quarta-feira, 11 de março de 2020

O Instante Certo - A fotografia descobre a América


A fotografia descobre a América

Em julho de 2013, quando se comemoraram os 150 anos da Batalha de Gettysburg, ocorreram mais de quatrocentos eventos no local da mais terrível carnificina da história americana, hoje preservado como parque militar. A batalha entre os exércitos da União e os rebeldes confederados durou três dias, com 51 mil soldados mortos. Ou seja, em menos de 72 horas de combate numa planície da Pensilvânia, em solo pátrio, morreram quase tantos soldados americanos quanto os 58 mil dizimados da Guerra do Vietnã, que durou oito anos, cinco meses e vinte dias.

A Guerra Civil Americana (1861-65), também chamada de Guerra de Secessão, foi uma luta fratricida entre duas visões para um mesmo país. Ela opôs os estados do Norte industrializado, liderados por um presidente abolicionista da estatura de Abraham Lincoln, a um Sul escravagista e rebelde que havia formado os Estados Confederados da América. Deixou cicatrizes políticas, raciais e econômicas visíveis até hoje.

A mostra Fotografia e a Guerra Civil Americana, exibida pelo Metropolitan Museum of Art de Nova York (MET), foi imperdível para quem gosta tanto de história quanto de fotografia. Ela teve o dom de induzir o visitante a uma obrigatória parada para reflexão — apesar de as mais de duzentas fotos de formatos, dimensões e processos variados (daguerreótipos, ambrótipos, ferrótipos) estarem acondicionadas em salas por demais exíguas para abrigar o público.

Os visitantes eram em grande maioria cidadãos americanos. Assim como foram basicamente americanos os 40 milhões de telespectadores que em 1990 não desgrudaram da televisão durante cinco noites seguidas para encarar as onze horas e meia de duração da preciosa série documental A Guerra Civil, de Ken Burns.

Mal saída da primeira infância na Europa, onde estreou em 1839, a fotografia desbravada por Joseph Nicéphore Nièpce e Louis Daguerre não demorou a cruzar o Atlântico e logo alterou a forma de comunicação visual da população. Mas foi na Guerra Civil que afotografia e a história política dos Estados Unidos se fundiram de maneira inextricável.

Quando o conflito irrompeu duas décadas mais tarde, a fotografia já estava suficientemente fincada no país para tornar-se a narradora oficial do conflito — sua face indelével. Até então guerras e batalhas sempre foram registradas através da chamada arte militar. Da Antiguidade a Delacroix, atravessando a Renascença e as Guerras Napoleônicas, glória, desgraça e heroísmo bélicos passavam pela interpretação de expoentes das belas-artes.

A fotografia mudou radicalmente essa narrativa. “Ela permitiu que o foco se fechasse na realidade física — nos fatos de vida e morte que definem a experiência humana”, resume o diretor do Metropolitan, Thomas P. Campbell.

O primeiro fotógrafo de guerra, segundo os estudiosos, parece ter sido um americano anônimo que captou algumas imagens em daguerreótipo durante a Guerra Mexicano-Americana, em 1847.

Também existem registros fotográficos da Guerra da Crimeia (1853-56), que envolveu o Império Russo de um lado e uma coligação anglo-franco-sardo-otomana do outro. Mas somente na Guerra Civil Americana é que fotógrafos documentaram do início ao fim um conflito militar. Foram perto de mil profissionais munidos de câmeras a acompanhar as tropas. Armavam tendas infláveis no caminho para retratar a soldadesca, e esta municiava os familiares distantes de retratos posados com esmero e despachados com regularidade dos acampamentos.

Esses estúdios itinerantes montados com claraboias para permitir a entrada de luz natural produziram milhares de imagens de cidadãos de todas as idades, raças e classes sociais da época.

Estúdios fixos e galerias nas cidades também se multiplicavam, refletindo a imagem em transformação que o país começava a ter de si mesmo. Jeff L. Rosenheim, o curador da mostra no MET, arrisca uma análise do período: “A câmera fotográfica desempenhou um papel que nem os exércitos em confronto, tampouco seuslíderes, poderiam ter tido. Ela definiu e ajudou a unificar a nação.

Sem ensaiar nem planejar, construiu a memória nacional”.

Quatro grandes fotógrafos — Alexander Gardner, Mathew Brady, Timothy O’Sullivan e Andrew Joseph Russell — constituem a espinha dorsal do período. São cultuados como pioneiros de uma linhagem de olheiros da cena americana que desemboca num Walker Evans, num Robert Frank ou num Lee Friedlander. O quarteto deixou uma obra colossal — não apenas volumosa como inovadora.

Não raro, porém, ajeitavam com a mão a realidade, recriando cenas para lhes insuflar mais impacto ou para compensar a limitação tecnológica e a dificuldade de chegar ao local no momento da ação. Duas das imagens de mais impacto captadas na Gettysburg pós-carnificina, e que trazem à memória cenas semelhantes imortalizadas em guerras posteriores, fazem parte da prolífica obra de Alexander Gardner. Não por acaso o autor lhes deu títulos assemelhados: em tradução livre, O último descanso do atirador e A moradia do atirador rebelde. Diante da limitação tecnológica de fotografar objetos em movimento, que em alguns casos exigia exposições de até oito minutos de duração à luz, tornou-se praxe não pecaminosa recriar cenas já ocorridas.

A prática era comum na época, visando intensificar com teatralidade o efeito visual e emocional desejado. No caso das famosas fotos gêmeas de Gardner, um mesmo cadáver serviu de protagonista às duas cenas distintas e teve de ser arrastado da trincheira para o descampado (ou vice-versa). A roupa do corpo sem vida foi alterada, e reposicionou-se sua arma para que melhor se encaixasse na composição; numa das imagens o distanciamento da câmera sugeria abandono, na outra o foco é mais fechado e cru.

Do prestigioso estúdio nova-iorquino de Mathew Brady saíram alguns dos retratos mais célebres da elite do país, atraindo até mesmo Abraham Lincoln, que em 1860 decidira reverter sua desvantagem física para a ascensão política deslanchar.Naquele ano, os americanos escolheriam pelo voto o 16º presidente da nação, e Lincoln era um candidato-zebra. Obtivera a indicação do Partido Republicano somente no terceiro escrutínio, e poucos conheciam seus modos e feições. Tinha fama de desengonçado e introvertido, além de grandalhão — pouco presidenciável, portanto, para ocupar a Casa Branca. Como obscuro advogado do Kentucky que se elegera congressista pelo Illinois e pretendia disputar o comando do país, ele precisava de uma imagem nacional palatável. Por isso, encontrou tempo entre dois comícios e se apresentou no estúdio de Brady, sem hora marcada.

O fotógrafo optou por não fazer um retrato em close-up do candidato de 1,93 metro de altura e aspecto cadavérico. Recuou a câmera e decidiu tirar proveito do seu porte. No último momento pediu permissão para levantar-lhe o colarinho.

“Já entendi. Você quer diminuir o meu pescoço”, disse Lincoln.

“Exatamente”, respondeu Brady com talento de marqueteiro.

Acertou. Da sessão em que foi feita uma única imagem, resultou a fotografia-ícone do candidato que se elegeu presidente. Ela é tida como o retrato mundialmente mais famoso daquele período.

O curador Rosenheim dá ênfase especial ao retrato de uma ex-escrava, Sojourner Truth, que se tornara feminista de destaque na época: “Ela posa como quem está no controle do próprio destino, como quem afirma sua identidade. Encara a câmera, e com intensidade”. Alinhada na mesma parede e disposta em tamanho igual à de Sojourner, está a imagem do torso lanhado de um escravo que escapara de uma fazenda do Mississippi e se refugiara junto aos soldados da União. Intitulada The scourged back (Costas açoitadas), a foto desempenha o papel de síntese da questão central da Guerra Civil — a liberdade da escravidão para todos —, e transformou-se em imagem-ícone ao longo dos últimos 150 anos de história americana.

O impulso dado pela fotografia à disseminação de imagens de negros no país foi estrondoso. Tanto pela demanda crescente de retratos individuais e familiares como pela própria presença donegro em flagrantes captados na guerra. Embora o negro americano estivesse proibido de servir nas Forças Armadas desde 1772, os libertos e emancipados podiam ocupar funções não militares para auxiliar as tropas no esforço de guerra — eram ferreiros, coveiros, serviçais de várias modalidades.

Foi em julho de 1861 que Abraham Lincoln reverteu essa política, ao permitir a formação das primeiras unidades negras a serviço da União. Ao todo, perto de 186 mil negros serviram nas unidades segregadas, cuja existência se repetiu nas duas Guerras Mundiais. A segregação militar só foi abolida por decreto presidencial de Harry Truman em 1948.

Uma das figuras mais visionárias reveladas pela Guerra Civil foi o cirurgião Reed Brockway Bontecou, que atravessou o conflito atuando como dublê de fotógrafo clínico. Armado de uma câmera, foi quem talvez mais perto chegou da realidade cotidiana do conflito, quem produziu a evidência visual mais consistente da brutalidade com que a guerra afetou o indivíduo, não o coletivo. Durante três anos Bontecou empreendeu em torno de seiscentas visitas a pacientes em hospitais de campanha. Por catorze meses seguidos, fotografou meticulosamente, de vários ângulos, cada amputação, mutilação, ferimento a bala, perfuração no corpo, desidratação.

Registrou cada caso com nome, data, acompanhado de uma ficha clínica que apontava o tratamento dispensado. No final, deixou para a história da medicina uma documentação valiosíssima e pioneira de imagens com méritos tanto artísticos quanto científicos.

Diz-se que a Guerra Civil é a Ilíada de Homero dos americanos.

Foi travada não por soldados profissionais, mas por cerca de 3 milhões de cidadãos voluntários. Nela irmãos lutaram contra irmãos, pais contra filhos, amigo contra amigo, com cada lado tentando proteger sua terra. Os estudos mais atualizados de historiadores e demógrafos estimam em 750 mil o número de mortes resultante do conflito. Se fosse hoje, levando-se em conta o aumento da população do país, uma guerra de dimensões comparáveis custaria a vida de 7,5 milhões de americanos.Ainda assim, passados 150 anos desde que Lincoln proferiu seu histórico discurso de Gettysburg anunciando “o renascer da liberdade”, igualdade racial e coesão nacional continuam em pauta.

Junho de 2013


O Instante Certo - Dorrit Harazim

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