segunda-feira, 4 de maio de 2020

A esquerda que não teme dizer seu nome....


A esquerda que não teme dizer seu nome (Parte I) – Vladimir Safatle
Sinopse: A esquerda que não teme dizer seu nome lança um desafio político de grande envergadura: reafirmar os princípios que orientam historicamente o pensamento da esquerda e renová-los, a partir das demandas da época.
Para o ensaísta e professor de filosofia Vladimir Safatle, a esquerda, nas últimas décadas, abriu mão dos fundamentos de sua luta política, acuada pelas críticas feitas às experiências comunistas no século XX, enfraquecida pelas políticas multiculturais e, quando no governo, seduzida pelos confortos do poder e pelas negociações do consenso.
Contra a acomodação e o esquecimento, o autor propõe que a esquerda recoloque no debate político tudo aquilo que é “inegociável”: a defesa radical do igualitarismo, da soberania popular e do direito à resistência.
Em contraposição às políticas multiculturalistas, ele postula a necessidade de a esquerda ser “indiferente às diferenças” e retomar o universalismo.
Polêmico, Safatle diz que a esquerda precisa entender as necessidades do sujeito contemporâneo e que não há equívoco maior, atualmente, que contrapor o desejo dos indivíduos ao igualitarismo.
A esquerda que não teme dizer seu nome é uma leitura urgente e essencial para todos os que não têm medo da política e buscam a justiça social.
“Somos obrigados a ouvir compulsivamente que “a divisão esquerda/direita não faz mais sentido”. Mesmo que ainda encontremos posições políticas e leituras dos impasses da vida social contemporânea radicalmente antagônicas, há uma clara estratégia de evitar dar a tais antagonismos seu verdadeiro nome. Ela é utilizada para fornecer a impressão de que nenhuma ruptura radical está na pauta do campo político ou, para ser mais claro, de que não há mais nada a esperar da política, a não ser discussões sobre a melhor maneira de administrar o modelo socioeconômico hegemônico nas sociedades ocidentais. Não se trata mais de pensar a modificação dos padrões de partilha de poder, de distribuição de riquezas e de reconhecimento social. Trata-se de uma questão de gestão de modelos que se reconhecem como defeituosos, mas que ao mesmo tempo se afirmam como os únicos possíveis.
A função atual da esquerda é, por isso, mostrar que tal esvaziamento deliberado do campo político é feito para nos resignarmos ao pior, ou seja, para nos resignarmos a um modelo de vida social que há muito deveria ter sido ultrapassado e que evidencia sinais de profundo esgotamento. Cabe à esquerda insistir na existência de questões eminentemente políticas que devem voltar a frequentar o debate social.
Uma maneira de iniciar a discussão é identificando quais são as posições que podem caracterizar, hoje, o pensamento de esquerda.
Importante insistir que a plasticidade da política exige que a determinação dos problemas do presente defina a configuração de nossa posição. Isso significa que o pensamento político deve ter uma dimensão profundamente “estratégica”. Ele se move de acordo com os problemas postos pela vida social. Muitas vezes, várias correntes da esquerda ignoraram tal mobilidade, entrando assim em uma espécie de “petrificação do discurso” que acabou por afastá-los da capacidade de pautar a opinião pública.
Essa reflexão sobre as posições que caracterizam a esquerda pode nos mostrar como a política é, em seu fundamento, a decisão a respeito do que será visto como inegociável. Ela não é simplesmente a arte da negociação e do consenso, mas a afirmação taxativa daquilo que não estamos dispostos a colocar na balança. O que falta hoje à esquerda é mostrar o que, segundo seu ponto de vista, é inegociável. Por exemplo, quais processos e resultados são fundamentais para uma verdadeira coesão social que não seja submersa por clivagens e desigualdades.”
“A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais “customizadas” e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postos na mesa. Por isso, essa ação não é livre.”
“Talvez a posição atual mais decisiva do pensamento de esquerda seja a defesa radical do igualitarismo. Juntamente com a defesa da soberania popular, a defesa radical do igualitarismo fornece a pulsação fundamental do pensamento de esquerda.
Tal defesa do igualitarismo traz orientações muito claras a respeito de questões centrais no campo social e econômico. Por “igualitarismo” devemos entender duas coisas. Primeiro, que a luta contra a desigualdade social e econômica é a principal luta política. Ela submete todas as demais.
Nossas sociedades capitalistas de mercado são sociedades “paradoxais” por produzirem, ao mesmo tempo, aumento exponencial da riqueza e pauperização de largas camadas da população. Quebrar esse paradoxo é tarefa da política.”
“De fato, nenhuma pessoa sensata poderia ser contrária à meritocracia e à recompensa pelo empreendedorismo. No entanto, tais valores apenas encobrem o pior cinismo quando não vêm associados à luta contra a desigualdade de oportunidades e condições. A diversidade de talentos é, muitas vezes, a capa que se usa para acobertar que a diversidade de riquezas é um problema que quebra a possibilidade de desenvolvimento individual por mérito.”
“A esquerda deve meditar um pouco sobre esta afirmação de Warren Buffet, um dos homens mais ricos do mundo: “É verdade que há uma guerra de classes, mas é a minha classe que está fazendo a guerra e ganhando”.
“O Estado democrático excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de Direito. Experimenta direitos que ainda não lhe estão incorporados, é o teatro de uma contestação cujo objeto não se reduz à conservação de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a partir de focos que o poder não pode dominar inteiramente.” (Claude Lefort – A invenção democrática)
“Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social. Nessas situações, a democracia reconhece o direito à violência, já que toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal.”
“Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação contra o Estado de Direito é inaceitável. Mas e se, longe ser de um aparato monolítico, o Direito em sociedades democráticas for uma construção heteróclita, em que leis de vários matizes convivem, formando um conjunto profundamente instável e inseguro? A Constituição de 1988, por exemplo, não teve força para mudar vários dispositivos legais criados pela Constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais dispositivos. Nesse sentido, não seriam certas “violações” do Estado de Direito condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir?
Foi pensando em situações dessa natureza que Derrida afirmava ser o Direito objeto possível de uma desconstrução que visa a expor as superestruturas que “ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesse econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”. Quem pode dizer em sã consciência que tais forças não agiram e agem para criar, reformar e suspender o Direito? Quem pode dizer em sã consciência que o embate social de forças na determinação do Direito termina necessariamente da maneira mais justa? Por isso, nenhum ordenamento jurídico pode falar em nome do povo. Ao contrário, o ordenamento jurídico de uma sociedade democrática reconhece sua própria fragilidade, sua incapacidade de ser a exposição plena e permanente da soberania popular.
A democracia admite, por essas razões, o caráter “desconstrutível” do Direito, e ela o admite pelo reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade da “violação política”. Pacifistas que sentam na frente de bases militares a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação), ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja despejado no mar, trabalhadores que fazem piquetes em frente a fábricas para criar situações que lhes permitam negociar com mais força exigências de melhoria de condições de trabalho, cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, ocupações de prédios públicos feitas em nome de novas formas de atuação estatal, trabalhadores sem-terra que invadem fazendas improdutivas, Antígona que enterra seu irmão: em todos esses casos, o Estado de Direito é quebrado em nome de um embate em torno da justiça.
No entanto, é graças a ações como essas que direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas, com certeza nossa situação de exclusão social seria significativamente pior. Nesses momentos, encontramos o ponto de excesso da democracia em relação ao Direito.
Uma sociedade que tem medo de tais momentos, que não é mais capaz de compreendê-los, é uma sociedade que procura reduzir a política a um mero acordo referente às leis que temos e aos meios que dispomos para mudá-las (como se a forma atual da estrutura política fosse a melhor possível – se se leva em conta o que é o sistema político brasileiro, pode-se claramente compreender o caráter absurdo da colocação).
No fundo, essa é uma sociedade que tem medo da política e que gostaria de substituir a política pela polícia. A violação política nada tem a ver com a tentativa de destruição física ou simbólica do outro, do opositor, como vemos na violência estatal contra setores descontentes da população ou em golpes de Estado. Ela é, antes, a força da urgência de exigências de justiça”
“Devemos insistir em que a esquerda não pode permitir que desapareça do horizonte de ação uma exigência profunda de modernização política que vise à reforma, não apenas das instituições, mas do processo decisório e de partilha do poder. Ela não pode ser indiferente àqueles que exigem a criatividade política em direção a uma democracia real.
Não deixa de ser dramático ver membros de certa esquerda citando Tocqueville, certos de que a democracia exige instituições fortes: a democracia não exige um poder instituído forte e não deve depender de instituições que sempre funcionaram mal. Do ponto de vista institucional, a democracia tem uma plasticidade natural. Ela depende, e isso é totalmente diferente, de um poder instituinte soberano e sempre presente. Ou seja, depende de um aprofundamento da transferência do poder para instâncias de decisão popular que podem e devem ser convocadas de maneira contínua.
Estamos muito acostumados com a ideia de que a democracia se realiza naturalmente como democracia parlamentar. Isso, no entanto, é falso. Uma esquerda que não tem medo de dizer seu nome deve falar com clareza que sua agenda consiste em superar a democracia parlamentar pela pulverização de mecanismos de poder de participação popular direta. Lembremos apenas que, com o desenvolvimento das novas mídias, é cada vez mais viável, do ponto de vista material, certa “democracia digital” que permita a implementação constante de mecanismos de consulta popular.”
“O verdadeiro desafio democrático consiste, desse modo, em institucionalizar tal poder instituinte, criando uma dinâmica plebiscitária de participação popular. Tal dinâmica é desacreditada pelo pensamento conservador, pois ele procura vender a ideia inacreditável de que o aumento da participação popular seria um risco à democracia – como se as formas atuais de representação fossem tudo o que podemos esperar da vida democrática. Contra essa política que tenta nos resignar às imperfeições da nossa democracia parlamentar, devemos dizer que a criatividade política em direção à realização da democracia apenas começou. Há muito ainda por vir.
Como dizia Derrida, eis a razão pela qual só podemos falar em democracia por vir, e nunca em democracia como algo que se confunde com a configuração atual do nosso Estado de Direito. Contra os arautos do Estado democrático de Direito, que procuram nos resignar às imperfeições atuais da democracia parlamentar, devemos afirmar os direitos de uma democracia por vir, que só poderá ser alcançada se assumirmos a realidade da soberania popular. Estas são, pois, as duas pernas de toda política de esquerda que não teme dizer seu nome: igualitarismo e soberania popular. Garantidos esses dois valores, o resto, como diz o Evangelho, virá por si mesmo.”
“A verdadeira democracia não é medida pela estabilidade de suas instituições e suas regras. Afinal, quantas vezes a França (só para ficar em um exemplo) mudou as regras de seu sistema eleitoral e de seu sistema de partilha de poder? Quantas vezes aquele país modificou o funcionamento da instituição presidencial? Lembremos como mesmo a “estável” Inglaterra debate hoje modificações profundas em seu próprio sistema.
A verdadeira democracia é medida, na verdade, pela possibilidade dada ao poder instituinte popular de manifestar-se e criar novas regras e instituições. Não é só em eleições que tal poder se manifesta. Há uma plasticidade política própria à vida democrática que só arautos do pensamento conservador compreendem como “insegurança jurídica”. O plebiscito é simplesmente a essência fundamental de toda vida democrática, e falar em “golpe plebiscitário” é uma das maiores aberrações que se possa imaginar. O dia em que um plebiscito equivaler a um golpe de Estado, então nossa noção de democracia estará completamente esvaziada. Ela perderá todo seu valor.”
“Talvez seja o caso de dizer claramente que a alternativa chavista é apenas uma deriva populista e bonapartista da esquerda. De fato, o conceito de “populismo” existe e não é apenas um dispositivo de desqualificação política, embora muitas vezes seja usado apenas para isso. Populista é um governo profundamente personalista e centralizado cuja figura do mandatário do Executivo encarna o ideal de condução e, por isso, confunde-se com a figura do poder; é um governo incapaz de permitir o desenvolvimento de mecanismos de transferência do poder em direção à democracia direta, pois, nesse caso, a democracia direta é subordinada ao poder central. O populismo esquece que o verdadeiro líder democrático é aquele que não tem medo de expor sua própria efemeridade, sua própria contingência. O líder democrático é aquele que nos ensina como a contingência pode habitar o cerne do poder.”
Por isso há algo de piada de mau gosto na afirmação de que o Brasil conheceu, entre 1945 e 1964, uma “república populista”. Só mesmo uma historiografia revisionista, que visa a desqualificar o único momento na história brasileira em que a participação popular foi efetiva, poderia dizer algo dessa natureza. Nesse caso, nota-se como “populista” não é usado como descrição analítica, mas como injúria. Gostaria que alguém explicasse, por exemplo, em que Dutra e Juscelino eram “populistas” e em que João Goulart encarnava o ideal de condução que se confunde com a figura do poder estatal.
“Por fim, vale a pena lembrar que a noção de soberania popular implica processo institucionalizado de transferência de poderes em direção à democracia direta. Ele não é uma simples arma utilizada pelo Executivo em situações de conflito de poderes. Sua melhor figura é a institucionalização de decisões que só poderiam, a partir de então, ser tomadas por meio da manifestação direta da soberania popular. Isso significa transferência de poder tanto do Legislativo quanto do Executivo. (...)
A Islândia tem algo a nos ensinar sobre isso.
Um dos primeiros países atingidos pela crise econômica de 2008, a Islândia decidiu que o uso de dinheiro público para indenizar bancos seria objeto de plebiscito. O resultado foi o apoio maciço ao calote. Mesmo sabendo dos riscos de tal decisão, o povo islandês preferiu realizar um princípio básico da soberania popular. Se a conta vai para a população, é ela quem deve decidir o que fazer, e não um conjunto de tecnocratas que terão seus empregos garantidos nos bancos, tampouco parlamentares cujas campanhas são financiadas por esses bancos.
Como disse o presidente islandês, Ólafur Ragnar Grímsson, “a Islândia é uma democracia, não um sistema financeiro”. Alguns poderiam contra-argumentar que é absurdo que decisões de inegável complexidade técnica passem para a democracia direta. Bem, outros diriam apenas que quem paga a orquestra escolhe a música. Esta é uma boa maneira de se perguntar: afinal, no caso de nosso Parlamento e de nosso Executivo, quem paga a orquestra?”
A esquerda que não teme dizer seu nome (Parte II) – Vladimir Safatle
“Uma das questões mais delicadas sobre a esquerda diz respeito a sua maneira de lidar com o passado recente. Alain Badiou compreendeu bem que poderia enunciá-la de uma maneira sucinta: o que significou o século XX? Ou seja, como compreender as experiências de ruptura que marcaram a especificidade do século que passou? Longe de um simples problema histórico, tal questão expõe a maneira como nos vinculamos aos processos de efetivação de uma ideia que, com certeza, ainda guarda seu conteúdo de verdade.
Por exemplo, um dos mantras preferidos do pensamento conservador é a denúncia do século XX como a era da violência brutal feita em nome das promessas de redenção da vida social. Como se houvesse uma linha necessária e inevitável que iria da crítica da individualidade moderna e da reificação aos massacres de Pol Pot, linha que iria das lutas sindicais por justiça social aos gulags. Trata-se de impor, com isso, uma estratégia da resignação, que tem o propósito de nos fazer acreditar que toda ação visando à ruptura com formas de vida que aparecem, em certos momentos, como naturalizadas só poderá produzir catástrofes. Trata-se ainda de uma tentativa de desqualificar radicalmente a força produtiva das ideias de renovação e seu movimento trágico.
Sobre essa natureza trágica do movimento próprio às ideias de renovação, valeria a pena se perguntar se aqueles que desqualificam o século XX como era da violência desmedida em nome do novo estariam dispostos a responder a uma questão fundamental, a saber: quantas vezes uma ideia precisa fracassar para poder se realizar? A efetivação de uma ideia nunca é um processo que se realiza em linha reta. Por exemplo, durante séculos, o republicanismo foi considerado um retumbante fracasso. Ser republicano no século XIII significava defender uma ideia que havia apenas produzido catástrofes e enfraquecimento do Estado. Hoje, dificilmente encontraremos alguém para quem o republicanismo não seja um valor fundamental. Ou seja, o republicanismo precisou fracassar várias vezes para encontrar seu próprio tempo, para forçar o tempo a aproximar-se de sua realização ideal. Isso apenas demonstra como, graças à internalização de seus fracassos, ao fato de ela ter aparecido “cedo demais”, a ideia pôde efetivamente se realizar.
Não se trata aqui de ignorar os crimes e massacres que foram feitos em nome dos ideais de esquerda no século XX, nem de relativizá-los, lembrando que, se for para contar crimes e massacres, a esquerda certamente não fica na frente de seus oponentes. As duas estratégias são equivocadas. Trata-se, na verdade, de dizer que a melhor maneira de evitá-los é compreender o que deve ser conservado e reconstruído no interior de nossos ideais, aquilo que neles não se reduz à figura do crime e do massacre.
Como nos lembra Hegel, o conceito, ao tentar determinar a efetividade, produz necessariamente o contrário de sua intenção inicial. Essa inversão, no entanto, pode aparecer não como perda, e sim como momento tragicamente necessário para o desenvolvimento da capacidade do conceito em internalizar a contingência, orientar-se e assegurar sua realidade. Talvez possamos dizer o mesmo das lutas revolucionárias que animaram o século XX, pois uma das maiores características desse século foi a luta pela abertura do que ainda não tem figura, luta pelo advento daquilo que não se esgota na repetição compulsiva do homem atual e de seus modos.
Não se tratava apenas de um processo conflituoso de ampliação e universalização de direitos individuais ou de efetivação de demandas de redistribuição de riquezas. Embora tais aspectos sejam essenciais para compreendermos as lutas revolucionárias do século XX, perderemos uma dimensão importante de seu impulso se não compreendermos também que, “até o final, o século foi de fato o século do advento de outra humanidade, de mudança radical do que é o homem. E é nesse sentido que permaneceu fiel às extraordinárias rupturas mentais de seus primeiros anos”.
Talvez seja o caso de lembrar aqui dessa crença que perpassa os movimentos mais relevantes no campo da política, da filosofia e da estética do século XX, a saber, a crença de que algo como o “homem novo” estava ao alcance. Há uma espécie de estranho acordo a respeito da necessidade de um tempo capaz de nos livrar do esgotamento da determinação essencial do homem. Tudo se passa como se, para além da defesa de uma sociedade mais justa, livre e igualitária, pulsasse, no interior da demanda revolucionária que animou o século XX, este obscuro desejo de nos livrarmos de nós mesmos, desejo de anular nossa própria imagem. Talvez seja o caso de dizer: não há luta revolucionária sem esse desejo. É possível afirmar que essas lutas podem ser encontradas nas discussões próprias aos campos da estética, da política, das clínicas da subjetividade, da filosofia. Em vários momentos de nossa história recente, elas mostraram grande força para mover a história, engajar sujeitos na capacidade de viver para além do presente. No entanto, vemos hoje um grande esforço em apagar essa história, isso quando não se trata de apenas criminalizá-la, como se as tentativas do passado em escapar das limitações da figura atual do homem devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como a simples descrição de processos que necessariamente se realizariam como catástrofe. Como se não fosse mais possível olhar para trás e pensar em maneiras novas de recuperar os momentos nos quais o tempo para e as possibilidades de metamorfose do humano são múltiplas.
Assim, somos apresentados à cartilha do passado, que cheira ao enxofre da destruição, e do futuro, que não pode ser muito diferente daquilo que já existe. Talvez seja o caso, então, de dizer que tudo o que, brandos ou não, os defensores de tal cartilha conseguirão é bloquear nossa capacidade de agir a partir de uma humanidade por vir, acostumar-nos com um presente no qual ninguém acredita e do qual muitos já se cansaram. Ou seja, elevar o medo a afeto central da política.
Para responder a tal cartilha, devemos dizer que, se não há política sem o desejo de nos livrarmos de nós mesmos, de nos livrarmos de nossas limitações, sem o desejo de explorar o que ainda não tem figura, é certo que a história é o campo no interior do qual esse desejo aprende a se orientar melhor. Que esse aprendizado não seja em linha reta, que ele se equivoque e muitas vezes se perca, isso é apenas uma maneira de insistir em consequências próprias a todo e qualquer aprendizado. Com o aprendizado a respeito da força de nossa liberdade e nossa inventividade, não seria diferente.”
“O pensamento liberal teme a reflexão sobre a impossibilidade de esgotar o sujeito nas determinações identitárias atualmente postas, porque isso quebra sua tentativa de defender, custe o que custar, a primazia do indivíduo. Uma das bases da teoria liberal sobre o político é a compreensão do vínculo social como uma espécie de contrato entre indivíduos. Nesse suposto contrato, os indivíduos fundariam instituições como o Estado mediante a garantia de que poderão agir, em larga medida e por meio de uma negociação astuta, em função de seus sistemas particulares de interesse. Ou seja, sob a forma contratualista, o vínculo social aparece como uma associação entre indivíduos. Algo muito próximo da maneira como o livre mercado aparecerá para o pensamento liberal como o espaço onde indivíduos podem trabalhar na defesa de seus sistemas particulares e egoístas de interesses.
Um dos traços fundamentais da esquerda, entretanto, está na recusa em compreender a sociedade como uma associação entre indivíduos que entram virtualmente em acordo a fim de realizar, da melhor maneira possível, seus interesses particulares. Para a esquerda, a consequência fundamental dessa distorção é a compreensão da “liberdade” simplesmente como o nome que damos para o sistema de defesa dos interesses particulares dos indivíduos, de suas propriedades privadas e de seus modos de expressão.
Em última instância, toda extensão do conceito de liberdade acaba por ser pensada como modulação do direito de propriedade. No entanto, essa noção de liberdade talvez seja uma forma muito difundida de patologia social, pois, ao impor uma atomização social desagregadora, nos impede de ver como, no interior do meu próprio interesse, pulsa algo mais do que a mera emulação de um sistema particularista. Ela impede a compreensão de como o sujeito é sempre habitado por algo que não se deixa pensar sob a forma do indivíduo.
O pensamento conservador procura criticar tal ideia ao tentar nos fazer acreditar que toda ditadura é necessariamente baseada na crítica do individualismo. Como se nossa democracia estivesse segura lá onde o individualismo impera. A prova disso seria o fato de situações de anomia, famílias desagregadas e crise econômica serem pretensamente o terreno fértil para ditaduras. Um pouco como quem diz: lá onde a família, a prosperidade e a crença na lei não funcionam bem, lá onde os esteios do indivíduo entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalitários está à espreita.
Se realmente quisermos pensar a extensão do totalitarismo, será interessante perguntar por que personalidades autoritárias aparecem também em famílias muito bem ajustadas e sólidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas sociedades e a nosso padrão de prosperidade. Teríamos surpresas interessantes se estudássemos o perfil psicológico daqueles que votam em governos que criam sistemas globais de fichamento e controle de populações, rondas contra imigrantes, alimentam a xenofobia e a lógica da fronteira.
Isso explica por que não foram poucos aqueles que, no século XX, insistiram que o indivíduo moderno é, na verdade, produzido pela internalização de profundos processos disciplinares e repressivos. A boa questão é: com o que preciso me conformar para poder ser reconhecido como indivíduo dotado de interesses “próprios”? O que preciso perder e fazer calar para que tudo o que se apresenta à minha experiência só possa ser pensado como experiência de um indivíduo?
Sofre-se muitas vezes por não ser um indivíduo, ou seja, por não ter à sua disposição as condições sociais necessárias para a afirmação de uma individualidade almejada. No entanto, sofre-se também por ser apenas um indivíduo. Há um sofrimento vindo da incapacidade em pensar aquilo que, dentro de si mesmo, não se submete à forma coerente de uma pessoa fortemente individualizada com sua identidade compulsivamente afirmada. Esta é uma das lições mais importantes de Sigmund Freud, com sua ideia de que o próprio processo de formação da individualidade, de constituição do Eu é indissociável de experiências patológicas de sofrimento. Nesse caso, sofre-se exatamente por ser um indivíduo. A esquerda deve ser sensível a tal modalidade de sofrimento social.
Infelizmente, esse sofrimento, em vez de funcionar como motor de desenvolvimento subjetivo, muitas vezes se exterioriza e se transforma em medo social compulsivo contra tudo o que parece colocar em xeque nossa “identidade”, as “crenças do nosso povo”. Ele acaba por servir como causa de um sistema paranoico de defesa contra toda alteridade real.
Não é por outra razão que onde há a insistência em compreender a sociedade como um mero conjunto de indivíduos surge sempre o outro lado da moeda: a necessidade de expulsar, de levantar fronteiras contra tudo o que não porta a minha imagem. O que nos explica por que sociedades fortemente individualistas, como aquelas que encontramos nos EUA e em certos países europeus, são sempre assombradas pelo fantasma do corpo estranho que está prestes a invadi-las, a destruir seus costumes e hábitos arraigados. Não há individualismo sem lógica social da exclusão.
Por outro lado, como todos sabemos que o atomismo de ser apenas um indivíduo é dificilmente suportável, esse isolamento tende, muitas vezes, a ser compensado com alguma forma de retorno a figuras de comunidades espirituais e religiosas. A vida contemporânea nos demonstrou que individualismo e religiosidade, liberalismo e restrições religiosas dogmáticas, longe de serem antagônicos, transformaram-se nos dois polos complementares e paradoxais do mesmo movimento pendular. Muito provavelmente, teremos de conviver com os resultados políticos dessa patologia social bipolar. Cada vez fica mais claro como o pensamento conservador se articula, em escala mundial, por meio da restrição da pauta do debate social apelando ora para as “liberdades individuais”, ora para “nossos valores cristãos”.”
“Quantas vezes uma revolução parecia às portas, suas condições pareciam completamente dadas e, no entanto, ela fracassou? E quantas vezes revoltas absolutamente imprevistas acabaram por acontecer, como as que vemos agora no mundo árabe? Revoluções são sempre improváveis, fruto de uma série contingente de acontecimentos. Seria mais honesto reconhecer que a história é o processo que transforma contingências em necessidades. Uma transformação que só é visível a posteriori. Assim, o que devemos fazer é não recusar esses processos contingentes e inesperados que têm a força de romper o tempo. Não recusar já é muita coisa.
Por outro lado, deve-se entender que uma sequência de reformas profundas provoca um salto qualitativo a partir do qual dificilmente se volta para trás. Este era o caminho de uma das mais impressionantes experiências da esquerda no século XX, experiência sobre a qual ainda temos muito o que meditar, a saber, o socialismo democrático de Salvador Allende.
Hoje, defender uma sequência substantiva de reformas é muito mais difícil do que defender rupturas radicais de molde revolucionário, pois mais perigosa é uma mudança que está ao alcance de nossas mãos do que a que está fora do alcance de nossa visão. Lutar por reformas sem perder de vista o fato de que processos incalculáveis podem acontecer – mais do que um conselho político, isso talvez seja uma forma de vida.”
“Infelizmente, no entanto, quando não é o decisionismo que reina, encontramos na esquerda uma ingenuidade maior, a saber, a crença de que práticas do governo são um conjunto neutro de técnicas e técnicos que podem “funcionar bem” quando dirigidos de forma adequada. Um belo exemplo nesse sentido foi fornecido pelo finado Partido Comunista Italiano (PCI), o maior partido comunista fora do bloco soviético. Durante anos, ele esteve à margem do governo, conquistando prefeituras importantes (como Bolonha) a fim de se credenciar para comandar o Estado nacional.
Quando isso ocorreu, e seu secretário-geral, Massimo D’Alema, assumiu o cargo de primeiro-ministro, tudo o que passou em sua cabeça foi provar que era capaz de governar e de realizar os ajustes fiscais exigidos para que a Itália participasse da zona do euro. Ajustes que a direita nunca conseguiria fazer devido à oposição dos sindicatos, mas que o PCI fez (e a banca financeira europeia agradece com a mão no lado esquerdo do peito). O resultado foi a impressão de indistinção fundamental entre a lógica de governo da direita e da esquerda. Só que a conta pelo descontentamento com os ajustes foi paga pela esquerda (que hoje simplesmente não existe na Itália).
De fato, é preciso lembrar que nenhuma técnica é neutra. Por isso, uma das questões abertas que ainda merece resposta é: quais são as técnicas de governo à altura das aspirações de modernização política próprias à esquerda? Quando assumimos a lógica e o discurso de certa eficácia típicos da direita, já perdemos o jogo. Pois aí precisaremos jogar o jogo completo, um jogo cujas regras foram feitas para serem transgredidas “em silêncio”. Nesse caso, a pior técnica é aquela que mimetiza a lógica do adversário.
Quando isso acontece, vemos ou o patético espetáculo de um lento processo de degradação da governabilidade, com a famosa transformação dos governantes de esquerda em figuras que mimetizam as práticas de corrupção e os valores da direita, ou a guinada em direção ao centralismo totalitário (única forma de conservar o governo quando não se sabe como governar).”
“Por mais óbvio que isso possa parecer, o homem é este ser dividido que, por um lado, é sujeito de um desejo de ruptura, de reconfiguração de sua forma de vida e, por outro, precisa de geladeiras cheias.
Anular as geladeiras, ou seja, instaurar a política no solo de uma cruzada contra o “serviço dos bens”, dizer que a república não tem necessidades e simplesmente ignorar o peso dos sistemas particulares de interesse só vai nos fazer perder as condições de realizar nosso desejo de reconfiguração do campo do político e de nossas formas de vida.
Afirmar que o indivíduo não é a medida de todas as coisas não significa afirmar que ele não é medida de coisa alguma. Esse é um erro comum que encontramos em certa tradição da esquerda. Até porque vale a pena lembrar que o indivíduo nunca é apenas o indivíduo. Em certos momentos, ele é o ponto de reflexão a partir do qual a vida social se volta contra si mesma. Nesses casos, o sofrimento do individual serve para mostrar os impasses de um conceito abstrato de universal, pois desvela o ponto cego de processos que justificam sua violência servindo-se da perspectiva onisciente da realização da história. O indivíduo sabe que a violência da justificação é a maneira mais segura de tais processos não se realizarem.
Talvez este seja o verdadeiro sentido de uma afirmação capital de Lênin: “Comunismo é: todo o poder aos sovietes, mais a eletrificação de todo o país”. Seria o caso de acrescentar a seguinte ideia: com a eletrificação de todo o país, ou seja, com o reconhecimento da necessidade dos indivíduos, é possível que a população acredite nos sovietes; sem isso, os sovietes virarão palavra morta, pois não existe socialismo na miséria. Na miséria, existe apenas miséria.”
“Se há algo que a história nos ensinou é um pouco de humildade diante do acontecimento. A imprevisibilidade do acontecimento e a instabilidade da história deveriam nos economizar a tentativa de legislar sobre aquilo de que um sujeito é capaz, sobre o que pode ser uma humanidade por vir. Até porque, como dizia Hegel, cuja filosofia da história foi tão malcompreendida e cuja recuperação é tão urgente: Na história mundial, por meio das ações dos homens, é produzido em geral algo outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles realizam seus interesses, mas com isso é produzido algo outro que permanece no interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção.
Neste exato momento, não sabemos o que fazemos, mas sabemos que há um mundo que lentamente desaba. Muito desse desabamento é graças exatamente a essas ações que fazemos sem saber o que fazemos, pois o processo histórico que destrói os limites de uma época é sempre animado pelo que ainda não encontra forma para ser posto como representação da consciência ou da intenção.
No entanto, em certos momentos, estamos dispostos a confiar nesse “algo outro” cujo conteúdo ainda permanece subterrâneo, ainda não realizado na “existência presente” (“gegenwärtige Dasein”) e que, por isso, bate violentamente contra o mundo exterior como o que se bate contra uma casca.
Tal confiança descobre a força de transformar o que lhe aparece inicialmente como opaco, como páthos cujo objeto desconhece o regime de presença da consciência e da intenção, em acontecimento portador de uma nova ordem possível. É nesses momentos raros em que essa confiança sobe à cena do mundo que a história se faz.”

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