Emerging man, Harlem, Nova York. 1952/ Cortesia da Gordon Parks Foundation
Impossível fugir do olhar do homem da foto. Quem passasse pela esquina da rua 43 com avenida das Américas, no centrão de Manhattan, daria de cara com a perturbadora imagem de um homem negro emergindo de um bueiro. A foto media 6 metros de largura por 3,9 de altura. Ficou exposta durante oito meses do ano
de 2014 na fachada do International Center of Photography justamente para obrigar o passante a fazer uma imersão no significado daquela figura. A obra intitulada Emerging Man, Harlem, 1952, era parte da mostra das comemorações do centenário de nascimento do fotógrafo americano Gordon Parks.
A foto fora concebida para ilustrar um ensaio do escritor negro Ralph Ellison, autor do romance Homem invisível, que trata da busca de identidade e do lugar na sociedade de um narrador não identificado — um homem negro da Nova York dos anos 1930 que se sente invisível porque o mundo à sua volta se recusa a vê-lo.
Difícil imaginar olhar mais aguçado que o de Gordon Parks para criar uma metáfora visual para o estudo de Ellison. Como já definiu o acadêmico e crítico literário Henry Louis Gates Jr., diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade Harvard, “Gordon Parks é o fotógrafo negro mais importante da história do fotojornalismo, ponto”.
Junto com Gótico Americano, de que se falará mais adiante, O homem que emerge compõe o dueto de obras mais icônicas do artista e hoje integra o acervo do High Museum of Art de Atlanta. O mesmo museu também abriga um trabalho de Parks que ficara parcialmente perdido por mais de meio século e, portanto, é menos
conhecido.
Trata-se de uma rara série colorida, intitulada Segregation Story, que documenta o dia a dia de uma família negra do Alabama dos anos 1950. Nada mais oportuno diante da recente erupção de rancor racial ocorrida em Ferguson, no estado do Missouri, onde o garoto negro Michael Brown, de dezoito anos e desarmado, foi morto com seis tiros por um policial branco à luz do dia em 2014. O episódio fez emergir a rotina de perseguição policial da população negra na segregada e balcanizada St. Louis, da qual Ferguson é um município vizinho, e de um viver da maioria dos cidadãos negros sob constante nuvem de desconfiança por parte das autoridades brancas.
Caso Gordon Parks fosse vivo (morreu em 2006, aos 93 anos) e recebesse a tarefa de fotografar a Ferguson inconformada com o desperdício de vida de mais um jovem negro, cabe supor que ele descartaria os midiáticos choques entre a polícia militarizada e os moradores. As quarenta fotografias que compõem a mostra História de Segregação, captadas durante o período de profundos embates raciais que precederam a Lei dos Direitos Civis dos anos 1960, focam numa única família, os Thornton, moradores de Mobile, no
Alabama.
A iniquidade social (não apenas racial) sempre serviu de motor para Parks tocar a vida e contaminar seu trabalho. Só que ele tentou desmontar a discriminação e o preconceito que conheceu desde a infância enfatizando as semelhanças entre todos nós. Através de sua obra fotográfica, procurou demonstrar que existe um elo humano a conectar-nos, brancos ou negros.
O ensaio sobre os Thornton foi publicado na edição de setembro de 1956 da revista Life, cuja circulação chegou a alcançar os 13,5 milhões de exemplares. Não continha nenhuma foto de brutalidade policial, passeatas, boicotes ou racismo violento.
Esparramadas ao longo de doze páginas, vinte fotos documentavam pela primeira vez em cores o cotidiano prosaico de uma família negra do Sul rural: os Thornton sentados no sofá de casa, indo à igreja, membros da família tomando sorvete, olhando vitrines, crianças brincando displicentemente com armas, e outras cenas inofensivas do gênero. Nada apocalíptico, portanto, mas causou o desejado impacto.
Parks sabia que o grosso dos leitores da semanal ilustrada eram brancos e tinham escolaridade decente.
Também sabia que o branco americano daquela época não operava com a noção de que o negro tinha uma vida privada plena e rica, no essencial igual à dele. Como ensinou o escritor James Baldwin, autor de Giovanni e o primeiro a dizer aos brancos, com todas as letras, o que os negros americanos pensavam e sentiam, os fundamentos incontestes de todo ser humano são apenas cinco: prazer, tristeza, amor, humor e dor.
Foi somente em 2012, portanto quase sessenta anos após a publicação daquele seminal ensaio, que a Gordon Parks Foundation descobriu outros setenta slides coloridos no fundo de uma caixa do arquivo morto. Estava assinalada como “Segregation Series”. É esse recorte da obra do fotógrafo que agora está exposto em
Atlanta e deverá percorrer os Estados Unidos até 2017.
Dentro da programação do centenário de Parks, o Festival de Fotografia de Toronto, no Canadá, apresentou a série Retratos, a galeria Howard Greenberg, de Nova York, exibiu as muitas faces de Muhammad Ali reunidas na mostra Campeão Americano, e a cidade de Milão foi brindada com a primeira grande retrospectiva (160 obras) do artista na Europa. Moscou, Roma, New Orleans, San Francisco, Minneapolis, Washington, o festival Les Rencontres d’Arles do ano passado, na França — o mundo visto por Gordon
Parks tem sido admirado por públicos dos mais ecléticos.
Por trás da atualíssima obra desse narrador fotográfico do século XX está um grande homem. Gordon Roger Alexander Buchanan Parks, nascido num gueto de Fort Scott no depauperado Kansas de 1912, assumiu a essência do ativismo e humanismo do período através de todas as formas criativas a seu alcance. E elas
não foram poucas.
Órfão de mãe na adolescência e com catorze irmãos, Gordon começou a trazer comida para casa tocando piano num bordel.
Passou a crooner de uma orquestra da casa e quase se tornou jogador de basquete semiprofissional. Desviou dessa trajetória quando ainda trabalhava como garçom no vagão-restaurante da linha ferroviária North Coast Limited, durante uma viagem entre Chicago e Seattle. Algum passageiro deixara ali uma revista repleta de fotos sobre os trabalhadores migrantes da Grande Depressão.
Foi o que o levou a uma loja de penhores para comprar sua primeira câmera.
Assim nasceu Gordon Parks, o fotógrafo. Autodidata e sem o curso secundário completo.
Seu primeiro empregador foi o Departamento de Segurança do Ministério da Agricultura ( FSA ) do governo Franklin D. Roosevelt, empenhado em registrar as condições de trabalho no país nos anos 1940. Com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra, ele também fotografou uma das unidades do exército composta só de recrutas negros, conforme o manual segregacionista da época. E paralelamente, como freelance, começou a alternar trabalhos para revistas de moda e fazer retratos de figuras proeminentes.
Foi em 1942, durante uma primeira viagem à capital do país, que Gordon Parks imprimiu a sua marca na história da fotografia.
Estava em Washington a serviço do FSA quando teve a atenção desviada para Ella Watson, uma funcionária do departamento encarregada da limpeza. Relataria mais tarde:
Senti, ali, um tipo de intolerância e discriminação que me pegou de surpresa. Comecei perguntando-lhe como era a sua vida e o que ouvi foi calamitoso. Senti-me compelido a fotografar essa mulher de forma que eu ou o público sentisse o que era Washington DC em 1942.
Parks colocou a funcionária negra de pé à frente de uma imensa bandeira dos Estados Unidos. Empunhando uma vassoura na mão direita e um esfregão na esquerda, ela mantém o olhar firme na direção da câmera.
“Para mim aquilo era o Gótico Americano — foi o que senti naquele momento. Foi o que senti sobre a América e a posição de Ella Watson dentro da América.”
A visão pessoal de Gordon Parks do clássico Gótico Americano, pintado por Grant Wood em 1930 e exposto no Art Institute de Chicago, foi um choque. A semelhança estrutural era propositada: mesmas linhas verticais, austeridade, as ferramentas de trabalho em primeiro plano, à frente dos retratados. Mas a intenção, oposta: enquanto no quadro de Grant Wood a casa ao fundo, com sua janela neogótica, sinaliza
segurança e fé nos valores nacionais, a bandeira americana de Gordon Parks não parece proteger Ella Watson.
Ao ver o retrato, Roy Stryker, responsável pela contratação de Parks para fotografar as condições de trabalho no país, opinou:
“Você está pegando o espírito da coisa, mas vai fazer com que sejamos todos demitidos”.
Ocorreu o contrário. Além de receber encomendas da revista Vogue para fazer a cobertura de desfiles de moda, Gordon Parks tornou-se, aos 25 anos, o primeiro fotógrafo negro a ser contratado e constar do expediente da Life. Trabalhou na revista por mais de duas décadas, até a extinção da edição semanal em 1972. Ali publicou ensaios de grande impacto sobre pobreza, vida urbana e discriminação. Por suas lentes também passaram todos os notáveis do movimento negro (Muhammad Ali, Malcolm X, Martin Luther King, Stokely Carmichael), bem como ícones do cinema da época, entre os quais Ingrid Bergman.
Tem mais. Em 1969 Parks tornou-se o primeiro diretor de cinema negro a fazer um longa-metragem para Hollywood. Baseado no romance que escrevera seis anos antes, The Learning Tree (Com o terror na alma, na versão brasileira) foi roteirizado, dirigido e produzido por ele. A trilha musical também é de sua autoria. Dois anos depois, ainda emplacou um sucesso de bilheteria ao dirigir Shaft, um clássico do movimento blaxploitation (de black [negro] + exploitation [exploração]), que produziu filmes com elenco e direção exclusivamente negros e voltados para um público também essencialmente negro.
Entre uma coisa e outra, foi cofundador e diretor editorial da revista Essence, dirigida à mulher afro-americana. Como compositor celebrado, escreveu e compôs o libreto de Martin, tributo a Martin Luther King, apresentado em 1989. Ainda publicou quatro livros de memórias e outros tantos de poesia, e aventurou-se a coreografar um balé. “Ainda não sei exatamente quem sou”, anotou aos 67 anos de idade.
“Sumi dentro de mim mesmo sob formas tão diferentes, que não sei quem é o meu eu.”
Entrevistado pelo New York Times ao completar 85 anos, Gordon Parks se definiu como uma espécie de anomalia. “Talvez porque tanto dependeu de minha determinação de não deixar que a discriminação me parasse.” Jamais esqueceu que uma de suas professoras no Kansas dissera em classe que aqueles alunos (todos negros) não deveriam desperdiçar o dinheiro dos pais tentando cursar uma faculdade, pois conseguiriam, no máximo, emprego de porteiro ou doméstica.
Parks dedicou cada um dos mais de quarenta títulos universitários honorários que recebeu à mestra de outrora para provar a ela quão errada estava. Os pais do jovem Michael Brown, baleado em Ferguson em 2014, perderam o filho que flertou com a marginalidade várias vezes, às vésperas de ingressar em uma
faculdade. Os ensaios fotográficos feitos por Gordon Parks mais de meio século antes continuam a ter triste atualidade.
Setembro de 2014
O Instante Certo - Dorrit Harazim
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