segunda-feira, 18 de maio de 2020

Sobre Fotografia - Susan Sontag - 3º Capítulo

 

OBJETOS DE MELANCOLIA

A fotografia tem a reputação pouco atraente de ser a mais realista e, portanto, a mais fácil das artes miméticas. De fato, é a arte que conseguiu levar a cabo as ameaças bombásticas, datadas de um século, de um domínio surrealista sobre a sensibilidade moderna, ao passo que a maioria dos concorrentes dotados de pedigree abandonou a corrida.

A pintura estava em desvantagem desde o início por ser uma bela-arte, em que cada objeto é único, um original feito à mão. Um risco adicional era o extraordinário virtuosismo técnico dos pintores habitualmente incluídos no cânone surrealista, que raramente concebiam a tela como algo não figurativo. Suas pinturas pareciam astutamente calculadas, pedantemente bem-feitas, não dialéticas. Mantinham uma distância larga e prudente da litigiosa noção surrealista de apagar as fronteiras entre a arte e a chamada vida, entre objetos e eventos, entre o voluntário e o involuntário, entre profissionais e amadores, entre o nobre e o de mau gosto, entre a competência e os disparates afortunados. O resultado foi que o surrealismo na pintura redundou em pouco mais do que o sumário de um mundo de sonhos mal sortido: umas poucas fantasias espirituosas e sobretudo sonhos eróticos e pesadelos agorafóbicos. (Só quando sua retórica libertária ajudou a incitar Jackson Pollock e outros no rumo de uma nova espécie de abstração irreverente, o ditame surrealista dirigido aos pintores parece ter, por fim, alcançado um sentido criativo amplo.) A poesia, a outra arte à qual os primeiros surrealistas se dedicavam de modo especial, produziu resultados quase igualmente frustrantes. As artes em que o surrealismo obteve a merecida fama foram a ficção (no conteúdo, sobretudo, mas muito mais abundante e mais complexo, em termos temáticos, do que se arrogou a pintura), o teatro, a arte da assemblage e — de forma mais triunfante — a fotografia.

A circunstância de ser a fotografia a única arte nativamente surreal não significa, todavia, que ela partilha o destino do movimento surrealista oficial. Ao contrário. Os fotógrafos (muitos deles ex-pintores) conscientemente influenciados pelo surrealismo contam, hoje, quase tão pouco quanto os fotógrafos “pictóricos” do século XIX, que copiavam o aspecto exterior da pintura de belas-artes. Mesmo as mais adoráveis trouvailles da década de 1920 — as fotos propositalmente veladas por exposição excessiva e as radiografias de Man Ray, os fotogramas de László Moholy-Nagy, os estudos de múltipla exposição de Bragaglia, as fotomontagens de John Heartfield e Alexander Rodchenko — são vistas como proezas marginais na história da fotografia. Os fotógrafos que se concentraram em interferir no realismo supostamente superficial da foto foram os que transmitiram, de modo mais exato, as propriedades surrealistas da fotografia. O legado surrealista para a fotografia veio a parecer trivial quando o repertório surrealista de fantasias e de adereços foi rapidamente absorvido pela alta-costura na década de 1930, e a fotografia surrealista oferecia, sobretudo, um estilo amaneirado de retratismo, identificável por seu emprego das mesmas convenções decorativas introduzidas pelo surrealismo nas demais artes, em especial na pintura, no teatro e na publicidade. A vertente dominante da atividade fotográfica mostrou que uma manipulação ou uma teatralização surrealista do real é desnecessária, se não efetivamente redundante. O surrealismo se situa no coração da atividade fotográfica: na própria criação de um mundo em duplicata, de uma realidade de segundo grau, mais rigorosa e mais dramática do que aquela percebida pela visão natural. Quanto menos douta, quanto menos obviamente capacitada, quanto mais ingênua — mais confiável havia de ser a foto.

O surrealismo sempre cortejou acidentes, deu boas-vindas ao que não é convidado, lisonjeou presenças turbulentas. O que poderia ser mais surreal do que um objeto que praticamente produz a si mesmo, e com um mínimo de esforço? Um objeto cuja beleza, cujas revelações fantásticas, cujo peso emocional serão, provavelmente, realçados por qualquer acidente que possa sobrevir? Foi a fotografia que melhor mostrou como justapor a máquina de costura ao guarda-chuva, cujo encontro fortuito foi saudado por um célebre poeta surrealista como uma síntese do belo.

À diferença dos objetos das belas-artes das eras pré-democráticas, as fotos não parecem profundamente submetidas às intenções de um artista. Devem, antes, sua existência a uma vaga cooperação (quase mágica, quase acidental) entre o fotógrafo e o tema — mediada por uma máquina cada vez mais simples e mais automática, que é infatigável e que, mesmo quando se mostra caprichosa, pode produzir um resultado interessante e nunca inteiramente errado. (O chamariz comercial da primeira Kodak, em 1888, era: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”. O comprador tinha a garantia de que a foto sairia “sem nenhum erro”.) No conto de fadas da fotografia, a caixa mágica assegura a veracidade e bane o erro, compensa a inexperiência e recompensa a inocência.

O mito é suavemente parodiado num filme mudo de 1928, The cameraman, que mostra um inapto e sonhador Buster Keaton pelejando em vão com seu equipamento deteriorado, derrubando portas e janelas toda vez que monta seu tripé, sem jamais conseguir uma imagem decente, embora no fim consiga um excelente flagrante jornalístico (um furo fotográfico de uma guerra de quadrilhas no bairro de Chinatown em Nova York) — por descuido. Foi o macaquinho de estimação do câmera que pôs o filme na câmera e a operou durante uma parte do tempo.

O erro dos militantes surrealistas foi imaginar que o surreal fosse algo universal, ou seja, uma questão de psicologia, ao passo que ele se revelou extremamente localizado, étnico, datado e restrito a uma classe. Assim, as primeiras fotos surreais provêm da década de 1850, quando os fotógrafos pela primeira vez saíram a vagar pelas ruas de Londres, Paris e Nova York, em busca da sua fatia de vida sem pose. Essas fotos, concretas, particulares, anedóticas (a não ser que a anedota tivesse sido apagada) — momentos de tempo perdido, de costumes desaparecidos —, parecem muito mais surreais para nós, agora, do que qualquer foto tornada abstrata e poética por efeito de superposição, de uma cópia esmaecida, de uma exposição excessiva e coisas do tipo. Acreditando que as imagens buscadas por eles provinham do inconsciente, cujo conteúdo, como freudianos fiéis, supunham ser intemporal e universal, os surrealistas entenderam mal o que havia de mais brutalmente comovedor, irracional, inassimilável, misterioso — o próprio tempo. O que torna uma foto surreal é o seu páthos irrefutável como mensagem do passado e a concretude de suas sugestões a respeito da classe social.

O surrealismo é um descontentamento burguês; o fato de seus militantes o tomarem por universal constitui apenas um dos sinais de que ele é tipicamente burguês. Como uma estética que almeja ser uma política, o surrealismo opta pelos oprimidos, pelos direitos de uma realidade marginal, não oficial. Mas os escândalos lisonjeados pela estética surrealista revelaram-se, em geral, nada mais do que aqueles mistérios caseiros obscurecidos pela ordem social burguesa: sexo e pobreza. Eros, que os primeiros surrealistas punham no topo da realidade tabuizada que buscavam reabilitar, era, ele mesmo, parte do mistério da posição social. Embora parecesse florescer com exuberância nos pontos extremos da escala social, encarando tanto a classe mais baixa quanto a nobreza como naturalmente libertinas, as pessoas de classe média tiveram de dar duro para promover sua revolução sexual. A classe era o mistério mais profundo; o inesgotável glamour dos ricos e poderosos, a degradação opaca dos
pobres e dos párias.

A visão da realidade como um prêmio exótico a ser perseguido e capturado pelo diligente caçador-com-uma-câmera plasmou a fotografia desde os primórdios e assinala a confluência da contracultura surrealista e do aventureirismo social da classe média. A fotografia sempre foi fascinada pelas posições sociais mais elevadas e mais baixas. Os documentaristas (que não se confundem com aduladores munidos de câmeras) preferem estas últimas. Durante mais de um século, os fotógrafos rondaram os oprimidos à espreita de cenas de violência — com uma consciência impressionantemente boa. A miséria social inspirou, nos bem situados, a ânsia de tirar fotos, a mais delicada de todas as atividades predatórias, a fim de documentar uma realidade oculta, ou, antes, uma realidade oculta para eles.

Ao observar a realidade dos outros com curiosidade, com isenção, com profissionalismo, o fotógrafo ubíquo age como se essa atividade transcendesse os interesses de classe, como se a perspectiva fosse universal. De fato, a fotografia alcançou pela primeira vez o merecido reconhecimento como uma extensão do olho do flâneur de classe média, cuja sensibilidade foi mapeada tão acuradamente por Baudelaire. O fotógrafo é uma versão armada do solitário caminhante que perscruta, persegue, percorre o inferno urbano, o errante voyeurístico que descobre a cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos. Adepto das alegrias da observação, connoisseur da empatia, o flâneur acha o mundo “pitoresco”. As descobertas do flâneur de Baudelaire são diversificadamente exemplificadas pelos instantâneos singelos tirados na década de 1890 por Paul Martin, nas ruas de Londres e no litoral, e por Arnold Genthe, no bairro de Chinatown em San Francisco (ambos com uma câmera oculta); pela Paris crepuscular de Atget, com suas ruas degradadas e lojas decadentes, pelos dramas de sexo e solidão retratados no livro de Brassaï, Paris de nuit (1933); pela imagem da cidade como um teatro de calamidades em Cidade nua (1945), de Weegee. O flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas sim por seus recantos escuros e sórdidos, suas populações abandonadas — uma realidade marginal por trás da fachada da vida burguesa que o fotógrafo “captura”, como um detetive captura um criminoso.

Voltando ao filme The cameraman: uma guerra entre gangues de chineses pobres constitui um tema ideal. É totalmente exótico, portanto digno de se fotografar. Parte do que assegura o sucesso do filme feito pelo herói é que ele não compreende seu tema de forma alguma. (Tal como representado por Buster Keaton, ele nem sequer compreende que sua vida está em perigo.) O tema surreal perene é How the other half lives [Como vive a outra metade], para citar o título inocentemente explícito que Jacob Riis deu ao seu livro de fotos sobre os pobres de Nova York, publicado em 1890. A fotografia entendida como um documento social foi um instrumento dessa atitude essencialmente de classe média, zelosa e meramente tolerante, curiosa e também indiferente, chamada de humanismo — que via os cortiços como o cenário mais atraente. Os fotógrafos contemporâneos, é claro, aprenderam a concentrar-se e delimitar seu tema. Em lugar da insolência da “outra metade”, tomemos, por exemplo, East 100th Street (o livro de fotos de Bruce Davidson sobre o Harlem, publicado em 1970). A justificação é ainda a mesma, que tirar fotos serve a um propósito elevado: desvelar uma verdade oculta, conservar um passado em via de desaparecer. (A verdade oculta é, além do mais, não raro identificada com o passado em via de desaparecer. Entre 1874 e 1886, os londrinos prósperos podiam filiar-se à Sociedade de Fotografia de Relíquias da Londres Antiga.)

Começando como artistas da sensibilidade urbana, os fotógrafos rapidamente tornaram-se cônscios de que a natureza é tão exótica quanto a cidade; rústica e pitoresca como os habitantes dos cortiços urbanos. Em 1897, sir Benjamin Stone, rico industrial e membro conservador do Parlamento inglês, por Birmingham, fundou a Associação Nacional de Registro Fotográfico, com o propósito de documentar as tradicionais cerimônias e festas rurais inglesas que estavam prestes a se extinguir. “Todo vilarejo”, escreveu Stone, “tem uma história que deveria ser preservada por meio da câmera.” Para um fotógrafo bem-nascido, do fim do século XIX, como o pedante conde Giuseppe Primoli, a vida de rua dos miseráveis era, pelo menos, tão interessante quanto os passatempos de seus pares aristocratas: comparem as fotos tiradas por Primoli do casamento do rei Victor Emmanuel com suas fotos dos pobres de Nápoles. Foi necessária a imobilidade social de um fotógrafo de gênio que calhou ser uma criança, Jacques-Henri Lartigue, para restringir o tema aos hábitos exóticos da própria família e da própria classe do fotógrafo. Mas, em essência, a câmera transforma qualquer pessoa num turista na realidade dos outros e, por fim, na sua própria realidade.

Talvez o mais antigo modelo de um olhar prolongado voltado para baixo sejam as 36 fotos contidas em Street life in London [Vida de rua em Londres] (1877-8), tiradas pelo viajante e fotógrafo inglês John Thomson. Mas, para cada fotógrafo especializado em pobres, muitos mais saíam à cata de uma realidade exótica de alcance mais amplo. O próprio Thomson teve uma carreira exemplar nessa linha. Antes de se voltar para os pobres de seu próprio país, já fora conhecer os gentios, uma estada que resultou em seus quatro volumes de Illustrations of China and its people [Ilustrações da China e de seu povo] (1873-4). E, após seu livro sobre a vida na rua dos pobres de Londres, voltou-se para a vida doméstica dos ricos de Londres: Thomson, por volta de 1880, foi o pioneiro da voga do retratismo fotográfico doméstico.

Desde o início, a fotografia profissional propunha-se, tipicamente, a ser a variedade mais abrangente de um turismo de classe, em que a maioria dos fotógrafos combinava uma coleta de dados da degradação social com retratos de celebridades ou de mercadorias (alta moda, publicidade) ou com estudos de nus. Muitas carreiras fotográficas exemplares do século XX (como as de Edward Steichen, Bill Brandt, Henri Cartier-Bresson, Richard Avedon) se desenvolveram por meio de bruscas mudanças de nível social e de relevância ética do tema.

Talvez a ruptura mais dramática seja aquela ocorrida entre as obras pré e pós-guerra de Bill Brandt. Ter passado das fotos implacáveis da penúria da Depressão no Norte da Inglaterra aos retratos de celebridades elegantes e aos nus semiabstratos das últimas décadas parece, de fato, uma longa viagem. Mas não existe nada particularmente idiossincrático, ou talvez até incoerente, nesses contrastes. Viajar entre realidades degradadas e glamourosas faz parte do próprio impulso original da atividade fotográfica, a menos que o fotógrafo esteja encerrado em uma obsessão extremamente particular (como aquilo que Lewis Carroll sentia por meninas, ou o que Diane Arbus sentia pela multidão do Dia das Bruxas).

A pobreza não é mais surreal do que a riqueza; um corpo envolto em farrapos imundos não é mais surreal do que uma principessa trajada para um baile, ou do que um nu imaculado. O surreal é a distância imposta, e ligada como por uma ponte, pela foto: a distância social e a distância no tempo. Vistas da perspectiva que a classe média tem da fotografia, as celebridades são tão intrigantes quanto os párias. Os fotógrafos não precisam ter uma atitude irônica, inteligente, com respeito a seu material estereotipado. O fascínio submisso, respeitoso, pode também servir perfeitamente, sobretudo com os temas mais convencionais.


Nada poderia estar mais longe das, digamos, sutilezas de Avedon do que a obra de Ghitta Carell, fotógrafa húngara das celebridades da era de Mussolini. Mas suas fotos parecem, agora, tão excêntricas quanto as de Avedon, e muito mais surreais do que as de influência surrealista tiradas por Cecil Beaton, do mesmo período. Ao situar seus temas — vejam as fotos que tirou de Edith Sitweel, em 1927, e de Cocteau, em 1936 — em cenários extravagantes e suntuosos, Beaton os transforma em efígies demasiadamente explícitas e inconvincentes. Mas a cumplicidade inocente de Carell com o desejo de seus generais, aristocratas e atores italianos de parecer estáticos, posados, glamourosos, revela uma dura e rigorosa verdade sobre eles. A reverência da fotógrafa tornou-os interessantes; o tempo tornou-os inofensivos, todos demasiado humanos.

Alguns fotógrafos se fazem de cientistas, outros, de moralistas. Os cientistas fazem um inventário do mundo; os moralistas concentram-se em pessoas com sérios problemas. Um exemplo de fotografia como ciência é o projeto iniciado por August Sander em 1911: um catálogo fotográfico do povo alemão. Em contraste com os desenhos de George Grosz, que sintetizavam o espírito e a variedade dos tipos sociais da Alemanha de Weimar por meio da caricatura, as “fotos arquetípicas” de Sander (como ele as chamava) supõem uma neutralidade pseudocientífica semelhante àquela reclamada pelas ciências tipológicas dissimuladamente partidárias que se difundiram no século XIX, como a frenologia, a criminologia, a psiquiatria e a eugenia. Não se tratava tanto do fato de Sander haver escolhido indivíduos de acordo com o caráter representativo deles, mas sim de haver suposto, corretamente, que a câmera não pode deixar de revelar os rostos como máscaras sociais. Cada pessoa fotografada era um emblema de determinada classe, ofício ou profissão. Todos os seus temas são representativos, igualmente representativos, de determinada realidade social — a deles mesmos.

O olhar de Sander não é brutal; é permissivo, não julga. Comparem sua foto Circus people, de 1930, com os estudos feitos por Diane Arbus das pessoas que trabalham em circos, ou com os retratos de personagens do demi-monde feitos por Lisette Model. As pessoas encaram a câmera de Sander como fazem nas fotos de Model e de Arbus, mas seu olhar não é íntimo, revelador. Sander não buscava segredos; observava o típico. A sociedade não contém mistérios. A exemplo de Eadweard Muybridge, cujos estudos fotográficos na década de 1880 conseguiram dissipar equívocos acerca daquilo que todos sempre tinham visto (como galopam os cavalos, como se movem as pessoas) porque ele subdividira os movimentos do tema em uma sequência de instantâneos bastante precisa e longa, Sander tencionava lançar luz sobre a ordem social atomizando-a em um número indefinido de tipos sociais. Não parece surpreendente que em 1934, cinco anos após sua publicação, os nazistas tenham apreendido os exemplares não vendidos do livro de Sander intitulado Antlitz der Zeit [A face do tempo] e destruído as matrizes de impressão, pondo um fim abrupto a seu projeto de um retrato nacional. (Sander, que permaneceu na Alemanha durante o período nazista, desviou-se para a fotografia de paisagens.) A acusação alegava que o projeto de Sander era antissocial. O que podia ter parecido antissocial para os nazistas era a ideia do fotógrafo como um impassível funcionário de um censo, cujo registro completo tornaria supérfluo qualquer comentário, ou até qualquer julgamento.

À diferença da maior parte da fotografia de intenção documental, fascinada pelos pobres e pelos estranhos como temas fotografáveis por excelência, ou por celebridades, a amostra social de Sander é invulgarmente, e conscientemente, ampla. Inclui burocratas e camponeses, serviçais e senhoras da sociedade, operários e industriais, soldados e ciganos, atores e balconistas. Mas tal variedade não exclui a condescendência de classe. O estilo eclético de Sander o denuncia. Certas fotos são espontâneas, fluentes, naturalistas; outras são ingênuas e constrangidas. As numerosas fotos posadas, tiradas contra um fundo branco e sem contraste, são um cruzamento de magníficas fotos de arquivo policial com antiquados retratos de estúdio.


Sem acanhamentos, Sander adaptava seu estilo à escala social da pessoa a quem fotografava. Os ricos e os profissionais de alto escalão tendem a ser fotografados em ambientes internos, sem acessórios. Eles falam por si mesmos. Os trabalhadores e os miseráveis são, em geral, fotografados em um cenário (muitas vezes, ao ar livre) que os situa, que fala por eles — como se a eles não se pudesse admitir a posse do tipo de identidade própria normalmente alcançada nas classes média e alta.

Na obra de Sander, todos estão devidamente situados, ninguém está perdido, confinado ou descentrado. Um retardado é fotografado exatamente da mesma forma desapaixonada que um pedreiro; e um veterano perneta da Primeira Guerra Mundial, da mesma forma que um jovem e saudável soldado de uniforme; estudantes comunistas de caras fechadas, da mesma forma que nazistas sorridentes; um capitão de indústria, da mesma forma que um cantor de ópera. “Não tenho intenção de criticar nem de descrever essas pessoas”, disse Sander. Embora talvez já fosse de se esperar que ele alegasse não criticar seus temas, ao fotografá-los, é interessante que tenha pensado que tampouco os descrevia. A cumplicidade de Sander com todos também significa uma distância de todos. Sua cumplicidade com seus temas não é ingênua (como a de Carrell), mas niilista. A despeito de seu realismo de classe, trata-se de uma das obras mais genuinamente abstratas na história da fotografia.

É difícil imaginar um americano tentando produzir uma taxonomia abrangente semelhante à de Sander. Os grandes retratos fotográficos dos Estados Unidos — como American photographs (1938), de Walker Evans, e The Americans (1959), de Robert Frank — foram colhidos deliberadamente ao acaso, embora continuassem a refletir o gosto tradicional do documentário fotográfico pelos pobres e despossuídos, os cidadãos que a nação esqueceu. E o mais ambicioso projeto fotográfico coletivo já realizado neste país, por iniciativa da Secretaria de Segurança no Trabalho Rural, em 1935, sob a direção de Roy Emerson Stryker, preocupava-se apenas com “grupos de baixa renda”. (Apesar de ter mudado, como está indicado num memorando de Stryker para a sua equipe em 1942, quando as novas necessidades morais da Segunda Guerra Mundial faziam dos pobres um tema demasiado pessimista. “Temos de obter imediatamente: fotos de homens, mulheres e crianças que pareçam acreditar de fato nos EUA. Arranjem pessoas com certo ânimo. Uma parte grande demais de nosso arquivo retrata os EUA como uma terra de velhos, como se todos fossem velhos demais para trabalhar e malnutridos demais para se importar com o que aconteça. [...] Precisamos, especialmente, de homens e mulheres jovens que trabalhem em fábricas. [...] Donas de casa em suas cozinhas ou em seu jardim, colhendo flores. Casais de idosos de aspecto mais satisfeito”). O projeto, concebido como “uma documentação iconográfica de nossas áreas rurais e de nossos problemas rurais” (palavras de Stryker), era descaradamente propagandístico, e Stryker instruía sua equipe quanto à atitude que deveria assumir diante de seu problemático tema. O intuito do projeto era demonstrar o valor das pessoas fotografadas. Portanto definia implicitamente seu ponto de vista: o de pessoas de classe média que precisavam ser convencidas de que os pobres eram mesmo pobres, e de que eram dignos. É instrutivo comparar as fotos desse projeto com as de Sander.

Se os pobres não carecem de dignidade nas fotos de Sander, não é por causa de nenhuma intenção compassiva. Eles têm dignidade por justaposição, porque são vistos da mesma maneira fria que todos os demais.

A fotografia americana raramente se mostrou tão imparcial. Para uma abordagem semelhante à de Sander, devemos nos voltar a pessoas que documentaram uma parte moribunda ou relegada dos Estados Unidos — como Adam Clark Vroman, que fotografou os índios no Arizona e no Novo México em 1895 e 1904. As bonitas fotos de Vroman são inexpressivas, sem condescendência, sem sentimentalismo. Seu espírito é o exato oposto das fotos da Secretaria de Segurança no Trabalho Rural: não são comoventes, não têm estilo, não solicitam solidariedade. Não fazem nenhuma propaganda a favor dos índios. Sander não sabia que fotografava um mundo em via de desaparecer. Vroman sabia. Também sabia não haver salvação para o mundo que registrava.

A fotografia na Europa foi amplamente orientada por noções do pitoresco (ou seja, os pobres, os estrangeiros, os antigos), do importante (ou seja, os ricos, os famosos) e do belo.

As fotos tendiam a louvar ou a mirar de forma neutra. Os americanos, menos convencidos da permanência de qualquer ordenação social básica, especialistas na “realidade” e na inevitabilidade da mudança, produziram, de modo mais frequente, uma fotografia militante.

Tiravam-se fotos não só para mostrar o que devia ser admirado, mas para revelar o que precisava ser enfrentado, deplorado — e corrigido. A fotografia americana supõe uma ligação mais sumária, menos estável, com a história; e uma relação mais esperançosa e também mais predatória com a realidade geográfica e social.

O lado esperançoso é exemplificado no uso bem conhecido que se faz das fotos nos Estados Unidos, com o intuito de despertar a consciência. No começo do século XX, Lewis Hine foi nomeado fotógrafo oficial da Comissão Nacional do Trabalho Infantil, e suas fotos de crianças trabalhando em algodoarias, plantações de beterraba e minas de carvão influenciaram, de fato, legisladores a tornar ilegal o trabalho infantil. Durante o New Deal, o projeto de Stryker, da Secretaria de Segurança no Trabalho Rural (Stryker era um discípulo de Hine), trouxe para Washington informações sobre meeiros e trabalhadores migrantes, de sorte que os burocratas puderam imaginar um modo de ajudá-los. Mas, mesmo em sua modalidade mais moralista, a fotografia documental era também imperiosa, em outro sentido. Tanto o imparcial relatório de viajante de Thomson como a apaixonada denúncia de Riis ou de Hine refletem a ânsia de se apropriar de uma realidade alheia. E nenhuma realidade está a salvo de apropriação, nem quando se trata de uma realidade escandalosa (que deveria ser corrigida) ou meramente bela (ou que poderia tornar-se bela por efeito da câmera). Em termos ideais, o fotógrafo era capaz de tornar as duas realidades afins, como exemplifica o título de uma entrevista feita com Hine, em 1920: “Tratando o trabalho de forma artística”.

O lado predatório da fotografia situa-se no coração da aliança entre fotografia e turismo, que se manifestou de forma evidente nos Estados Unidos, antes de qualquer outro lugar. Após a expansão para o oeste, em 1869, com a conclusão da ferrovia transcontinental, veio a colonização por meio da fotografia. O caso dos índios americanos é o mais brutal. Amadores sérios e discretos como Vroman já estavam em ação desde o fim da Guerra Civil. Eram a vanguarda do exército de turistas que chegaram no fim do século, ávidos por “uma boa foto” da vida dos índios. Os turistas invadiram a privacidade dos índios, fotografavam objetos sagrados, danças e locais sagrados, pagavam, se necessário, aos índios para posarem e induziam-nos a alterar suas cerimônias a fim de propiciar um material mais fotogênico.

Mas a cerimônia nativa que é alterada quando a horda de turistas assola as tribos não é tão diferente de um escândalo, na parte velha e pobre de uma cidade, que é corrigido depois que alguém o fotografou. Na medida em que os denunciadores obtinham resultado, também alteravam aquilo que fotografavam; de fato, fotografar uma coisa tornou-se uma parte rotineira do processo de alterá-la. O perigo era o de uma mudança simbólica — limitada à leitura mais estrita possível do tema da foto. O cortiço específico de Mulberry Bend, em Nova York, fotografado por Riis no final da década de 1880, foi logo depois demolido, e seus habitantes, transferidos por ordem de Theodore Roosevelt, na ocasião governador de estado, ao passo que outros cortiços igualmente horríveis foram deixados intactos.

O fotógrafo saqueia e também preserva, denuncia e consagra. A fotografia exprime a impaciência americana com a realidade, o gosto por atividades cujo instrumento é uma máquina. “Na base de tudo está a velocidade”, como disse Hart Crane (escrevendo sobre Stieglitz, em 1923), “um centésimo de segundo captado de forma tão precisa que o movimento continua, indefinidamente, a partir da foto: o momento convertido no eterno.” Em face da espantosa amplitude e estranheza de um continente recém-conquistado, as pessoas manejavam as câmeras como um modo de tomar posse dos lugares que visitavam. A Kodak pôs placas na entrada de muitas cidades com uma lista do que fotografar. Nos parques nacionais, placas assinalavam os locais em que os visitantes deveriam empunhar suas câmeras.

Sander está à vontade em seu próprio país. Os fotógrafos americanos se encontram, muitas vezes, em viagem, dominados por um encanto desrespeitoso ante aquilo que o país oferece em termos de surpresas surreais. Os moralistas e os saqueadores meticulosos, crianças e estrangeiros em sua própria terra, encontrarão algo em via de desaparecer — e, não raro, apressarão seu desaparecimento ao fotografá-lo. Fotografar, como fez Sander, um espécime após o outro, em busca de um inventário idealmente completo, pressupõe que a sociedade possa ser encarada como uma totalidade abrangente. Os fotógrafos europeus admitiam que a sociedade contém algo da estabilidade da natureza. A natureza nos Estados Unidos sempre esteve desconfiada, na defensiva, canibalizada pelo progresso. Nos Estados Unidos, todo espécime se torna uma relíquia.

A paisagem americana sempre pareceu demasiado variada, vasta, misteriosa, fugidia para entregar-se ao cientificismo. “Ele não sabe, não pode dizer, diante dos fatos”, escreveu Henry James em The American scene [O panorama americano] (1907), nem quer saber ou dizer; os próprios fatos em si mesmos avultam, diante do entendimento, em um volume demasiado grande para simplesmente caber na boca; é como se as sílabas fossem numerosas demais para formar uma palavra legível. A palavra ilegível, por conseguinte, a grande e inescrutável resposta às perguntas, paira no vasto céu americano, para sua imaginação, como algo fantástico e abracadabrante, que não pertence a nenhuma língua conhecida, e é sob esse conveniente pendão que ele viaja, delibera e contempla e, até onde é capaz, desfruta.

Os americanos sentem a realidade de seu país como algo tão estupendo, e mutável, que seria a mais grosseira presunção abordá-la com uma atitude classificatória, científica. Poder-se-ia chegar a ela de forma indireta, por meio de um subterfúgio — estilhaçando-a em fragmentos estranhos que, de algum modo, poderiam, por sinédoque, ser tomados pelo todo. Os fotógrafos americanos (como os escritores americanos) postulam algo inefável na realidade nacional — algo, possivelmente, que nunca foi visto antes. Jack Kerouac começa sua introdução ao livro The Americans, de Robert Frank, assim: Esse sentimento louco nos Estados Unidos quando o sol queima as ruas e a música ressoa da vitrola automática ou de um enterro que passa na vizinhança, eis o que Robert Frank captou nessas fotos tremendas, tiradas enquanto viajava pelas estradas de quase 48 estados, num carro velho e surrado (graças a uma bolsa da Guggenheim), e, com a agilidade, o mistério, o gênio, a tristeza e o estranho segredo de uma sombra, fotografou cenas nunca antes vistas em filmes. [...] Depois de ver essas fotos, fica-se sem saber se uma vitrola automática é mais triste do que um caixão. Qualquer inventário dos Estados Unidos é, inevitavelmente, anticientífico, uma delirante e “abracadabrante” confusão de objetos, em que vitrolas automáticas parecem caixões. James pelo menos conseguiu formular o juízo tortuoso de que “esse efeito particular da escala das coisas é o único efeito que, por todo o território, não é diretamente avesso à alegria”.

Para Kerouac — em nome da principal tradição da fotografia americana —, a atitude predominante é a tristeza. Por trás da pretensão ritualizada dos fotógrafos americanos de olhar à sua volta, ao acaso, sem preconceitos — iluminando temas, registrando-os serenamente —, repousa uma pesarosa visão de perda.

A eficácia do relatório de perdas feito pela fotografia depende de ela ampliar, de maneira constante, a iconografia familiar do mistério, da mortalidade, da transitoriedade. Os fantasmas mais tradicionais são invocados por alguns fotógrafos americanos mais velhos, como Clarence John Laughlin, um autodeclarado expoente do “romantismo extremado” que começou, em meados da década de 1930, a fotografar casas de fazenda decadentes no baixo Mississippi, monumentos fúnebres nos cemitérios pantanosos de Louisiana, interiores de residências vitorianas em Milwaukee e Chicago; mas o método funciona igualmente bem com temas que não cheirem tanto, nem de forma tão convencional, a passado, como numa foto de Laughlin de 1962, Spectre of Coca-Cola [Espectro de Coca-Cola]. Além do romantismo (extremado ou não) acerca do passado, a fotografia oferece um romantismo instantâneo sobre o presente. Nos Estados Unidos, o fotógrafo não é simplesmente a pessoa que registra o passado, mas aquela que o inventa. Como escreveu Berenice Abbott: “O fotógrafo é o ser contemporâneo por excelência; através dos seus olhos, o agora se torna passado”.

Voltando de Paris para Nova York em 1929, após os anos de aprendizagem com Man Ray e após sua descoberta (e resgate) da obra até então mal conhecida de Eugène Atget, Abbott pôs-se a registrar a cidade. No prefácio ao seu livro de fotos publicado em 1939, Changing New York [Mudando Nova York], ela explica: “Se eu nunca tivesse deixado os Estados Unidos, nunca teria desejado fotografar Nova York. Mas quando eu a vi com novos olhos, reconheci que era o meu país, algo que eu tinha de registrar em fotografias”. O projeto de Abbott (“eu queria registrá-lo antes que mudasse completamente”) soa semelhante ao de Atget, que passou os anos entre 1898 e sua morte, em 1927, documentando furtiva e pacientemente uma Paris em pequena escala, corroída pelo tempo, em via de desaparecer. Mas Abbott registra algo ainda mais fantástico: a incessante substituição do novo. A Nova York dos anos 1930 era muito diferente de Paris: “menos beleza e tradição do que a fantasia nativa que emergia da ganância acelerada”. O livro de Abbott tem um título condizente, pois, em vez de erguer um monumento ao passado, ela simplesmente documenta dez anos da crônica capacidade autodestrutiva da experiência americana, em que mesmo o passado recente é constantemente corroído, varrido, demolido, removido, substituído. Um número cada vez menor de americanos possui objetos com pátina, móveis antigos, jarras e panelas dos avós — as coisas usadas, que trazem o calor do toque humano de várias gerações, que Rilke celebrou nas Elegias de Duino como essenciais à paisagem humana. Em lugar disso, temos nossas fantasmagorias de papel, paisagens transistorizadas. Um museu portátil e peso-pena.

Fotos, que transformam o passado num objeto de consumo, são um atalho. Qualquer coleção de fotos é um exercício de montagem surrealista e a sinopse surrealista da história. Assim como Kurt Schwitters e, mais recentemente, Bruce Conner e Ed Kienholz criaram magníficos objetos, quadros vivos e ambientes a partir de refugo, nós agora construímos uma história a partir de nossos detritos. E uma certa virtude, de um tipo cívico adequado a uma sociedade democrática, está vinculada a essa prática. O modernismo verdadeiro não é austeridade, mas uma plenitude de garagem bagunçada — a paródia intencional do magnânimo sonho de Whitman. Sob a influência dos fotógrafos e dos artistas pop, arquitetos como Robert Venturi seguem o ensinamento de Las Vegas e julgam a Times Square uma sucessora apropriada para a Piazza San Marco; e Reyner Banham louva “a arquitetura e a paisagem urbana instantâneas” de Los Angeles, em razão do seu dom para a liberdade, para uma vida boa, impossível em meio às belezas e às misérias da cidade europeia — exaltando a liberação proporcionada por uma sociedade cuja consciência é construída, ad hoc, de sucata e de refugo. Os Estados Unidos, este país surreal, estão repletos de objetos encontrados. Nosso refugo tornou-se arte.

Nosso refugo tornou-se história.

As fotos são, é claro, artefatos. Mas seu apelo reside em também parecerem, num mundo atulhado de relíquias fotográficas, ter o status de objetos encontrados — lascas fortuitas do mundo. Assim, tiram partido simultaneamente do prestígio da arte e da magia do real. São nuvens de fantasia e pílulas de informação. A fotografia tornou-se a arte fundamental das sociedades prósperas, perdulárias e inquietas — uma ferramenta indispensável da nova cultura de massa que tomou forma, aqui, após a Guerra Civil, e só conquistou a Europa após a Segunda Guerra Mundial, embora seus valores tenham alcançado uma base sólida entre os ricos já na década de 1850, quando, segundo a descrição melancólica de Baudelaire, “nossa sociedade degradada” tornou-se narcisisticamente extasiada pelo “método barato de disseminar a aversão à história” criado por Daguerre.

O apego surrealista à história supõe também um refluxo da melancolia, bem como uma voracidade e uma insolência superficiais. Logo no início da fotografia, no fim da década de 1830, William H. Fox Talbot percebeu a faculdade especial da câmera para registrar “os estragos do tempo”. Fox Talbot referia-se ao que ocorre aos prédios e monumentos. Para nós, as abrasões mais interessantes não são de pedra, mas de carne. Por meio das fotos, acompanhamos da maneira mais íntima e perturbadora o modo como as pessoas envelhecem.

Olhar para uma velha foto de si mesmo, de alguém que conhecemos ou de alguma figura pública muito fotografada é sentir, antes de tudo: como eu (ela, ele) era muito mais jovem na época. A fotografia é o inventário da mortalidade. Basta, agora, um toque do dedo para dotar um momento de uma ironia póstuma. As fotos mostram as pessoas incontestavelmente presentes num lugar e numa época específica de suas vidas; agrupam pessoas e coisas que, um instante depois, se dispersaram, mudaram, seguiram o curso de seus destinos independentes. A reação diante das fotos tiradas por Roman Vishniac, em 1938, da vida cotidiana nos guetos na Polônia é irresistivelmente afetada pela consciência de que, pouco depois, todas aquelas pessoas seriam mortas. Para o errante solitário, todos os rostos nas fotos estereotipadas, aninhadas atrás de um vidro e presas a uma lápide nos cemitérios dos países latinos, parecem conter um presságio da sua morte. As fotos declaram a inocência, a vulnerabilidade de vidas que rumam para a própria destruição, e esse vínculo entre fotografia e morte assombra todas as fotos de pessoas. Alguns trabalhadores berlinenses no filme Menschen am Sonntag [Pessoas aos domingos] (1929), de Robert Siodmak, se fazem fotografar no fim de um passeio de domingo. Um a um, eles se põem diante da caixa preta do fotógrafo ambulante — dão um sorriso forçado, se mostram nervosos, brincam, olham fixamente. A câmera do filme se demora em closes para nos permitir saborear a mobilidade de cada rosto; em seguida, vemos o rosto congelado em sua última expressão, embalsamado numa imagem parada. As fotos chocam, no correr do filme — transmutam, num instante, o presente no passado, a vida na morte. E um dos filmes mais inquietantes já feitos, La jetée (1963), de Chris Marker, é a história de um homem que prevê a própria morte, inteiramente narrada com imagens paradas.


Assim como o fascínio exercido pelas fotos é um lembrete da morte, é também um convite ao sentimentalismo. As fotos transformam o passado no objeto de um olhar afetuoso, embaralham as distinções morais e desarmam os juízos históricos por meio do páthos generalizado de contemplar o tempo passado. Um livro recente organiza em ordem alfabética as fotos de um incoerente grupo de celebridades como se fossem bebês ou crianças. Stalin e Gertrude Stein, dispostos em duas páginas vizinhas, parecem igualmente solenes e mimosos; Elvis Presley e Proust, outro par de jovens vizinhos de página, parecem-se ligeiramente; Hubert Humphrey (três anos) e Aldous Huxley (oito anos), lado a lado, têm em comum o fato de ambos já apresentarem os vigorosos exageros de caráter pelos quais viriam a ser conhecidos quando adultos. Nenhum retrato no livro é destituído de interesse e de encanto, em vista daquilo que conhecemos (incluindo as fotos, em muitos casos) sobre as criaturas famosas que aquelas crianças viriam a se tornar.

Para essa e outras ousadias similares da ironia surrealista, instantâneos ingênuos ou os retratos de estúdio mais convencionais são extremamente eficazes: tais imagens parecem ainda mais estranhas, comoventes, premonitórias.

Reabilitar fotos antigas, atribuindo a elas um contexto novo, tornou-se um importante ramo na indústria do livro. Uma foto é apenas um fragmento e, com a passagem do tempo, suas amarras se afrouxam. Ela se solta à deriva num passado flexível e abstrato, aberto a qualquer tipo de leitura (ou de associação a outras fotos). Uma foto também poderia ser descrita como uma citação, o que torna um livro de fotos semelhante a um livro de citações. E um modo cada vez mais comum de apresentar fotos em forma de livro consiste em associar fotos a citações.

Um exemplo: Down home (1972), de Bob Adelman, um retrato de um condado rural do Alabama, um dos mais pobres do país, realizado num período de cinco anos, na década de 1960. Exemplo da contínua predileção da fotografia documental pelos perdedores, o livro de Adelman descende de Let us now praise famous men, cuja graça era justamente ter por tema não pessoas famosas, mas sim esquecidas. Porém as fotos de Walker Evans vinham acompanhadas de uma prosa eloquente escrita (às vezes de modo rebuscado) por James Agee, que tencionava aprofundar a empatia do leitor com a vida dos meeiros. Ninguém pretende falar em nome dos temas de Adelman. (É típica das simpatias liberais que animam o livro sua pretensão de não adotar nenhum ponto de vista — ou seja, de ser uma visão inteiramente imparcial, sem empatia com seus temas). Down home poderia ser considerado uma versão em miniatura, em escala municipal, do projeto de August Sander: compilar um registro fotográfico objetivo de todo um povo. Mas aqueles espécimes falam, o que atribui a essas fotos despretensiosas um peso que não teriam por si sós. De par com suas palavras, suas fotos caracterizam os cidadãos do condado de Wilcox como pessoas obrigadas a proteger ou a expor seu território; sugerem que essas vidas são, no sentido literal, uma série de posições ou de poses.

Outro exemplo: Wisconsin death trip (1973), de Michael Lesy, que também constrói, com a ajuda de fotos, o retrato de um município rural — mas o tempo é o passado, entre 1890 e 1910, anos de grave recessão e de dificuldades econômicas, e o condado de Jackson é reconstruído por meio de objetos encontrados, que datam dessas décadas. Consistem em uma seleção de fotos tiradas por Charles Van Schaik, o fotógrafo comercial mais importante no condado, de quem cerca de 3 mil negativos de vidro se encontram guardados na Sociedade Histórica Estadual de Wisconsin; e em citações de fontes da época, sobretudo jornais locais e
registros do hospício municipal, além de obras de ficção sobre o Meio-Oeste. As citações nada têm a ver com as fotos, mas estão relacionadas a elas de um modo aleatório, intuitivo, como as palavras e os sons compostos por John Cage se combinam, na hora da apresentação, com os movimentos de dança já coreografados por Merce Cunningham.

As pessoas fotografadas em Down home são as autoras das declarações que lemos nas páginas de abertura. Negros e brancos, pobres e ricos, que apresentam pontos de vista contrastantes (em especial, no que concerne a classe e a raça). Mas enquanto as afirmações que acompanham as fotos de Adelman contradizem-se mutuamente, os textos que Lesy coligiu dizem todos a mesma coisa: que um espantoso número de pessoas, nos Estados Unidos da virada do século, era propenso a se enforcar nos estábulos, a jogar seus bebês dentro do poço, a cortar a garganta do cônjuge, a tirar a roupa no meio da rua principal, a queimar a colheita do vizinho e a cometer vários outros atos passíveis de levá-las à prisão ou ao hospício. No caso de alguém pensar que foi o Vietnã e todo o temor doméstico e a degradação da última década que tornaram os Estados Unidos um país de esperanças sombrias, Lesy argumenta que o sonho entrou em colapso no fim do século XIX — não nas cidades desumanas, mas nas comunidades rurais; que o país inteiro ficou enlouquecido, e por um longo tempo. É claro, Wisconsin death trip na verdade não prova nada. A força de seu argumento histórico é a força da colagem. Para as fotos perturbadoras, elegantemente erodidas pelo tempo, tiradas por Van Schaick, Lesy poderia ter encontrado outros textos do período — cartas de amor, diários — a fim de dar uma impressão diferente, talvez menos desesperada. Seu livro é estimulante, de um pessimismo polêmico ao gosto da moda e totalmente extravagante como história.

Vários autores americanos, em especial Sherwood Anderson, escreveram de forma igualmente polêmica sobre as misérias da vida nas cidades pequenas, aproximadamente na mesma época focalizada pelo livro de Lesy. Mas, embora obras de fotoficção como Wisconsin death trip expliquem menos do que muitos contos e romances, convencem mais, hoje, porque têm a autoridade de um documento. Fotos — e citações —, porque são tidas como pedaços da realidade, parecem mais autênticas do que amplas narrativas literárias. A única prosa que parece confiável para um número cada vez maior de leitores não é a escrita refinada de alguém como Agee, mas o registro cru — fala, editada ou não, registrada em fitas de gravador; fragmentos ou textos integrais de documentos subliterários (atas de tribunal, cartas, diários, relatos de casos psiquiátricos, etc.); relatos desleixados, autodepreciativos, não raro paranoicos, feitos em primeira pessoa. Existe uma suspeita rancorosa nos Estados Unidos em torno de tudo o que pareça literário, para não falar de uma crescente relutância, da parte dos jovens, em ler o que quer que seja, mesmo legendas em filmes estrangeiros ou o texto na contracapa dos discos, o que em parte explica o novo apetite por livros com poucas palavras e muitas fotos. (É claro, a fotografia em si reflete, cada vez mais, o prestígio do tosco, do autodepreciativo, do improvisado, do indisciplinado — do “antifotográfico”.)

“Todos os homens e mulheres que o escritor conheceu tornaram-se grotescos”, diz Anderson no prólogo de Winesburg, Ohio (1919), título que deveria ser, na origem, The book of the grotesque [O livro do grotesco]. E continua: “Os grotescos não eram todos horríveis. Alguns eram engraçados, outros, quase belos”. O surrealismo é a arte de generalizar o grotesco e depois descobrir as nuances (e os encantos) nisso. Nenhuma atividade está mais bem equipada do que a fotografia para exercitar o modo surrealista de olhar, e, no fim, acabamos por olhar todas as fotos de maneira surrealista. As pessoas andam revirando seus sótãos e os arquivos da cidade e as sociedades históricas estatais à cata de fotos antigas; redescobrem-se os fotógrafos mais obscuros e esquecidos. Os livros de fotos formam pilhas cada vez mais altas — reavaliando o passado perdido (daí a ascensão da fotografia amadora), tomando a temperatura do presente. As fotos oferecem história instantânea, sociologia instantânea, participação instantânea. Mas existe algo notavelmente anódino nessas novas formas de empacotar a realidade. A estratégia surrealista, que prometia um novo e empolgante posto de observação para a crítica radical da cultura moderna, transformou-se numa ironia fácil que democratiza todos os dados, que equipara sua dispersão de dados à história. O surrealismo só consegue oferecer um juízo reacionário; só consegue obter da história um acúmulo de singularidades, uma piada, uma paixão pela morte.
O gosto por citações (e pela justaposição de citações incongruentes) é um gosto surrealista.

Assim, Walter Benjamin — cuja sensibilidade surrealista é a mais profunda de que se tem registro — era um apaixonado colecionador de citações. Em seu magistral ensaio sobre Benjamin, Hannah Arendt conta que “nos anos 1930, nada nele era mais característico do que os caderninhos de capa preta que sempre trazia consigo e nos quais, incansavelmente, anotava na forma de citações aquilo que a vida e a leitura diárias lançavam em sua rede, à maneira de ‘pérolas’ e ‘coral’. Às vezes, lia-as em voz alta, mostrava-as como peças de uma coleção seleta e preciosa”. Embora coligir citações possa ser visto como mero mimetismo irônico — uma coleção sem vítimas, por assim dizer —, isso não deve ser interpretado como um sinal de que Benjamin desaprovava o objeto da ironia, ou de que não se deliciava com ele. Pois Benjamin tinha a convicção de que a própria realidade solicitava — e justificava — os ofícios outrora negligentes e inevitavelmente destrutivos do colecionador. Num mundo que está bem adiantado em seu caminho para tornar-se um vasto garimpo a céu aberto, o colecionador se transforma em alguém engajado num consciencioso trabalho de salvamento.

Como o curso da história moderna já solapou as tradições e fez em pedaços as totalidades vivas em que os objetos preciosos encontravam, outrora, seu lugar, o colecionador pode agora, em boa consciência, sair a escavar os fragmentos mais seletos e emblemáticos.

O passado mesmo, uma vez que as mudanças históricas continuam a se acelerar, transformou-se no mais surreal dos temas — tornando possível, como disse Benjamin, ver uma beleza nova no que está em via de desaparecer. Desde o início, os fotógrafos não só se atribuíram a tarefa de registrar um mundo em via de desaparecer como foram empregados com esse fim por aqueles mesmos que apressavam o desaparecimento. (Já em 1842, essa incansável valorizadora dos tesouros da arquitetura francesa, Viollet-le-Duc, contratou uma série de daguerreótipos da catedral de Notre Dame, antes de dar início à restauração.)

“Renovar o velho mundo”, escreveu Benjamin, “eis o mais profundo desejo do colecionador quando tem o impulso de comprar coisas novas.” Mas o velho não pode ser renovado — sem dúvida, não com citações; e esse é o aspecto digno de pena, quixotesco, da atividade fotográfica.

As ideias de Benjamin são dignas de menção porque ele foi o mais original e importante crítico da fotografia — apesar (e por causa) da contradição interna em sua apreciação da fotografia, que resulta do desafio apresentado por sua sensibilidade surrealista a seus princípios marxistas/brechtianos — e porque o projeto ideal do próprio Benjamin soa como uma versão sublimada da atividade do fotógrafo. Tal projeto era uma obra de crítica literária que deveria consistir inteiramente em citações e, assim, seria destituída de qualquer coisa capaz de atrair empatia. Um repúdio à empatia, um desdém contra mascatear mensagens, uma pretensão de ser invisível — essas são estratégias sancionadas pela maioria dos fotógrafos profissionais. A história da fotografia revela uma longa tradição de ambivalência a respeito de sua capacidade de tomar partido: adotar um dos lados é tido como minar sua perpétua premissa de que todos os temas têm validade e interesse. Mas aquilo que em Benjamin é uma torturante ideia de minúcia, destinada a permitir que o passado mudo fale com voz própria, com toda a sua complexidade insolúvel, se torna — quando generalizado, na fotografia — a descriação do passado (no próprio ato de preservá-lo), a fabricação de uma realidade nova, paralela, que torna o passado algo imediato, ao mesmo tempo que sublinha sua ineficácia cômica ou trágica, reveste a especificidade do passado com uma ironia ilimitada, transforma o presente no passado e o passado em condição pretérita.

Assim como o colecionador, o fotógrafo é animado por uma paixão que, mesmo quando aparenta ser paixão pelo presente, está ligada a um sentido do passado. Mas, enquanto as artes tradicionais da consciência histórica tentam pôr o passado em ordem, distinguindo o inovador do retrógrado, o central do marginal, o relevante do irrelevante ou meramente interessante, a abordagem do fotógrafo — a exemplo do colecionador — é assistemática, a rigor, antissistemática. O entusiasmo do fotógrafo por um tema não tem nenhuma relação essencial com seu conteúdo ou seu valor, aquilo que torna um tema classificável. É, acima de tudo, uma afirmação da existência do tema; sua honestidade (a honestidade de um olhar cara a cara, da ordenação de um grupo de objetos), que equivale ao padrão de autenticidade do colecionador; sua quididade — quaisquer virtudes que o tornam único. O olhar do fotógrafo profissional, sôfrego e superiormente obstinado, é um olhar que não só resiste à classificação e à avaliação tradicionais dos temas, como busca, de forma consciente, desafiá-las e subvertê-las. Por essa razão, sua abordagem do assunto em foco é bem menos aleatória do que em geral se alega.

Em princípio, a fotografia cumpre o ditame surrealista de adotar uma atitude intransigentemente igualitária em relação ao assunto. (Tudo é “real”.) De fato, a fotografia — a exemplo do próprio gosto surrealista preponderante — revelou um apego inveterado ao lixo, a coisas repugnantes, dejetos, superfícies esfoladas, bugigangas estranhas, kitsch. Assim, Atget especializou-se nas belezas periféricas de veículos estropiados, vitrines vistosas ou fantásticas, na arte brega dos cartazes de lojas e dos carrosséis, ornatos de pórticos, curiosas aldrabas de porta e grades de ferro batido, ornamentos de gesso na fachada de casas desmanteladas. O fotógrafo — e o consumidor de fotos — segue os passos do trapeiro, um dos personagens prediletos de Baudelaire, para o poeta moderno: Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que esmagou a seus pés, ele cataloga e recolhe. [...] Escolhe as coisas e faz uma seleção sábia; como um avarento que guarda seu tesouro, ele recolhe o refugo que vai assumir a forma de objetos úteis ou gratificantes entre os dentes da deusa da Indústria.

Fábricas desertas e avenidas atulhadas de anúncios parecem tão belas, pelo olho da câmera, como igrejas e paisagens pastorais. Mais belas, até, segundo o gosto moderno. Lembremos que foram Breton e outros surrealistas que inventaram a loja de mercadorias de segunda mão como um templo do gosto de vanguarda e alçaram a visita aos brechós à condição de um tipo de peregrinação estética. A acuidade do trapeiro surrealista estava orientada para achar belo o que os outros achavam feio ou sem interesse e relevância — bricabraque, objetos pop ou naïf, detritos urbanos.

Assim como a estruturação de uma prosa de ficção, de uma pintura, de um filme, por meio de citações — pensemos em Borges, em Kitaj, em Godard —, constitui um exemplo especializado do gosto surrealista, a prática cada vez mais comum de pendurar fotos na parede da sala de estar e dos quartos, onde antes pendiam reproduções de pinturas, é um sinal da larga difusão do gosto surrealista. Pois as próprias fotos satisfazem muitos critérios exigidos para a aprovação surrealista, por serem objetos ubíquos, baratos, pouco atraentes.

Uma pintura é cedida ou é comprada; uma foto é encontrada (em álbuns e gavetas), recortada (de jornais e revistas), ou facilmente tirada pela própria pessoa. E os objetos que são fotos não só proliferam de um modo que as pinturas não fazem como são, em certo sentido, esteticamente indestrutíveis. A última ceia, de Leonardo, que está em Milão, dificilmente tem, hoje, um aspecto melhor do que em seu tempo; tem um péssimo aspecto. As fotos, quando ficam escrofulosas, embaçadas, manchadas, rachadas, empalidecidas, ainda têm um bom aspecto; muitas vezes, um aspecto até melhor. (Nisso, como em outros pontos, a arte com que a fotografia mais se parece é a arquitetura, cujas obras estão sujeitas à mesma inexorável ascensão por efeito da passagem do tempo; muitos prédios, e não só o Parthenon, provavelmente têm um aspecto melhor como ruínas.)

O que é verdade para as fotos é verdade para o mundo visto fotograficamente. A fotografia estende a descoberta da beleza das ruínas feita pelos literatos do século XIX em um gosto genuinamente popular. E estende essa beleza para além das ruínas românticas, como aquelas formas glamourosas de decrepitude fotografadas por Laughlin, até as ruínas modernistas — a realidade em si mesma. O fotógrafo, queira ele ou não, está empenhado na atividade de catar antiguidades na realidade e as próprias fotos são antiguidades instantâneas. A foto oferece uma contrapartida moderna desse gênero arquitetônico tipicamente romântico, a ruína artificial: a ruína criada a fim de enfatizar o caráter histórico de uma paisagem, tornar a natureza sugestiva — sugestiva do passado.

A contingência das fotos confirma que tudo é perecível; a arbitrariedade da evidência fotográfica indica que a realidade é fundamentalmente inclassificável. A realidade é resumida em uma série de fragmentos fortuitos — um modo infinitamente sedutor e dolorosamente redutor de lidar com o mundo. Exemplo dessa relação, em parte jubilosa, em parte desdenhosa, com a realidade, que constitui a bandeira de luta do surrealismo, a insistência do fotógrafo em que tudo é real implica também que o real não é suficiente. Ao proclamar um descontentamento fundamental com a realidade, o surrealismo prognostica uma postura de alienação que, agora, se tornou uma atitude geral nas partes do mundo politicamente poderosas, industrializadas e munidas de câmeras. 


Por que mais a realidade seria julgada insuficiente, insípida, excessivamente ordenada, superficialmente racional? No passado, um descontentamento com a realidade se expressava como um anseio por outro mundo. Na sociedade moderna, um descontentamento com a realidade se expressa forçosamente, e do modo mais pressuroso, no anseio de reproduzir este mundo. Como se apenas por olhar a realidade na forma de um objeto — por meio da imagem fixa da fotografia — ela fosse realmente real, ou seja, surreal.


A fotografia acarreta, inevitavelmente, certo favorecimento da realidade. O mundo passa de estar “lá fora” para estar “dentro” das fotos. Nossas cabeças estão se tornando iguais àquelas caixas mágicas que Joseph Cornell encheu com pequenos objetos incongruentes cuja origem era uma França que ele jamais visitou. Ou como um amontoado de fotos de filmes antigos, das quais Cornell reuniu uma vasta coleção à luz do mesmo espírito surrealista: como relíquias nostálgicas da experiência original do cinema, como um meio de posse simbólica da beleza dos atores. Mas a relação de uma foto de filme com um filme é intrinsecamente enganosa.

Citar de um filme não é o mesmo que citar de um livro. Enquanto o tempo de leitura de um livro depende do leitor, o tempo de assistir a um filme é determinado pelo cineasta, e as imagens são percebidas como rápidas ou vagarosas apenas de acordo com sua edição. Desse modo, uma foto de um filme, que nos permite observar um único momento pelo tempo que quisermos, contradiz a própria forma do filme, assim como um conjunto de fotos que congela os momentos de uma vida ou de uma sociedade contradiz a forma destas, que é um processo, um fluxo no tempo. O mundo fotografado mantém com o mundo real a mesma relação essencialmente errônea que se verifica entre as fotos de filmes e os filmes. A vida não são detalhes significativos, instantes reveladores, fixos para sempre. As fotos sim.

A sedução das fotos, seu poder sobre nós, reside em que elas oferecem, a um só tempo, uma relação de especialista com o mundo e uma promíscua aceitação do mundo. Pois, graças à evolução da revolta modernista contra as normas estéticas tradicionais, essa relação de especialista com o mundo está profundamente envolvida na ascensão de padrões de gosto kitsch. Embora certas fotos, tomadas como objetos individuais, possuam o toque e a doce seriedade de obras de arte importantes, a proliferação de fotos constitui, em última instância, uma afirmação do kitsch. O olhar ultramóvel da fotografia lisonjeia o espectador, criando uma falsa sensação de ubiquidade, um ilusório domínio da experiência. Os surrealistas, que aspiram a ser radicais da cultura, e até revolucionários, estiveram muitas vezes sob a ilusão bem-intencionada de que podiam ser, e a rigor deviam ser, marxistas. Mas o esteticismo surrealista é embebido demais em ironia para ser compatível com a forma mais sedutora de moralismo do século XX. Marx censurava a filosofia por tentar apenas compreender o mundo em vez de tentar transformá-lo. Os fotógrafos, que trabalham nos termos da sensibilidade surrealista, sugerem a futilidade de sequer tentar compreender o mundo e, em lugar disso, propõem que o colecionemos.

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