domingo, 3 de maio de 2020

Dialética Negativa - parte I


Dialética Negativa (Parte I) — Theodor W. Adorno
Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-143-7
Tradução: Marco Antonio Casanova

Páginas: 351
Sinopse: Inscrita na tradição da Teoria Crítica, a Dialética Negativa recupera a questão central dessa vertente: a emancipação do homem. Para atingir essa emancipação, contra os vetores opressivos da sociedade moderna, Adorno retoma o método filosófico inicialmente apresentado por Hegel: a dialética. No entanto, Adorno inverte o princípio mesmo de funcionamento deste método. Em vez de basear o conhecimento humano sobre a identidade (na consciência) entre os objetos e o sujeito pensante (como Aufhebung em Hegel), a dialética de Adorno é um conhecimento agudo da não identidade entre sujeito e objeto. Em outras palavras, a dialética negativa é a consciência dessa diferença e da impossibilidade de abarcar o todo por meio do simples pensamento.

“Pensar é, já em si, antes de todo e qualquer conteúdo particular, negar, é resistir ao que lhe é imposto.”

“A tradição tendia em direção àquilo que denunciava. Mas isso não dispensa da reflexão metodológica que consistia em dizer qual é a relação que a análise particular do conteúdo estabelece com a teoria da dialética. A asserção da filosofia da identidade idealista de que esta é absorvida naquela é infundada. Todavia, é objetivamente e não apenas por meio do sujeito cognoscente que o todo expresso pela teoria é contido nesse particular que é preciso analisar. A mediação dos dois é ela mesma uma mediação de conteúdo, a mediação através da totalidade social. Mas ela também é formal em virtude do caráter abstrato daquilo que regula a própria totalidade, a lei da troca. O idealismo que destilou a partir daí seu espírito absoluto oculta ao mesmo tempo o verdadeiro, a saber, o fato de essa mediação se impor sobre os fenômenos como um mecanismo de coação; isso se esconde por detrás do assim chamado problema da constituição. A experiência filosófica não possui esse universal imediatamente, como fenômeno, mas o possui tão abstratamente quanto ele é objetivamente. Ela é obrigada a partir do particular, sem esquecer aquilo que ela não é, mas sabe. Seu caminho é duplo, como o caminho de Heráclito que conduz para o alto e para baixo. Enquanto ela se assegura da determinação real dos fenômenos por meio de seu conceito, ela não pode entregar a si mesma esse último ontologicamente, como se ele fosse o verdadeiro em si. O conceito é fundido com o não-verdadeiro, com o princípio opressor, e isso diminui ainda mais a sua dignidade crítico-cognitiva. Ele não constitui nenhum telos positivo no qual o conhecimento pudesse se aplacar. A negatividade do universal fixa, por sua parte, o conhecimento no particular como aquilo que precisa ser resgatado. “Verdadeiros são apenas os pensamentos que não compreendem a si mesmos.” Em seus elementos incondicionalmente universais, toda filosofia, mesmo aquela que possui a intenção da liberdade, arrasta consigo a não liberdade na qual se prolonga a não liberdade da sociedade. Essa possui em si a compulsão; mas é apenas essa compulsão que a protege de uma regressão à arbitrariedade. O pensamento consegue reconhecer criticamente o caráter compulsivo que lhe é imanente; sua própria compulsão é o meio de sua libertação. A liberdade para o objeto, que em Hegel desemboca na destituição do sujeito, precisa ser inicialmente produzida. Até esse ponto, a dialética enquanto método e a dialética da coisa se mostram divergentes. Conceito e realidade possuem a mesma essência contraditória. Aquilo que dilacera a sociedade de maneira antagônica, o princípio da dominação, é o mesmo que, espiritualizado, atualiza a diferença entre o conceito e aquilo que lhe é submetido. Essa diferença, porém, assume a forma lógica da contradição porque tudo aquilo que não se submete à unidade do princípio de dominação, segundo a medida desse princípio, não aparece como algo diverso que lhe é indiferente, mas como violação da lógica. Por outro lado, o resto de divergência entre a concepção filosófica e sua execução também atesta algo da não-identidade que não permite ao método nem absorver inteiramente os conteúdos nos quais apenas ele deve ser, nem espiritualizá-los. O primado do conteúdo expõe-se como insuficiência necessária do método. Aquilo que, enquanto tal, sob a figura da reflexão genérica, precisa ser dito para não se ver indefeso ante a filosofia dos filósofos só se legitima na execução, e, dessa forma, o método é uma vez mais negado. Do ponto de vista do conteúdo, seu excesso é abstrato, falso; já Hegel precisou aceitar a desproporção entre o prefácio da Fenomenologia do espírito e a Fenomenologia. O ideal filosófico seria o de que a justificação daquilo que se deve fazer se tornasse supérfluo, na medida em que fosse feito.”

“Na filosofia a autêntica questão quase sempre encerra, em certa medida, sua resposta. Ela não conhece, como é o caso da pesquisa, uma relação consecutiva de “antes e depois” entre a pergunta e a resposta. Ela precisa modelar a sua pergunta segundo aquilo que experimentou para poder recuperá-lo. Suas respostas não são dadas, feitas, geradas: nelas reaparece a questão desdobrada, transparente.”

“O sofrimento compreendido como aquilo que a filosofia heideggeriana registra por meio da expressão “perda do ser” não é apenas a não-verdade; senão só muito dificilmente se consegue ver por que ele foi buscar um ponto de sustentação em Hölderlin. A sociedade que, segundo seu próprio conceito, gostaria de fundamentar as relações dos homens em liberdade, sem que a liberdade tenha sido realizada até hoje em suas relações, é tão rígida quanto defeituosa. Na relação universal de troca, todos os momentos qualitativos cuja suma conceitual poderia constituir algo como uma estrutura se acham aplanados. Quanto mais desmedido é o poder das formas institucionais, tanto mais caótica é a vida que elas impõem e deformam segundo sua imagem. A produção e a reprodução da vida, juntamente com tudo aquilo que é coberto pelo termo “superestrutura”, não são transparentes para essa razão cuja realização reconciliada não equivaleria senão a uma ordem digna do homem, a uma ordem sem violência. As ordens antigas e enraizadas na natureza ou bem passaram, ou bem sobreviveram, para o seu mal, à sua própria legitimação. A sociedade não transcorre em lugar algum de maneira tão anárquica quanto ela aparece na contingência constantemente ainda irracional do destino individual. Todavia, sua legalidade objetificada é a contraparte de uma constituição da existência na qual se poderia viver sem angústia. É isso que sentem os projetos ontológicos: eles o projetam sobre as vítimas, os sujeitos, açodando convulsivamente o pressentimento da negatividade objetiva por meio da mensagem de uma ordem em si que vai até o mais abstrato, até a estrutura do ser. Em todos os lugares, o mundo se prepara para passar aos horrores da ordem e não para o seu contrário, acusado aberta ou veladamente pela filosofia apologética. O fato de a liberdade permanecer em grande medida ideologia; o fato de as pessoas serem impotentes diante do sistema e não conseguirem determinar suas vidas e a vida do todo a partir de sua razão; sim, o fato de não poderem mais nem mesmo pensar essa ideia sem sofrer adicionalmente proscreve sua conjuração para a figura contrária: elas preferem sardonicamente o que é pior à aparência de algo melhor. As filosofias ligadas ao espírito do tempo trazem consigo as suas contribuições para essa situação. Elas se sentem já em ressonância com a ordem alvorecente dos interesses mais poderosos, apesar de, como Hitler, portarem o peso solitário do destino. O fato de se comportarem como metafisicamente desabrigadas e como mantidas no nada provém de uma ideologia apologética da ordem que provoca o desespero e que ameaça os homens com a aniquilação física. A ressonância da metafísica ressuscitada é a concordância prévia com aquela opressão cuja vitória também reside no Ocidente no potencial social e que foi obtida há muito no Oriente, onde o pensamento da liberdade realizada é veladamente transformado em não-liberdade.”

“A dialética entre ser e ente, o fato de nenhum ser poder ser pensado sem o ente e nenhum ente sem mediação, encontra-se reprimida por Heidegger: os momentos que não são sem que um seja mediado pelo outro são para ele o uno sem mediação, e esse uno é o ser positivo. Mas o cálculo não fecha. A relação de débito entre as categorias é impugnada. Arrancado a fórceps, o ente retorna: o ser purificado do ente só permanece fenômeno originário enquanto possui em si uma vez mais o ente que exclui. Heidegger resolve esse problema com uma jogada de mestre estratégica; essa é a matriz de todo o seu pensamento. Com o termo “diferença ontológica”, sua filosofia toca até o momento indissolúvel do ente. “Aquilo que com certeza deve ser compreendido por um tal ‘ser’, que se pretende completamente independente da esfera do ôntico, precisa permanecer em suspenso. Sua determinação o introduziria na dialética do sujeito e do objeto, da qual justamente ele deve ser excluído. Nessa indeterminação, na posição sem dúvida alguma mais central da ontologia heideggeriana reside o fato de os extremos ser e ente precisarem necessariamente permanecer indeterminados em relação um ao outro, por mais que não se possa nem mesmo indicar em que consiste essa diferença. O discurso acerca da ‘diferença ontológica’ reduz-se à tautologia de que o ser não é o ente porque ele é o ser. Portanto, Heidegger comete o erro pelo qual repreende a metafísica ocidental, o fato de ter ficado constantemente sem ser dito o que denota o ser em contraposição ao ente.” Sob o sopro da filosofia, o ente torna-se um fato ontológico, expressão distorcida e hipostasiada do fato de o ser não poder ser pensado sem o ente, assim como o ente, segundo a tese fundamental de Heidegger, sem o ser. Com isso, ele constrói seus círculos. A penúria da ontologia é não poder sair daí sem o que lhe é oposto, sem o ôntico; a dependência do princípio ontológico em relação à sua contraparte, o escândalo incondicionável da ontologia, torna-se parte da ontologia. O triunfo heideggeriano sobre as outras ontologias menos astutas é a ontologização do ôntico. O fato de não haver nenhum ser sem o ente ganha a fórmula de que o ser do ente pertence à essência do ser. Com isso, algo verdadeiro se transforma em não-verdade: o ente torna-se essência. O ser se apodera daquilo que uma vez mais não gostaria de ser na dimensão de seu ser-em-si, apodera-se do ente, cuja unidade conceitual é sempre concomitantemente visada pelo sentido literal de ser. Toda a construção da diferença ontológica é um vilarejo de Potemkin. Ele não é erigido senão para que a dúvida em relação ao ser absoluto possa ser eliminada de maneira tanto mais soberana em virtude da tese do ente como um modo de ser do ser. Na medida em que todo ente particular é trazido ao seu conceito, ao conceito do ôntico, desaparece daí aquilo que, ante o conceito, o torna um ente. A estrutura formal e totalmente conceitual do discurso acerca do ôntico e todos os seus equivalentes colocam-se no lugar do conteúdo heterogêneo para o conceitual desse conceito. Isso é possibilitado por meio do fato de que o conceito do ente — nesse ponto de maneira alguma tão dessemelhante em relação àquele conceito do ser festejado por Heidegger — é aquele conceito que abarca o pura e simplesmente não-conceitual, aquilo que não se esgota no conceito, sem, contudo, jamais expressar sua diferença em relação àquilo que é abarcado. Porque “o ente” é o conceito para todo ente, o próprio ente torna-se conceito, estrutura ontológica que passa sem quebras para a estrutura do ser. A ontologização do ente recebe uma formulação expressiva em Ser e tempo: “A ‘essência’ do ser-aí reside em sua existência.” A partir da definição do-que-é-aí, do existente qua existente, por meio dos conceitos ser-aí e existência, vem à tona o fato de que aquilo que no que-é-aí não é essencial, não é ontológico, é ontológico. A diferença ontológica é afastada à força da conceptualização do não-conceitual e se transforma em não-conceptualidade.”

- A doutrina heideggeriana sobre o privilégio do ser-aí como o privilégio do ôntico que é ao mesmo tempo ontológico; a doutrina da presença do ser, hipostasia de antemão o ser. Somente a medida que o ser, como ele o desejaria, é autonomizado como algo que precede o ser-aí, o ser-aí recebe essa transparência em relação ao ser, uma transparência que, porém, deve ser uma vez mais liberada por este. Também nessa medida, a pretensa superação do subjetivismo é uma fraude. Apesar do plano redutor de Heidegger, o que foi uma vez mais contrabandeado por meio da doutrina da transcendência do ser para o interior do ente foi justamente o primado ontológico da subjetividade, abjurado pela linguagem da ontologia fundamental. Heidegger foi coerente ao inverter mais tarde a análise do ser-aí no sentido do primado intacto do ser, um primado que não pode ser fundamentado a partir de um ente porque, de acordo com ele, o ser não é um ente. Com certeza, tudo aquilo por meio do que ele havia produzido um efeito cai por terra, mas esse efeito já tinha passado para a autoridade do último Heidegger.


“A necessidade filosófica passou sem ser percebida da necessidade de conteúdo coisal e de solidez para a necessidade de escapar da reificação no espírito, realizada pela sociedade e ditada categorialmente para os seus membros, por meio de uma metafísica que condena uma tal reificação, indicando-lhe os seus limites por meio de um apelo a algo originário imperdível e com isso não lhe fazendo em verdade nenhum mal maior do que a ontologia ao funcionamento da ciência. Não resta nada dos valores eternos comprometidos senão a confiança no caráter sagrado da essência privilegiada em relação a tudo aquilo que possui um elemento coisal: da essência “ser”. Em virtude de sua impropriedade desprezível em face do ser que é em si mesmo dinâmico e que deve “acontecer apropriativamente”, o mundo reificado é tomado, por assim dizer, como indigno de ser transformado; a crítica ao relativismo é elevada até o ponto em que condena como heresia a racionalidade em progresso do pensar ocidental, e, com ela, a razão subjetiva. A velha animosidade atiçada uma vez mais pela opinião pública contra o intelecto dissecador liga-se com a animosidade contra o que é alienado por meio da coisificação: desde sempre as duas reenviam uma a outra. Heidegger é ao mesmo tempo coisofóbico e antifuncional. O ser não deve ser absolutamente uma coisa e, não obstante, como as metáforas sempre o indicam uma vez mais, deve ser o “solo”, algo firme. [24] Nisso se manifesta o fato de a subjetivação e a reificação não divergirem simplesmente, mas serem correlatos. Quanto mais aquilo que é conhecido é funcionalizado e se transforma em produto do conhecimento, tanto mais plenamente é atribuído ao sujeito como sua atividade o momento do movimento nele; tanto mais o objeto se transforma em resultado do trabalho cristalizado nele, algo morto. A redução do objeto ao mero material, uma redução que precede toda síntese subjetiva enquanto sua condição necessária, suga desse material a sua própria dinâmica; desqualificado, esse material é paralisado, ele é privado daquilo a que se pode em geral predicar o movimento. Não é à toa que o termo “dinâmico” designa em Kant uma classe de categorias. [25] A matéria, contudo, desprovida da dinâmica, não é nada pura e simplesmente imediata, mas, apesar da aparência de concretude absoluta, é mediada pela abstração, por assim dizer de início apenas içada. A vida acha-se polarizada segundo o totalmente abstrato e o totalmente concreto, apesar de ela só existir na tensão entre os dois; os dois polos são igualmente reificados e mesmo aquilo que resta do sujeito espontâneo, a apercepção pura, deixa, por meio de sua dissociação em relação a todo eu vivente, enquanto eu penso kantiano, de ser sujeito e é coberto em sua logicidade autônoma pela rigidez reinante. A questão é que a crítica heideggeriana da reificação sobrecarrega simplesmente o intelecto reflexivo e correalizador com aquilo que possui sua origem na realidade que reifica esse intelecto juntamente com seu mundo de experiências. No que concerne àquilo que é perpetrado pelo espírito, o responsável não é a sua impertinência desrespeitosa. Ao contrário, ele reproduz aquilo para o que é compelido pela conexão da realidade na qual ele mesmo forma apenas um momento. É somente com não-verdade que se pode reenviar a reificação ao ser e à história do ser, a fim de que seja deplorado e santificado enquanto destino aquilo que a autorreflexão e a prática atiçada por ela talvez conseguissem alterar. Com certeza, a doutrina do ser lega legitimamente contra o positivismo aquilo que funda o conjunto da história da filosofia difamada por ela, sobretudo Kant e Hegel: o fato de os dualismos do dentro e do fora, do sujeito e do objeto, da essência e do fenômeno, do conceito e do fato, não serem absolutos. Sua reconciliação, porém, é projetada para o interior da origem irrevogável e, por meio daí, o próprio dualismo, contra o qual o todo foi concebido, se enrijece contra o impulso reconciliador. A nênia sobre o esquecimento do ser é uma sabotagem da reconciliação; a história do ser miticamente impenetrável com a qual se abraça a esperança a nega. Sua fatalidade precisaria ser rompida enquanto nexo de ofuscação.

No entanto, esse nexo de ofuscação não se estende apenas para os projetos ontológicos, mas também para as necessidades com as quais eles se ligam e a partir das quais recebem implicitamente algo como uma garantia para suas teses. A própria necessidade, a necessidade espiritual não menos do que a material, é exposta à crítica depois que mesmo uma tenaz ingenuidade não pode confiar mais no fato de os processos sociais ainda se orientarem imediatamente pela oferta e pela demanda, e, com isso, pelas necessidades. Do mesmo modo que essas necessidades não são algo invariante, inderivável, elas também não garantem sua satisfação. A sua aparência, assim como a ilusão na qual se manifestam, mesmo se precisassem ser apaziguadas, remonta à mesma falsa consciência. Na medida em que são produzidas de maneira heterônoma, elas tomam parte na ideologia, por mais tangíveis que possam ser. Certamente, não há nada real que possa ser nitidamente extraído daquilo que elas comportam de ideológico, se é que a crítica não quer, por sua parte, sucumbir a uma ideologia, à ideologia da simples vida natural. Necessidades reais podem ser objetivamente ideologias, sem que precise surgir daí um direito de negá-las. Pois nas próprias necessidades dos homens catalogados e administrados há algo que reage naquilo em que eles não estão completamente controlados, o excedente da parcela subjetiva da qual o sistema não se assenhoreou completamente. As necessidades materiais precisariam ser respeitadas mesmo em sua figura invertida, causada pela superprodução. Mesmo a necessidade ontológica tem o seu momento real em um estado no qual os homens não são capazes nem de conhecer nem de reconhecer como racional — significativo — o caráter necessário da única coisa à qual seu comportamento obedece. Aquilo que suas necessidades comportam de falsa consciência remonta a algo de que os sujeitos dotados de maioridade não necessitam e que com isso compromete toda realização possível. À falsa consciência acrescenta-se o fato de ela imaginar o irrealizável como realizável, de maneira complementar à realização possível de necessidades que lhe é recusada. Ao mesmo tempo, o sofrimento inconsciente de si mesmo provocado pela carência material, ainda se mostra espiritualizado em tais necessidades invertidas. Essa consciência precisa impelir à eliminação dessa carência, assim como a necessidade sozinha não é capaz de produzi-la. O pensamento sem necessidade, que não quer nada, seria nulo; mas um pensar a partir da necessidade se confunde quando a necessidade é representada de maneira simplesmente subjetiva. As necessidades são um conglomerado de algo verdadeiro e falso; verdadeiro seria o pensamento que deseja algo correto. Se a doutrina de acordo com a qual as necessidades não podem ser deduzidas de nenhum estado natural, mas do assim chamado padrão cultural, é pertinente, então também se acham inseridas nesse padrão as relações da produção social juntamente com toda a sua má irracionalidade. Essa deve ser criticada sem levar em conta as necessidades espirituais, um substituto daquilo que é retido. A nova ontologia é em si mesma um substituto: aquilo que é prometido para além do ponto de partida idealista permanece idealismo de maneira latente e impede a sua crítica incisiva. Em geral, os substitutos não são apenas as realizações primitivas dos desejos com os quais a indústria cultural alimenta as massas, sem que essas acreditem efetivamente nisso. A ofuscação não tem limites onde o cânone cultural oficial instala seus bens, no elemento pretensamente sublime da filosofia. A mais urgente de suas necessidades hoje parece a necessidade de algo firme. Ela inspira as ontologias; elas se adaptam a essa necessidade. Ela possui a sua justificação no fato de que se quer segurança, de que não se quer ser enterrado por uma dinâmica histórica contra a qual as pessoas se sentem impotentes. O imperturbável gostaria de conservar aquilo que é antigo e condenado. Quanto mais desesperançadamente as formas sociais existentes bloqueiam essa nostalgia, tanto mais irresistível a autoconservação desesperada é introduzida em uma filosofia que deve ser as duas coisas ao mesmo tempo, desespero e autoconservação. As estruturas invariantes são criadas segundo a imagem do horror onipresente, da vertigem de uma sociedade ameaçada pelo declínio total. Se a ameaça desaparecesse, então com certeza também desapareceria com ela a sua inversão positiva, que não é ela mesma outra coisa senão o seu negativo abstrato.”
ah A expressão “acontecer apropriativamente” tem por correlato no original alemão o verbo ereignen. Este termo significa correntemente “acontecimento”, “evento”, “ocorrência”, mas no texto heideggeriano ganha um sentido técnico. Heidegger procura pensar o termo a partir da presença dos radicais eigen e äugen em seu étimo, “próprio” e “visão” respectivamente. Assim, o que temos não é um acontecimento entre outros, mas um acontecimento no interior do qual tem lugar uma determinada apropriação do ser-aí humano pelo ser e uma abertura desse ser-aí para o acontecimento do ente na totalidade. Como Adorno usa o termo a partir de sua significação no texto heideggeriano, procuramos recuperar o sentido do termo em Heidegger. (N.T.)

24. Cf., por ex., Heidegger, Vom Wesen des Grundes, op.cit., p.42 e 47.
25. Cf. Kant, Kritik der reinen Vernunft, op.cit., p.95.
26. Cf. Adolf Loos, Sämtliche Schriften [Escritos reunidos], vol.1, Viena/Munique, 1962, p.278 e passim.


“A consciência reificada é um momento na totalidade do mundo reificado; a necessidade ontológica é sua metafísica, mesmo se essa metafísica, segundo seu conteúdo doutrinal, explora a crítica à reificação, uma crítica que se tornou barata. A forma da invariância enquanto tal é a projeção do que essa consciência possui de cristalizado. Incapaz da experiência de tudo aquilo que já não estivesse contido no repertório do sempre igual constante, ela converte essa imutabilidade na ideia de algo eterno, a ideia da transcendência. Consciência liberada que certamente não é possuída por ninguém na não-liberdade; uma consciência que tivesse poder sobre si mesma, que fosse realmente tão autônoma como até aqui a consciência só deu ares de ser, não precisaria temer constantemente se perder em um outro — no fundo, as forças que a dominam. A necessidade de um ponto de apoio, de algo supostamente substancial, não é tão substancial quanto a sua autojustificação gostaria que fosse; ela é muito mais a marca registrada da fraqueza do eu, conhecida pela psicologia como uma danificação dos homens, atualmente típica. Quem não fosse mais oprimido nem pelo exterior nem em si mesmo, não buscaria nenhum ponto de apoio, talvez nem a si mesmo. Os sujeitos que puderam salvar algo da liberdade mesmo sob condições heterônomas padecem menos da falta de um ponto de apoio do que os sujeitos que não são livres e que gostariam demais de imputar a culpa por isso à liberdade. Se os homens não precisassem mais se igualar às coisas, eles não necessitariam mais de uma superestrutura coisal, nem precisariam se projetar como invariantes segundo o modelo da coisalidade. A doutrina das invariantes eterniza o caráter mínimo da transformação e sua positividade, o mal. Nessa medida, a necessidade ontológica é falsa. Muito provavelmente, a metafísica não desaparece no horizonte senão depois da queda das invariantes. Mas o consolo ajuda pouco. Aquilo que o tempo exigiria ignora o tempo, nenhuma espera é considerada como decisiva; quem se abandona a isso aceita a cisão entre o temporal e o eterno. Como essa cisão é falsa e, não obstante, as respostas das quais ela necessitaria são impossíveis no momento histórico, todas as perguntas que remetem a uma consolação possuem um caráter antinômico.”


“Todo e qualquer ente é mais do que ele é; o ser, em contraste com o ente, lembra-nos disso. Como não há nenhum ente que, na medida em que é determinado e determina a si mesmo, não careça de um outro que ele mesmo não é — pois ele não poderia ser determinado apenas por meio dele mesmo —, ele remete para além de si. Mediação é meramente uma outra palavra para designar isso. Heidegger, entretanto, tenta reter o que se remete para além de si e deixar para trás como escória aquilo para além do que ele se projeta. O entrelaçamento torna-se para ele o seu absoluto contrário, πρώτη οὐσία (substância primeira). Na palavra ser, na suma conceitual daquilo que é, a cópula se objetivou. Com certeza, assim como não se poderia falar de “é” sem “ser”, não se poderia falar de “ser” sem “é”. A palavra reenvia ao momento objetivo que condiciona em todo juízo predicativo a síntese, na qual somente ele de fato se cristaliza. Mas assim como esse estado de coisas no juízo, o ser tampouco é autônomo em face do é. A linguagem, que Heidegger considera com razão como mais do que a mera significação, é criadora graças à falta de autonomia de suas formas em relação àquilo que ele dela extirpa. Se a gramática acopla o “é” com a categoria do substrato ser enquanto seu ativo: exigindo que algo seja, então ela emprega reciprocamente ser apenas na relação com tudo aquilo que é, não em si. A aparência do ontologicamente puro é sem dúvida alguma fortalecida pelo fato de que toda análise de juízos remete a dois momentos, dos quais nenhum pode ser reduzido ao outro — tão pouco quanto, metalogicamente, sujeito e objeto.

— O pensamento fascinado pela quimera de algo absolutamente primeiro tenderá a reclamar por fim essa irredutibilidade mesma como algo derradeiro.”

A relação sujeito-objeto no juízo, enquanto uma relação puramente lógica, e a relação entre sujeito e objeto, enquanto uma relação material epistemológica, precisam ser de início estritamente diferenciadas; o termo “sujeito” significa, em um caso e no outro, coisas quase contraditórias. Na teoria do juízo, ele é adotado como a base a partir da qual algo é predicado; em relação ao ato do juízo e àquilo que é julgado na síntese judicativa, de uma certa maneira, na objetividade, ele é aquilo sobre o que se exerce o pensamento. Epistemologicamente, porém, o sujeito designa a função do pensamento, em muitos aspectos também aquele ente que pensa e que só pode ser excluído do conceito eu ao preço de não significar mais aquilo que significa. Mas essa distinção envolve, apesar de tudo, uma estreita afinidade entre o que é distinguido. A constelação de um estado de coisas tocada pelo juízo — na linguagem da fenomenologia, a constelação “daquilo que é julgado enquanto tal” — e da síntese que tanto repousa sobre aquele estado de coisas quanto o constitui lembra da síntese material entre sujeito e objeto. Esses se distinguem do mesmo modo, não podem ser remetidos à pura identidade de um ou do outro lado e se condicionam reciprocamente porque nenhum objeto é determinável sem a determinação que o torna assim, a saber, o sujeito, e porque nenhum sujeito pode pensar algo que não esteja contraposto a ele sem excluir daí o próprio sujeito: o pensar está acorrentado ao ente. O paralelo entre lógica e teoria do conhecimento é mais do que mera analogia. A relação puramente lógica entre o estado de coisas e a síntese que sabe que não leva em consideração a existência, a facticidade espaçotemporal, é em verdade uma abstração da relação sujeito-objeto. Essa é exposta segundo o ponto de vista do pensamento puro, negligenciando todo conteúdo coisal ôntico particular, sem que, contudo, a abstração tenha poder sobre o algo que ocupa a posição vazia do caráter coisal e que, por mais geral que seja o nome dado a ele pela abstração, visa a algo coisal, e somente por meio de algo coisal se torna aquilo que ele mesmo significa. A instauração metodológica da abstração tem seus limites no sentido daquilo que julga ter nas mãos enquanto forma pura. Para o “algo” lógico-formal, o que é indelével é o rastro do ente. A forma “algo” é constituída segundo o modelo do material, do τóδε; τι (esse algo) ela é a forma do material e, nessa medida, segundo sua própria significação puramente lógica, carece daquele elemento metalógico em função do qual, como polo oposto ao pensamento, se empenha a reflexão epistemológica.

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