quarta-feira, 4 de março de 2020

Friedrich Nietzsche....


Friedrich Nietzsche
Renato Almeida - Formado em Direito, folclorista, colaborou em vários periódicos, foi um dos fundadores da Comissão Nacional do Folclore.

Resumo: Artigo publicado no diário carioca A Manhã, em 1944. Tal como outros editados no mesmo ano, vem a público a propósito da celebração do centenário de nascimento do filósofo. Alegando certo irracionalismo e misticismo na obra de Nietzsche, o autor procura associar sua obra à política nazista. Em sua abordagem, se vale de comentadores como Spengler e Simmel.

Frederico Nietzsche nasceu há justo um século, em Röcken, não será celebrado hoje na Alemanha nazista, donde foi renegado por ser suspeito de sangue judeu. No entanto, sua moral, segundo a qual a força justifica todas as coisas, é a prática da Gestapo. Desde 1938, Himmler vem servindo o banquete dos eleitos, no qual os feches nazistas se veem repastando a tripaforra. Os cordeirinhos nacionais, a princípio, algumas aves circunvizinhas e depois o gado europeu, tudo foi abatido para o grande regabofe, no qual os fracos foram devorados impiedosamente.

E, sob a vigilância das brigadas da SS, os alemães tiveram de conciliar a existência do altruísmo sobre os princípios agnósticos, para satisfazer o bem coletivo, e do egoísmo sobre o altruísmo, para se superar e atingir a essa raça privilegiada, que deveria dominar o mundo. Essa moral pregada por Nietzsche não pode ser mantida exclusivamente pelas energias individuais, que acabam por se baralhar e se confundir, mas tem de ser garantida pelas forças de assalto e pelos gabinetes de tortura da Gestapo. Só dessa forma se criarão os fanáticos capazes de suster e morrer por essa ordem de coisas.

A loucura genial de Nietzsche, que desejou não ter escrito com palavras, mas com relâmpagos, tentou, em aforismos e epigramas, sintetizar a estranha teoria germanista da força e, ainda que lhe tivesse emprestado uma grande beleza estética, pois Nietzsche foi antes de tudo um artista, não lhe tirou nem a brutalidade nem a crueza. A apologia da rapina conduziria o mundo ao desencadear dessas forças, que Keyserling chama de telúricas, sob as quais os deuses do Wahalla nazista e seus profetas se afundarão no sinistro crepúsculo que se aproxima. A voz de Nietzsche será sempre ouvida pela sua vibração artística, mas a sua essência repugnará os homens do futuro, que só se terão superado se dominarem pela inteligência e pelo sentimento, os imperativos do instinto.

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Para fixar a figura de Nietzsche, recorro a um conceito de Spengler, segundo o qual ele era quase sempre um determinado, no estilo, no tom e na atitude da sua filosofia por um romantismo retardatário. Na realidade, nele se fundem e se exaltam todas as forças do romantismo e o eu hipertrofiado transborda, não em mero devaneio, mas como expressão da vontade, que se transforma num misticismo novo. Ele tomou a vontade schopenhaueriana, como essência superior, não para fazê-la uma força do aniquilamento, antes a transmudou num valor fundamental, “fato elementar de onde resulta todo o vir-a-ser, toda a existência, toda a ação”. Como, porém, ela não tem objeto fora de si mesma, explica Simmel, ela se quer a si própria, isto é, se quer mais forte, vontade do poder. Essa vontade do poder é então alguma coisa de básico, porque justifica a existência, que digo? é a existência, em torno da qual tudo gravita, fundamento do espírito humano, se com ele mesmo não se vai confundir.

Mas, vamos vagarosamente. Para Nietzsche todo o primado da razão é absurdo, ou mesmo tolo. O conhecimento é um estado de equilíbrio espiritual e uma sugestão é sempre o ponto de partida de toda filosofia. Por aí se desvaloriza logo o conceito da verdade e se entra em terreno pragmatista. Nietzsche nos dará sucedâneos, mas o seu antirracionalismo está marcado e Spengler acha que o que mais o ligou a Schopenhauer foi a destruição que este fez da metafísica de grande estilo e parodia involuntariamente o mestre Kant.

Não nos detenhamos nessa rápida viagem, nos domínios de Nietzsche. Há montanhas ásperas e perigosas a galgar, através da transmutação de valores, a que se propõe o ardente pensador. Munamo-nos de vontade, com a qual a personalidade se vai engrandecer, aumentar e explodir. Essa vontade do poder vai querer alguma coisa. Mas Nietzsche olhou em derredor e viu que também estava preso, acorrentado, decadente. Era um escravo e dispôs-se, com a foice da vontade, a quebrar as tremendas cadeias.

Era a religião ensinando o sofrimento. Era a democracia degenerando o estado. Era a arte corrupta e o pessimismo aniquilante.

Então, Nietzsche – porque é preciso, e sempre e cada vez mais para a frente afastar-se passo a passo da decadência – nos deu a lição da vitória pela vontade, vencendo todos os entraves, para o que o homem, pela sua própria força, se recupere e se transforme no super-homem.

Não saberia dizer para que, pois Nietzsche aboliu, com Kant, o conhecimento das causas e toda a finalidade, negou depois a Moral, matou a Deus e nos deixou apenas mergulhados no oceano da fatalidade, que nos ensinou a amar. “Amor fati”... Ele destruiu, uma depois da outra, todas as bases do conhecimento e nos abandonou num deserto imenso, apenas guiado pela vontade do poder, que se torna instrumento inútil. E ele mesmo sentiu, não raro, o abismo sem ressonâncias, onde o repouso é impossível e as sombras o perturbaram e tudo quanto trucidou se renovava em perpétuas alucinações.

A vontade queria voar, confessa na “Gaya Scienza”. E seu voo mais audaz foi o poema de Zaratustra, cujo símbolo não será por demais reavivar. Aos 30 anos, Zaratustra deixou sua pátria e foi para a montanha, onde viveu dez anos, servido por dois animais – a águia, símbolo do orgulho; a serpente, símbolo da prudência. Quando se tornou rico de sabedoria, desceu a montanha e, no caminho, encontrou o velho eremita e espantou-se de que ele não soubesse que Deus tinha morrido. Na cidade vizinha deparou-lhe o acaso uma multidão, à espera do dançarino de corda, e ele lhe falaram.

Depois subiu a montanha e esperou os discípulos e fez discursos, no primeiro dos quais explicou a parábola das Três metamorfoses, segundo as quais é preciso que o homem se torne camelo, leão e criança. Camelo, paciente e humilde, para conseguir os grandes tesouros da vida. Leão, para “agarrar a sua presa de liberdade, lutar com seu Deus e matar o grande dragão”. Menino, para ter a inocência, o esquecimento, “uma roda que roda sobre si mesma, um primeiro movimento, uma santa afirmação”. E, depois, segue-se todo o evangelho do super-homem, tudo que tem e deve destruir e criar, na transmutação dos valores.

Zaratustra volve à caverna. A ideia de Deus atormenta e ele então raciocina: “Se houvesse um Deus, como não suportaria ser eu um igual. Não há, pois...”. E exclama: “Sim, eu sou Zaratustra, o homem sem deus. De mim nascerá o super-homem”. Ele é o porta-voz dessa filosofia da vontade do poder. Nenhuma moral, que não seja a da força, dos gatos nasçam tigres, dos sapos e lagartos, dragões e crocodilos. E o poema se desenvolve maravilhoso e surpreendente, até o banquete dos eleitos, na caverna de Zaratustra, em que degustam o cordeiro, trazido pela águia familiar, porque os fracos devem ser devorados. Mas, de súbito surge o leão, doce ao profeta e hostil aos demais. Ao seu rugido os eleitos fogem espavoridos e Zaratustra conclui que seu último pecado foi a piedade pelos homens superiores, mas a aurora nascente o torna igual ao sol da manhã.

Negado qualquer valor ao conhecimento, repelida a religião, a moral, num universo sem causa e sem fim, repleto apenas da alegoria numerosa de Zaratustra, para onde iremos? Situa-nos assim no mais completo materialismo. Spengler viu em Nietzsche um discípulo inconsciente de Darwin, no sentido da seleção pela luta.

Eu confesso que os materialistas me decepcionam na maneira mais angustiosa e não encontro como respirar nesse fosso sem saída, onde o homem perde toda a garantia do seu destino e fica esmagado pela contingência sombria. Nietzsche procurou vencê-la, é certo, mas criou uma fantasia apenas, com o exagero fremente dos românticos. O seu super-homem é o sal da terra, assim falou Zaratustra. Aquele que renunciou os preconceitos da religião, da moral, da democracia e do ascetismo: aquele que teve crueldade consigo mesmo e tudo sofreu e tudo venceu, não se resignou, para superar-se, chegou à suma categoria do Super-Homem. E estabeleceu, com tais heróis, a casta dominante, dos sábios criadores de valores.

E esse sábio será um amigo da guerra, que a guerra santifica qualquer coisa, será tudo como o dinamite, como o cinzel do escultor, não conhecerá vestígio de piedade e viverá em contínuo desenvolvimento (sempre o sentido nietzschiano da ascensão), porque a vida é o que se deve superar incessantemente. E, por fim, deve saber rir. Assim falava Zaratustra: “Esta coroa de riso, esta coroa de rosas, avós, irmãos meus, eu vos lanço. Sacrificai o riso – Homens superiores, aprendei a rir!”.

O super-homem de Nietzsche deslocou-se do seu individualismo e foi alargar-se na concepção nova de Estado, que se torna um ente coletivo e domina, que se procura superar e absorve e é a essência e forma, o totalismo em suma: o estadismo dos proletários de Moscou, dos fascistas de Mussolini ou dos nazistas de Hitler.

Estes, sobretudo, procedem, em linha reta, do misticismo de Nietzsche, cujas origens mergulham no inconsciente radical germânico. Essa fantasia do ariano – ariano que é uma hipótese – serve de escalão para marcar uma impossível superioridade étnica.

O homem não se superou, mas a sua inteligência ideou esse estado sempre maior, que se não é dirigido por super-homens, deve ter qualidades de perfeição, que o distancie das grandes massas.

O corolário da escravidão dos médios parece inalterável. E assim do mais agudo individualismo brota o mais extremo coletivismo. O eterno retorno. 

Para Nietzsche, o universo se faz e refaz, através de equilíbrios para viver, mas esses se repetem em determinadas circunstâncias, num processo, cuja constante é o próprio caos. Nessa evolução, que é uma repetição, o caos é a condição do eterno retorno a séries idênticas, é a lei do mesmo círculo. Só a variedade das condições, determinadas por esse caos, é que impõe a igualdade dos mesmos acontecimentos, deflagrados pelo conflito de forças, cujo equilíbrio é função da vontade do poder. E isso sem finalismo, mesmo sem fim...

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Nietzsche não foi, como pretendeu, um transmutador de valores, mas um criador de forças díspares e estranhas, que se perdiam numa interminável agitação, afinal infecunda e inútil. A sua filosofia nos deixa apenas essa sensação de inquietude, nunca nos satisfaz. As obras são todas precárias, sem finalismo, e o próprio super-homem é um meio e não um fim.

Para que atingir essa superioridade? Por si mesma. É preciso amar a vida sem causa e sem fim, amor ao destino devorador. Mas, para quê? Pela própria realidade da vida. O argumento se consome a si mesmo. Chegamos a um orientalismo, sem nirvana, pois o não-ser repugna ao heroísmo inútil de Nietzsche. O misticismo da vida, como a alegria da prisão.

No criador de Zaratustra nada resiste ao estranho gigantismo de suas concepções e por isso Graça Aranha, não sem certa injustiça, o julgou um “parvenu”, com um prurido de aparecer, que se manifesta na “ostentação da cultura, na declamação em voz alta, na sua intenção de refazer, de renovar”. Depois, fica apenas dessa filosofia o disforme e o monstruoso, sem alma e sem esperança. Ele quis vencer o ceticismo, com que Kant secara a razão humana, inutilizando o ilusionismo das fórmulas, mas atingiu apenas a sombra da melancolia.

O irracionalismo de Nietzsche chegou às mais inconcebíveis conclusões e, negando todas as forças da razão, teve de substituir o balizamento da filosofia. Foi a sua transmutação de valores. Mas, que colocou no lugar de que arrasara? Um destino cego, ignorante, beático, petulante e louco: “uma coisa é impossível em toda parte, e essa coisa tem um sentido nacional”, falava Zaratustra. Quis realizar Hitler e o mundo está sangrando.

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Nietzsche foi sobretudo um artista. Não só o poeta de Zaratustra, mas, principalmente, o jogador de formas de pensamento.

A agilidade, com que admirava o conceito ou a ideia, buscando menos o seu valor do que os efeitos da fantasia livre e audaz, era sempre uma surpresa nova e incomparável.

Nietzsche foi um dançarino formidável. Ele saltava, ele pulava, indomável e alígero, ao ímpeto duma música interior, a que não faltavam os acentos graves da loucura em derredor. O seu gênio amava a plástica pelo movimento e as suas imagens se agitam, lançam-se, rodopiam e caem. Essa força de ascensão lhe determinou o super-homem, que é movimento para cima. Poesia ardente de aspiração, do ser que se sublima, para superar-se a si próprio. Como? Pela ilusão. A ilusão do dançarino. “Dançarino acorrentado”, foi a sua concepção do artista e ele próprio a realizou.

A sua eterna contradição, a displicência com que lançava as ideias mais opostas e conciliava as mais impossíveis antinomias, dão bem o sentido da irrealidade com que faz a sua poesia. Por isso, muitos lhe recusam o título de filósofo. Pouco importam os sistematizadores. A sua filosofia foi uma expressão de arte, que se inspirou na vida, não para explicá-la, mas para exaltá-la. A sua constante foi a aspiração e, se o eterno descontentamento o fez pessimista, ele vence essa essência, sobrepondo uma outra, que tornava mais alta e mais perfeita. E se foi, de salto em salto, até à magia de Zaratustra.

E, no último salto, chegou à loucura! Infelizmente essa loucura contaminaria e chegaria ao desespero na prática por homens possessos. O espetáculo do universo lhe pareceu sempre um deslumbramento e quis integrar-se nele como uma força irredutível. A impossibilidade não o venceu e, se a filosofia lhe recuou o impulso ansiado, a arte foi o recurso supremo. E ele mesmo criou os instrumentos da sua mágica: o super-homem, a “gaya scienza”, o “amor fati”, a arte apolínia, a fantasmagoria de Zaratustra. Dançou entre os fantasmas da sua poesia, como um semi-deus, senhor da realidade que brotava do seu lirismo fremente e foi um criador contínuo, infatigável e absoluto. Criador de quê? De formas estéticas, de beleza, por que a sua filosofia só tem a emoção. Aliás, ele tinha que todas as sensações se deviam transmutar numa única sensação, de beleza, pela qual se chegaria ao paraíso de Zaratustra. O Mundo como encantamento!

Mas, em Nietzsche há ainda outra emoção, maior talvez do que a da poesia de Zaratustra – esse é um poema imortal – é a da sua própria tragédia. Esse homem, que sofreu toda a melancolia da solidão, cujo orgulho o separou dos homens, e teve de procurar na paisagem o seu próprio deslumbramento, vendo no fundo dos lagos os olhos da solidão, que o miravam, numa atração sombria, esse homem que viveu perturbado pelos seus próprios fantasmas, cuja morte anunciava a plenos pulmões, para melhor convencer, esse cantor da alegria, submerso na tristeza, divinizador da saúde, mas irremediavelmente doente, esse senhor da vida, que era incapaz de viver, esse Nietzsche superou-se pelo sofrimento e o seu canto tem a amargura trágica das vozes dos mártires eternos. Há no seu destino um lirismo de dor inesgotável. Odiava os alemães e foi um dos inspiradores de seu sonho de domínio...

O próprio gênio foi, para ele, uma perturbação. Tudo quis e a tudo aspirou, mas teve de confundir-se na música das suas próprias palavras, e foi o que lhe ficou da sua construção audaciosa. O seu romantismo possesso conduziu-o a divinizar o homem, mas falhou a lição de Zaratustra, e o mundo a amaldiçoou. A sua caverna, como a do seu profeta ficou deserta, mas a força do seu pensamento, como obra de arte, “é ardente e forte, sol da manhã que surge das montanhas sombrias”. 

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