segunda-feira, 18 de maio de 2020

Sobre Fotografia - Susan Sontag - 2º Capítulo

  
ESTADOS UNIDOS, VISTO EM FOTOS, DE UM ÂNGULO SOMBRIO

Quando Walt Whitman contemplava o panorama democrático da cultura, tentava enxergar além da diferença entre beleza e feiura, importância e trivialidade. Parecia-lhe servil ou esnobe fazer qualquer discriminação de valor, exceto as mais generosas. O nosso mais audaz e delirante profeta da revolução cultural estabeleceu sérias exigências de honestidade. Ninguém se incomodaria com a beleza e com a feiura, sugeriu ele, se aceitasse um abraço suficientemente amplo do real, da inclusividade e da vitalidade da verdadeira experiência americana. Todos os fatos, mesmo os mesquinhos, são incandescentes nos Estados Unidos de Whitman — esse espaço ideal, tornado real por força da história, onde “os fatos, ao emitirem a si mesmos, são regados com luz”.

A Grande Revolução Cultural Americana anunciada no prefácio da primeira edição de Folhas das folhas de relva (1855) não se cumpriu, o que frustrou muitos mas não surpreendeu ninguém. Um grande poeta não pode, sozinho, mudar o clima moral; mesmo quando o poeta tem milhões de Guardas Vermelhos a seu dispor, isso ainda não é fácil. Como qualquer profeta de uma revolução cultural, Whitman pensava discernir que a arte já fora superada, e desmistificada, pela realidade. “Os próprios Estados Unidos são, em essência, o maior poema.” Mas quando nenhuma revolução cultural ocorria e o maior dos poemas parecia menor em tempos de Império do que parecera sob a República, só outros artistas levaram a sério o programa de Whitman de transcendência populista, de uma reavaliação democrática da beleza e da feiura, da importância e da trivialidade. Longe de terem sido desmistificadas pela realidade, as artes americanas — em especial, a fotografia — aspiravam, agora, a levar a efeito a desmistificação.

Nas primeiras décadas da fotografia, esperava-se que as fotos fossem imagens idealizadas. Ainda é esse o objetivo da maioria dos fotógrafos amadores, para quem uma bela foto é uma foto de algo belo, como uma mulher, um pôr do sol. Em 1915, Edward Steichen fotografou uma garrafa de leite na saída de emergência de um prédio, um exemplo remoto de um conceito totalmente distinto do que é uma foto bela. E desde a década de 1920, profissionais ambiciosos, aqueles cuja obra alcança os museus, afastaram-se resolutamente dos temas líricos, explorando de forma conscienciosa um material comum, vulgar ou mesmo insípido. Em décadas recentes, a fotografia conseguiu, em certa medida, promover uma revisão, para todos, das definições do que é belo e do que é feio — na linha proposta por Whitman. Se (nas palavras de Whitman) “todo objeto ou condição ou combinação ou processo exibe uma beleza”, torna-se superficial privilegiar certas coisas como belas e outras não. Se “tudo o que uma pessoa faz ou pensa é relevante”, torna-se arbitrário tratar alguns momentos da vida como importantes e a maioria como triviais.

Fotografar é atribuir importância. Provavelmente não existe tema que não possa ser embelezado; além disso, não há como suprimir a tendência, inerente a todas as fotos, deconferir valor a seus temas. O significado do próprio valor pode ser alterado — como tem ocorrido na cultura contemporânea da imagem fotográfica, que é uma paródia do evangelho de Whitman. Nos palacetes da cultura pré-democrática, uma pessoa fotografada é uma celebridade. Nos campos abertos da experiência americana, como Whitman a catalogou com entusiasmo, e como Warhol a avaliou com pouco-caso, todo mundo é uma celebridade.

Nenhum momento é mais importante do que outro, ninguém é mais interessante do que qualquer outra pessoa.

A epígrafe de um livro de fotos de Walker Evans, publicado pelo Museu de Arte Moderna, é um trecho de Whitman que parece o tema da mais prestigiosa aspiração da fotografia americana: Não tenho dúvida de que a majestade e a beleza do mundo estão latentes em qualquer migalha do mundo [...]. Não tenho dúvida de que existe muito mais em coisas banais, em insetos, em pessoas vulgares, em escravos, em anões, em ervas, no refugo e na escória do que eu supunha.

Whitman não pensava estar abolindo a beleza, mas generalizando-a. Assim fez, durante várias gerações, a maioria dos fotógrafos americanos em sua polêmica busca do trivial e do vulgar. Mas, entre os fotógrafos americanos que amadureceram a partir da Segunda Guerra Mundial, o ditame whitmaniano de registrar, em sua integridade, a extravagante franqueza da verdadeira experiência americana gorou. Ao fotografar anões, não se obtêm majestade e beleza. Obtêm-se anões.

A partir das imagens reproduzidas e consagradas na luxuosa revista Camera Work, que Alfred Stieglitz publicou entre 1903 e 1917, e expostas na galeria por ele dirigida, em Nova York, entre 1905 e 1917, no número 291 da Quinta Avenida (primeiro chamada de Little Gallery of the Photo-Secession e depois, apenas de “291”) — revista e galeria que constituíram o fórum mais ambicioso dos juízos whitmanianos —, a fotografia americana passou da afirmação para a erosão e, por fim, para uma paródia do programa de Whitman.

Nessa história, a figura mais edificante é Walker Evans. Foi o último grande fotógrafo a trabalhar de forma séria e confiante num estado de ânimo derivado do humanismo eufórico de Whitman, recapitulando o que ocorrera antes (por exemplo, as espantosas fotos de imigrantes e de trabalhadores tiradas por Lewis Hine), antecipando boa parte da fotografia mais fria, mais rude, mais seca, feita a partir daí — como na prenunciadora série de fotos “secretas” de passageiros anônimos do metrô de Nova York, tiradas por Evans com uma câmera oculta entre 1939 e 1941. Mas Evans rompeu com o estilo heroico em que a visão whitmaniana fora divulgada por Stieglitz e seus discípulos, que desdenhavam Hine. Evans julgava rebuscado o trabalho de Stieglitz.

Como Whitman, Stieglitz não via contradição entre fazer da arte um instrumento de identificação com a comunidade e engrandecer o artista como um ego heroico, romântico e autoexpressivo. Em seu rebuscado e esplêndido livro de ensaios Port of New York (1924), Paul Rosenfeld aclamou Stieglitz como um “dos grandes afirmadores da vida. Não existe, em todo o mundo, nenhum tema tão tosco, banal e humilde que esse homem da caixa preta e do banho químico não consiga utilizar para expressar-se por inteiro”. Fotografar, e por conseguinte redimir o tosco, o banal e o humilde, é também um modo engenhoso de expressão individual. “O fotógrafo”, escreve Rosenfeld a respeito de Stieglitz, “lançou a rede do artista sobre o mundo material com mais largueza do que qualquer outro homem, antes ou junto dele. ”A fotografia é um tipo de hipérbole, uma cópula heroica com o mundo material. A exemplo de Hine, Evans buscava um tipo mais impessoal de afirmação, uma reticência nobre, um lúcido subentendido. Nem nas impessoais naturezas-mortas arquitetônicas das fachadas americanas e nos inventários de cômodos que ele adorava fazer, nem nos retratos rigorosos de meeiros sulistas que ele tirou no final na década de 1930 (publicados no livro feito com James Agee, Let us now praise famous men [Agora vamos louvar homens famosos]) Evans tentava expressar a si mesmo.


Mesmo sem a inflexão heroica, o projeto de Evans ainda descende do de Whitman: o nivelamento das discriminações entre o belo e o feio, entre o importante e o trivial. Cada coisa ou pessoa fotografada se torna — uma foto; e se torna, portanto, moralmente equivalente a qualquer outra de suas fotos. A câmera de Evans ressaltava, no exterior das casas vitorianas de Boston no início da década de 1930, a mesma beleza formal que ressaltava nos armazéns das ruas centrais de cidades do Alabama, em 1936. Mas esse era um nivelamento por cima, e não por baixo. Evans queria que suas fotos fossem “cultas, abalizadas, transcendentes”. Como o universo moral da década de 1930 não é mais o nosso, tais adjetivos são, hoje, muito pouco confiáveis. Ninguém exige que a fotografia seja culta. Ninguém consegue imaginar como ela poderia ser abalizada. Ninguém compreende como qualquer coisa, muito menos uma foto, poderia ser transcendente.

Whitman preconizava a empatia, a concórdia na discórdia, a unidade na diversidade. O intercurso psíquico com tudo e com todos — e mais a união sensual (quando ele a conseguia) — é a grande viagem explicitamente proposta, vezes sem conta, nos prefácios e nos poemas.

Essa ânsia de seduzir o mundo inteiro também determinou o tom e a forma de sua poesia. Os poemas de Whitman são uma tecnologia psíquica para encantar o leitor e levá-lo a um novo modo de ser (um microcosmo da “nova ordem” conjeturada para a sociedade); eles são funcionais, como mantras — maneiras de transmitir cargas de energia. A repetição, a cadência bombástica, os versos encadeados e a dicção atrevida constituem um ímpeto de inspiração secular, destinado a erguer fisicamente os leitores no ar, impeli-los para aquela altura onde são capazes de se identificar com o passado e com a comunidade do desejo americano. Mas essa mensagem de identificação com outros americanos é, hoje, estranha ao nosso temperamento.

O último suspiro do abraço erótico whitmaniano à nação, mas universalizado e despido de todas as exigências, foi ouvido em The Family of Man [A família do homem], exposição organizada em 1955 por Edward Steichen, contemporâneo de Stieglitz e cofundador da galeria Photo-Secession. Quinhentas e três fotos de 273 fotógrafos de 68 países deveriam convergir — a fim de provar que a humanidade é “una” e que os seres humanos, a despeito de todas as suas falhas e vilanias, são criaturas atraentes. As pessoas nas fotos eram de todas as raças, idades, classes, tipos físicos. Muitas tinham corpos excepcionalmente belos; algumas tinham rostos belos. Assim como Whitman exortava os leitores de seus poemas a identificar-se com ele e com os Estados Unidos, Steichen organizou a exposição de modo a permitir que cada espectador se identificasse com muitos dos povos retratados e, potencialmente, com o tema de todas as fotos: cidadãos da Fotografia Mundial, todos.

A fotografia só voltou a atrair ao Museu de Arte Moderna multidões semelhantes àquelas dezessete anos depois, para a retrospectiva da obra de Diane Arbus, em 1972. Na exposiçãode Arbus, 112 fotos tiradas por uma só pessoa, e todas semelhantes — ou seja, todas as pessoas nas fotos têm (de certo modo) a mesma aparência —, impunham um sentimento exatamente oposto ao afeto tranquilizador do material apresentado por Steichen. Em vez de pessoas cuja aparência agradava, gente representativa a cumprir seus honrados afazeres humanos, a exposição de Arbus perfilava monstros seletos e casos extremos — na maioria, feios; com roupas grotescas ou degradantes; em ambientes desoladores ou áridos — que se haviam detido para posar e, muitas vezes, para olhar com franqueza, com segurança, para o espectador. A obra de Arbus não solicita aos espectadores que se identifiquem com os párias e pessoas de aspecto miserável que ela fotografou. A humanidade não é “una”.

As fotos de Arbus transmitem a mensagem anti-humanista cujo impacto perturbador as pessoas de boa vontade, na década de 1970, queriam avidamente sentir, do mesmo modo como, na década de 1950, desejavam ser consoladas e distraídas por um humanismo sentimental. Não há entre essas mensagens tanta diferença como se poderia imaginar. A exposição de Steichen voltou-se para cima, e a de Arbus para baixo, mas as duas experiências servem igualmente para impedir a compreensão histórica da realidade.


A seleção de fotos de Steichen supõe uma condição humana, ou uma natureza humana, partilhada por todos. Ao proclamar a intenção de mostrar que os indivíduos, em toda parte, nascem, trabalham, riem e morrem do mesmo modo, The Family of Man nega o peso determinante da história — das diferenças, das injustiças e dos conflitos genuínos, historicamente enraizados. As fotos de Arbus solapam a política de um modo igualmente decisivo, ao sugerir um mundo em que todos são forasteiros, inapelavelmente isolados, imobilizados em identidades e relacionamentos mecânicos e estropiados. A elevação piedosa da antologia fotográfica de Steichen e o frio abatimento da retrospectiva de Arbus tornam irrelevantes a história e a política. Um o faz ao universalizar a condição humana, na alegria; o outro, ao atomizá-la, no horror.

O aspecto mais impressionante da obra de Arbus é que ela parece ter se engajado em uma das mais vigorosas empreitadas da arte fotográfica — concentrar-se nas vítimas, nos desgraçados —, mas sem servir ao propósito compassivo que se espera de tal projeto. Sua obra mostra pessoas patéticas, lamentáveis, bem como repulsivas, mas não desperta nenhum sentimento de compaixão. Mediante o que se poderia definir mais corretamente como seu ponto de vista dissociado, as fotos foram elogiadas por sua franqueza e por uma empatia não sentimental com seus temas. Aquilo que constitui de fato sua agressividade contra o público foi tratado como uma proeza moral: as fotos não permitem que o espectador se mantenha distante do tema. De modo mais plausível, as fotos de Arbus — com sua aceitação do horrível — sugerem uma ingenuidade que é, ao mesmo tempo, tímida e sinistra, pois se baseia na distância, no privilégio, num sentimento de que aquilo que o espectador é solicitado a ver é de fato outro. Buñuel, quando indagado, certa feita, sobre o motivo por que fazia filmes, respondeu que era “para mostrar que este não é o melhor dos mundos possíveis”. Arbus tirou fotos para mostrar algo mais simples — que existe outro mundo.

O outro mundo deve ser encontrado, como de costume, dentro deste. Confessadamente interessada em fotografar apenas gente que “parecia estranha”, Arbus encontrou um vasto material perto de casa. Nova York, com seus bailes de travestis e seus hotéis mantidos pela previdência social, abundava de tipos bizarros. Houve também um carnaval em Maryland, onde Arbus encontrou um porco-espinho humano, um hermafrodita com um cão, um homem tatuado e um albino engolidor de espadas; campos de nudismo em Nova Jersey e na Pensilvânia; a Disneylândia e um cenário de Hollywood, em razão de suas paisagens mortas ou simuladas, sem gente; e o hospital de doentes mentais não identificado onde ela tirou algumas de suas últimas e mais perturbadoras fotos. E havia sempre a vida cotidiana, com seu interminável suprimento de aberrações — se a pessoa tiver um bom olho para vê-las. A câmera tem o poder de captar as chamadas pessoas normais de tal modo que pareçam anormais. A fotógrafa escolhe a estranheza, a persegue, a enquadra, a revela, a intitula.

“Você vê uma pessoa na rua”, escreveu Arbus, “e, essencialmente, o que percebe nelas é o defeito.” A persistente mesmice da obra de Arbus, por mais distante que a fotógrafa se coloque em relação a seus temas prototípicos, mostra que a sensibilidade dela, armada de uma câmera, era capaz de insinuar angústia, perversão e doença mental em qualquer tema. Duas fotos são de bebês que choram; os bebês parecem perturbados, loucos. Parecer ou ter algo em comum com outra pessoa é uma fonte recorrente do assustador, segundo as normas características do modo dissociado de ver de Arbus. Podem ser as duas meninas (não irmãs) que vestem capas de chuva idênticas, a quem Arbus fotografou juntas no Central Park; ou os gêmeos ou trigêmeos que aparecem em várias fotos. Muitas fotos apontam, com um espanto opressivo, para o fato de que duas pessoas formam um casal; e todo casal é um casal estranho: homossexual ou não, negro ou branco, num lar de idosos ou num colégio de adolescentes. As pessoas pareciam excêntricas porque não vestiam roupas, como os nudistas; ou porque vestiam, como a garçonete no campo de nudismo que usava um avental. Todos que Arbus fotografava eram bizarros — um menino à espera da hora de marchar num desfile em favor da guerra, com seu chapeuzinho de palha e seu broche que diz “Bombardeiem Hanói”; o rei e a rainha de um baile de idosos aposentados; um casal suburbano, na casa dos trinta anos, refestelado em suas cadeiras sobre o gramado; uma viúva sentada sozinha em seu quarto em desordem. Em Gigante judeu em casa com os pais no Bronx, Nova York, 1970, os pais parecem anões, de estatura tão anômala quanto o enorme filho arqueado acima deles, sob o teto baixo da sala de estar.

A autoridade das fotos de Arbus deriva do contraste entre o material de seu tema dilacerante e sua atenção serena e trivial. Essa faculdade de atenção — a atenção prestada pela fotógrafa, a atenção prestada pelo tema ao ato de ser fotografado — cria o teatro moral dos retratos contemplativos e isentos de Arbus. Longe de espionar tipos bizarros e párias, e apanhá-los desprevenidos, a fotógrafa teve de conhecê-los, tranquilizá-los — de modo que posassem para ela de forma tão serena e imóvel quanto qualquer figurão vitoriano num retrato de estúdio de Julia Margaret Cameron. Grande parte do mistério das fotos de Arbus repousa naquilo que elas sugerem sobre como seus temas se sentiam após aceitar ser fotografados.

Será que se viam desse jeito, pergunta-se o espectador. Será que sabiam como eram grotescos? Parece que não.

O tema das fotos de Arbus é, para tomar emprestado o rótulo hegeliano, “a consciência infeliz”. Mas a maioria dos personagens do grand-guignol de Arbus parece ignorar que é feia.

Arbus fotografa pessoas em vários graus de relação inconsciente ou desatenta com a própria dor, com a própria feiura. Isso limita forçosamente o tipo de horror que Arbus era impelida a fotografar: exclui sofredores que, supostamente, sabem estar sofrendo, como as vítimas de acidentes, de guerras, de fome e de perseguição política. Arbus jamais tiraria fotos de acidentes, eventos que interrompem bruscamente a vida; ela se especializou em desastres privados em câmera lenta, que, na maioria dos casos, já vinham ocorrendo desde o nascimento do personagem da foto.

Embora a maior parte dos espectadores esteja pronta a imaginar que essas pessoas, os cidadãos do submundo sexual, bem como as anomalias genéticas, são infelizes, poucas fotos mostram, de fato, qualquer infortúnio emocional. As fotos de tipos desviantes e de autênticas anomalias não enfatizam sua dor, mas, antes, seu alheamento e sua autonomia. Os travestis em seus camarins, o anão mexicano em seu quarto de hotel em Manhattan, os baixotinhos russos numa sala de estar na 100th Street e seus semelhantes são apresentados, na maioria dos casos, como alegres, conformados, triviais. A dor é mais perceptível em retratos de pessoas normais: o casal de idosos que discute num banco de parque, uma senhora que trabalha de garçonete em Nova Orleans fotografada em sua casa com um cãozinho de suvenir, o menino no Central Park que segura entre os dedos sua granada de brinquedo.

Brassaï denunciou os fotógrafos que tentam capturar seus temas desprevenidos, na crença equivocada de que, assim, algo especial a respeito deles seria revelado.  Na verdade, não é um equívoco. No rosto das pessoas, quando ignoram que estão sendo observadas, existe algo que nunca aparece quando elas sabem disso. Se não soubéssemos como Walker Evans tirou suas fotos no metrô (viajando centenas de horas, no metrô, de pé, com a lente da câmera à espreita entre dois botões do seu sobretudo), ficaria óbvio pelas próprias fotos que os passageiros sentados, embora fotografados de perto e de frente, não sabiam que estavam sendo fotografados; suas expressões são confidenciais, não são aquelas que as pessoas mostram para uma câmera.) No mundo colonizado por Arbus, os temas estão sempre revelando a si mesmos. Não há nenhum momento decisivo. A ideia de Arbus de que a autorrevelação é um processo contínuo, distribuído com uniformidade, constitui outro modo de preservar o imperativo whitmaniano: trate todos os momentos como se tivessem a mesma importância. A exemplo de Brassaï, Arbus queria que seus temas estivessem o mais conscientes possível, cônscios do ato de que participavam. Em vez de tentar persuadir seus temas a se pôr numa atitude natural ou típica, ela os incentivava a ficar constrangidos — ou seja, a posar. (Portanto, a revelação da personalidade identifica-se com o que é estranho, excêntrico, disforme.) Ficar de pé ou rigidamente sentado faz com que eles pareçam imagens de si mesmos.

A maioria das fotos de Arbus tem temas que olham de frente para a câmera. Isso, não raro, os faz parecer mais estranhos ainda, quase enlouquecidos. Compare a foto de 1912, tirada por Lartigue, de uma mulher de chapéu de plumas e véu (Corrida de cavalos em Nice) com a foto de Arbus intitulada Mulher com véu na Quinta Avenida, Nova York, 1968. Além da característica feiura do tema de Arbus (o tema de Lartigue é belo, de forma igualmente característica), o que torna estranha a mulher na foto de Arbus é a atrevida desinibição de sua pose. Se a mulher de Lartigue olhasse para trás, talvez parecesse quase igualmente estranha.


Na retórica normal do retrato fotográfico, encarar a câmera significa solenidade, franqueza, o descerramento da essência do tema. É por isso que a frontalidade parece correta no caso de fotos de cerimônias (como casamentos, formaturas), mas menos adequada para fotos usadas para divulgar candidatos políticos. (Para os políticos, o olhar num viés de três-quartos é mais comum: um olhar que plana em vez de confrontar, sugerindo ao espectador, em lugar da relação com o presente, uma relação mais abstrata e enobrecedora com o futuro.) O que torna tão impressionante o emprego da pose frontal em Arbus é que seus temas são, não raro, pessoas que não esperaríamos que se oferecessem tão gentilmente e tão ingenuamente para a câmera. Assim, nas fotos de Arbus, a frontalidade também subentende, da forma mais nítida, a cooperação do tema. A fim de levar essas pessoas a posar, a fotógrafa teve de ganhar-lhes a confiança, teve de tornar-se “amiga” deles.

Talvez a cena mais aterradora no filme Freaks [Anomalias] (1932), de Tod Browning, seja o banquete de casamento, quando retardados, mulheres barbadas, gêmeos siameses e homens-tronco dançam e cantam sua aceitação da Cleópatra repulsivamente normal, que acabou de casar-se com o ingênuo herói anão. “Um de nós! Um de nós! Um de nós!”, entoam eles enquanto uma grande taça passa de boca em boca ao longo da mesa, para ser enfim oferecida à noiva, enojada, por um anão exuberante. Arbus tinha, talvez, uma visão demasiado simples do encanto, da hipocrisia e do desconforto de confraternizar com as anomalias. Em seguida ao entusiasmo da descoberta, havia a emoção de ter ganhado a confiança deles, de não sentir medo deles, de haver dominado a própria aversão. Fotografar anomalias “produzia em mim uma euforia tremenda”, explicou Arbus. “Eu simplesmente os adorava.”
 

As fotos de Diane Arbus já eram famosas entre as pessoas que acompanhavam a fotografia quando ela se matou, em 1971; mas, a exemplo de Sylvia Plath, a atenção que sua obra atraiu desde sua morte é de outra ordem — uma espécie de apoteose. O fato de ela ter se suicidado parece assegurar que sua obra é sincera, e não voyeurística, que é compassiva, e não fria. Seu suicídio também parece tornar as fotos mais devastadoras, como se provasse que as fotos representavam um perigo para ela.

A própria Arbus sugeriu essa possibilidade. “Tudo é tão esplêndido e comovedor. Eu avanço rastejando pelo chão, como nos filmes de guerra.” Embora a fotografia, normalmente, seja uma visão onipotente e à distância, existe uma situação em que as pessoas são mortas, de verdade, por tirar fotos: quando fotografam pessoas matando-se mutuamente. Só a fotografia de guerra combina voyeurismo e perigo. Fotógrafos de combate não podem deixar de participar da atividade letal que registram; até vestem uniformes militares, ainda que sem insígnias de patente. Descobrir (mediante o ato de fotografar) que a vida é “um verdadeiro melodrama”, entender a câmera como uma arma de ataque, implica que haverá baixas. “Tenho certeza de que existem limites”, escreveu ela. “Deus sabe como, na hora em que as tropas começam a avançar contra nós, nos aproximamos daquela sensação de ser alvejado, ocasião em que se pode perfeitamente ser morto.” As palavras de Arbus descrevem, em retrospecto, uma espécie de morte em combate: por haver ultrapassado certos limites, ela se sente numa emboscada psíquica, vítima de sua própria isenção e curiosidade.

Na antiga visão romântica do artista, qualquer pessoa que tenha a audácia de passar uma temporada no inferno se arrisca a não sair viva ou a voltar com lesões psicológicas. O vanguardismo heroico da literatura francesa, no fim do século XIX e no início do XX, fornece um panteão memorável de artistas que não conseguiram sobreviver a suas viagens ao inferno.

Contudo, existe uma grande diferença entre a atividade de um fotógrafo, que é sempre desejável, e a de um escritor, que pode não o ser. Uma pessoa tem o direito de dar voz à própria dor, pode sentir-se compelida a isso — pois a dor, de todo modo, é sua propriedade.

Mas, no outro caso, busca-se voluntariamente a dor dos outros.

Assim, o que há de mais perturbador nas fotos de Arbus não é, de maneira alguma, seu tema, mas a impressão cumulativa da consciência do fotógrafo: o sentimento de que aquilo que é apresentado constitui precisamente uma visão particular, algo voluntário. Arbus não era uma poeta que desceu às profundezas de suas entranhas para relatar a própria dor, mas uma fotógrafa que enveredou pelo mundo a fim de colher imagens dolorosas. E, para a dor procurada, em vez da dor apenas sentida, pode haver uma explicação nem um pouco óbvia.

Segundo Reich, o gosto masoquista da dor não emana de um amor à dor, mas da esperança de obter, por meio da dor, uma sensação forte; as pessoas afetadas por uma analgesia emocional ou sensorial preferem a dor apenas à alternativa de não sentir nada. Mas existe outra explicação do motivo por que as pessoas procuram a dor, uma explicação diametralmente oposta à de Reich e que também parece pertinente: que as pessoas a procuram não para sentir mais, e sim para sentir menos.

Por mais que olhar para as fotos de Arbus seja, incontestavelmente, uma provação, elas são típicas da espécie de arte popular entre pessoas sofisticadas no meio urbano atual: uma arte que representa um teste voluntário de resistência. Suas fotos oferecem uma ocasião para demonstrar que o horror da vida pode ser olhado de frente, sem melindres. A fotógrafa, antes,
teve de dizer para si mesma: muito bem, consigo suportar isso; o espectador é convidado a declarar o mesmo.

A obra de Arbus é um bom exemplo de uma tendência dominante na arte elevada nos países capitalistas: suprimir, ou pelo menos reduzir, o mal-estar moral e sensorial. Grande parcela da arte moderna dedica-se a diminuir a estatura do aterrorizante. Por nos acostumar ao que, antes, não suportávamos olhar ou ouvir, porque era demasiado chocante, doloroso ou constrangedor, a arte modifica a moral — esse corpo de usos e de sanções públicas que estabelece uma vaga fronteira entre o que é emocional e espontaneamente tolerável e o que não é. A supressão gradual do mal-estar, de fato, nos aproxima de uma verdade bastante formal — a arbitrariedade dos tabus construídos pela arte e pela moral. Mas nossa capacidade de digerir esse grotesco crescente nas imagens (paradas ou em movimento) e nos textos impressos tem um custo elevado. A longo prazo, age não como uma liberação da personalidade, mas como uma subtração da personalidade: uma pseudofamiliaridade com o horrível reforça a alienação, tornando a pessoa menos apta a reagir na vida real. O que ocorre com os sentimentos das pessoas na primeira exposição ao filme pornográfico em cartaz no cinema do bairro ou à atrocidade transmitida no telejornal noturno não é tão diferente do que se verifica quando elas veem pela primeira vez as fotos de Arbus.

As fotos fazem com que uma reação compassiva pareça irrelevante. A questão é não ficar transtornado, ser capaz de olhar de frente o horrível de modo imperturbável. Mas esse olhar que não é (principalmente) compassivo é uma construção ética moderna especial: não é insensível, nem cínico, sem dúvida, mas simplesmente (ou falsamente) ingênuo. À realidade dolorosa e horripilante, Arbus aplicou adjetivos como “tremendo”, “interessante”, “incrível”, “fantástico”, “sensacional” — o deslumbramento infantil da mentalidade pop. A câmera — segundo a imagem calculadamente ingênua, de Arbus, do desígnio do fotógrafo — é um instrumento que captura tudo, que induz os temas a revelar seus segredos, que amplia a experiência. Fotografar pessoas, segundo Arbus, é necessariamente “cruel”, “vil”. O importante é não piscar.

“A fotografia era uma autorização para eu ir aonde quisesse e fazer o que desejasse”, escreveu Arbus. A câmera é uma espécie de passaporte que aniquila as fronteiras morais e as inibições sociais, desonerando o fotógrafo de toda responsabilidade com relação às pessoas fotografadas. Toda a questão de fotografar pessoas consiste em que não se está intervindo na vida delas, apenas visitando-as. O fotógrafo é um superturista, uma extensão do antropólogo, que visita os nativos e traz de volta consigo informações sobre o comportamento exótico e os acessórios estranhos deles. O fotógrafo sempre tenta colonizar experiências novas ou descobrir maneiras novas de olhar para temas conhecidos — lutar contra o tédio. Pois o tédio é exatamente o reverso do fascínio: ambos dependem de se estar fora, e não dentro, de uma situação, e um conduz ao outro. “Os chineses têm uma teoria de que a gente passa do tédio para o fascínio”, comentou Arbus. Ao fotografar um submundo aterrador (e um mundo exterior deserto e plástico), ela não tinha a menor intenção de penetrar no horror experimentado pelos habitantes desses mundos. Eles devem permanecer exóticos, e portanto “tremendos”. A visão de Arbus é sempre externa. “Sinto-me muito pouco atraída a fotografar pessoas conhecidas ou mesmo temas conhecidos”, escreveu Arbus. “Eles me fascinam quando nunca ouvi falar a seu respeito.” Por mais que ela se sentisse atraída pelo estropiado e pelo feio, jamais teria ocorrido a Arbus fotografar bebês de talidomida ou vítimas de napalm — horrores públicos, deformidades com associações sentimentais ou éticas. Arbus não estava interessada em jornalismo ético.

Escolhia os temas que ela pudesse acreditar terem sido encontrados por acaso, em seu caminho, sem nenhum valor associado a eles. Trata-se necessariamente de temas aistóricos, uma patologia antes privada do que pública, vidas antes secretas do que expostas.

Para Arbus, a câmera fotografa o desconhecido. Mas desconhecido para quem? Desconhecido para alguém protegido, que aprendeu a manifestar reações moralistas e prudentes. Como Nathanael West, outro artista fascinado pelos deformados e mutilados, Arbus proveio de uma família judia de grande desenvoltura verbal, obsessiva com a saúde, propensa à indignação e rica, para quem os gostos sexuais minoritários situavam-se muito abaixo do limite da percepção e para quem correr riscos era desprezado como mais uma insanidade dos góis. “Uma das coisas que me fizeram sofrer na infância”, escreveu Arbus, “foi que nunca experimentei a adversidade. Vivia confinada numa sensação de irrealidade. [...] E a sensação de estar imune era, por absurdo que pareça, dolorosa.” Experimentando um mal-estar bem parecido, West, em 1927, empregou-se como recepcionista noturno num hotel sórdido em Manhattan. O modo de Arbus procurar experiências e, portanto, de obter uma sensação de realidade era a câmera. Por experiência, entendia, se não a adversidade material, pelo menos a adversidade psicológica — o choque da imersão em experiências que não podem ser belas, o encontro com o que é tabu, cruel, mau.

O interesse de Arbus por anomalias exprime um desejo de violar sua própria inocência, de solapar sua sensação de gozar um privilégio, dar vazão à sua frustração por estar a salvo. Além de West, a década de 1930 oferece poucos exemplos desse tipo de angústia. De modo mais típico, ela faz parte da sensibilidade de uma pessoa educada, de classe média, que se torna adulta entre 1945 e 1955 — uma sensibilidade que viria a florescer justamente na década de 1960.

A década do trabalho sério de Arbus coincide com os anos 60 e deve muito a eles, a década em que as anomalias vieram a público e se tornaram temas de arte aprovados e seguros. Aquilo que na década de 1930 era tratado com angústia — como nos romances Senhorita, Corações Solitários e O dia do gafanhoto — passaria a ser tratado, na década de 1960, com total desfaçatez, ou com franca satisfação (nos filmes de Fellini, Arrabal, Jodorowsky, em quadrinhos marginais, em espetáculos de rock). No começo dos anos 60, a próspera Feira de Aberrações em Coney Island foi proibida; fez-se pressão para pôr abaixo a zona de prostituição e de travestis do Times Square a fim de cobri-la com arranha-céus. À proporção que os habitantes dos submundos discrepantes são expulsos de seus territórios restritos — banidos como indecorosos, uma inconveniência pública, obscenos ou apenas não lucrativos —, eles passam cada vez mais a infiltrar-se conscientemente como um tema artístico, adquirindo certa legitimidade difusa e uma proximidade metafórica que produz mais distância ainda.

Quem poderia ter apreciado melhor a verdade das anomalias do que alguém como Arbus, que era, por profissão, uma fotógrafa de moda — uma fabricante da mentira cosmética que mascara as intratáveis desigualdades de nascimento, de classe e de aparência física? Mas, ao contrário de Warhol, que foi durante muitos anos um artista comercial, Arbus não criou sua obra séria promovendo e ironizando a estética do glamour, na qual fez seu aprendizado, mas sim lhe dando as costas inteiramente. A obra de Arbus é reativa — reativa contra o refinamento, contra aquilo que é aprovado. Era o seu jeito de dizer dane-se a Vogue, dane-se a moda, dane-se o que é bonito. Essa contestação toma duas formas não plenamente compatíveis. Uma é uma revolta contra a sensibilidade moral excessivamente desenvolvida dos judeus. A outra revolta, ela mesma intensamente moralista, se dirige contra o mundo do sucesso. A subversão moralista propõe a vida fracassada como um antídoto para a vida bem-sucedida. A subversão do esteta, que a década de 60 havia de tornar uma peculiaridade sua, propõe a vida como espetáculo de horror, como antídoto para a vida tediosa.

A maior parte da obra de Arbus situa-se no âmbito da estética de Warhol, ou seja, define-se em relação aos polos gêmeos do tédio e da anomalia; mas não tem o estilo de Warhol. Arbus não tinha o narcisismo de Warhol e seu gênio publicitário, nem a sutileza autoprotetora com que ele se isolava das anomalias, nem seu sentimentalismo. É improvável que Warhol, que provém de uma família de classe trabalhadora, jamais tenha sentido, com respeito ao sucesso, a ambivalência que afetava os filhos de judeus de classe média alta na década de 1960. Para alguém de formação católica, como Warhol (e quase todos da sua turma), um fascínio pelo mal surge de modo muito mais autêntico do que no caso de uma pessoa de origem judaica. Comparada com Warhol, Arbus parece extremamente vulnerável, inocente — e seguramente mais pessimista. Sua visão dantesca da cidade (e dos subúrbios) não tem nenhuma reserva de ironia. Embora boa parte do material de Arbus seja o mesmo retratado em, digamos, Chelsea Girls (1966), de Warhol, suas fotos nunca brincam com o horror, explorando-o a fim de produzir risos; não dão nenhuma passagem para a zombaria e nenhuma possibilidade de se considerar as anomalias estimáveis, como ocorre nos filmes de Warhol e de Paul Morrissey.

Para Arbus, os seres anômalos e os Estados Unidos medianos eram igualmente exóticos: um menino que marcha numa passeata em favor da guerra e uma dona de casa em Levittown eram tão estranhos como um anão ou um travesti; subúrbios de classe média baixa eram tão remotos como o Times Square, asilos de loucos e bares de gays. A obra de Arbus expressava sua tendência contra o que era público (tal como ela o experimentava), convencional, seguro, tranquilizador — e entediante — e em favor do que era privado, oculto, feio, perigoso e fascinante. Esses contrastes parecem, agora, quase antiquados. O que é seguro já não monopoliza o imaginário do público. As anomalias não são mais uma área reservada, de difícil acesso. Pessoas bizarras, em condição sexual vergonhosa, emocionalmente vazias, são vistas todos os dias nas bancas de jornal, na televisão, nos metrôs. O homem hobbesiano vaga pelas ruas, perfeitamente visível, com gel no cabelo.

Sofisticada à conhecida maneira modernista — preferindo a estranheza, a ingenuidade e a sinceridade à esperteza e à artificialidade da arte elevada e do comércio elevado —, Arbus dizia que o fotógrafo de quem mais se sentia próxima era Weegee, cujas fotos brutais de crimes e de vítimas de acidentes eram artigos de primeira necessidade para os jornais populares na década de 1940. As fotos de Weegee são, de fato, perturbadoras, sua sensibilidade é urbana, mas a solidariedade entre seu trabalho e o de Arbus termina aí. Por mais ávida que ela estivesse para repudiar os componentes típicos da sofisticação fotográfica, como a composição, Arbus não carecia de sofisticação. E nada há de jornalístico em seus motivos para tirar fotos. O que pode parecer jornalístico, e até sensacionalista, nas fotos de Arbus situa-as, na verdade, na tradição central da arte surrealista — seu gosto pelo grotesco, sua declarada inocência com relação aos temas, sua tese de que todos os temas são apenas
objets trouvés.

“Eu jamais escolheria um tema por aquilo que ele significasse para mim quando eu pensasse nele”, escreveu Arbus, um expoente pertinaz do blefe surrealista. Supostamente, não se espera que os espectadores julguem as pessoas que ela fotografa. Julgamos, é claro. E o próprio conjunto dos temas de Arbus constitui, em si mesmo, um julgamento. Brassaï, que fotografou pessoas semelhantes às que interessavam a Arbus — ver a sua La Môme Bijou, de 1932 —, também oferecia paisagens urbanas, retratos de artistas famosos. Hospital de doentes mentais, Nova Jersey, 1924, de Lewis Hine, poderia ser uma foto da última fase de Arbus (exceto pelo fato de as duas crianças mongoloides que posam no gramado terem sido fotografadas de perfil, e não de frente); os retratos de rua em Chicago tirados por Walker Evans em 1946 são um material digno de Arbus, bem como diversas fotos de Robert Frank. A diferença reside na série de outros temas e de outras emoções que Hine, Brassaï, Evans e Frank fotografaram. Arbus é auteur no sentido mais restritivo, um caso tão específico na história da fotografia quanto foi, na história da pintura europeia moderna, Giorgio Morandi, que passou meio século produzindo naturezas-mortas e garrafas. Arbus não diversifica seu assunto, como fazem os fotógrafos mais ambiciosos — por pouco que seja. Ao contrário, todos os seus temas são equivalentes. E estabelecer equivalências entre anomalias, loucos, casais do subúrbio e nudistas constitui um julgamento muito forte, em cumplicidade com uma reconhecível atitude política partilhada por muitos americanos instruídos e liberais de esquerda. Os temas das fotos de Arbus são todos membros da mesma família, habitantes de uma única aldeia. Acontece apenas que a aldeia são os Estados Unidos. Em vez de mostrar uma identidade entre coisas diferentes (o panorama democrático de Whitman), todos são mostrados de modo que pareçam iguais.

Em seguida às esperanças mais risonhas para os Estados Unidos, veio um abraço amargo e triste da experiência. Existe uma melancolia peculiar no projeto fotográfico americano. Mas a melancolia já estava latente no auge da afirmação whitmaniana, tal como representada por Stieglitz e seu círculo da Photo-Secession. Stieglitz, empenhado em redimir o mundo com sua câmera, ainda estava chocado pelos elementos da civilização moderna. Fotografou Nova York na década de 1910, num espírito quase quixotesco — câmera/lança contra arranha-céu/moinho de vento. Paul Rosenfeld descreveu os esforços de Stieglitz como uma “afirmação perpétua”.

Os apetites whitmanianos tornaram-se devotos: o fotógrafo, agora, patrocina a realidade.

Precisa-se da câmera para revelar padrões nessa “insípida e maravilhosa opacidade chamada Estados Unidos”.

Obviamente, uma missão tão envenenada por dúvidas acerca dos Estados Unidos — mesmo no máximo de seu otimismo — estava destinada a, bem cedo, se esvaziar, à medida que os Estados Unidos, no período após a Primeira Guerra Mundial, se entregavam com mais arrojoaos grandes negócios e ao consumismo. Os fotógrafos com menos ego e magnetismo do que Stieglitz gradualmente desertaram da luta. Podiam continuar a praticar a estenografia visual atomista inspirada em Whitman. Mas, sem o delirante poder de síntese de Whitman, aquilo que eles documentaram era descontinuidade, detrito, solidão, ganância, esterilidade. Stieglitz, ao usar a fotografia para contestar a civilização materialista, foi, nas palavras de Rosenfeld, “o homem que acreditava existir, em alguma parte, um Estados Unidos espiritual, e esses Estados Unidos não eram o túmulo do Ocidente”. O intuito implícito de Frank e Arbus, e de muitos entre seus contemporâneos e fotógrafos posteriores, é mostrar que os Estados Unidos são o túmulo do Ocidente.

Desde que a fotografia se desvencilhou da afirmação whitmaniana — desde que ela deixou de compreender como as fotos podiam ter em mira ser cultas, abalizadas, transcendentes —, o melhor da fotografia americana (e muitas outras coisas na cultura americana) entregou-se às consolações do surrealismo, e os Estados Unidos foram descobertos como o país surrealista, por excelência. Obviamente, é fácil demais dizer que os Estados Unidos são apenas uma feira de aberrações, uma terra devastada — o pessimismo barato típico da redução do real ao surreal. Mas a propensão americana para os mitos da redenção e da danação persiste como um dos aspectos mais revigorantes, mais sedutores, de nossa cultura nacional. O que abandonamos do desacreditado sonho de Whitman de uma revolução cultural são fantasmas de papel e um espirituoso e perspicaz programa de desespero.

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