sexta-feira, 20 de março de 2020

Aquarius / Let The Sunshine

Aquarius / Let The Sunshine
When the moon is in the Seventh House
And Jupiter aligns with Mars
Then peace will guide the planets
And love will steer the stars
This is the dawning of the age of Aquarius
The age of Aquarius
Aquarius!
Aquarius!
Harmony and understanding
Sympathy and trust abounding
No more falsehoods or derisions
Golding living dreams of visions
Mystic crystal revalation
And the mind's true liberation
Aquarius!
Aquarius!
When the moon is in the Seventh House
And Jupiter aligns with Mars
Then peace will guide the planets
And love will steer the stars
This is the dawning of the age of Aquarius
The age of Aquarius
Aquarius!
Aquarius!
Harmony and understanding
Sympathy and trust abounding
No more falsehoods or derisions
Golding living dreams of visions
Mystic crystal revalation
And the mind's true liberation
Aquarius!
Aquarius!

quarta-feira, 18 de março de 2020

Monitorar e Punir - Žizek


ŽIŽEK: MONITORAR E PUNIR? SIM, POR FAVOR!
17 DE MARÇO DE 2020 | TRADUTORES PROLETÁRIOS

Muitos comentaristas liberais e esquerdistas observaram como a epidemia do coronavírus tem servido para justificar e legitimar medidas de controle e regulamentação das pessoas, medidas que, até agora, eram impensáveis ​​em uma sociedade democrática ocidental. O bloqueio total da Itália não é o “sonho erótico” do totalitarismo? Não é de se admirar que (pelo menos do jeito que está agora) a China, que já praticou amplamente modos de controle social digitalizado, provou estar mais bem equipada para lidar com epidemias catastróficas. Isso significa que, pelo menos em alguns aspectos, a China é o nosso futuro? Estamos nos aproximando de um estado de exceção global? As análises de Giorgio Agamben ganharam nova atualidade?

Não é de surpreender que o próprio Agamben tenha chegado a essa conclusão: ele reagiu à epidemia do coronavírus de uma maneira radicalmente diferente da maioria dos comentaristas. Ele deplorou as “medidas de emergência frenéticas, irracionais e absolutamente injustificadas adotadas para uma suposta epidemia de coronavírus”, que é apenas outra versão da gripe, e perguntou: “Por que a mídia e as autoridades fazem todo o possível para criar um clima de pânico, provocando assim um verdadeiro estado de exceção, com severas limitações de movimento e suspensão da vida cotidiana e atividades de trabalho para regiões inteiras? ”

Agamben vê a principal razão dessa “resposta desproporcional” na “tendência crescente de usar o estado de exceção como um paradigma de governo normal”. As medidas impostas permitem ao governo limitar seriamente nossas liberdades por decreto executivo: “É evidente que todas essas restrições são desproporcionais para tratar de uma ameaça que, de acordo com a NRC, é uma gripe normal, não muito diferente das que nos afetam todo ano./…/ Devemos dizer que, uma vez que o terrorismo for esgotado como justificativa para medidas excepcionais, a invenção de uma epidemia poderia oferecer o pretexto ideal para expandir essas medidas para além de qualquer limite”. A segunda razão é “O estado de medo que nos anos recentes tem sido difundido na consciência individual e que se traduz em uma necessidade real por estados de pânico coletivo, nos quais a epidemia uma vez mais oferece o pretexto ideal.”

Agamben está descrevendo um aspecto importante do funcionamento do controle estatal nas epidemias em andamento. Mas há questões que permanecem em aberto: por que o poder estatal estaria interessado em promover esse pânico, que é acompanhado por desconfiança no poder estatal (“eles são impotentes, não estão fazendo o suficiente…”) e que perturbam a reprodução normal do capital? É realmente do interesse do capital e do poder estatal desencadear uma crise econômica global para revigorar seu reinado? São claros os sinais de que, não apenas as pessoas comuns, mas também os poderes estatais estão em pânico, plenamente conscientes de não serem capazes de controlar a situação – esses sinais são realmente apenas um estratagema?

A reação de Agamben é a forma extrema de uma postura generalizada da esquerda de ler o “pânico exagerado” causado pela propagação do vírus como uma mistura de exercícios de poder de controle social e elementos de racismo total (“culpar a natureza ou a China”). No entanto, essa interpretação social não faz desaparecer a realidade da ameaça. Essa realidade nos obriga a reduzir efetivamente nossas liberdades? Quarentenas e medidas similares, é claro, limitam nossa liberdade, e novos Assanges são necessários aqui para revelar seus possíveis usos indevidos. Mas a ameaça de infecção viral também deu um tremendo impulso a novas formas de solidariedade local e global, além de deixar clara a necessidade de controle sobre o próprio poder. As pessoas têm razão em responsabilizar o poder do Estado: vocês têm o poder, agora mostrem o que podem fazer!

“A China introduziu medidas que provavelmente a Europa Ocidental e os EUA não iriam tolerar, talvez em seu próprio prejuízo. Para ser franco, é um erro interpretar reflexivamente todas as formas de detecção e modelagem como ‘vigilância’ e governança ativa como ‘controle social’. Precisamos de um vocabulário de intervenção diferente e com mais nuances. ” [1]

Tudo depende desse “vocabulário mais nuançado”: ​​as medidas necessárias a uma epidemia não devem ser automaticamente reduzidas ao paradigma usual de vigilância e controle propagado por pensadores como Foucault. O que temo hoje mais do que as medidas aplicadas pela China (e Itália e etc.) é que elas sejam aplicadas de maneira que não funcione para conter a epidemia, enquanto as autoridades manipularão e ocultarão os dados verdadeiros.

Tanto a “alt-right” quanto a esquerda “fake” recusam-se a aceitar toda a realidade da epidemia, cada uma diluindo-a em um exercício de redução social-construtivista, ou seja, denunciando-a em nome de seu significado social. Trump e seus partidários insistem repetidamente que a epidemia é uma conspiração dos democratas e da China para fazê-lo perder as próximas eleições, enquanto alguns da esquerda denunciam as medidas propostas pelos aparatos estatais e de saúde contaminados pela xenofobia e, portanto, insistem em apertar as mãos e etc. tal postura perde de vista o paradoxo: não apertar as mãos e ficar isolado quando necessário É a forma atual de solidariedade.

Quem hoje será capaz de dar um aperto de mão e abraçar? Os privilegiados. O Decameron de Boccaccio é composto por histórias contadas por um grupo de sete jovens e três jovens abrigados em uma vila isolada nos arredores de Florença para escapar da praga que afligia a cidade. A elite financeira se retirará para zonas isoladas e se divertirá contando histórias no estilo Decameron. (Os ultra-ricos já estão lotando aviões particulares para pequenas ilhas exclusivas no Caribe.) Nós, pessoas comuns, que precisaremos viver com vírus, somos bombardeados pela fórmula repetidamente interminável “Sem pânico! ”… E então chegam todas as notícias que não podem deixar de desencadear o pânico. A situação se assemelha à que me lembro da minha juventude em um país comunista: quando funcionários do governo garantiam ao povo que não havia motivo para entrar em pânico, todos nós tomavámos essas garantias como sinais claros de que eles mesmos estavam em pânico.

Mas o pânico não é uma maneira adequada de enfrentar uma ameaça real. Quando reagimos em pânico, não levamos a ameaça a sério; nós, pelo contrário, a banalizamos. Pense em quão ridículo é comprar uma quantidade excessiva de rolos de papel higiênico: como se ter papel higiênico suficiente importasse em meio a uma epidemia mortal …. Então, qual seria uma reação apropriada à epidemia de coronavírus? O que devemos aprender e o que devemos fazer para enfrentá-lo seriamente?

Quando sugeri que a epidemia de coronavírus poderia dar um novo impulso à vida do comunismo, minha reivindicação foi, como esperado, ridicularizada. Embora pareça que uma forte abordagem da crise pelo Estado chinês tenha funcionado – pelo menos funcionou muito melhor do que o que está acontecendo agora na Itália -, a velha lógica autoritária dos comunistas no poder também demonstrou claramente suas limitações. Uma delas era que o medo de trazer más notícias para os que estão no poder (e para o público) supera os resultados reais. Esta foi a razão pela qual aqueles que primeiro informaram sobre um novo vírus foram presos e há relatos de que algo semelhante está acontecendo agora:

“A pressão para que a China volte ao trabalho após o desligamento do coronavírus está ressuscitando uma antiga tentação: manipular dados para mostrar aos altos funcionários o que eles querem ver. Esse fenômeno está ocorrendo na província de Zhejiang, um centro industrial na costa leste, na forma de uso de eletricidade. Pelo menos três cidades estabeleceram metas de fábricas locais para atingir o consumo de energia, porque eles estão usando os dados para mostrar um ressurgimento da produção, segundo pessoas familiarizadas com o assunto. Isso levou algumas empresas a operar máquinas, mesmo quando suas fábricas permanecem vazias, disseram as pessoas. ”

Também podemos adivinhar o que acontecerá quando os detentores do poder perceberem essa trapaça: os gerentes locais serão acusados ​​de sabotagem e severamente punidos, reproduzindo assim o ciclo vicioso de desconfiança …. Será necessário aqui um Julian Assange chinês para expor ao público esse lado oculto de como a China está lidando com a epidemia. Então, se este não é o comunismo que tenho em mente, o que quero dizer com comunismo? Para obtê-lo, basta ler as declarações públicas da OMS. Aqui está uma recente :

“O chefe da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse na quinta-feira que, embora as autoridades de saúde pública em todo o mundo tenham a capacidade de combater com sucesso a propagação do vírus, a organização está preocupada com o fato de que em alguns países o nível de compromisso político não corresponde ao nível de ameaça. ‘Essa é uma situação seria. Não é hora de desistir. Não é hora de desculpas. Este é um momento para retirar todas as paradas. Os países planejam cenários como esse há décadas. Agora é a hora de agir sobre esses planos ‘, disse Tedros. ‘Esta epidemia pode ser evitada, mas apenas com uma abordagem coletiva, coordenada e abrangente que envolva todo o mecanismo do governo’. ”

Pode-se acrescentar que essa abordagem abrangente deve ir muito além da maquinaria de governos isolados: deve abranger a mobilização local de pessoas fora do controle estatal, bem como coordenação e colaboração internacionais fortes e eficientes. Se milhares forem hospitalizados por problemas respiratórios, será necessário um número muito maior de máquinas respiratórias e, para obtê-las, o estado deve intervir diretamente da mesma maneira que intervém em condições de guerra quando milhares de armas são necessárias. E deve contar com a cooperação de outros estados. Como em uma campanha militar, as informações devem ser compartilhadas e os planos totalmente coordenados – isso é tudo o que quero dizer com o “comunismo” necessário hoje, ou, como Will Hutton colocou: “Hoje, uma forma de globalização não regulamentada e de livre mercado, com sua propensão a crises e pandemias, certamente está morrendo. Mas outra forma que reconhece a interdependência e a primazia da ação coletiva baseada em evidências está nascendo. “O que agora ainda predomina é a posição de “cada país por si só”: “existem proibições nacionais à exportação de produtos-chave , como suprimentos médicos, com os países recorrendo à sua própria análise da crise e, em meio à escassez localizada e desorganização, táticas primitivas de contenção .”

A epidemia de coronavírus não sinaliza apenas o limite da globalização do mercado, mas também o limite ainda mais fatal do populismo nacionalista, que insiste na soberania do Estado. Acabou com “América (ou quem quer que seja) primeiro!” Já que os Estados Unidos podem ser salvos apenas através da coordenação e colaboração globais. Eu não sou utópico aqui; não apelo a uma solidariedade idealizada entre as pessoas. Pelo contrário, a presente crise demonstra claramente como a solidariedade e a cooperação globais são do interesse da sobrevivência de cada um de nós, que é a única coisa racionalmente egoísta a se fazer. E não é apenas o coronavírus: a própria China sofreu uma gigantesca gripe suína meses atrás e agora está ameaçada pela perspectiva de uma invasão de gafanhotos. Além disso, como Owen Jones observou, a crise climática mata muito mais pessoas em todo o mundo que o coronavírus, mas não há pânico sobre isso…

Do ponto de vista vitalista cínico, seria tentador ver o coronavírus como uma infecção benéfica, que permite à humanidade livrar-se dos velhos, fracos e doentes, como arrancar uma erva podre e, assim, contribuir para a saúde global. A ampla abordagem comunista que estou defendendo é a única maneira de realmente deixarmos para trás um ponto de vista vitalista tão primitivo. Sinais de cerceamento da solidariedade incondicional já são discerníveis nos debates em andamento, como na nota a seguir sobre o papel dos “três Reis Magos” se a epidemia der uma virada mais catastrófica no Reino Unido: “Os pacientes do NHS podem ter seus tratamentos negados durante um grave surto de coronavírus na Grã-Bretanha se as unidades de terapia intensiva estiverem lutando para lidar com isso, alertaram os médicos veteranos. Sob o chamado protocolo dos “três homens sábios”, três consultores seniores em cada hospital seriam forçados a tomar decisões sobre cuidados de racionamento, como ventiladores e camas, caso os hospitais estivessem sobrecarregados com os pacientes. ” Em que critérios os “três Reis Magos” se baseiam? Sacrificar os mais fracos e os mais velhos? E essa situação não abrirá espaço para imensa corrupção? Tais procedimentos não indicam que estamos nos preparando para adotar a lógica mais brutal da sobrevivência do mais apto? Então, novamente, a escolha final é essa ou algum tipo de comunismo reinventado.

Mas as coisas vão muito mais fundo que isso. O que acho especialmente irritante é como, quando nossa mídia anuncia algum fechamento ou cancelamento, eles geralmente adicionam uma limitação temporal fixa: a fórmula “as escolas serão fechadas até 4 de abril”. A grande expectativa é que, depois do pico que deve chegar rápido, as coisas voltem ao normal. Nesse sentido, eu já fui informado de que um simpósio universitário acabou de ser adiado para setembro … O problema é que, mesmo quando a vida voltar ao normal, não será a mesma normal com a qual estávamos acostumados antes do surto: coisas com as quais estávamos acostumados como parte de nossa vida cotidiana não serão mais um dado adquirido; teremos que aprender a viver uma vida muito mais frágil, com ameaças constantes à espreita logo atrás da esquina.

Por esse motivo, podemos esperar que as epidemias virais afetem nossas interações mais elementares com outras pessoas e objetos ao redor, inclusive em nosso próprio corpo: evitar tocar em coisas que podem ser (invisivelmente) “sujas”, não tocar em ganchos, não sentar em banheiros públicos ou em bancos em locais públicos, evitar abraçar os outros e apertar as mãos… E ter cuidado ao controlar seu próprio corpo e seus gestos espontâneos: não tocar no nariz nem esfregar os olhos – enfim, não brincar consigo mesmo. Portanto, não são apenas o estado e outras agências que nos controlarão; devemos aprender a nos controlar e nos disciplinar! Talvez apenas a realidade virtual seja considerada segura e o movimento livre em um espaço aberto seja reservado para as ilhas pertencentes aos ultra-ricos.

Mas mesmo aqui, no nível da realidade virtual e da Internet, devemos lembrar que, nas últimas décadas, os termos “vírus” e “viral” foram usados ​​principalmente para designar vírus digitais que estavam infectando nosso espaço na web e dos quais não tínhamos consciência, pelo menos até que seu poder destrutivo (por exemplo, de destruir nossos dados ou nosso disco rígido) fosse liberado. O que vemos agora é um retorno maciço ao significado literal original do termo: as infecções virais funcionam de mãos dadas nas duas dimensões, real e virtual.

Então, teremos que mudar toda a nossa postura em relação à vida, em relação à nossa existência como seres vivos, entre outras formas de vida. Em outras palavras, se entendermos “filosofia” como o nome de nossa orientação básica na vida, teremos que experimentar uma verdadeira revolução filosófica. Talvez possamos aprender algo sobre nossas reações à epidemia de coronavírus com Elisabeth Kübler-Ross que, em On Death and Dying , propôs o famoso esquema dos cinco estágios de como reagimos ao saber que temos uma doença terminal: negação (simplesmente uma recusa em se aceitar o fato: “Isso não pode estar acontecendo, não comigo.”); raiva (que explode quando não podemos mais negar o fato: “Como isso pode acontecer comigo?”); barganha (a esperança de que, de alguma forma, podemos adiar ou diminuir o fato: “Apenas deixe-me viver para ver meus filhos se formarem.”); depressão (desinvestimento libidinal: “vou morrer, então por que me preocupar com alguma coisa?”); aceitação (“Eu não posso lutar contra isso, mas posso me preparar para tal.”). Mais tarde, Kübler-Ross aplicou esses estágios a qualquer forma de perda pessoal catastrófica (desemprego, morte de um ente querido, divórcio , dependência química ) e também enfatizou que eles não necessariamente vêm na mesma ordem, nem são todos os cinco estágios vivenciados por todos os pacientes.

Pode-se discernir os mesmos cinco estágios sempre que uma sociedade é confrontada com alguma ruptura traumática. Vamos assumir a ameaça da catástrofe ecológica: primeiro, tendemos a negá-la (é apenas paranoia, o que acontece são oscilações usuais nos padrões climáticos); depois vem a raiva (das grandes corporações que poluem nosso meio ambiente, do governo que ignora os perigos) seguido de barganha (se reciclarmos nossos resíduos, podemos ganhar algum tempo; além disso, também há bons aspectos: podemos cultivar vegetais da Groenlândia, os navios poderão transportar mercadorias da China para os EUA muito mais rapidamente na rota norte, novas terras férteis estão se tornando disponíveis no norte da Sibéria devido ao derretimento do permafrost …), depressão (é tarde demais, estamos condenados…) E, finalmente, aceitação: estamos lidando com uma ameaça séria e teremos que mudar todo o nosso modo de vida!

O mesmo vale para a crescente ameaça do controle digital sobre nossas vidas: primeiro, tendemos a negá-lo (é um exagero, uma paranoia esquerdista, nenhuma agência pode controlar nossa atividade diária …), depois explodimos de raiva (as grandes empresas e agências estatais secretas nos conhecem melhor do que nós mesmos e usam esse conhecimento para nos controlar e manipular), seguida de barganha (as autoridades têm o direito de procurar terroristas, mas não de infringir nossa privacidade …), depressão (é tarde demais, nossa privacidade se perdeu, o tempo das liberdades pessoais acabou) e, finalmente, a aceitação: o controle digital é uma ameaça à nossa liberdade; devemos conscientizar o público de todas as suas dimensões e lutar contra isso!

Mesmo no domínio da política, o mesmo vale para aqueles que estão traumatizados pela presidência de Trump: primeiro, houve negação (não se preocupe, Trump está apenas postulando, nada realmente mudará se ele tomar o poder), seguido por raiva (das forças das trevas que lhe permitiram tomar o poder, dos populistas que o apoiam e representam uma ameaça à nossa substância moral …), barganha (ainda não está tudo perdido, talvez Trump possa ser contido, vamos tolerar alguns de seus excessos …) , depressão (estamos a caminho do fascismo, a democracia nos EUA está perdida) e a aceitação: há um novo regime político nos EUA, os bons e velhos tempos da democracia americana acabaram, vamos enfrentar o perigo e planejar com calma como podemos superar o populismo de Trump …

Nos tempos medievais, a população de uma cidade afetada reagiu aos sinais da praga de maneira semelhante: primeiro negação, depois raiva (pelas nossas vidas pecaminosas pelas quais somos punidos, ou mesmo pelo Deus cruel que a permitiu), depois barganha (não é tão ruim, vamos apenas evitar aqueles que estão doentes…), depois depressão (nossa vida acabou …), então, curiosamente, orgias (já que nossas vidas terminaram, vamos tirar disso todos os prazeres ainda possíveis – beber, transar …) e, finalmente, aceitação: aqui estamos, vamos nos comportar o máximo possível, como se a vida normal continuasse …

E não é assim também que estamos lidando com a epidemia de coronavírus que explodiu no final de 2019? Primeiro, houve uma negação (nada de grave está acontecendo, alguns indivíduos irresponsáveis ​​estão apenas espalhando pânico); depois, raiva (geralmente de forma racista ou antiestatal: os chineses sujos são culpados, nosso estado não é eficiente …); a seguir vem a barganha (OK, existem algumas vítimas, mas é menos grave que o SARS, e podemos limitar o dano …); se isso não funcionar, a depressão surge (não vamos nos enganar, estamos todos condenados). Mas como seria a aceitação aqui? É um fato estranho que a epidemia mostre uma característica comum à última rodada de protestos sociais (na França, em Hong Kong …): eles não explodem e depois desaparecem; ao contrário, eles permanecem aqui e apenas persistem, trazendo medo e fragilidade permanentes às nossas vidas. Mas essa aceitação pode tomar duas direções. Pode significar apenas a re-normalização da doença: OK, as pessoas estarão morrendo, mas a vida continuará, talvez haja até alguns efeitos colaterais bons …. Ou a aceitação pode (e deve) nos impulsionar a nos mobilizar sem pânico e ilusões, para agir em solidariedade coletiva.     

O que devemos aceitar, o fato com que devemos nos reconciliar, é a existência de uma subcamada de vida, os mortos-vivos, a estupidamente repetitiva vida pré-sexual dos vírus, que sempre estiveram aqui e que sempre estarão conosco, como uma sombra, representando uma ameaça à nossa sobrevivência, explodindo quando menos esperamos. E em um nível ainda mais geral, as epidemias virais nos lembram a contingência e a falta de sentido de nossas vidas: não importa quão magníficos edifícios espirituais nós, humanidade, realizemos, uma contingência natural estúpida como um vírus ou um asteroide pode acabar com tudo…. Sem mencionar a lição da ecologia, que é a de que nós, humanidade, também podemos contribuir sem saber para esse fim.

Para esclarecer esse ponto, deixe-me citar descaradamente uma definição popular: vírus é “qualquer um dos vários agentes infecciosos, geralmente ultramicroscópicos, que consistem em ácido nucleico, RNA ou DNA, em um casco de proteína: infectam animais, plantas e bactérias e se reproduzem apenas nas células vivas: os vírus são considerados como sendo unidades químicas não-vivas ou, às vezes, como organismos vivos. ” Essa oscilação entre a vida e a morte é crucial: os vírus não estão vivos nem mortos no sentido usual desses termos. Eles são os mortos-vivos: um vírus está vivo devido ao seu desejo de se replicar, mas é um tipo de vida de nível zero, uma caricatura biológica, não tanto da pulsão de morte, mas sim da vida no seu nível mais estúpido de repetição e multiplicação…. No entanto, os vírus não são uma forma elementar de vida, da qual se desenvolveram formas mais complexas. Eles são puramente parasitários; eles se replicam através da infecção de organismos mais desenvolvidos (quando um vírus nos infecta, nós, seres humanos, simplesmente servimos como sua máquina de reprodução). É nessa coincidência dos opostos – elementar e parasitária – que reside o mistério dos vírus: eles são um caso do que Schelling chamou de “der nie aufhebbare Rest ” , um resto da forma de vida mais baixa que surge como um produto do mau funcionamento de mecanismos superiores de multiplicação e continua a assombrá-los (infectá-los), um resto que nunca pode ser reintegrado como o momento subordinado de um maior nível de vida.

Aqui encontramos o que Hegel chama de “julgamento especulativo”, uma asserção da identidade do mais alto e do mais baixo. O exemplo mais conhecido de Hegel é “O espírito é um osso” em sua análise da frenologia na Fenomenologia do Espírito, e nosso exemplo deve ser “O espírito é um vírus”. O espírito humano também não é algum tipo de vírus que parasita o animal humano, explora-o para sua própria reprodução e, às vezes, ameaça destruí-lo? E, na medida em que o meio do espírito é a linguagem, não devemos esquecer que, em seu nível mais elementar, a linguagem também é algo mecânico, existem regras que precisamos aprender e seguir.

Richard Dawkins afirmou que os memes são os “vírus da mente”, entidades parasitárias que “colonizam” a mente humana, usando-a como um meio de se multiplicar. É uma ideia cujo criador não era outro senão Leo Tolstoi. Tolstoi é geralmente visto como um autor muito menos interessante que Dostoievski – um realista irremediavelmente desatualizado para quem basicamente não há lugar na modernidade, em contraste com a angústia existencial de Dostoievski. Talvez, no entanto, tenha chegado a hora de reabilitar completamente Tolstoi, sua única teoria da arte e da humanidade em geral, na qual encontramos ecos da noção de memes de Dawkins. “Uma pessoa é um hominídeo com um cérebro infectado, hospeda milhões de simbiontes culturais, e os principais facilitadores desses são os sistemas simbiontes conhecidos como idiomas” [2]– essa passagem de Dennett não é Tolstói puro? A categoria básica da antropologia de Tolstoi é a infecção: um sujeito humano é um meio vazio passivo infectado por elementos culturais carregados de afetos que, como bacilos contagiosos, se espalham de um indivíduo para outro. E Tolstoi vai até o fim: ele não opõe a essa disseminação de infecções afetivas uma verdadeira autonomia espiritual; ele não propõe uma visão heroica de educar-se para ser um sujeito ético autônomo maduro, como forma de se livrar de bacilos infecciosos. A única luta é a luta entre boas e más infecções: o próprio cristianismo é uma infecção – para Tolstoi –  boa.

Talvez seja a coisa mais perturbadora que podemos aprender com a epidemia viral em andamento: quando a natureza nos ataca com vírus, está, de certa forma, nos enviando nossa própria mensagem de volta. A mensagem é: o que você fez comigo agora estou fazendo com você.

Autor: Slavoj Žižek
Publicado tem: 16 de março de 2020
Original: https://thephilosophicalsalon.com/monitor-and-punish-yes-please/
Tradução: Leonardo Mendonça
Revisão: Felipe Aiello


terça-feira, 17 de março de 2020

Cântico Negro....


Cântico Negro

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio

In The End...


In The End
(It starts with one)

One thing, I don't know why
It doesn't even matter how hard you try
Keep that in mind, I designed this rhyme
To explain in due time (all I know)

Time is a valuable thing
Watch it fly by as the pendulum swings
Watch it count down 'till the end of the day
The clock ticks life away, (it's so unreal)

You didn't look out below
Watch the time go right out the window
Trying to hold on, to didn't even know
I wasted it all just to (watch you go)

I kept everything inside
And even though I tried, it all fell apart
What it meant to me will eventually
Be a memory of a time when

I tried so hard and got so far
But in the end, it doesn't even matter
I had to fall to lose it all
But in the end, it doesn't even matter

One thing, I don't know why
It doesn't even matter how hard you try
Keep that in mind I designed this rhyme
To remind myself how (I tried so hard)

In spite of the way you were mocking me
Acting like I was part of your property
Remembering all the times you fought with me
I'm surprised it (got so far)

Things aren't the way they were before
You wouldn't even recognize me anymore
Not that you knew me back then
But it all comes back to me (in the end)

You kept everything inside
And even though I tried, it all fell apart
What it meant to me will eventually
Be a memory of a time when

I tried so hard and got so far
But in the end, it doesn't even matter
I had to fall to lose it all
But in the end, it doesn't even matter

I've put my trust in you
Pushed as far as I can go
For all this
There's only one thing you should've known

I've put my trust in you
Pushed as far as I can go
For all this
There's only one thing you should've known

I tried so hard and got so far
But in the end, it doesn't even matter
I had to fall to lose it all
But in the end, it doesn't even matter

domingo, 15 de março de 2020

A Peste - Camus...


“A imprensa, tão indiscreta no caso dos ratos, já não mencionava nada. É que os ratos morrem na rua e os homens, em casa. E os jornais só se ocupam da rua. Mas a prefeitura e a municipalidade começavam a se questionar. Enquanto cada médico não tinha tido conhecimento de mais de dois ou três casos, ninguém pensara em se mexer. Mas, em resumo, bastou que alguém pensasse em fazer a soma, e a soma era alarmante. Em apenas alguns dias, os casos mortais multiplicaram-se e tornou-se evidente, para aqueles que se preocupavam com a curiosa moléstia, que se tratava de uma verdadeira epidemia. Foi o momento que Gastei, colega de Rieux, muito mais velho que ele, escolheu para ir visitá-lo.

— Naturalmente — perguntou -, sabe do que se trata, Rieux?

— Estou esperando o resultado das análises.

— Pois eu sei. E não preciso de análises. Fiz uma parte da minha carreira na China e vi alguns casos em Paris, há uns vinte anos. Simplesmente, não se teve a coragem de lhe dar um nome. A opinião pública é sagrada: nada de pânico. Sobretudo, nada de pânico. E depois, como dizia um colega: “É impossível, todo mundo sabe que ela desapareceu do Ocidente”. Sim, todos sabiam, exceto os mortos. Vamos, Rieux, você sabe tão bem quanto eu o que é.

Rieux refletia. Pela janela do escritório olhava a falésia rochosa que se fechava, ao longe, sobre a baía. O céu, embora azul, tinha um brilho pálido que se esbatia à medida que a tarde avançava.

— É verdade, Gastei — respondeu. — É incrível, mas parece peste.

Gastei levantou-se e dirigiu-se para a porta.

— Você sabe o que vão nos responder — disse o velho médico: — “Ela desapareceu dos países temperados há muitos anos”.

— Que quer dizer isso. . . desapareceu? — perguntou Rieux, encolhendo os ombros.

— Sim, não se esqueça: em Paris ainda, há quase vinte anos.

— Bem, esperemos que não seja mais grave hoje que naquela época. Mas é realmente incrível.

A palavra “peste” acabava de ser pronunciada pela primeira vez. Neste momento da narrativa, com Bernard Rieux atrás da janela, permitir-se-á ao narrador que justifique a incerteza e o espanto do médico, já que, com algumas variações, sua reação foi a da maior parte dos nossos concidadãos. Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como nossos concidadãos, é necessário compreender assim as duas hesitações. E por isso é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a confiança. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria idiota”. E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.

Mesmo depois de o Dr. Rieux ter reconhecido, diante do amigo, que um punhado de doentes dispersos acabavam de morrer da peste, sem aviso, o perigo continuava irreal para ele. Simplesmente, quando se é médico, faz-se uma ideia da dor e tem-se um pouco mais de imaginação. Ao olhar pela janela sua cidade que não mudara, era com dificuldade que Rieux sentia nascer dentro de si esse ligeiro temor diante do futuro, que se chama inquietação. Ele procurava reunir no seu espírito o que sabia sobre a doença. Flutuavam números na sua memória, e dizia a si próprio que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E já que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação. O médico lembrava-se da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas em um só dia. Dez mil mortos são cinco vezes o público de um grande cinema. Aí está o que se deveria fazer. Juntam-se as pessoas à saída de cinco cinemas para conduzi-las a uma praça da cidade e fazê-las morrer aos montes para se compreender alguma coisa. Ao menos, poder-se-iam colocar alguns rostos conhecidos nesse amontoado anônimo Mas, naturalmente, isso é impossível de realizar, e depois, quem conhece dez mil rostos? Além disso, sabe-se que as pessoas como Procópio não sabiam contar. Em Cantão, há setenta anos, quarenta mil ratos tinham morrido da peste, antes que o flagelo se interessasse pelos habitantes. Mas, em 1871, não havia um meio de contar os ratos. Fazia-se o cálculo aproximado, por alto, com evidentes probabilidades de erro. Contudo, se um rato tem trinta centímetros de comprimento, quarenta mil ratos em fila dariam. . .”
Trecho de A peste, Albert Camus

A PESTE
O romance A Peste foi publicado em 1947, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial, e conta a história da chegada de uma epidemia à cidade argelina de Orã. O personagem principal é um médico, Rieux, que combate a doença até o momento em que ela se dissipa, depois de muitas mortes. O narrador descreve como a população reage, indo da apatia à ação, e como alguns se expõem a risco para enfrentar a disseminação da peste.

Há aproveitadores, como um personagem que lucra com um mercado paralelo de produtos. Num primeiro momento, as autoridades hesitam em publicizar a doença, algo que Camus veria de forma crítica, diz Araújo? sua obra sempre volta ao tema da importância de nomear as coisas. Nos anos anteriores à publicação do livro, diz Araújo, Camus vinha pesquisando sobre como se deram algumas epidemias na Argélia e na Europa. Logo após sua publicação, o livro foi lido como uma analogia sobre a ocupação alemã em Paris durante a Segunda Guerra, em parte por causa da epígrafe do livro, uma frase do escritor Daniel Defoe: "É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe".

Araújo aponta alguns paralelos com o momento atual: "a questão do conhecimento. Vivemos um momento em que há desinformação, fatos vêm sendo contestados. Em A Peste há um cuidado de mostrar as coisas como são de fato. O livro fala que existe (na história) um problema de abstração. A desinformação, a abstração, geram histeria, comportamentos levianos ou xenofóbicos, como temos visto", interpreta ele.

Outra coincidência é a questão de burocratização das informações sobre as mortes, que pode gerar certa desumanização dos casos, opina ele. Na ficção, o número de mortes é anunciado diariamente numa rádio. Por outro lado, o narrador descreve algumas das mortes, o que faz o leitor senti-las de uma forma mais direta.

Para Araújo, uma lição a ser tirada do romance é a ideia do coletivo. "A Peste pode ser um convite para se pensar como parte de um grupo. Neste momento em que temos divisões muito marcadas no Brasil, é um convite a pensar sobre nós como coletivo. O que atravessarmos vamos atravessar juntos. Não é 'cada um que se salve'. Como diz o Camus, a peste vira assunto de todos. Os problemas que nos atingem passam a ser de todos. Os sentimentos individuais dão lugar aos sentimentos coletivos no livro", diz o acadêmico.

"A narrativa que se apoia nos feitos de um grande herói é substituída pela narrativa de um destino comum de uma cidade que alcança todas as classes, incluindo o filho do juiz Othon. Nesse sentido, apesar das diferenças sociais, A Peste nos recorda que somos todos naturalmente condenados à morte."

sexta-feira, 13 de março de 2020

GREGÓRIO BEZERRA por Milton Temer


Por Milton Temer

GREGÓRIO BEZERRA, "feito de ferro e de flor". Um Bravo. Um herói do povo trabalhador brasileiro. Nascia há exatos 120 anos, depois dele muitos poucos chegaram perto do que fez em toda a sua vida - marcada por imensa coragem e ternura - pelos deserdados e oprimidos.
CONHECI GREGÓRIO, num dos eventuais encontros dominicais na casa de Luis Carlos Prestes, em Moscou, lá nos anos 70. O gigante lendário me chegava como um doce e modesto camarada. De fala mansa. Sorridente.

"NÃO LUTO CONTRA PESSOAS. Luto por idéias. Luto contra a opressão", ouvia dele, extasiado, lembrando as imagens de 2 abril, com ele arrastado por um jipe do Exército através das ruas de Recife. tal o ódio dos golpistas por aquele valente, já de cabelos brancos em 1964.

FOMOS NOS REENCONTRAR EM Paris, alguns anos depos. Ele estava de passagem em suas andanças continentais para reuniões com a militância exilada,. Estava alojado na casa do meu então vizinho e irmão, Leandro Konder, onde pude conhecer a faceta vovô do gigante. Foram dias de muita conversa onde não consegui ouvir manifestação mínima de ódio pessoal pelos que o torturaram tão barbaramente em 64. Preferia falar da "rapaziaa" que o havia libertado, mesmo sem ter sido de qualquer organização de luta armada, como primeiro nome na lista dos trocados pelo embaixador americano Charles Burke, no sequestro onde pontificaram Cid Benjamin e Franklin Martins, em parceria com Joaquim Ferreira.

NA VOLTA AO BRASIL. abracei-o pela última vez, ao recebê-lo no Galeão. Do abraço herdei uma foto que, dias depois, um fotógrafo amigo encarregado da cobertura da chegada me entregou discretamente na redação do jornal em que trabalhávamos.

GREGÓRIO BEZERRA está entre os que, no meu Pantheon particular, coloco ao lado de Marighela, Apolônio de Carvalho e Prestes. E cuja imagem mais completa, vou buscar no cordel que Enio Silveira, o grande editor da saudosa Civilização Brasileira, usou para encerrar a orelha do primeiro volume da biografia de Gregório que publicou:

"Mas existe nesta Terra
Muitos Homens de Valor
Que é bravo sem matar gente
Mas não teme matador
Que gosta de sua gente
E que luta em seu favor.
Como Gregório Bezerra
Feito de ferro e de flor"




quinta-feira, 12 de março de 2020

Borges - Futebol


À primeira vista, o animus do escritor argentino em relação ao “jogo bonito” parece refletir a atitude do odiador típico de hoje em dia, cujo citações quase se tornaram um refrão: futebol é entediante. Existem muitas pontuações de empate. Eu não suporto as falsas lesões.


E é verdade: Borges chamou o futebol de “esteticamente feio”. Ele disse: “O futebol é um dos maiores crimes da Inglaterra”. E aparentemente ele até programou uma de suas palestras para o mesmo dia e horário em que aconteceria o primeiro jogo da Argentina na Copa de 1978.

Mas a aversão de Borges pelo esporte resultou de algo muito mais preocupante do que a estética. Seu problema era com a cultura dos fãs de futebol, que ele ligava ao tipo de apoio popular cego que sustentava os líderes dos movimentos políticos mais horripilantes do século 20. Em sua vida, ele viu elementos do fascismo, peronismo e até mesmo anti-semitismo emergirem na esfera política argentina, então sua intensa suspeita de movimentos políticos populares e cultura de massa – cujo apogeu, na Argentina, é o futebol – faz muito sentido.

(“Existe uma idéia de supremacia, de poder [no futebol] que me parece horrível”, escreveu ele certa vez.) Borges se opunha ao dogmatismo em qualquer forma, por isso ele naturalmente desconfiava da devoção incondicional de seus compatriotas a qualquer doutrina ou religião – até mesmo para sua querida seleção “albiceleste”.

O futebol está inextricavelmente ligado ao nacionalismo, outra das objeções de Borges ao esporte. “O nacionalismo só permite afirmações, e toda doutrina que descarta a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez”, disse ele. Equipes nacionais geram fervor nacionalista, criando a possibilidade de um governo inescrupuloso usar um astro como porta-voz para se legitimar. Na verdade, foi exatamente isso que aconteceu com um dos maiores jogadores de todos os tempos: Pelé. “Mesmo com seu governo arrebatando dissidentes políticos, também produziu um cartaz gigante de Pelé esforçando-se para cabecear a bola através do gol, acompanhado pelo slogan” Ninguém segura este país”, escreve Dave Zirin em seu livro, O Brasil Dança Com o Diabo.

Governos, como a ditadura militar brasileira, podem aproveitar o vínculo que os torcedores compartilham com suas seleções para angariar apoio popular, e é isso que Borges temia – e se ressentia – sobre o esporte.

Seu conto, “Esse Est Percipi”, também pode explicar seu ódio ao futebol. Mais ou menos na metade da história, é revelado que o futebol na Argentina deixou de ser um esporte e entrou no reino do espetáculo. Neste universo fictício, o simulacro reina supremo: a representação do esporte substituiu o esporte atual. “Esses [esportes] não existem fora dos estúdios de gravação e dos jornais”, diz um presidente do clube de futebol. O futebol inspira um fanatismo tão profundo que os torcedores acompanharão jogos inexistentes na TV e no rádio sem questionar nada:

“Os estádios há muito que foram condenados e estão caindo aos pedaços. Hoje em dia tudo é encenado na televisão e no rádio. A falsa emoção do locutor esportivo nunca te fez suspeitar de que tudo é uma farsa? A última vez que uma partida de futebol foi disputada em Buenos Aires foi em 24 de junho de 1937. A partir desse momento exato, futebol, juntamente com toda a gama de esportes, pertence ao gênero do drama, realizado por um único homem em uma cabine ou por atores uniformizados diante das câmeras de TV”.

Esta história remonta ao desconforto de Borges com movimentos de massa: ‘Para ser capaz de perceber que’ efetivamente acusa a mídia de cumplicidade na criação de uma cultura de massa que reverencia futebol, e, como resultado, deixa-se aberta à demagogia e manipulação.

De acordo com Borges, os seres humanos sentem a necessidade de pertencer a um plano universal grande, algo maior do que nós mesmos. Religião faz isso para algumas pessoas, futebol para os outros. Personagens do universo borgesiano muitas vezes lidam com esse desejo, voltando-se para ideólogos ou movimentos para efeito desastroso: O narrador da história ”Um Requiem Alemão” torna-se um nazista, enquanto que em “A Loteria da Babilônia” e “O Congresso”, organizações aparentemente inócuas transformam-se rapidamente em vastas burocracias totalitárias que distribuem punições corporais ou queimam livros.

Queremos ser parte de algo maior, tanto que nos cegamos para as falhas que se desenvolvem nesses grandes planos – ou as falhas que eram inerentes a eles o tempo todo. E, no entanto, como o narrador de “O Congresso”” nos lembra, o fascínio dessas grandes narrativas muitas vezes prova demais: ”o que realmente importa é ter sentido que o nosso plano, que mais de uma vez fizemos piada, realmente e secretamente existiu e foi o mundo e nós mesmos. ”

Essa frase poderia descrever com precisão como milhões de pessoas na Terra se sentem em relação ao futebol.

Artigo escrito por Shaj Mathew

Milagres do Povo....


Milagres do Povo
Caetano Veloso

Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não
Não cabe em si de tanto sim
É pura dança e sexo e glória, e paira para além da história

Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Obá

É no xaréu que brilha a prata luz do céu
E o povo negro entendeu que o grande vencedor
Se ergue além da dor
Tudo chegou sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil?
Foi o negro que viu a crueldade bem de frente
E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente

Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Obá

Ojuobá ia lá e via
Quem é ateu

quarta-feira, 11 de março de 2020

Quem teria sido ele? Thích Quang Duc...


A assustadora fotografia que você acabou de ver acima foi clicada em Saigon, no Vietnam do Sul, e mostra um ato de autoimolação cometido por um monge budista chamado Thích Quang Duc no dia 11 de junho de 1963. De acordo com o site Rare Historical Photos, o registro foi capturado pelo fotógrafo Malcolm Browne, que se encontrava na cidade a serviço da Associated Press e acabou recebendo um prêmio Pulitzer e um World Press Photo pelo retrato.

A dramática imagem rodou o mundo e até hoje causa espanto. Mas, e sobre o que teria levado o monge a atear fogo no próprio corpo e qual era o contexto político e histórico em que a ação se desenrolou, você sabe? A autoimolação aconteceu em protesto contra o regime pró-católico de Ngo Dinh Diem, primeiro presidente do Vietnam do Sul, e suas políticas discriminatórias com relação ao budismo.

Turbulência religiosa

Segundo o Rare Historical Photos, após assumir a presidência, Diem declarou o Vietnam do Sul como seguidor da Igreja Católica e de Jesus Cristo. Considerando que, na época, entre 70 e 90% da população local era budista, não é de se estranhar que as iniciativas do novo líder causassem um tremendo descontentamento.

O ato de Duc, na realidade, aconteceu em reposta à realização de uma cerimônia pública — durante a qual foram expostas incontáveis cruzes cristãs — em maio de 1963, que culminou com o banimento da bandeira budista dois dias depois do evento. A proibição resultou na organização de uma série de protestos e, na celebração do Vesak, uma festividade que comemora o aniversário de Buda, monges saíram às ruas com sua bandeira nas mãos.

Na ocasião, os manifestantes se dirigiram até a sede da emissora de rádio do governo — onde foram recebidos por tropas de Diem que abriram fogo contra a multidão e acabaram matando nove pessoas. Como você deve saber, o Vietnam se encontrava em guerra contra os EUA e outros países asiáticos, portanto, havia muitos correspondentes internacionais no país cobrindo o conflito.

Então, no dia 10 de junho, começaram a circular informações de que algo importante relacionado com a crise budista iria ocorrer no dia seguinte diante da embaixada do Camboja em Saigon. Poucos foram os repórteres que acreditaram nos rumores, mas Malcolm Browne estava entre eles e decidiu aparecer no local. David Halberstam, do The New York Times, também atendeu ao chamado — e posteriormente publicou um detalhado relato do que aconteceu.

Desenrolar de uma tragédia

Cerca de 350 monges aparecerem para protestar contra as políticas religiosas do governo de Diem e, entre eles, se encontrava Duc. Segundo as testemunhas, ele chegou até o local de carro acompanhado de outros dois monges, um que desembarcou com uma almofada nas mãos e a colocou no meio de um cruzamento, e outro que tirou um galão de gasolina do porta-malas do veículo.



Duc se sentou placidamente sobre a almofada e adotou a posição de lótus — usada para momentos de meditação — em meio à multidão. Em seguida, um dos monges despejou o conteúdo sobre a cabeça de Duc que, nesse momento apenas se pôs a manipular as contas de oração que tinha nas mãos e a recitar uma prece. Então, diante dos olhos de todos, ele riscou um palito de fósforos e começou a queimar.


De acordo com o relato de Halberstam, Duc não moveu um músculo sequer nem emitiu qualquer som. Ele permaneceu imóvel enquanto o fogo consumia seus robes de monge e seu corpo, e só saiu da posição de lótus depois de morrer e seu cadáver tombar para trás. Centenas de monges se prostraram diante de Duc e começaram a proferir orações, outros tantos podiam ser ouvidos chorando, mas a maioria dos presentes assistiu ao chocante ato em silêncio.

A coisa toda durou cerca de 10 minutos e, após as chamas se apagarem, um grupo de monges se aproximou do corpo de Duc e o cobriu com robes amarelos, recolheu o cadáver e o levou a um templo budista no centro de Saigon. Duc foi — novamente — cremado durante seu funeral e seu ato motivou uma série de autoimolações no Vietnam.

Curiosamente, o coração do budista teria permanecido intacto apesar das chamas e se transformou em uma relíquia que hoje se encontra guardada no Templo Xa Loi. Por fim, os atos de autoimolação que seguiram o de Duc e a turbulência religiosa que se instalou no Vietnam levaram a um golpe de estado que acabou com a derrubada e morte de Diem em novembro de 1963.

Malcolm Browne

Miksang.... Fotografia Contemplativa


Miksang (termo tibetano que quer dizer o bom olho) ou Fotografia Contemplativa, é uma prática ligada à meditação, que visa trazer nossa visão para o presente, abrindo nossos olhos e permitindo ver o “novo” no cotidiano. Antes de uma técnica fotográfica é uma forma de ver o mundo e de viver. Essa prática tem causado forte impacto na minha forma de ver o mundo e até de viver. Por isso pretendo neste artigo compartilhar um pouco dessa experiência.

É importante resaltar que Miksang é um fazer, e não o resultado. Por isso o que fizemos antes de conhecer a fotografia contemplativa pode até parecer Miksang de alguma forma, mas não é realmente.

“A prática da fotografia contemplativa liga-nos com essa consciência panorâmica não conceitual e fortalece essa ligação por meio de treinamento. A prática em si mesma consiste de três partes, ou estados. Primeiro aprendemos a reconhecer vislumbres de ver e do estado contemplativo da mente que ocorrem naturalmente. Em seguida estabilizamos essa ligação olhando mais profundamente. Finalmente fotografamos do interior desse estado da mente.” The Practice of Contemplative Photography, de Andy Karr e Michael Wood.

Muitos acreditam que, para se tornar um bom fotógrafo, é preciso ter um talento nato, ou passar por um árduo treinamento técnico e dispor de equipamento sofisticado. Claro que estes três fatores são importantes, mas talento, treinamento técnico e equipamento são, por definição, limitados. Porém, para ser um grande fotógrafo, é preciso também, ou melhor, é preciso acima de tudo, criatividade. E a criatividade é, por definição, ilimitada e inesgotável.

Criatividade

Mas a criatividade não é algo que está pronto e disponível em nós, mas sim algo a ser desenvolvido, treinado, nutrido. Portanto voltamos à questão do treinamento, mas não o técnico, mas sim o da criatividade. Para ser um bom (ou ótimo) fotógrafo temos que desenvolver e treinar nossa criatividade. Não há desenvolvimento de criatividade sem experiência, e a verdadeira experiência só ocorre quando algo nos afeta, quando nos deixamos atingir por acontecimentos. Portanto precisamos estar abertos a novos acontecimentos e permitir momentos de experimentação.

É preciso ser fotógrafo em tempo integral, ou seja, amadores ou profissionais, precisam tentar fotografar todos os dias. Mais ainda, que fotografem o tempo todo, porque sugiro que façam isso não só com as câmeras, mas também com o olhar e a mente. Experimentem andar pela cidade, fotografar a realidade, as composições que vão se formando o tempo todo. E nessas composições, numa cidade como a em que vivo, São Paulo, constantemente estão presentes os moradores de rua, crianças, senhoras, trabalhadores, todo tipo de gente, e os detalhes da arquitetura, da paisagem, e muitas coisas que normalmente não reparamos muito!

Pare, olhe, “escute”, perceba quantas coisas interessantes acontecem e nem nos dávamos conta. A fotografia, especialmente com temática social, faz muito sentido no Brasil hoje, pois é uma ótima ferramenta para refletir sobre as diferenças abissais entre as pessoas. Também igualmente importante a fotografia voltada ao sentido estético, pela busca das formas e das linhas, das cores e sensações.

Só aprendemos com o exercício, com o movimento. Apenas saindo de nossa “zona de conforto” geramos criatividade, novas ideias, evoluímos e, assim, seguimos o curso natural do universo, ou seja, crescer e criar.

Momento de lazer

Para muitas pessoas o dia-a-dia é corrido e estressante, sem momentos dedicados a si mesmo. Dedicam-se ao trabalho, à família e quando muito, aos estudos. Claro que trabalho, família e estudos são, ou deveriam ser, coisas boas e da maior importância. Mas é preciso ainda ter momentos dedicados a si mesmo, momentos de se fazer algo que não precisa ser feito, mas que é prazeroso, e para cada um, essa atividade varia, e é o que se chama de “hobby”, ou seja, uma atividade que não é trabalho, mas é levada a sério, à qual se dedica tempo, esforço e até dinheiro, simplesmente pela paixão. A fotografia cada vez mais, permite às pessoas terem esse momento de lazer, praticar a criatividade, registrar momentos, se aprofundar em temas...

Oportunidade para relacionamento humano

A fotografia também tem aproximado pessoas. Seja no contato com as pessoas pelas ruas ou nos sites de compartilhamento de imagens, blogs, ou ainda em encontros e saídas fotográficas, uma paixão em comum permite o surgimento de novas amizades, andanças pela cidade, observação do olhar do outro. Com a fotografia como assunto todos nós, especialmente os mais tímidos, podemos melhorar nosso relacionamento com os outros.

Conhecer onde se vive e autoconhecimento

Aqui creio que está o maior potencial da fotografia como terapia, possibilitar a reflexão, ou seja, o olhar para dentro de si. Sair por aí fotografando, parando para ver, prestando atenção no lugar em que você vive, já seria um ótimo exercício de auto-conhecimento, mas em alguns casos é até mais que isso.

Seja sempre ético

Isto significa respeito a todos os envolvidos e muito cuidado com o que você deve fazer para conseguir a foto. Também leve em conta o uso da foto e, por último, mas muito importante, sempre pense bem no que essa foto representa para a sociedade e como você pode retribuir com os que te ajudaram.

O que fotografar?

Se encante com o comum! Não espere sair pelas ruas e ver algum acontecimento raro e incrível, para daí fazer uma grande foto. As grandes fotografias são de coisas comuns. O que deve ser especial é o olhar do fotógrafo. Observação, criatividade e "reciclagem de ideias", são o caminho para boas fotos!

A Fotografia Contemplativa

Agora vamos falar do Miksang propriamente dito, termo tibetano que quer dizer o bom olho, ou a fotografia contemplativa. Venho praticando este estilo desde 2011, mas recentemente, com a leitura de “The Practice of Contemplative Photography: Seeing the World with Fresh Eyes”, de Andy Karr e Michael Wood, e a participação em uma oficina de dois dias com Andy Karr, pude me aprofundar ainda mais no tema, aproveitando a experiência destes mestres.

Após participar desta oficina, me sinto ao mesmo tempo mais e menos “entendedor” do assunto. Teoricamente entendi melhor a fotografia contemplativa, e também pratiquei de forma mais profunda. Por outro lado percebi como estamos distantes da verdadeira pratica contemplativa, ou seja, como é difícil nos concentrarmos em uma simples tarefa: apenas ver.

A visão é um sentido natural, e naturalmente aguçado e rico. Mas temos simplificado essa ferramenta poderosa de apreensão do mundo, subestimado a inteligência plena de nossa visão. Acreditamos na grande inteligência de nossa “mente pensante” e não percebemos nossos outros tipos de inteligência. Ver, simplesmente, com os olhos e coração (não com a mente discursiva e conceitual), é um exercício que irei praticar cada vez mais, pois essa pratica, acredito, pode nos levar a “abrir os olhos” para um mundo novo, fresco, amplo e lindo.

Podemos definir Miksang como clicar com o coração, notar os milagres do dia-a-dia que, normalmente, passam despercebidos. Fotografar com esse estilo é ter o olho mais atento que o normal, e bem afinado com o coração! É um conceito de fotografia oriundo do budismo e da meditação, portanto é uma reflexão de si mesmo, e sempre mostra algo sobre seu autor.

É preciso descondicionar o olhar para poder ver assim. Um bom exercício seria visitar lugares desconhecidos, para onde você iria sem saber previamente o que poderia ver. Mas o desafio é buscar o despercebido nos lugares que você já frequenta. Para quem está acostumado a usar a fotografia com algum propósito bem definido e estruturado, seja como trabalho ou arte, que tal deixar “rolar solto” um pouco, fotografar simplesmente o que chama sua atenção, pensando apenas na imagem e não em sua utilidade? Experimente!

Lembre-se que o melhor da viagem é o caminho, por isso abra os olhos para as surpresas da “estrada”, não tenha metas rígidas. Tenha a fotografia simplesmente como um prazer. O miksang é mais ligado ao “como” do que ao “o que”.


Banco vazio, dia vazio... Ao ver essa foto (é que eu vejo a foto antes de fotografar) eu vi uma imagem muito triste, pensei em vazio, escuridão, limo, frio, abandono... eu estava num dia meio pesado, com um pouco de dor nas costas, numa sala vazia esperando uma reunião. Então olhei pela janela e vi o banco e achei que valia a pena registrar esse momento de vazio. Esta foi a primeira foto que fiz com o conceito de Miksang em mente. Numa foto postada dias antes a Bel Barbiellini comentou perguntando se era Miksang, e eu não sabia o que era isso. Fui investigar e gostei! Percebi que de certa forma já fazia isso, ou melhor, tentava, pois como fazer algo para o qual não temos sequer palavras? Essa nova ideia veio então responder a alguns velhos anseios dentro de mim. A troca, o contato com outras pessoas, fotógrafos amadores e profissionais, tem me proporcionado enorme aprendizado.

Com esse novo, ou renovado, olhar que adquiri, vasculhei algumas de minhas pastas e encontrei fotos antes desprezadas, e que agora pude ver um valor nelas. Esse novo olhar me mudou mesmo! E ao sair para fotografar, para criar novas imagens, agora vejo muito mais para fotografar, tenho a visão mais ampla. As coisas estão por ai, é preciso apenas prestar atenção e perceber imagens interessantes por toda parte!

Miksang parece ter proximidade com o formato das "polaroids", com os instantâneos, pois ambos podem ser recortes rápidos do dia-a-dia. Assim, para mim, o formato quadrado parece ser mais adequado para trabalhos de aspecto gráfico, still, texturas, objetos comuns que raramente paramos para observar. Não há necessidade de reflexões sociais, crítica, pessoas, elementos que geralmente estão nas minhas fotos, e que prezo muito, mas às vezes fazer apenas imagens, praticar uma fotografia contemplativa, o "Miksang", a busca por um olhar puro, é um ótimo exercício. Contemplar a realidade é contemplar a si mesmo.

Precisamos tentar nos desprender da cascata de reflexões, filtros, amarras e preconceitos sobre o que é belo, sobre o que é digno da arte, sobre a utilidade das imagens, e deixar o coração falar mais alto, fotografar o que nos chama a atenção, e deixar para pensar depois. Não tente ser um bom fotógrafo, seja um bom observador, veja a riqueza do cotidiano, desenvolva a criatividade, e será um bom fotógrafo!

Tento fotografar coisas simples, mostrando a beleza presente em tudo... mas faço isso com pouco sucesso, "porque me falta a simplicidade divina", como disse uma vez Alberto Caeiro (pseudônimo de Fernando Pessoa), esse sim, uma pessoa sábia e simples.

História da Fotografia Contemplativa

Chógyam Trungpa Rinpoché foi um Lama tibetano nascido em 1939 e avançado no estudo e na pratica das diversas disciplinas monásticas tradicionais, assim como à arte da caligrafia, da pintura em tangka e as danças monásticas. Aos 20 anos teve de deixar o Tibete devido à invasão chinesa. Após passar pela Índia e Inglaterra, no Canadá desenvolveu técnicas para passar os ensinamentos budistas através da cultura ocidental, especialmente das artes, como teatro, cinema e fotografia. 

Assim ele criou os conceitos básicos do que viria a ser definido como fotografia contemplativa ou miksang. Mais tarde ele abandonou os votos monásticos, buscando uma maior proximidade com os alunos. Posteriormente seus discípulos definiram os conceitos da Fotografia Miksang. Saiba mais sobre ele em http://pt.wikipedia.org/wiki/Trungpa_Rinpoché.

O estilo Miksang

“Art in every Day life and every Day life in art”. Há evidentemente um estilo de fotos associado ao Miksang. Mas na verdade Miksang é um método de treinamento do olhar, para podermos “ver mais claro, mais fresco”. Não é “o que”, mas o “como”, por isso qualquer contexto pode ser tema para a fotografia contemplativa. E qualquer resultado visual pode surgir. O estilo é, portanto, o estado de espírito.

Viver artisticamente é ter criatividade em tudo e saber apreciar os detalhes do comum. “Arte na vida cotidiana e vida cotidiana na arte” é o slogan da fotografia contemplativa.

"A arte da experiência meditativa poderia ser chamada de arte genuína. Tal arte não é construída para ser exibida ou difundida. Em vez disso, é um processo em perpétuo desenvolvimento no qual começamos a apreciar o que nos cerca na vida, o que quer que seja — não é preciso que seja, necessariamente, algo bom, belo ou agradável. A definição de arte, desse ponto de vista, é ter a habilidade de ver o caráter único da experiência cotidiana. A cada momento podemos estar fazendo as mesmas coisas — escovando os dentes diariamente, penteando os cabelos diariamente, preparando o jantar diariamente. No entanto, essa aparente repetição se torna única a cada dia. Surge um tipo de intimidade com nossos hábitos diários e com a arte neles envolvida. É por isso que é chamada de arte na vida cotidiana." (Chögyam Trungpa)

Sentimentos ruins, como ansiedade e expectativa, cegam, pois criam expectativas que não nos permitem ver o real. Mas se você vê o mundo de forma clara, suas fotografias serão claras, e o resultado realmente artístico. As coisas comuns podem ser belas e ricas. Mas, no entanto não olhe para elas tentando classificá-las como belas, especiais, etc. Veja apenas formas, cores, texturas, relações. A vida hoje é muito complexa, por isso busque sempre a simplicidade.

Assim devem surgir as seguintes características em suas fotos: claridade, definitivo, preciso, riqueza de cores.

Qualidade de vida

Miksang é ver as coisas como são e conduzir a vida com o coração. O estado de mente contemplativo, por diminuir a ansiedade, resulta em qualidade de vida. Viver no presente e aproveitar o que é real pode causar um forte impacto na vida em geral de quem pratica. Para o budismo a maior ignorância e atraso para uma pessoa é não ter a visão clara.

Recomenda-se a pratica da meditação. Quanto mais espaço na mente, mais o mundo aparecerá original e claro para seus olhos.

Definindo o que é a Fotografia contemplativa

É importante ressaltar que realizar a fotografia contemplativa de forma pura não é fácil. O que propomos aqui é um desafio até para nós mesmos.

Pensando em termos de fotografia contemplativa, há duas formas de ver o mundo:

Conceitual: é ver o mundo a partir de seus conceitos, necessidades, ansiedades e razão. É a forma “tradicional” de ver o mundo.

Percepção: sem rotulação da realidade. Essa é uma nova forma de ver, mas que na verdade é natural, algo que já está em nós. Trata-se de ver apenas, sem a carga de julgamentos que normalmente colocamos como "filtro" da visão. Esta é a forma de ver da fotografia contemplativa.

A percepção aberta (para o sutil e complexo) permite uma visão mais clara sobre a riqueza do cotidiano, para ficarmos apenas no presente abertos para a emoção. A criatividade então pode nos permitir criar a fotografia realmente artística, a fotografia contemplativa. A arte não é se expressar, mas deixar que a realidade se expresse através de você!

Precisamos ver mais e mais fundo, aprender a ver mesmo sem câmera. É importante também aprender a “curtir” a solidão, ficar só, sem distrações, aparelhos de música, emails no celular, etc...

A fotografia pode ser uma forma de arte para expressar o cotidiano, e para trazer a arte para o cotidiano.

Como fazer:

Neste artigo vamos tratar da parte prática, de como fazer Miksang!

Para realizar a fotografia contemplativa o ideal é sair para a rua, para quase qualquer lugar (evite os “cartões-postais”) com tempo, sem preocupações ou objetivos, apenas vendo e sentindo o impacto visual das coisas, o “flash (lampejo) de percepção”. A prática tem três etapas:

Flash de percepção - É um instante em que a visão é clara e profunda. É o momento exato que olho e mente se alinham, uma pausa no processo racional. Isso ocorre com todos e sempre. O desafio é reconhecer esse lampejo da percepção. É preciso estar disposto e aberto para poder reconhecer o flash, caminhar em direção à calma e imobilidade é essencial. Temos que aprender a apreciar o cotidiano, e saber que o flash será repentino e ira quebrar nossa rotina, é preciso deixar isso ocorrer. Exemplo: imagem no reflexo do monitor ou TV.

O “Flash” é como uma epifania. “Obviamente, uma epifania não pode ser criada, ela simplesmente acontece, um ato de graça, acidente e transformação — no entanto, é o trabalho anterior que torna tal “acontecimento” possível. E o que é uma epifania? Diria que é uma mudança repentina da mente, quando a preocupação consigo (e outras formas de preocupação) se dissolve e ocorre um momento quase explosivo de apreciação.” (Scheffel).

Percepção visual - Momento de manter o flash, não cair em reflexões e deixar a cena nos guiar. Não sair do presente e não cair em expectativas. Deixar na banguela, não fazer nada. O flash pode ser claro ou não, pense então no que te parou, e não faça perguntas conceituais, tente perguntar sem palavras. As respostas tem que ser visuais. Não rotule.

Formando o equivalente - Só pegue a câmera depois de entender seu flash. Devemos fotografar o que vemos, achar na cena o que realmente nos despertou e entender qual composição isso pede.

A atitude deve ser sempre de sinceridade, autenticidade e confiança. Se perder o flash, não se preocupe, siga em frente, outros surgirão!

Sem idealização

Se por um lado idealizamos demais as coisas, tentamos encaixá-las em nossas expectativas, também tentamos esconder o que há de mais real. Temos medo do que há em nossos corações? O coração é muito sensitivo? Ainda temos o problema da pressa, somos muito ocupados, não há tempo para olhar para o nosso interior, e não há tempo há perder com o que não nos trará ganho. Temos ainda o tédio, o não suportar ficar sem fazer nada.

Mas precisamos de momentos mais calmos e sem expectativa, que farão o coração exposto. Assim podermos nos conhecer e quebrar o ciclo de descontentamento e compulsão. Para se abrir à riqueza do mundo é preciso se expor. Um coração mais aberto leva a um olhar mais aberto.

Exercícios

Para praticar e entender o estilo Miksang é preciso praticar e se esforçar. É importante buscar ver o mundo de forma mais limpa e clara. Como há inúmeros aspectos da visão (cor, luz, textura...) precisamos, inicialmente, filtrar nossa visão, ora observando apenas cores, ora apenas texturas, e em outros momentos apenas espaço, ou luz, ou forma. Os exercícios devem ser feitos em pequenas caminhadas, estando abertos aos flashes de percepção. Ande e busque se conectar a apenas um dos elementos.

1. Luz

Prestar atenção à luz uma maneira de permanecer no momento, enraizado na experiência real de ver as coisas como elas são. É também uma alegria. A dança da luz solar tem grande poder para nos animar. (baseado em: http://seeingfresh.com/photo-submissions/light

2. Cores

Procure observar apenas cores. As coisas não terão formas ou funções, apenas cores. E espere que cores te chamem para o flashe, te prendam, então tente compreender (visualmente) que parte da paisagem te atraiu, o que pertence ao flash, e esse será o enquadramento da foto a ser feita no final.

3. Forma e espaço

Busque ver apenas formas inseridas no espaço.

4. Espaço

Perceba o espaço. Objetos podem estar na imagem, mas apenas para delimitar e destacar o espaço.

5. Texturas

As coisas não serão coisas, serão texturas, sem forma, sem função. A textura chama a atenção dos olhos quase como um toque, quase faz cócegas.

Parte do aprendizado da fotografia miksang é conseguir ver apenas o que pode realmente ser visto... Primeiro buscamos “separar” luz, cor, textura, etc, mas depois você poderá observar a realidade sem essa separação.

Conclusão

Nem sempre devemos fotografar pensando na utilidade ou valor da foto. Quando algo lhe chamar a atenção, não pense se a foto vai ficar boa, se vai valer dinheiro, se vai ganhar prêmios, etc. Apenas pare, tente entender visualmente o que prendeu sua atenção, e então fotografe. Depois veja a foto que fez e olhe de novo a cena. Avalie se ela corresponde ao que te chamou a atenção. Senão refaça. Mas se não conseguir, se o momento passar, não se preocupe, esse momento passou, mas outros virão.

Isso vale mesmo quando não estamos fotografando. Se algo atrair sua visão a qualquer momento, não pense “não estou fotografando agora”, nessa hora vale a câmera que estiver à mão, até o celular. E caso não haja nenhuma, vale a pena fazer o exercício do olhar mesmo assim, busque compreender o que está vendo, visualmente, e perceba a riqueza e a arte presentes no cotidiano. Ficando atento aos "Flashes of Perception", ou "Lampejos de percepção" tenho começado a ver coisas que não via antes, e o dia-a-dia tem se tornado mais agradável, mais surpreendente.

Dar valor e entender sua visão é muito mais importante do que pode parecer!

Sugestões

Em frente ao PC, faça sua seleção com calma, olhe longamente para suas fotos. Esta é uma oportunidade para lhe dar um feedback e refinar seu entendimento da percepção, e desenvolver sua sensibilidade. Veja se as imagens vem de um flash e se elas representa mesmo o que lhe atraiu. Se não, pense no porque?

Na hora de editar vale cortes e correções, mas quanto menos forem preciso, significa que mais perto você chegou de registrar o que viu.

Fica a dica:
Participar de grupos, mostrar e ver fotos é essencial. Cultura de forma geral também.
Aplique estes conceitos em sua vida ampla!
Tome cuidado ao fotografar na rua, cuide de sua segurança, respeite as pessoas fotografadas e tenha sempre a Ética em mente.

Referências:

GALLIAN, Dante Marcello Claramonte. Dá, pois, a teu servo um coração que escuta. Blog do LabHum, 2009 Disponível em: http://labhum.blogspot.com/2009/12/da-pois-teu-servo-um-coracao-que-escuta.html

KARR, Andy e WOOD, Michael. The Practice of Contemplative Photography: Seeing the World with Fresh Eyes. Shambhala Publications, Boston, 2011.

Arte de rua, dharma/arte: epifanias, por Bill Scheffel

http://blogs.dharma.art.br/2011/12/arte-de-rua-dharmaarte-epifanias/

Mais sobre Miksang:

www.fotocultura.net/index.php/a-fotografia-contemplativa-miksang
www.miksang.com/miksang.html
www.conceitualdesign.com/miksang/miksangintro.htm