se torna um rito da vida em família exatamente quando, nos países em industrialização na Europa e na América, a própria instituição da família começa a sofrer uma reformulação radical. Ao mesmo tempo que essa unidade claustrofóbica, a família nuclear, era talhada de um bloco familiar muito maior, a fotografia se desenvolvia para celebrar, e reafirmar simbolicamente, a continuidade ameaçada e a decrescente amplitude da vida familiar. Esses vestígios espectrais, as fotos, equivalem à presença simbólica dos pais que debandaram. Um álbum de fotos de família é, em geral, um álbum sobre a família ampliada — e, muitas vezes, tudo o que dela resta.

Assim como as fotos dão às pessoas a posse imaginária de um passado irreal, também as ajudam a tomar posse de um espaço em que se acham inseguras. Assim, a fotografia desenvolve-se na esteira de uma das atividades modernas mais típicas: o turismo. Pela primeira vez na história, pessoas viajam regularmente, em grande número, para fora de seu ambiente habitual, durante breves períodos. Parece decididamente anormal viajar por prazer sem levar uma câmera. As fotos oferecerão provas incontestáveis de que a viagem se realizou, de que a programação foi cumprida, de que houve diversão. As fotos documentam sequências de consumo realizadas longe dos olhos da família, dos amigos, dos vizinhos. Mas a dependência da câmera, como o equipamento que torna real aquilo que a pessoa vivencia, não se enfraquece quando as pessoas viajam mais. Para os sofisticados que acumulam fotos- troféus de sua viagem de navio rio acima pelo Nilo, até o lago Alberto, ou de seus catorze dias na China, tirar fotos preenche a mesma necessidade dos veranistas de classe média baixa que fotografam a torre Eiffel ou as cataratas do Niágara.

Um modo de atestar a experiência, tirar fotos é também uma forma de recusá-la — ao limitar a experiência a uma busca do fotogênico, ao converter a experiência em uma imagem, um suvenir. Viajar se torna uma estratégia de acumular fotos. A própria atividade de tirar fotos é tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de desorientação que podem ser exacerbados pela viagem. Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a pôr a câmera entre si mesmos e tudo de notável que encontram. Inseguros sobre suas reações, tiram uma foto. Isso dá forma à experiência: pare, tire uma foto e vá em frente. O método atrai especialmente pessoas submetidas a uma ética cruel de trabalho — alemães, japoneses e americanos. Usar uma câmera atenua a angústia que pessoas submetidas ao imperativo do trabalho sentem por não trabalhar enquanto estão de férias, ocasião em que deveriam divertir-se. Elas têm algo a fazer que é uma imitação amigável do trabalho: podem tirar fotos.

Pessoas despojadas de seu passado parecem redundar nos mais fervorosos tiradores de fotos, em seu país e no exterior. Todos que vivem numa sociedade industrializada são gradualmente obrigados a desistir do passado, mas em certos países, como Estados Unidos e Japão, a ruptura com o passado foi especialmente traumática. No início da década de 1970, a lenda do turista americano atrevido, dos anos 50 e 60, cheio de dólares e de vulgaridade, foi substituída pelo mistério do turista japonês, que se locomove em grupos, recentemente liberto de sua ilha-prisão graças ao milagre do iene sobrevalorizado, em geral munido de duas câmeras, uma em cada lado do corpo.

A fotografia tornou-se um dos principais expedientes para experimentar alguma coisa, para dar uma aparência de participação. Um anúncio de página inteira mostra um pequeno grupo de pessoas de pé, apertadas umas contra as outras, olhando para fora da foto, e todas, exceto uma, parecem espantadas, empolgadas, aflitas. O único que tem uma expressão diferente segura uma câmera junto ao olho; ele parece seguro de si, quase sorrindo. Enquanto os demais são espectadores passivos, nitidamente alarmados, ter uma câmera transformou uma pessoa em algo ativo, um voyeur: só ele dominou a situação. O que veem essas pessoas? Não sabemos. E não importa. É um Evento: algo digno de se ver — e portanto digno de se fotografar. O texto do anúncio, letras brancas ao longo da faixa escura que corresponde ao terço inferior da foto, como notícias que chegam por uma máquina de teletipo, consiste em apenas seis palavras: “... Praga... Woodstock... Vietnã... Sapporo... Londonderry... leica”. Esperanças esmagadas, farras de jovens, guerras coloniais e esportes de inverno são semelhantes — igualados pela câmera. Tirar fotos estabeleceu uma relação voyeurística crônica com o mundo, que nivela o significado de todos os acontecimentos.

Uma foto não é apenas o resultado de um encontro entre um evento e um fotógrafo; tirar fotos é um evento em si mesmo, e dotado dos direitos mais categóricos — interferir, invadir ou ignorar, não importa o que estiver acontecendo. Nosso próprio senso de situação articula-se, agora, pelas intervenções da câmera. A onipresença de câmeras sugere, de forma persuasiva, que o tempo consiste em eventos interessantes, eventos dignos de ser fotografados.

Isso, em troca, torna fácil sentir que qualquer evento, uma vez em curso, e qualquer que seja seu caráter moral, deve ter caminho livre para prosseguir até se completar — de modo que outra coisa possa vir ao mundo: a foto. Após o fim do evento, a foto ainda existirá, conferindo ao evento uma espécie de imortalidade (e de importância) que de outro modo ele jamais desfrutaria. Enquanto pessoas reais estão no mundo real matando a si mesmas ou matando outras pessoas reais, o fotógrafo se põe atrás de sua câmera, criando um pequeno elemento de outro mundo: o mundo-imagem, que promete sobreviver a todos nós.

Fotografar é, em essência, um ato de não intervenção. Parte do horror de lances memoráveis do fotojornalismo contemporâneo, como a foto do monge vietnamita que segura uma lata de gasolina, a de um guerrilheiro bengali no instante em que golpeia com a baioneta um traidor amarrado, decorre da consciência de que se tornou aceitável, em situações em que o fotógrafo tem de escolher entre uma foto e uma vida, opta pela foto. A pessoa que interfere não pode registrar; a pessoa que registra não pode interferir. O famoso filme de Dziga Viértov, Um homem com uma câmera (1929), oferece a imagem ideal do fotógrafo como alguém em perpétuo movimento, alguém que se desloca em um panorama de eventos díspares com tamanha agilidade e rapidez que qualquer intervenção está fora de questão. Janela indiscreta (1954), de Hitchcock, oferece a imagem complementar: o fotógrafo representado por James Stewart tem uma relação intensificada com determinado evento, por meio da sua câmera, justamente porque está com a perna quebrada e confinado a uma cadeira de rodas; estar temporariamente imobilizado o impede de agir sobre aquilo que vê e torna ainda mais importante tirar fotos. Mesmo que incompatível com a intervenção, num sentido físico, usar uma câmera é ainda uma forma de participação. Embora a câmera seja um posto de observação, o ato de fotografar é mais do que uma observação passiva. A exemplo do voyeurismo sexual, é um modo de, pelo menos tacitamente, e não raro explicitamente, estimular o que estiver acontecendo a continuar a acontecer. Tirar uma foto é ter um interesse pelas coisas como elas são, pela permanência do status quo (pelo menos enquanto for necessário para tirar uma “boa” foto), é estar em cumplicidade com o que quer que torne um tema interessante e digno de se fotografar — até mesmo, quando for esse o foco de interesse, com a dor e a desgraça de outra pessoa.

“Sempre pensei em fotografia como uma maldade — e esse era um de seus pontos prediletos, para mim”, escreveu Diane Arbus, “e quando fotografei pela primeira vez, me senti muito perversa.” Ser um fotógrafo profissional pode ser encarado como algo maldoso, para usar o termo de Darbus, se o fotógrafo procura temas considerados indecorosos, tabus, marginais. Mas temas maldosos são mais difíceis de encontrar hoje em dia. E o que vem a ser, exatamente, o aspecto perverso de tirar fotos? Se os fotógrafos profissionais têm, muitas vezes, fantasias sexuais quando estão atrás da câmera, talvez a perversão resida no fato de que essas fantasias sejam, ao mesmo tempo, plausíveis e muito impróprias. Em Blow up (Depois daquele beijo)(1966), Antonioni leva um fotógrafo de moda a rondar convulsivamente em torno do corpo de Veruchca, com a câmera a clicar. Maldade, de fato! Com efeito, usar uma câmera não é um modo muito bom de aproximar-se sexualmente de alguém. Entre o fotógrafo e seu tema, tem de haver distância. A câmera não estupra, nem mesmo possui, embora possa atrever-se, intrometer-se, atravessar, distorcer, explorar e, no extremo da metáfora, assassinar — todas essas atividades que, diferentemente do sexo propriamente dito, podem ser levadas a efeito à distância e com certa indiferença.

Existe uma fantasia sexual muito mais forte no extraordinário filme de Michael Powell intitulado A tortura do medo (1960), que não trata de um voyeur, como o título sugere, mas de um psicopata que mata mulheres com uma arma oculta em sua câmera, enquanto as fotografa. Ele não encosta nem uma vez em seus temas. Não deseja seus corpos; quer a presença delas na forma de imagens em filme — as imagens que as mostram experimentando a própria morte —, que ele projeta numa tela, em casa, para seu prazer solitário. O filme supõe uma ligação entre impotência e agressão, entre o olhar profissionalizado e a crueldade, que aponta para a fantasia central, ligada à câmera. A câmera como falo é, no máximo, uma débil variante da metáfora inevitável que todos empregam de modo desinibido. Por mais que seja nebulosa nossa consciência dessa fantasia, ela é mencionada sem sutileza toda vez que falamos em “carregar” e “mirar” a câmera, em “disparar” a foto. A câmera de modelo antigo era mais difícil e mais complicada de recarregar do que um mosquete Bess. A câmera moderna tenta ser uma arma de raios. Diz um anúncio: A Yashica Electro-35 gt é a câmera da era espacial que sua família vai adorar. Tira fotos lindas, de dia ou de noite.

Automaticamente. Sem nenhuma complicação. É só mirar, focalizar e disparar. O cérebro eletrônico da gt e seu obturador eletrônico farão o resto. Tal qual um carro, uma câmera é vendida como arma predatória — o mais automatizada possível, pronta para disparar. O gosto popular espera uma tecnologia fácil e invisível. Os fabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos não requer nenhuma habilidade ou conhecimento especializado, que a máquina já sabe tudo e obedece à mais leve pressão da vontade. É tão simples como virar a chave de ignição ou puxar o gatilho.

Como armas e carros, as câmeras são máquinas de fantasia cujo uso é viciante. Porém, apesar das extravagâncias da linguagem comum e da publicidade, não são letais. Na hipérbole que vende carros como se fossem armas, existe pelo menos esta parcela de verdade: exceto em tempo de guerra, os carros matam mais pessoas do que as armas. A câmera/arma não mata, portanto a metáfora agourenta parece não passar de um blefe — como a fantasia masculina de ter uma arma, uma faca ou uma ferramenta entre as pernas. Ainda assim, existe algo predatório no ato de tirar uma foto. Fotografar pessoas é violá-las, ao vê-las como elas nunca se veem, ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter; transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente possuídos. Assim como a câmera é uma sublimação da arma, fotografar alguém é um assassinato sublimado — um assassinato brando, adequado a uma época triste e assustada.

No fim, as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressões mais com câmeras do que com armas, porém o preço disso será um mundo ainda mais afogado em imagens. Um caso em que as pessoas estão mudando de balas para filmes é o safári fotográfico, que está tomando o lugar do safári na África oriental. Os caçadores levam Hasselblads em vez de Winchesters; em vez de olhar por uma mira telescópica a fim de apontar um rifle, olham através de um visor para enquadrar uma foto. Na Londres do final do século XIX, Samuel Butler se queixava de que havia “um fotógrafo em cada arbusto, rondando como um leão feroz, em busca de alguém que possa devorar”. O fotógrafo, agora, ataca feras reais, sitiadas e raras demais para serem mortas. As armas se metamorfosearam em câmeras nessa comédia séria, o safári ecológico, porque a natureza deixou de ser o que sempre fora — algo de que as pessoas precisavam se proteger. Agora, a natureza — domesticada, ameaçada, mortal — precisa ser protegida das pessoas. Quando temos medo, atiramos, mas quando ficamos nostálgicos, tiramos fotos.

A época atual é de nostalgia, e os fotógrafos fomentam, ativamente, a nostalgia. A fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maioria dos temas fotografados tem, justamente em virtude de serem fotografados, um toque de páthos. Um tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenção do fotógrafo. Um tema belo pode ser objeto de sentimentos pesarosos porque envelheceu ou decaiu ou não existe mais. Todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo. As câmeras começaram a duplicar o mundo no momento em que a paisagem humana passou a experimentar um ritmo vertiginoso de transformação: enquanto uma quantidade incalculável de formas de vida biológicas e sociais é destruída em um curto espaço de tempo, um aparelho se torna acessível para registrar aquilo que está desaparecendo. A melancólica Paris, de textura intricada, de Atget e Brassai, desapareceu em sua maior parte. A exemplo dos parentes e amigos mortos, preservados no álbum de família, cuja presença em fotos exorciza uma parte da angústia e do remorso inspirados por seu desaparecimento, as fotos dos arrabaldes agora devastados, das regiões rurais desfiguradas e arrasadas, suprem nossa relação portátil com o passado.

Uma foto é tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência. Como o fogo da lareira num quarto, as fotos — sobretudo as de pessoas, de paisagens distantes e de cidades remotas, do passado desaparecido — são estímulos para o sonho. O sentido do inatingível que pode ser evocado por fotos alimenta, de forma direta, sentimentos eróticos nas pessoas para quem a desejabilidade é intensificada pela distância. A foto do amante escondida na carteira de uma mulher casada, o cartaz de um astro do rock pregado acima da cama de um adolescente, o broche de campanha, com o rosto de um político, pregado ao paletó de um eleitor, as fotos dos filhos de um motorista de táxi coladas no painel do carro — todos esses usos talismânicos das fotos exprimem uma emoção sentimental e um sentimento implicitamente mágico: são tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade.

As fotos podem incitar o desejo da maneira mais direta e utilitária — como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos anônimos do desejável com o fim de ajudar a masturbação. O assunto é mais complexo quando as fotos são usadas para estimular o impulso moral. O desejo não tem história — pelo menos ele é experimentado, em cada momento, como algo totalmente em primeiro plano, imediato. É suscitado por meio de arquétipos e é, nesse sentido, abstrato. Mas os sentimentos morais estão embutidos na história, cujos personagens são concretos, cujas situações são sempre específicas. Assim, regras quase opostas são válidas quando se trata do emprego das fotos para despertar o desejo e para despertar a consciência. As imagens que mobilizam a consciência estão sempre ligadas a determinada situação histórica. Quanto mais genéricas forem, menor a probabilidade de serem eficazes.

Uma foto que traz notícias de uma insuspeitada região de miséria não pode deixar marca na opinião pública, a menos que exista um contexto apropriado de sentimento e de atitude. As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha não diminuíram em nada o entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil. As fotos de prisioneiros esqueléticos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opinião pública dos nortistas — contra o Sul. (O efeito das fotos de Andersonville talvez se deva, em parte, à própria novidade que era, na época, ver fotos.) A compreensão política a que muitos americanos haviam chegado na década de 1960 lhes permitiu, ao olhar para as fotos, tiradas por Dorothea Lange, de descendentes de japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942, reconhecer qual era de fato o tema das fotos — um crime cometido pelo governo contra um grupo numeroso de cidadãos americanos. Poucas pessoas que viram essas fotos na década de 1940 poderiam ter uma reação tão inequívoca; o espaço para tal julgamento estava ocupado pelo consenso a favor da guerra. Fotos não podem criar uma posição moral, mas podem reforçá-la — e podem ajudar a desenvolver uma posição moral ainda embrionária.

Fotos podem ser mais memoráveis do que imagens em movimento porque são uma nítida fatia do tempo, e não um fluxo. A televisão é um fluxo de imagens pouco selecionadas, em que cada imagem cancela a precedente. Cada foto é um momento privilegiado, convertido em um objeto diminuto que as pessoas podem guardar e olhar outras vezes. Fotos como a que esteve na primeira página de muitos jornais do mundo em 1972 — uma criança sul-vietnamita nua, que acabara de ser atingida por napalm americano, correndo por uma estrada na direção da câmera, de braços abertos, gritando de dor — provavelmente contribuíram mais para aumentar o repúdio público contra a guerra do que cem horas de barbaridades exibidas pela televisão.

Seria bom imaginar que o público americano não teria se mostrado tão unânime em seu apoio à Guerra da Coreia se tivesse deparado com provas fotográficas da devastação da Coreia, um ecocídio e um genocídio, em certos aspectos, ainda mais completo do que o infligido ao Vietnã uma década depois. Mas a suposição é irrelevante. O público não viu tais fotos porque não havia, ideologicamente, espaço para elas. Ninguém trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang, para mostrar que o inimigo tinha um rosto humano, a exemplo das fotos que Felix Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanói. Os americanos tiveram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bem diferentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforços para obter tais fotos, visto que o evento fora definido por um número significativo de pessoas como uma feroz guerra colonialista. A Guerra da Coreia foi entendida de outra forma — como parte da justa luta do Mundo Livre contra a União Soviética e a China —, e, admitida essa caracterização, as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano não seriam pertinentes.

Embora um evento tenha passado a significar, exatamente, algo digno de se fotografar, ainda é a ideologia (no sentido mais amplo) que determina o que constitui um evento. Não pode existir nenhuma prova, fotográfica ou de outro tipo, de um evento antes que o próprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal. E jamais é a prova fotográfica que pode construir — mais exatamente, identificar — os eventos; a contribuição da fotografia sempre vem após a designação de um evento. O que determina a possibilidade de ser moralmente afetado por fotos é a existência de uma consciência política apropriada. Sem uma visão política, as fotos do matadouro da história serão, muito provavelmente, experimentadas apenas como irreais ou como um choque emocional desorientador.

A natureza do sentimento, até de ofensa moral, que as pessoas podem manifestar em reação a fotos dos oprimidos, dos explorados, dos famintos e dos massacrados depende também do grau de familiaridade que tenham com essas imagens. As fotos de Don McCullin dos biafrenses magérrimos no início da década de 1970 produziram menos impacto, para alguns, do que as fotos de Werner Bischof das vítimas indianas da fome no início da década de 1950, porque estas imagens tornaram-se banais, e as fotos das famílias de tuaregues que morriam de fome na África subsaariana, publicadas em revistas de todo o mundo em 1973, devem ter parecido, a muitos, uma reprise insuportável de uma exibição de atrocidades agora já familiar.

Fotos chocam na proporção em que mostram algo novo. Infelizmente, o custo disso não para de subir — em parte, por conta da mera proliferação dessas imagens de horror. O primeiro contato de uma pessoa com o inventário fotográfico do horror supremo é uma espécie de revelação, a revelação prototipicamente moderna: uma epifania negativa. Para mim, foram as fotos de Bergen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945. Nada que tinha visto — em fotos ou na vida real — me ferira de forma tão contundente, tão profunda, tão instantânea. De fato, parece-me plausível dividir minha vida em duas partes, antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos) e depois, embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu compreender plenamente do que elas tratavam. Que bem me fez ver essas fotos? Eram apenas fotos — de um evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu não podia interferir, fotos de um sofrimento que eu mal conseguia imaginar e que eu não podia aliviar de maneira alguma. Quando olhei para essas fotos, algo se partiu. Algum limite foi atingido, e não só o do horror; senti-me irremediavelmente aflita, ferida, mas uma parte de meus sentimentos começou a se retesar; algo morreu; algo ainda está chorando.

Sofrer é uma coisa; outra coisa é viver com imagens fotográficas do sofrimento, o que não reforça necessariamente a consciência e a capacidade de ser compassivo. Também pode corrompê-las. Depois de ver tais imagens, a pessoa tem aberto a sua frente o caminho para ver mais — e cada vez mais. As imagens paralisam. As imagens anestesiam. Um evento conhecido por meio de fotos certamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse visto as fotos — pensem na Guerra do Vietnã. (Para um contraexemplo, pensem no arquipélago de Gulag, do qual não temos nenhuma foto.) Mas, após uma repetida exposição a imagens, o evento também se torna menos real.

A mesma lei vigora para o mal e para a fotografia. O choque das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposição repetida, assim como a surpresa e o desnorteamento sentidos na primeira vez em que se vê um filme pornográfico se desgastam depois que a pessoa vê mais alguns. O sentimento de tabu que nos deixa indignados e pesarosos não é muito mais vigoroso do que o sentimento de tabu que rege a definição do que é obsceno. E ambos têm sido experimentados de forma dolorosa em anos recentes. O vasto catálogo fotográfico da desgraça e da injustiça em todo o mundo deu a todos certa familiaridade com a atrocidade, levando o horrível a parecer mais comum — levando-o a parecer familiar, distante (“é só uma foto”), inevitável. Na época das primeiras fotos dos campos nazistas, nada havia de banal nessas imagens. Após trinta anos, talvez tenhamos chegado a um ponto de saturação. Nas últimas décadas, a fotografia “consciente” fez, no mínimo, tanto para amortecer a consciência quanto fez para despertá-la.

O conteúdo ético das fotos é frágil. Com a possível exceção das fotos daqueles horrores, como os campos nazistas, que adquiriram a condição de pontos de referência éticos, a maioria das fotos não conserva sua carga emocional. Uma foto de 1900 que, na época, produziu um grande efeito por causa de seu tema, hoje, provavelmente, nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900. Os atributos e os intuitos específicos das fotos tendem a ser engolidos pelo páthos generalizado do tempo pretérito. A distância estética parece inserir-se na própria experiência de olhar fotos, quando não de forma imediata, certamente com o correr do tempo.

No fim, o tempo termina por situar a maioria das fotos, mesmo as mais amadoras, no nível da arte.

A industrialização da fotografia permitiu sua rápida absorção pelos meios racionais — ou seja, burocráticos — de gerir a sociedade. As fotos, não mais imagens de brinquedo, tornaram-se parte do mobiliário geral do ambiente — pedras de toque e confirmações da redutora abordagem da realidade que é tida por realista. As fotos foram arroladas a serviço de importantes instituições de controle, em especial a família e a polícia, como objetos simbólicos e como fontes de informação. Assim, na catalogação burocrática do mundo, muitos documentos importantes não são válidos a menos que tenham, colada a eles, uma foto comprobatória do rosto do cidadão. A visão “realista” do mundo compatível com a burocracia redefine o conhecimento — como técnica e informação. As fotos são apreciadas porque dão informações. Dizem o que existe; fazem um inventário. Para os espiões, os meteorologistas, os médicos-legistas, os arqueólogos e outros profissionais da informação, seu valor é inestimável. Mas, nas situações em que a maioria das pessoas usa as fotos, seu valor como informação é da mesma ordem que o da ficção. A informação que as fotos podem dar começa a parecer muito importante naquele momento da história cultural em que todos se supõem com direito a algo chamado notícia. As fotos foram vistas como um modo de dar informações a pessoas que não têm facilidade para ler. O Daily News ainda se denomina “Jornal de Imagens de Nova York”, sua maneira de alcançar uma identidade populista. No extremo oposto do espectro, Le Monde, um jornal destinado a leitores preparados e bem informados, não publica foto nenhuma. A suposição é que, para tais leitores, uma foto poderia apenas ilustrar a análise contida em uma matéria.

Um novo significado da ideia de informação construiu-se em torno da imagem fotográfica. A foto é uma fina fatia de espaço bem como de tempo. Num mundo regido por imagens fotográficas, todas as margens (“enquadramento”) parecem arbitrárias. Tudo pode ser separado, pode ser desconexo, de qualquer coisa: basta enquadrar o tema de um modo diverso. (Inversamente, tudo pode ser adjacente a qualquer coisa.) A fotografia reforça uma visão nominalista da realidade social como constituída de unidades pequenas, em número aparentemente infinito — assim como o número de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa é ilimitado. Por meio de fotos, o mundo se torna uma série de partículas independentes, avulsas; e a história, passada e presente, se torna um conjunto de anedotas e de faits divers. A câmera torna a realidade atômica, manipulável e opaca. É uma visão do mundo que nega a inter-relação, a continuidade, mas confere a cada momento o caráter de mistério. Toda foto tem múltiplos significados; de fato, ver algo na forma de uma foto é enfrentar um objeto potencial de fascínio. A sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: “Aí está a superfície. Agora, imagine — ou, antes, sinta, intua — o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem este aspecto”. Fotos, que em si mesmas nada podem explicar, são convites inesgotáveis à dedução, à especulação e à fantasia.

A fotografia dá a entender que conhecemos o mundo se o aceitamos tal como a câmera o registra. Mas isso é o contrário de compreender, que parte de não aceitar o mundo tal como ele aparenta ser. Toda possibilidade de compreensão está enraizada na capacidade de dizer não. Estritamente falando, nunca se compreende nada a partir de uma foto. É claro, as fotos preenchem lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado: por exemplo, as imagens de Jacobs Riis da miséria de Nova York na década de 1880 são extremamente instrutivas para quem não sabe que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fim do século XIX era de fato dickensiana. Contudo, a representação da realidade pela câmera deve sempre ocultar mais do que revela. Como assinala Brecht, uma foto da fábrica Krupp não revela quase nada a respeito dessa organização. Em contraste com a relação amorosa, que se baseia na aparência, a compreensão se baseia no funcionamento. E o funcionamento se dá no tempo e deve ser explicado no tempo. Só o que narra pode levar-nos a compreender.

O limite do conhecimento fotográfico do mundo é que, conquanto possa incitar a consciência, jamais conseguirá ser um conhecimento ético ou político. O conhecimento adquirido por meio de fotos será sempre um tipo de sentimentalismo, seja ele cínico ou humanista. Há de ser um conhecimento barateado — uma aparência de conhecimento, uma aparência de sabedoria; assim como o ato de tirar fotos é uma aparência de apropriação, uma aparência de estupro. A própria mudez do que seria, hipoteticamente, compreensível nas fotos é o que constitui seu caráter atraente e provocador. A onipresença das fotos produz um efeito incalculável em nossa sensibilidade ética. Ao munir este mundo, já abarrotado, de uma duplicata do mundo feita de imagens, a fotografia nos faz sentir que o mundo é mais acessível do que é na realidade.

A necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos, hoje, estão viciados. As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens; é a mais irresistível forma de poluição mental. Um pungente anseio de beleza, de um propósito para sondar abaixo da superfície, de uma redenção e celebração do corpo do mundo — todos esses elementos do sentimento erótico são afirmados no prazer que temos com as fotos. Mas outros sentimentos, menos liberadores, também se expressam. Não seria errado falar de pessoas que têm uma compulsão de fotografar: transformar a experiência em si num modo de ver. Por fim, ter uma experiência se torna idêntico a tirar dela uma foto, e participar de um evento público tende, cada vez mais, a equivaler a olhar para ele, em forma fotografada. Mallarmé, o mais lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo no mundo existe para terminar num livro. Hoje, tudo existe para terminar numa foto.

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