quarta-feira, 20 de maio de 2020

Sobre Fotografia - Susan Sontag - 4º Capítulo

 

O HEROÍSMO DA VISÃO

Ninguém jamais descobriu a feiura por meio de fotos. Mas muitos, por meio de fotos, descobriram a beleza. Salvo nessas ocasiões em que a câmera é usada para documentar, ou para observar ritos sociais, o que move as pessoas a tirar fotos é descobrir algo belo. (O nome com que Fox Talbot patenteou a fotografia em 1841 foi calótipo: do grego kalos, belo.) Ninguém exclama: “Como isso é feio! Tenho de fotografá-lo”. Mesmo se alguém o dissesse, significaria o seguinte: “Acho essa coisa feia... bela”.

É comum, para aqueles que puseram os olhos em algo belo, lamentar-se de não ter podido fotografá-lo. O papel da câmera no embelezamento do mundo foi tão bem-sucedido que as fotos, mais do que o mundo, tornaram-se o padrão do belo. Anfitriões orgulhosos de sua casa podem perfeitamente mostrar fotos do lugar onde moram para deixar claro aos visitantes como se trata de uma casa, de fato, maravilhosa. Aprendemos a nos ver fotograficamente: ver a si mesmo como uma pessoa atraente é, a rigor, julgar que se ficaria bem numa fotografia. As fotos criam o belo e — ao longo de gerações de fotógrafos — o esgotam. Certas glórias da natureza, por exemplo, foram simplesmente entregues à infatigável atenção de amadores aficionados da câmera.

Pessoas saturadas de imagens tendem a achar piegas os pores do sol; agora, infelizmente, eles se parecem demais com fotos.


Muitos se sentem nervosos quando vão ser fotografados: não porque receiem, como os primitivos, ser violados, mas porque temem a desaprovação da câmera. As pessoas querem a imagem idealizada: uma foto que as mostre com a melhor aparência possível. 


Sentem-se repreendidas quando a câmera não devolve uma imagem mais atraente do que elas são na realidade. Mas poucos têm a sorte de ser “fotogênicos” — ou seja, parecer melhor nas fotos (mesmo quando não são maquiados ou beneficiados pela luz) do que na vida real. A circunstância de as fotos serem muitas vezes elogiadas por sua espontaneidade, por sua honestidade, indica que a maioria das fotos, é claro, não é espontânea. Em meados da década de 1840, o processo negativo-positivo de Fox Talbot começou a substituir o daguerreótipo (o primeiro processo fotográfico viável). Uma década depois, um fotógrafo alemão inventou a primeira técnica de retocar o negativo. Suas duas versões de um mesmo retrato — uma retocada, a outra não — espantaram a multidão na Exposition Universelle de Paris, em 1855 (a segunda feira mundial e a primeira com uma exposição de fotos). A notícia de que a câmera podia mentir tornou muito mais popular o ato de se deixar fotografar.

As consequências de mentir têm de ser mais cruciais para a fotografia do que jamais seriam para a pintura porque as imagens planas, em geral retangulares, que constituem as fotos reclamam para si uma condição de verdade que as pinturas nunca poderiam pretender. Uma pintura falsificada (cuja autoria é falsa) falsifica a história da arte. Uma fotografia falsificada (retocada ou adulterada, ou cuja legenda é falsa) falsifica a realidade. A história da fotografia poderia ser recapitulada como a luta entre dois imperativos distintos: embelezamento, que provém das belas-artes, e contar a verdade, que se mede não apenas por uma ideia de verdade isenta de valor, herança das ciências, mas por um ideal moralizado de contar a verdade, adaptado de modelos literários do século XIX e da (então) nova profissão do jornalismo independente. A exemplo do romancista pós-romântico e do repórter, o fotógrafo deveria desmascarar a hipocrisia e combater a ignorância. Uma tarefa para a qual a pintura era um
procedimento demasiado lento e demorado, por mais que muitos pintores do século XIX partilhassem a crença de Millet de que le beau c’est le vrai [o belo é o verdadeiro].

Observadores sagazes notaram que havia algo nu na verdade que uma foto transmitia, mesmo quando seu criador não tencionava ser intrometido. Em A casa das sete torres, Hawthorne faz o jovem fotógrafo Holgrave comentar sobre o retrato em daguerreótipo que, “embora lhe demos crédito apenas por retratar a mera superfície, na verdade ele desvela o caráter secreto com uma veracidade a que nenhum pintor jamais se atreveria, mesmo se pudesse detectá-lo”.

Livres da necessidade de fazer escolhas rigorosas (como faziam os pintores) de quais imagens eram dignas de se contemplar, devido à rapidez com que as câmeras registravam tudo, os fotógrafos transformaram a visão em um novo tipo de projeto: como se a visão, em si mesma, perseguida com avidez e dedicação, pudesse de fato reconciliar a pretensão de veracidade com a necessidade de achar o mundo belo. No passado, um objeto de assombro por causa da sua capacidade de apresentar fielmente a realidade, bem como, no início, um objeto de desprezo devido a sua escassa exatidão, a câmera terminou por promover uma brutal ascensão do valor das aparências. As aparências como a câmera as registra. As fotos não se limitam a apresentar a realidade — realisticamente. A realidade é que é examinada, e avaliada, em função da sua fidelidade às fotos. “A meu ver”, declarou Zola, o mais destacado ideólogo do realismo literário, em 1901, após quinze anos de fotografia amadora, “não se pode afirmar ter visto uma coisa antes de ter fotografado essa coisa.” Em lugar de simplesmente registrar a realidade, as fotos tornaram-se a norma para a maneira como as coisas se mostram a nós, alterando por conseguinte a própria ideia de realidade e de realismo. Os primeiros fotógrafos falavam como se a câmera fosse uma máquina copiadora; como se, embora as pessoas operassem as câmeras, fosse a câmera que visse. A invenção da fotografia foi saudada como um modo de aliviar o fardo de ter de acumular cada vez mais informações e impressões sensoriais. Em seu livro sobre fotógrafos, The pencil of nature [O lápis da natureza] (1844-6), Fox Talbot conta que a ideia da fotografia lhe ocorreu em 1833, na viagem pela Itália que se tornara obrigatória para ingleses de famílias ricas, como ele, enquanto fazia certos esboços da paisagem do lago Como. Ao desenhar com a ajuda de uma camera obscura, equipamento que projetava a imagem mas não a fixava, Talbot foi levado a refletir, diz ele, “sobre a inimitável beleza das imagens de pintura da natureza que as lentes de vidro da câmera lançam sobre o papel” e imaginar “se não seria possível gravar essas imagens naturais de modo durável”. A câmera sugeriu-se a Fox Talbot como uma nova forma de notação, cujo atrativo residia precisamente em ser impessoal — porquanto registrava uma imagem “natural”, ou seja, uma imagem que se manifesta “apenas por intermédio da Luz, sem nenhuma ajuda do lápis do artista”.

O fotógrafo era visto como um observador agudo e isento — um escrivão, não um poeta. Mas, como as pessoas logo descobriram que ninguém tira a mesma foto da mesma coisa, a suposição de que as câmeras propiciam uma imagem impessoal, objetiva, rendeu-se ao fato de que as fotos são indícios não só do que existe mas daquilo que um indivíduo vê; não apenas um registro mas uma avaliação do mundo. (A restrição da fotografia a uma visão impessoal continuou, é claro, a ter seus defensores. Entre os surrealistas, a fotografia foi vista como liberadora na medida em que ultrapassava a mera expressão pessoal: Breton começa seu ensaio de 1920 sobre Max Ernst classificando a escrita automática de “uma verdadeira fotografia do pensamento”, a câmera era vista como “um instrumento cego” cuja superioridade na “imitação da aparência” dera “um golpe mortal nos antigos modos de expressão, na pintura bem como na poesia”. No campo estético oposto, os teóricos da Bauhaus adotaram uma visão semelhante, tratando a fotografia como um ramo do design, assim como a arquitetura — criativa, mas impessoal, desembaraçada de inutilidades como a superfície pictórica, o toque pessoal. Em seu livro Pintura, fotografia, filme (1925), Moholy-Nagy elogia a câmera por impor a “higiene do óptico”, que no fim irá “abolir esse padrão de associação pictórica e imaginativa [...] que foi estampado na nossa visão pelos grandes pintores individuais”). Tornou-se claro que não existia apenas uma atividade simples e unitária denominada “ver” (registrada e auxiliada pelas câmeras), mas uma “visão fotográfica”, que era tanto um modo novo de as pessoas verem como uma nova atividade para elas desempenharem.

Um francês munido de uma câmera de daguerreótipo já cruzava o Pacífico em 1841, o mesmo ano em que o primeiro volume de Excursions daguerriennes: Vues et monuments les plus remarquables du globe [Excursões daguerrianas: as paisagens e os monumentos mais notáveis do mundo] foi publicado, em Paris. A década de 1850 foi a grande era do orientalismo fotográfico: Maxime Du Camp, ao fazer uma grande viagem pelo Oriente Médio em companhia de Flaubert, entre 1849 e 1851, concentrou sua atividade fotográfica em atrações como o colosso de Abu Simbel e o templo de Baalbek, e não na vida cotidiana dos felás. No entanto, logo os viajantes munidos de câmeras anexaram um tema mais amplo do que importantes paisagens e obras de arte. A visão fotográfica significava uma aptidão para descobrir a beleza naquilo que todos veem mas desdenham como algo demasiado comum.

Esperava-se que os fotógrafos fizessem mais do que apenas ver o mundo como é, mesmo suas maravilhas já aclamadas; deveriam criar um interesse, por meio de novas decisões visuais.

Existe um heroísmo peculiar difundido pelo mundo afora desde a invenção das câmeras: o heroísmo da visão. A fotografia inaugurou um novo modelo de atividade autônoma — ao permitir que cada pessoa manifeste determinada sensibilidade singular e ávida. Os fotógrafos partiram em seus safáris culturais, educativos e científicos, à cata de imagens chocantes. Tinham de capturar o mundo, qualquer que fosse o preço em termos de paciência e de desconforto, por meio dessa modalidade de visão ativa, aquisitiva, avaliadora e gratuita.

Alfred Stieglitz registra com orgulho que ficou três horas de pé, durante uma nevasca no dia 22 de fevereiro de 1893, “à espera do momento apropriado” para tirar sua famosa foto Fifth Avenue, winter [Quinta Avenida, inverno]. O momento apropriado é aquele em que se consegue ver coisas (sobretudo aquilo que todos já viram) de um modo novo. A busca tornou-se a marca registrada do fotógrafo na imaginação popular. Na década de 1920, o fotógrafo se tornara um herói moderno, como o aviador e o antropólogo — sem necessariamente ter saído de sua terra natal. Os leitores da imprensa popular eram convidados a unir-se ao “nosso fotógrafo” em uma “viagem de descoberta”, em visita a reinos novos como “o mundo visto de cima”, “o mundo através de lentes de aumento”, “as belezas de todo dia”, “o universo invisível”, “o milagre da luz”, “a beleza das máquinas”, a imagem que pode ser “encontrada na rua”.

A vida de todos os dias exaltada em apoteose e o tipo de beleza que só a câmera revela — um recanto de realidade material que o olho não enxerga normalmente ou não consegue isolar; ou a visão de cima, como a de um avião —, eis os alvos principais da conquista do fotógrafo.

Durante certo tempo, o close pareceu o mais original método de ver da fotografia. Os fotógrafos se deram conta de que, quando ceifavam a realidade mais rente ao solo, surgiam formas magníficas. No início da década de 1840, o versátil e engenhoso Fox Talbot não só compôs fotos nos gêneros praticados pela pintura — retrato, cena doméstica, paisagem urbana, paisagem rural, natureza-morta —, como também exercitou sua câmera numa concha do mar, nas asas de uma borboleta (ampliadas com a ajuda de um microscópio solar), numa seção de duas fileiras de livros em seu escritório. Mas seus temas são ainda identificáveis como uma concha, asas de borboleta, livros. Quando a visão comum foi mais violentada ainda — e o objeto foi isolado de seu contexto, o que o tornou abstrato —, novas convenções sobre o que era belo assumiram o poder. O que é belo tornou-se apenas aquilo que o olho não consegue ver (ou não vê): a visão fraturante, deslocadora, que só a câmera proporciona.

Em 1915, Paul Strand tirou uma foto a que deu o título de Desenhos abstratos formados por tigelas. Em 1917, Strand dedicou-se a closes das formas das máquinas e, ao longo da década de 1920, fez estudos da natureza em closes. A nova técnica — o auge foi entre 1920 e 1935 — parecia prometer delícias visuais ilimitadas. Com um efeito igualmente estonteante, ela atuou nos objetos domésticos, nos nus (tema que se poderia supor praticamente esgotado pelos pintores), nas minúsculas cosmogonias da natureza. A fotografia parecia ter encontrado seu papel grandioso como a ponte entre a arte e a ciência; e os pintores eram exortados a aprender com as belezas das microfotografias e das vistas aéreas no livro de Moholy-Nagy Von Material zur Architektur, publicado pela Bauhaus em 1928 e traduzido para o inglês como The new vision [A nova visão]. Foi o mesmo ano em que surgiu um dos primeiros livros de fotos a entrar na lista dos mais vendidos, de autoria de Albert Renger-Patzsch, intitulado Die Welt ist schön [O mundo é belo], que consistia em cem fotos, closes em sua maioria, cujos temas abrangiam desde uma folha de colocásia até as mãos de um oleiro. A pintura nunca fez uma promessa tão despudorada de comprovar a beleza do mundo.

O olho que abstrai — representado com brilho especial no período entre as duas guerras mundiais por uma parte da obra de Strand, bem como por Edward Weston e Minor White — parece ter sido possível apenas depois das descobertas feitas pelos pintores e escultores modernistas. Strand e Weston, que reconhecem uma similaridade entre suas maneiras de ver e aquelas de Kandinski e de Brancusi, podem ter sido atraídos para o lado mais afiado do estilo cubista em reação à suavidade das imagens de Stieglitz. Mas é igualmente verdade que a influência se deu na direção oposta. Em 1909, em sua revista Camera Work, Stieglitz registra a influência incontestável da fotografia sobre a pintura, embora cite apenas os impressionistas — cujo estilo de “definição enevoada” inspirou o seu próprio estilo. (A ampla influência que a fotografia exerceu sobre os impressionistas é um lugar-comum na história da arte. De fato, não chega a ser exagero dizer, como faz Stieglitz, que “os pintores impressionistas aderem a um estilo de composição que é estritamente fotográfico”. A tradução, feita pela câmera, da realidade em áreas extremamente polarizadas de luz e de sombra, o recorte livre ou arbitrário da imagem nas fotos, a indiferença dos fotógrafos quanto a tornar o espaço inteligível, sobretudo o espaço de fundo — essas foram as principais inspirações para as proclamações dos pintores impressionistas de um interesse científico nas propriedades da luz, para suas experiências com a perspectiva chapada, com os ângulos incomuns e com as formas descentralizadas, fatiadas pelo gume da imagem. (“Eles pintam a vida em retalhos e fragmentos”, como observou Stieglitz em 1909.) Um detalhe histórico: a primeira exposição impressionista, em abril de 1874, foi realizada no estúdio fotográfico de Nadar, no Boulevard des Capucines, em Paris). E Moholy-Nagy, em The new vision, aponta corretamente que “a técnica e o espírito da fotografia influenciaram, direta ou indiretamente, o cubismo”. Mas a despeito de todas as maneiras como, a partir da década de 1840, os pintores e os fotógrafos influenciaram-se e pilharam-se mutuamente, suas técnicas são basicamente opostas. O pintor constrói, o fotógrafo revela. Ou seja, a identificação do tema de um fotógrafo sempre domina nossa percepção do tema — como não ocorre, necessariamente, numa pintura. O tema da foto de Weston Folha de repolho, tirada em 1931, parece um pano pregueado; é preciso um título para identificá-lo. Assim, a imagem aponta para duas direções. A forma é agradável e é (surpresa!) a forma de uma folha de repolho. Se fosse um pano pregueado, não poderia ser tão belo. Já conhecemos essa beleza, das belas-artes. Portanto os atributos formais do estilo — questão central na pintura — são, no máximo, de importância secundária na fotografia, ao passo que aquilo que uma foto fotografa é sempre de importância capital. A suposição subjacente a todos os empregos da fotografia, a saber, que toda foto é um pedaço do mundo, significa que não sabemos como reagir a uma foto (se a imagem for visualmente ambígua: digamos, vista de muito perto ou de muito longe) antes de sabermos qual parte do mundo é aquela. O que parece uma simples coroa — a famosa foto tirada por Harold Edgeton em 1936 — se torna muito mais interessante quando descobrimos que se trata de um respingo de leite.

A fotografia é vista habitualmente como um instrumento para conhecer as coisas. Quando Thoreau escreveu que “não se pode dizer mais do que se vê”, tinha por certo que cabia à visão a supremacia entre os sentidos. Mas quando, várias gerações depois, a máxima de Thoreau é citada por Paul Strand a fim de louvar a fotografia, ressoa com um significado diferente. As câmeras não se limitam a tornar possível apreender mais por meio da visão (mediante a microfotografia e a teledetecção). Elas alteraram a própria visão, fomentando a ideia de ver por ver. Thoreau ainda vivia num mundo polissensual, embora a observação já tivesse começado a adquirir a estatura de um dever moral. Ele se referia a uma visão não desvinculada dos demais sentidos, e à visão no seu contexto (o contexto a que Thoreau denominava Natureza), ou seja, uma visão ligada a certos pressupostos no tocante àquilo que ele julgava digno de ser visto. Quando Strand cita Thoreau, supõe uma outra atitude com respeito ao sensorial: o aprimoramento didático da percepção, independente das ideias sobre o que é digno de ser visto, que inspira todos os movimentos modernistas nas artes.

A modalidade mais influente dessa atitude se encontra na pintura, a arte que a fotografia ultrapassou sem nenhum remorso e plagiou com entusiasmo desde o início, e com a qual ainda coexiste em uma rivalidade febril. Segundo a versão habitual, a fotografia usurpou a tarefa do pintor de fornecer imagens que transcrevessem a realidade de modo acurado. Por isso, “o pintor devia ser profundamente grato”, insiste Weston, e ver essa usurpação, como fizeram muitos fotógrafos antes e depois dele, como uma libertação, na verdade. Ao tomar para si a tarefa de retratar de forma realista, tarefa que era até então um monopólio da pintura, a fotografia liberou a pintura para a sua grande vocação modernista — a abstração. Mas o impacto da fotografia na pintura não foi tão claramente delimitado. Pois, quando a fotografia entrou em cena, a pintura já estava começando, por conta própria, sua lenta retirada do terreno da representação realista — Turner nasceu em 1775; Fox Talbot, em 1800 —, e o território que a fotografia veio a ocupar com um sucesso tão rápido e completo provavelmente teria sido abandonado de um modo ou de outro. (A instabilidade das realizações estritamente representacionais na pintura do século XIX fica demonstrada de modo mais claro pelo destino do retrato, que passou a tratar cada vez mais da própria pintura e não dos modelos retratados — e no fim deixou de interessar aos pintores mais ambiciosos, com notáveis e recentes exceções como Francis Bacon e Warhol, que fazem empréstimos abundantes de imagens fotográficas.)

O outro aspecto importante da relação entre pintura e fotografia omitido nos estudos mais aceitos é que as fronteiras do novo território conquistado pela fotografia começaram a expandir-se imediatamente, assim que alguns fotógrafos recusaram-se a ficar restritos a apresentar triunfos ultrarrealistas contra os quais os pintores não podiam competir. Desse modo, entre os dois famosos inventores da fotografia, Daguerre nunca imaginou ir além do alcance de representação do pintor naturalista, ao passo que Fox Talbot imediatamente depreendeu a faculdade da câmera para isolar formas que normalmente escapam ao olho nu e que a pintura jamais registrara. Aos poucos, os fotógrafos se uniram na busca de imagens mais abstratas, na declaração de escrúpulos reminiscentes da recusa do mimético como mero retrato, formulada pelos pintores modernistas. A vingança dos pintores, se quiserem. A reivindicação de muitos fotógrafos profissionais de que fazem algo totalmente distinto de simplesmente registrar a realidade é o sinal mais claro da imensa contrainfluência que a pintura exerceu sobre a fotografia. Mas, por mais que os fotógrafos tenham passado a partilhar algumas ideias sobre o valor intrínseco da percepção pela percepção e sobre a (relativa) insignificância do tema que dominaram a pintura avançada durante mais de um século, suas aplicações dessas ideias não podem repetir as aplicações da pintura. Pois é da natureza de uma foto não poder nunca transcender completamente seu tema, como pode uma pintura. Nem pode um fotógrafo transcender o visual propriamente dito, o que é, em certo sentido, o objetivo supremo da pintura modernista.

O tipo de atitude modernista mais relevante para a fotografia não se encontra na pintura — mesmo que tenha sido assim então (na época da sua conquista, ou libertação, pela fotografia), como sem dúvida é agora. Exceto por fenômenos marginais, como é o caso do super-realismo, um renascimento do fotorrealismo que não se contenta em apenas imitar fotos, mas pretende mostrar que a pintura pode alcançar uma ilusão de realidade ou uma verossimilhança ainda maior, a pintura é ainda amplamente regida por uma desconfiança daquilo que Duchamp chamou de meramente retiniano. O etos da fotografia — adestrar-nos (segundo a expressão de Moholy-Nagy) para a “visão intensiva” — parece mais próximo do etos da poesia moderna do que do etos da pintura. Enquanto a pintura se tornou cada vez mais conceitual, a poesia (desde Apollinaire, Eliot, Pound e William Carlos Williams) definiu-se cada vez mais como uma atividade ligada ao visual. (“Não há verdade senão nas coisas”, como declarou Williams.) O compromisso da poesia com o concreto e com a autonomia da linguagem do poema corresponde ao compromisso da fotografia com a visão pura. Ambos supõem descontinuidade, formas desarticuladas e unidade compensatória: arrancar as coisas de seu contexto (vê-las de um modo renovado), associar as coisas de modo elíptico, de acordo com as imperiosas mas não raro arbitrárias exigências da subjetividade.

Enquanto a maioria das pessoas que tiram fotos está apenas reforçando ideias aceitas sobre o belo, profissionais ambiciosos creem, em geral, contestá-las. Segundo modernistas heroicos como Weston, a aventura do fotógrafo é elitista, profética, subversiva, reveladora. Os fotógrafos afirmavam levar a efeito a tarefa blakiana de purificar os sentidos, “revelar aos outros o mundo vivo à sua volta”, como Weston descreveu sua própria obra, “mostrar-lhes aquilo que seus olhos insensíveis perderam”.

Embora Weston (como Strand) também afirmasse ser indiferente à questão de saber se a fotografia é uma arte, suas exigências quanto à fotografia ainda continham todas as suposições românticas sobre o fotógrafo como Artista. Na segunda década do século XX, alguns fotógrafos apropriaram-se ousadamente da retórica de uma arte de vanguarda: armados de câmeras, eles travavam uma dura batalha contra as sensibilidades conformistas, atendendo plenamente aos apelos de Pound no sentido de “renovar”. A fotografia, e não a “pintura mole e sem entranhas”, diz Weston com um desdém viril, está mais bem equipada para “sondar o espírito do nosso tempo”. Entre 1930 e 1932, os diários de Weston, ou Daybooks, estão repletos de premonições efusivas de mudanças iminentes e de declarações sobre a importância da terapia de choque visual que os fotógrafos administravam. “Velhos ideais desmoronam de todos os lados, e a precisa e indiferente visão da câmera é, e será cada vez mais, uma força mundial na
reavaliação da vida.”

A noção de Weston sobre o agon do fotógrafo partilha muitos temas com o vitalismo heroico da década de 1920, popularizado por D. H. Lawrence: afirmação da vida sensual, ira contra a hipocrisia sexual da burguesia, defesa farisaica do egotismo a serviço da própria vocação espiritual, apelos viris em prol de uma união com a natureza. (Weston chama a fotografia de “um modo de autodesenvolvimento, um meio de descobrir-se e de identificar-se com todas as manifestações de formas básicas — com a natureza, com a fonte”.) Mas, enquanto Lawrence desejava restabelecer o conjunto da apreciação sensorial, o fotógrafo — mesmo um fotógrafo cujas paixões parecem tão reminiscentes das paixões de Lawrence — insiste forçosamente na preponderância de um sentido: a visão. E, ao contrário do que Weston afirma, o hábito da visão fotográfica — de olhar a realidade como uma série de fotos potenciais — cria, em lugar de uma união, um rompimento com a natureza.

A visão fotográfica, quando se examinam suas aspirações, revela-se sobretudo a prática de um tipo de visão dissociativa, um hábito subjetivo reforçado pelas discrepâncias objetivas entre o modo como a câmera e o olho humano focalizam e julgam a perspectiva. Essas discrepâncias foram bastante notadas pelo público nos primeiros tempos da fotografia. Assim que começaram a pensar fotograficamente, as pessoas pararam de falar de distorção fotográfica, como então se chamava. (Hoje, como observou William Ivins, Jr., as pessoas de fato buscam tais distorções.) Assim, um dos êxitos mais duradouros da fotografia foi sua estratégia de transformar seres vivos em coisas, e coisas em seres vivos. As pimentas que Weston fotografou em 1929 e 1930 são voluptuosas de um modo que raramente acontece em suas fotos de mulheres nuas. Tanto os corpos nus como as pimentas são fotografados pelo jogo de formas — mas o corpo é mostrado, caracteristicamente, curvado sobre si mesmo, todas as extremidades cortadas, a carne tão opaca quanto o permitem a iluminação e o foco, reduzindo assim sua sensualidade e elevando o caráter abstrato da forma do corpo; a pimenta é vista em close mas em sua inteireza, a pele lustrosa ou oleosa, e o resultado é uma descoberta da sugestão erótica de uma forma ostensivamente neutra, uma ampliação de sua palpabilidade aparente.

Foi a beleza das formas na fotografia industrial e científica que deslumbrou os projetistas da escola da Bauhaus, e, de fato, a câmera registrou poucas imagens formalmente mais interessantes do que aquelas produzidas por metalurgistas ou cristalógrafos. Mas a maneira de tratar a fotografia proposta pela Bauhaus não prevaleceu. Hoje, ninguém supõe que a beleza revelada nas fotos esteja condensada na microfotografia científica. Segundo a tradição dominante do belo na fotografia, a beleza requer a marca de uma decisão humana: a decisão de que isso daria uma boa foto e de que a boa foto formularia um comentário. Constatou-se que revelar a forma elegante de uma privada, tema de uma série de fotos feitas por Weston no México, em 1925, era mais importante do que a magnitude poética de um floco de neve ou de um fóssil de carvão.

Para Weston, a beleza em si era subversiva — como pareceu se confirmar quando algumas pessoas se escandalizaram com seus nus ambiciosos. (De fato, foi Weston — seguido por André Kertész e Bill Brandt — que tornou respeitável a foto de nus.) Hoje, os fotógrafos tendem antes a enfatizar a humanidade comum de suas revelações. Embora os fotógrafos não tenham deixado de procurar a beleza, não se crê mais que a fotografia, sob a égide da beleza, produza uma ruptura psíquica. Modernistas ambiciosos, como Weston e Cartier-Bresson, que entendem a fotografia como um modo genuinamente novo de ver (preciso, inteligente e até científico), foram contestados por fotógrafos de uma geração posterior, como Robert Frank, que almejam para a câmera um olhar que não seja penetrante, mas sim democrático, que não reivindique estabelecer novos padrões de visão. A afirmação de Weston de que “a fotografia retirou as vendas para uma nova visão do mundo” parece típica das esperanças excessivamente oxigenadas do modernismo, em todas as artes, durante a primeira terça parte do século XX — esperanças abandonadas a partir de então. Embora a câmera tenha de fato produzido uma revolução psíquica, ela certamente não se deu no sentido positivo e romântico que Weston imaginava.

Na proporção em que a fotografia de fato descasca o envoltório seco da visão rotineira, cria um outro hábito de ver: intenso e frio, solícito e desprendido; encantado pelo detalhe insignificante, viciado na incongruência. Mas a visão fotográfica tem de ser constantemente renovada por meio de novos choques, seja de tema, seja de técnica, de modo a produzir a impressão de violar a visão comum. Pois, desafiada pelas revelações dos fotógrafos, a visão tende a se acomodar às fotos. O ponto de vista de vanguarda de Strand, na década de 1920, e de Weston, no final da década de 1920 e início da de 1930, foi rapidamente assimilado. Seus rigorosos estudos em close de plantas, conchas, folhas, árvores murchas, algas, troncos levados pelo rio, pedras erodidas, asas de pelicano, raízes nodosas de cipreste e mãos nodosas de trabalhadores tornaram-se clichês de um modo de ver meramente fotográfico.

Aquilo que, antes, demandou um olho muito inteligente para enxergar, agora qualquer um pode ver. Instruídos por fotos, todos são capazes de visualizar esse conceito outrora puramente literário, a geografia do corpo: por exemplo, fotografar uma mulher grávida de modo que seu corpo pareça um morro, fotografar um morro de modo que pareça o corpo de uma mulher grávida.

Uma familiaridade maior não explica, de todo, por que certas convenções de beleza se desgastam ao passo que outras perduram. O desgaste é moral, bem como perceptual. Strand e Weston jamais imaginariam como essas ideias de beleza poderiam tornar-se banais, embora isso pareça inevitável quando se insiste — como fez Weston — em um ideal de beleza tão maleável como é a perfeição. Enquanto o pintor, segundo Weston, sempre “tentou aperfeiçoar a natureza por uma autoimposição”, o fotógrafo “provou que a natureza oferece um número interminável de ‘composições’ perfeitas — ordem em toda parte”. Por trás da atitude beligerante dos modernistas em favor de um purismo estético, encontra-se uma aceitação do mundo espantosamente generosa. Para Weston, que passou a maior parte de sua vida fotográfica no litoral da Califórnia, perto de Carmel, a Walden da década de 1920, era relativamente fácil achar beleza e ordem, ao passo que para Aaron Siskind, fotógrafo da geração seguinte à de Strand, e nova-iorquino, que começou a carreira tirando fotos de arquitetura e de tipos humanos da cidade, a questão era criar uma ordem. “Quando faço uma foto”, escreve Siskind, “quero que seja um objeto inteiramente novo, completo e autônomo, cuja condição básica é a ordem.” Para Cartier-Bresson, tirar fotos é “encontrar a estrutura do mundo — regozijar-se no puro prazer da forma”, desvendar que “em todo este caos, existe ordem”. (Talvez seja impossível falar sobre a perfeição do mundo sem soar hipócrita.) Mas exibir a perfeição do mundo era uma ideia de beleza demasiado sentimental, demasiado aistórica, para respaldar a fotografia. Parece inevitável que Weston, mais comprometido com a abstração e com a descoberta de formas do que Strand jamais chegou a ser, produzisse uma obra muito mais limitada do que a de Strand. Assim, Weston nunca se sentiu motivado a produzir uma fotografia socialmente consciente e, exceto no período entre 1923 e 1927, que passou no México, evitou as cidades. Strand, como Cartier-Bresson, sentia-se atraído pela desolação pitoresca e pelos estragos da vida urbana. Mas, mesmo longe da natureza, tanto Strand como Cartier-Bresson (poderíamos citar também Walker Evans) ainda fotografam com o mesmo olhar meticuloso que distingue a ordem em toda parte.

A opinião de Stieglitz, Strand e Weston — de que as fotos deveriam ser, antes de tudo, belas (ou seja, compostas com beleza) — parece, hoje, pobre, obtusa demais diante da verdade da desordem: assim como o otimismo a respeito da ciência e da tecnologia que está por trás das ideias da Bauhaus sobre fotografia parece quase pernicioso. As imagens de Weston, conquanto admiráveis, conquanto belas, tornaram-se menos interessantes para muita gente, ao passo que as fotos tiradas pelos fotógrafos primitivos, ingleses e franceses, de meados do século, e por Atget, por exemplo, despertam mais entusiasmo do que nunca. A avaliação de Atget como “um técnico deficiente”, feita por Weston em seus Daybooks, reflete perfeitamente a coerência da visão de Weston e seu afastamento do gosto contemporâneo. “Os halos destruíram muita coisa e a retificação da cor não é boa”, anota Weston; “seu instinto para o tema é aguçado, mas seu registro é fraco — sua construção, imperdoável [...] muitas vezes, tem-se a impressão de que ele deixou escapar o que mais interessava”. Com sua devoção à reprodução perfeita, Weston carece de gosto contemporâneo, ao contrário de Atget e de outros mestres da tradição popular da fotografia. A técnica imperfeita passou a ser apreciada exatamente porque rompe a entorpecida equação entre Natureza e Beleza. A natureza tornou-se antes um tema de nostalgia e de indignação do que um objeto de contemplação, como se observa na distância de gosto que separa, de um lado, as paisagens majestosas de Ansel Adams (o discípulo mais conhecido de Weston) e a última leva importante de fotos na tradição da Bauhaus, A anatomia da natureza (1965), de Andreas Feininger e, de outro lado, as imagens fotográficas contemporâneas da natureza profanada.

Assim como esses ideais formalistas de beleza parecem, em retrospecto, ligados a um certo estado de ânimo histórico, a saber, o otimismo a respeito da era moderna (a visão nova, a era nova), também o declínio dos padrões da pureza fotográfica representado por Weston e pela escola da Bauhaus acompanhou o relaxamento moral vivido nas décadas recentes. No ânimo histórico atual de desencanto, pode-se extrair cada vez menos sentido da ideia formalista de beleza atemporal. Modelos de beleza mais sombrios, delimitados pelo tempo, tornaram-se predominantes, inspirando uma reavaliação da fotografia do passado; e, numa aparente reação violenta contra o Belo, as gerações recentes de fotógrafos preferem mostrar a desordem, preferem destilar uma anedota, em geral perturbadora, a isolar uma “forma simplificada” (expressão de Weston), em última instância, tranquilizadora. Mas a despeito dos objetivos declarados da fotografia indiscreta, sem pose, não raro tosca, de revelar a verdade e não a beleza, a fotografia ainda embeleza. De fato, o triunfo mais duradouro da fotografia foi sua aptidão para descobrir a beleza no humilde, no inane, no decrépito. De um modo ou de outro, o real tem um páthos. E esse páthos é — beleza. (A beleza dos pobres, por exemplo.)

A célebre foto tirada por Weston de um de seus filhos tão adorados, Torso de Neil (1925), parece bela por causa da harmonia de proporções de seu tema, por causa de sua composição arrojada e de sua iluminação sutil — uma beleza que é fruto da habilidade e do gosto. As fotos de Jacob Riis, grosseiramente iluminadas com um flash, tiradas entre 1887 e 1890, parecem belas por causa da força de seu tema, encardidos e amorfos moradores de cortiços em Nova York, de idade indeterminada, e por causa da autenticidade de seu enquadramento “errado” e dos contrastes bruscos produzidos pela falta de controle sobre os valores de tonalidade — uma beleza que é fruto do amadorismo e da inadvertência. A avaliação de fotos é sempre imbuída de critérios estéticos dúbios como esses. Julgada, a princípio, segundo as normas da pintura, que supõem um projeto consciente e a supressão do supérfluo, as realizações características da visão fotográfica eram, até muito pouco tempo atrás, consideradas idênticas à obra daqueles fotógrafos relativamente pouco numerosos que, por meio da reflexão e do esforço, conseguiram transcender a natureza mecânica da câmera para atender aos padrões da arte. Mas agora está claro que não existe um conflito inerente entre o uso mecânico ou ingênuo da câmera e a beleza formal de uma ordem muito elevada, não existe nenhum tipo de foto em que tal beleza não possa revelar-se presente; um instantâneo funcional despretensioso pode ser tão interessante, em termos visuais, tão eloquente, tão belo quanto as mais aclamadas fotos de belas-artes. Essa democratização dos padrões formais é a contrapartida lógica da democratização da noção de beleza na fotografia. Tradicionalmente associada a modelos exemplares (a arte representativa dos gregos clássicos só mostrava jovens, o corpo em sua perfeição), a beleza passou a ser vista, graças aos fotógrafos, como existente em toda parte.

Além das pessoas que se embelezam para a câmera, os feios e os espontâneos receberam seu quinhão de beleza.

Para os fotógrafos, não existe, enfim, nenhuma diferença — nenhuma vantagem estética de peso — entre o esforço para embelezar o mundo e o contra esforço para rasgar-lhe a máscara.

Mesmo os fotógrafos que desdenhavam retocar seus retratos — questão de honra para os retratistas ambiciosos, a partir de Nadar — tendiam a proteger seu modelo, de certa maneira, contra o olhar excessivamente revelador da câmera. E um dos esforços típicos dos fotógrafos retratistas, profissionalmente levados a preservar rostos famosos (como o de Garbo), que são de fato ideais, consiste em procurar rostos “autênticos”, em geral buscados entre pessoas anônimas, pobres, gente socialmente indefesa, idosos, loucos — pessoas indiferentes à agressão da câmera (ou sem força para protestar). Dois retratos de vítimas urbanas tirados por Strand, em 1916, Mulheres cegas e Homem, estão entre os primeiros resultados dessa pesquisa feita em close. Nos piores anos da depressão alemã, Helmar Lerski fez todo um catálogo de rostos desolados, publicado com o título Köpfe des Alltags [Rostos cotidianos] em 1931. Os modelos pagos para o que Lerski chamou de “estudos objetivos de personalidade” — com suas rudes revelações de poros excessivamente abertos, rugas, manchas na pele — eram trabalhadores desempregados, convocados por uma agência de empregos, mendigos, varredores de rua, mascates e lavadeiras.

A câmera pode ser leniente; ela é também uma especialista em crueldade. Mas sua crueldade só produz outro tipo de beleza, segundo as preferências surrealistas que regem o gosto fotográfico. Assim, se a fotografia de moda baseia-se no fato de que algo pode ser mais belo numa foto do que na vida real, não é surpreendente que certos fotógrafos que servem à moda também sejam levados ao não-fotogênico. Existe uma complementaridade perfeita entre as fotos de moda de Avedon, que lisonjeiam, e a obra em que ele se revela como Aquele Que Se Recusa a Lisonjear — por exemplo, os retratos elegantes e cruéis feitos por Avedon, em 1972, da morte de seu pai. A função tradicional da pintura de retratos, embelezar ou idealizar o tema, persiste como o objetivo da fotografia cotidiana e comercial, mas teve uma carreira muito mais limitada na fotografia tida como artística. Em termos gerais, as honras foram para as Cordélias.

Como veículo de determinada reação contra o convencionalmente belo, a fotografia serviu para ampliar imensamente a nossa ideia do que é esteticamente agradável. Às vezes essa reação se dá em nome da verdade. Outras vezes, em nome da sofisticação ou de outras mentiras mais bonitas: assim, a fotografia de moda foi desenvolvendo, ao longo de mais de uma década, um repertório de gestos paroxísmicos que mostra a inegável influência do surrealismo. (“A beleza será convulsiva”, escreveu Breton, “ou não existirá.”) Mesmo o mais compassivo fotojornalismo sofre uma pressão para satisfazer, ao mesmo tempo, dois tipos de expectativas: as que nascem de nosso modo amplamente surrealista de olhar todas as fotos e aquelas criadas por nossa crença de que certas fotos fornecem informações genuínas e importantes a respeito do mundo. As fotos que W. Eugene Smith tirou no fim da década de 1960 na aldeia de pescadores japoneses de Minamata, onde a maioria dos habitantes é aleijada e morre aos poucos, envenenada por mercúrio, nos comovem porque documentam um sofrimento que desperta nossa indignação — e nos distanciam porque são esplêndidas fotos de Agonia, em conformidade com os padrões surrealistas de beleza. A fotografia tirada por Smith de um jovem agonizante que se contorce nos braços da mãe é uma Pietà para o mundo das vítimas da peste que Artaud invoca como o verdadeiro tema da dramaturgia moderna; de fato, todas as fotos da série constituem possíveis imagens para o Teatro da Crueldade de Artaud.

Como cada foto é apenas um fragmento, seu peso moral e emocional depende do lugar em que se insere. Uma foto muda de acordo com o contexto em que é vista: assim, as fotos de Minamata tiradas por Smith parecerão diferentes numa cópia de contato, numa galeria, numa manifestação política, num arquivo policial, numa revista de fotos, numa revista de notícias comuns, num livro, na parede de uma sala de estar. Cada uma dessas situações sugere um uso diferente para as fotos mas nenhuma delas pode assegurar seu significado. A exemplo do que Wittgenstein afirmou sobre as palavras, ou seja, que o significado é o uso — o mesmo vale para cada foto. E é dessa maneira que a presença e a proliferação de todas as fotos contribuem para a erosão da própria noção de significado, para esse loteamento da verdade em verdades relativas, que é tido como algo fora de dúvida pela moderna consciência liberal.

Fotógrafos imbuídos de preocupação social supõem que sua obra possa transmitir algum tipo de significado estável, possa revelar a verdade. Mas, em parte por ser a fotografia sempre um objeto num contexto, tal significado está destinado a se esvair; ou seja, o contexto que molda qualquer uso imediato da fotografia — em especial o político — é imediatamente seguido por contextos em que tais usos são enfraquecidos e se tornam cada vez menos relevantes. Uma das principais características da fotografia é o processo pelo qual os usos originais são modificados e, por fim, suplantados por usos subsequentes — de modo mais notável, pelo discurso da arte, no qual qualquer foto pode ser absorvida. E, por serem também imagens, algumas fotos nos reportam, desde o início, tanto a outras imagens quanto à vida. A foto que as autoridades bolivianas transmitiram à imprensa do mundo, em outubro de 1967, do corpo de Che Guevara estirado no interior de um estábulo, sobre uma padiola, em cima de uma cuba de cimento, cercado por um coronel boliviano, um agente do serviço secreto americano e diversos jornalistas e soldados, não só resumia a amarga realidade da história contemporânea da América Latina como tinha uma inadvertida semelhança, como assinalou John Berger, com as pinturas O Cristo morto, de Mantegna, e Lição de anatomia do professor Tulp, de Rembrandt. O que há de impressionante na foto decorre, em parte, do que ela partilha, em termos de composição, com essas pinturas. De fato, a própria força com que a foto se inscreve em nossa memória indica seu potencial para se despolitizar, para tornar-se uma imagem atemporal.

O que de melhor se escreveu sobre a fotografia partiu da mão de moralistas — marxistas ou pretensos marxistas — obcecados por fotos mas incomodados com a maneira como a fotografia inexoravelmente embeleza. Como observou Walter Benjamin em 1934, numa palestra proferida em Paris no Instituto de Estudos do Fascismo, a câmera é agora incapaz de fotografar um prédio residencial ou um monte de lixo sem transfigurá-lo. Para não falar de uma represa num rio ou de uma fábrica de cabos de eletricidade: diante disso, a fotografia só consegue dizer: “Que belo”. [...] Ela conseguiu tornar abjeta a própria pobreza, ao tratá-la de um modo elegante, tecnicamente perfeito, e transformá-la em objeto de prazer.

Os moralistas que amam fotos sempre esperam que as palavras salvem a imagem. (O caminho inverso ao do curador de museu que, a fim de transformar em arte a obra de um fotojornalista, expõe as fotos sem as legendas originais.) Assim, Benjamin pensava que a legenda correta ao pé da imagem poderia “resgatá-la dos estragos do modismo e conferir a ela um valor de uso revolucionário”. Ele conclamava os escritores a começar a tirar fotos, para mostrar o caminho.

Escritores imbuídos de preocupação social não se afeiçoaram às câmeras, mas muitas vezes são convocados, ou se apresentam voluntariamente, para decifrar a verdade que as fotos testemunham — como fez James Agee nos textos que escreveu para acompanhar as fotos de Walker Evans em Let us now praise famous men, ou como fez John Berger em seu ensaio sobre a foto de Che Guevara morto, ensaio que é, a rigor, uma longa legenda que tenta estabelecer as associações políticas e o significado moral de uma foto que Berger julgou bastante satisfatória em termos estéticos, e bastante sugestiva em termos iconográficos. O curta-metragem de Godard e Gorin Uma carta para Jane (1972) redunda em uma espécie de contralegenda para uma foto — uma crítica mordaz a uma foto de Jane Fonda, tirada durante uma visita ao Vietnã do Norte. (O filme é também uma lição exemplar de como ler qualquer foto, como decifrar a natureza não inocente do enquadramento, do ângulo, do foco de uma foto.) O que a foto significou — ela mostra Fonda escutando com uma expressão de tristeza e compaixão enquanto uma vietnamita anônima relata os estragos causados pelo bombardeio americano — quando publicada na revista ilustrada francesa L’Express invertia, em certos aspectos, o sentido que tinha para os norte-vietnamitas que a divulgaram. Porém ainda mais decisivo do que o modo como a foto foi alterada por seu novo contexto é o modo como seu valor de uso revolucionário para os norte-vietnamitas foi sabotado por aquilo que L’Express ofereceu a título de legenda. “Esta foto, como qualquer foto”, apontam Godard e Gorin, “é fisicamente muda. Fala pela boca do texto que vem escrito abaixo.” De fato, as palavras falam mais alto do que as imagens. As legendas tendem a exagerar os dados da visão; mas nenhuma legenda consegue restringir, ou fixar, de forma permanente, o significado de uma imagem.

O que os moralistas exigem de uma foto é que ela faça aquilo que nenhuma foto é capaz de fazer — falar. A legenda é a voz que falta, e espera-se que ela fale a verdade. Mas mesmo uma legenda inteiramente acurada não passa de uma interpretação, necessariamente limitadora, da foto à qual está ligada. E a legenda é uma luva que se veste e se retira muito facilmente. Não pode impedir que qualquer tese ou apelo moral que uma foto (ou conjunto de fotos) pretende respaldar venha a ser minado pela pluralidade de significados que toda foto comporta, ou abrandado pela mentalidade aquisitiva implícita em toda atividade de tirar — ou colecionar — fotos e pela relação estética com seus temas, que todas as fotos inevitavelmente propõem.

Mesmo as fotos que falam de modo tão pungente sobre um momento histórico específico nos dão, também, uma posse vicária de seus temas, sob o aspecto de uma espécie de eternidade: o belo. A foto de Che Guevara é, por fim... bela, como era o homem. Assim também são as pessoas de Minamata. Assim também o garotinho judeu fotografado em 1943 durante uma prisão em massa no gueto de Varsóvia, com os braços levantados e uma solene expressão de terror — foto que a heroína muda do filme Persona, de Bergman, levou consigo para o hospital de doentes mentais a fim de meditar, como uma foto-suvenir da essência da tragédia.

Numa sociedade de consumidores, mesmo a obra fotográfica mais bem-intencionada e devidamente legendada redunda na descoberta da beleza. A composição atraente e a perspectiva elegante das fotos tiradas por Lewis Hine de crianças exploradas em fábricas e minas americanas na virada do século sobrepujam facilmente a relevância de seu tema.

Seguros habitantes de classe média dos recantos mais ricos do mundo — regiões onde se tira e se consome a maior parte das fotos — têm notícia dos horrores do mundo sobretudo por meio da câmera: as fotos podem afligir e afligem. Mas a tendência estetizadora da fotografia é tamanha que o veículo que transmite sofrimento termina por neutralizá-lo. As câmeras miniaturizam a experiência, transformam a história em espetáculo. Assim como criam solidariedade, fotos subtraem solidariedade, distanciam as emoções. O realismo das fotografias cria uma confusão a respeito do real, que é (a longo prazo) moralmente analgésica bem como (a longo e a curto prazo) sensorialmente estimulante. Portanto clareia nossos olhos.

Esta é a visão nova de que todos falaram.

Quaisquer que sejam as reivindicações morais em favor da fotografia, seu principal efeito é converter o mundo numa loja de departamentos ou num museu sem paredes em que todo tema é degradado na forma de um artigo de consumo e promovido a um objeto de apreciação estética.

Por meio da câmera, as pessoas se tornam clientes ou turistas da realidade — ou Réalités, como sugere o nome da revista fotográfica francesa, pois a realidade é entendida como plural, fascinante e à disposição de quem vier pegar. Ao trazer o exótico para perto, ao tornar exóticos o familiar e o doméstico, as fotos tornam disponível o mundo inteiro como um objeto de apreciação. Para os fotógrafos que não estão restritos a projetar suas próprias obsessões, existem momentos arrebatadores, temas belos, em toda parte. Os temas mais heterogêneos são, então, reunidos na unidade fictícia oferecida pela ideologia do humanismo. Desse modo, segundo um crítico, a grandeza das fotos de Paul Strand no último período da vida — quando ele passou das esplêndidas descobertas do olhar abstrato para as tarefas turísticas de criar antologias do mundo, cumpridas pela fotografia — consiste no fato de que “suas pessoas, sejam párias do Bowery, peões do México, fazendeiros da Nova Inglaterra, camponeses italianos, artesãos franceses, pescadores bretões ou das ilhas Hébridas, felás egípcios, o idiota da aldeia ou o grande Picasso, todas têm o toque do mesmo predicado heroico — a humanidade”. O que é humanidade? É um predicado que as coisas possuem, em comum, quando vistas como fotos.

O impulso de tirar fotos é, em princípio, indiscriminado, pois a prática da fotografia está agora identificada com a ideia de que tudo no mundo poderia se tornar interessante por meio da câmera. Mas esse predicado de ser interessante, assim como o de manifestar humanidade, é vazio. A aquisição fotográfica do mundo, com sua produção ilimitada de anotações sobre a realidade, torna tudo homólogo. A fotografia não é menos redutora quando se faz compiladora do que quando revela formas belas. Ao desvelar a coisificação do ser humano, a humanidade das coisas, a fotografia transforma a realidade em tautologia. Quando Cartier-Bresson vai à China, mostra que há pessoas na China e que elas são os chineses.

Muitas vezes se invocam fotos como um apoio à compreensão e à tolerância. No jargão humanista, a mais elevada vocação da fotografia consiste em explicar o homem para o homem. Mas fotos não explicam; constatam. Robert Frank estava apenas sendo honesto quando declarou que, “para produzir um documento contemporâneo autêntico, o impacto visual deveria ser de tal ordem que anulasse a explicação”. Se fotos são mensagens, a mensagem é, a um só tempo, transparente e misteriosa. “Uma foto é um segredo sobre um segredo”, observou Arbus. “Quanto mais diz, menos você sabe.” Apesar da ilusão de oferecer compreensão, ver por meio de fotos desperta em nós, na verdade, uma relação aquisitiva com o mundo, que alimenta a consciência estética e fomenta o distanciamento emocional.

A força de uma foto reside em que ela mantém abertos para escrutínio instantes que o fluxo normal do tempo substitui imediatamente. O congelamento do tempo — a estase insolente, pungente, de toda foto — produziu novos cânones de beleza, mais inclusivos. Porém as verdades que podem ser transmitidas em um momento dissociado, por mais decisivas ou significantes que sejam, têm uma relação muito estreita com as necessidades de compreensão.

Ao contrário do que é sugerido pela defesa humanista da fotografia, a capacidade que a câmera tem de transformar a realidade em algo belo decorre de sua relativa fraqueza como meio de comunicar a verdade. A razão por que o humanismo se tornou a ideologia dominante dos fotógrafos profissionais ambiciosos — retirando do caminho as justificações formalistas de sua busca de beleza — é que ele mascara as confusões sobre verdade e beleza subjacentes à atividade fotográfica.

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