quinta-feira, 5 de março de 2020

O Instante Certo - Eddie Adams....

Em homenagem a ele e pelo que sentia sobre a foto glamourizada dele, colocarei outras fotos de seu acervo. Aliás, todas lindas fotos....


A chave

© Eddie Adams, 1968. Granger/ Fotoarena

O americano Donald R. Winslow era um mero calouro nos anos 1970 quando o já lendário repórter fotográfico Edward Adams visitou o campus da Universidade de Indiana para dar uma palestra.

Lembra de ter ficado desconcertado quando o visitante, endeusado por ser o autor de uma imagem considerada ícone contra a Guerra do Vietnã, evitou discorrer sobre a célebre foto.

Logo na primeira pergunta de Winslow, o palestrante cortara o assunto: “Não há nada de novo para dizer. Não falo mais sobre isso, pois tudo já foi dito”. Ninguém da plateia entendeu por que o fotógrafo, de resto acessível e caudaloso no diálogo, fechava-se feito ostra sempre que a curiosidade da garotada se voltava para Execução em Saigon, título do instantâneo que lhe trouxera fama mundial.

Em apenas 1/500 de segundo, a foto revelara a banalidade da morte num conflito de ferocidade até então camuflada. “Foi a imagem da guerra na sua forma mais pura, direta e pessoal, sem preparativos para o combate nem homenagens póstumas a um soldado caído”, definiu o crítico Adam Bernstein, do Washington Post.

A cena captada em fevereiro de 1968 numa rua da capital sul-vietnamita rendera a Eddie, como Adam sempre foi chamado, o respeitado Prêmio Pulitzer, e eclipsou por completo o restante de sua prolífica carreira e obra.

Por artimanhas do destino o ex-calouro daquela palestra em Indiana acabou se tornando amigo do cultuado fotógrafo. Mas, ao longo das décadas que se seguiram, não voltaram a falar sobre a história e a imagem.

Foi numa manhã de 2004 que Winslow, então já editor-chefe da revista da NPPA (sigla, em inglês, da Associação Americana de Fotógrafos de Imprensa), recebeu um telefonema inesperado.

Era Eddie, com um pedido insólito. Sabia que mais cedo ou mais tarde caberia a Winslow escrever seu obituário, e lhe pedia que não fizesse referência a Execução em Saigon logo no primeiro parágrafo. Justificou o pedido dizendo que não considerava essa sua melhor obra. Acrescentou que faria solicitação semelhante ao editor do New York Times, apesar de saber que seria inútil.

Na mosca. O primeiro parágrafo do obituário do Times assinado por Andy Grundberg e datado de 20 de setembro de 2004 começava assim: 

“Eddie Adams, fotojornalista e fotógrafo de guerra, detentor de um Prêmio Pulitzer e autor de uma das imagens mais extraordinárias da Guerra do Vietnã, morreu sábado em Manhattan aos 71 anos...”.

A esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença degenerativa que o consumiu em poucos meses, não lhe permitiu participar das filmagens de An Unlikely Weapon: The Eddie Adams Story (Uma arma improvável: A história de Eddie Adams), um documentário sobre sua vida. É possível que através dele Eddie tivesse a intenção de se reconciliar com seus fantasmas. Mas o filme dirigido por Susan Cooper e narrado por Kiefer Sutherland teve de ser realizado sem essa bússola. Lançado em 2009, cinco anos após a morte do fotógrafo, o documentário demonstra o quanto a câmera, como o próprio Eddie dizia, foi a arma mais poderosa na guerra. Só que ela falhou em protegê-lo dele mesmo.

Ao contrário do que ocorria com Larry Burrows, David Duncan, David H. Kennerly ou Henri Fruet, para citar apenas alguns de seus memoráveis companheiros de ofício no atoleiro do Vietnã, Eddie Adams conhecia os imperativos militares. Serviu três anos na Guerra da Coreia junto a uma unidade de fuzileiros navais e de lá saiu com o DNA da corporação.

Incomodava-o a interpretação instantânea dada à sua fotografia mais famosa. E desagradava-lhe ouvir que a imagem da execução teve influência na sucessão presidencial daquele ano — menos de dois meses depois de ela ser publicada em todos os jornais do país, o presidente Lyndon Johnson desistiu de tentar a reeleição.

Eddie passou anos empenhando-se em dar outra conotação à cena retratada. Perguntava: O que você faria no lugar do general, naquelas circunstâncias [o Vietcongue havia deslanchado a grande Ofensiva do Tet contra Saigon]? Você capturou o cara que pouco antes matou teu amigo, a mulher do teu amigo e os filhos dele. Como você sabe se você também não puxaria o gatilho?

E repetia como um mantra a sua descrença geral: Máquinas fotográficas são as armas mais poderosas do mundo. Pessoas acreditam nelas, mas fotografias mentem, mesmo quando não manipuladas.

Elas são apenas meias verdades. O chefe de polícia, general Nguyen Ngoc Loan, matou um vietcongue e eu matei o general com minha câmera.

Eddie ficou dois anos sem olhar para Execução em Saigon.

Com o tempo, desistiu de tentar explicar. Sentia-se duplamente culpado. “Recebi dinheiro por mostrar um homem matando outro”, constatou depois de ganhar o Pulitzer. “Duas vidas foram destruídas, e eu era um herói.”

Felizmente a viúva de Eddie decidiu doar ao Dolph Briscoe Center for American History da Universidade do Texas os arquivos completos do marido, que cobriu treze guerras (desde a da Coreia nos anos 1950 à do Golfo nos 1990), acompanhou seis presidentes americanos, fez retratos memoráveis das principais personalidades e artistas da segunda metade do século passado, e recebeu mais de quinhentos prêmios ao longo da vida.

Foi ali que Donald Winslow encontrou a chave para desvendar o desconforto de Eddie com o lugar, a seu ver indevido, ocupado por Execução em Saigon nos anais da fotografia, da história e da própria biografia dele.

Encontrou nos pequenos diários manuscritos de capa vermelha referentes aos anos de 1963 e 1964 — muito antes, portanto, de sua chegada ao Vietnã — o que procurava. Descobriu que Eddie Adams já quisera, e muito, até de forma desesperada, ser premiado com um Pulitzer. Mas por um trabalho que considerava fazer jus à honraria: sua foto de Jacqueline Kennedy segurando a bandeira americana dobrada no funeral do marido assassinado, em novembro de 1963.

Fizera a foto com método, intenção, imaginação e técnica. A partir de uma cena transmitida para o mundo inteiro, acreditou ter construído com as ferramentas do seu talento uma imagem única.

Só que ela nem sequer chegou a ser selecionada como candidata ao prêmio.

Para indignação de Eddie, o vencedor do Pulitzer daquele ano foi o fotógrafo texano Robert Jackson, que conseguira captar o instante do inesperado disparo à queima-roupa contra o suspeito de matar JFK, Lee Oswald, nas barbas de sua escolta policial.

Um mero “fotorreflexo”, diria Eddie, daquele em que não há tempo para pensar. Ou, na definição de Winslow, daquele em que o cérebro do fotógrafo é acionado por um movimento ou um som qualquer com uma única ordem: “Aperta o disparador, já!”.

Execução em Saigon também faz parte da família dos “fotorreflexos”, e Winslow encontrou poucas referências a ele nos dias que se seguiram ao episódio.

Naquela quinta-feira de fevereiro de 1968, Eddie acompanhava a caminhada do vietcongue detido por policiais quando viu o general sacar a arma e se aproximar. Deve ter erguido a câmera para o rosto em sincronia com o movimento da mão armada do general, que apontou para a cabeça do prisioneiro. Câmera e pistola dispararam à queima-roupa e simultaneamente.

Como sempre nos tempos da era pré-digital, Eddie sequer sabia o que havia captado. Fotografou o fim da cena, entregou o filme para revelação ao editor de imagens Horst Faas e voltou às ruas sem esperar pelo resultado. O ex-fuzileiro naval que aprendeu a ver todo tipo de horrores de guerra e a seguir em frente, de câmera em punho, tinha mais guerra para cobrir.

Embora inconformado com a vida própria adquirida por Execução em Saigon, Eddie parece ter encontrado refúgio e redenção interior no pós-guerra. Voltou suas lentes para a saga dos milhares de sul-vietnamitas que vagavam sem rumo pelos mares após a derrocada dos Estados Unidos e a vitória do Vietnã do Norte.

Em todos os portos onde porventura tentavam atracar, os boat people eram rechaçados. Para realizar um extenso ensaio fotográfico sobre essa odisseia, Eddie embarcou numa das precárias balsas que partiram da costa vietnamita, com cinquenta crianças e adultos sem comida, água ou esperança suficientes a bordo. Empreitada de alto risco, porém com final feliz.

O material fotográfico acabou sendo apresentado a uma comissão do Congresso americano pelo Departamento de Estado e contribuiu para persuadir o então presidente Jimmy Carter a admitir a entrada de mais de 200 mil refugiados sul-vietnamitas no país.

Para 2014, ano em que se comemorou o décimo aniversário da morte do fotógrafo, não faltaram homenagens, mostras, debates e revisões de sua obra. Tampouco faltou a inevitável pergunta que lhe foi feita pela primeira vez por um holandês após a entrega de um prêmio: por que ele não impedira a execução do vietcongue em Saigon?

Tal dilema, tão antigo quanto o exercício da profissão de repórter fotográfico, e que varia de complexidade de acordo com as circunstâncias, havia muito deveria ter deixado Eddie em paz: mesmo que não tenha sido essa a intenção do autor, Execução em
Saigon serviu de argumento para encurtar a guerra. Contribuiu, portanto, para salvar mais que uma só vida dos dois lados da matança.

Fevereiro de 2014

O Instante Certo - Dorrit Harazim








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