Cara, não sei nem como começar a falar desse filme. Estava em meu HD de filmes a alguns meses e nada de eu ter oportunidade de vê-lo. Ontem surgiu a oportunidade. Um filme esplendoroso.
Como não poderia falar sobre ele com tanta clareza como Luiz Zanin do Estadão falou, resolvi só fazer jus ao texto de Luiz e publicá-lo aqui. Só me restou negritar passagens do texto que achei necessárias.
Mas não deixe de ver esse filme. É de uma delicadeza tal falando sobre assunto tão complexo como, por exemplo é a Ética, que me deixou totalmente extasiado com a trama. Ele é essencial de ser visto porque discute temas para lá de complexos em todas as sociedades ocidentais, pelo menos.
Cinema da contramão: As Neves do Kilimanjaro
Apesar do título que remete ao conto de Hemingway, As Neves do Kilimanjaro inspira-se no poema Les Pauvres Gens, de Victor Hugo. Não se trata de adaptação, mas de um ponto de partida para o diretor Robert Guédiguian, conhecido pelo apreço à temática social. Nesse caso, Hugo lhe fornece o mote ideal, pois seu poema fala da solidariedade entre os pobres. Não podendo contar com mais ninguém, são os desassistidos que, com seus poucos recursos correm em socorro dos seus próximos.
E, no entanto, como verá o espectador, o início desse belo e duro filme nada tem da visão romântica de Hugo e indica exatamente o contrário. Como em quase todos os trabalhos de Guédiguian, estamos em Marselha, seu ponto de observação a partir do qual lança seu olhar sobre o mundo globalizado.
E é deste mundo que se trata desde o início, quando vemos alguns personagens num sorteio pouco usual que acontece na zona portuária. Nesse sorteio, feliz é quem não for contemplado, pois os que tiverem seus nomes tirados ao acaso perderão seus empregos. A empresa precisa enxugar seus quadros e exige demissões. Desse modo, o líder sindical Michel, com longo passado em defesa da categoria, entende que a maneira mais justa de escolher os demitidos é fazer o sorteio. Ele inclui seu próprio nome entre os passíveis de demissão, embora não precisasse fazer isso. E, como outros 19 infelizes colegas, tira a “sorte” às avessas.
A partir desse começo, o filme parece que vai se encaminhar para os problemas do desemprego e da inutilidade que sente um homem forçado a permanecer em casa, sem trabalho. Ainda mais alguém como Michel (Jean-Pierre Darroussin), casado com uma mulher cheia de personalidade como Marie-Claire (Ariane Ascaride, mulher do diretor e sua atriz-fetiche). Mas um fato abrupto, um assalto à mão armada, muda toda a perspectiva de Michel, dos seus planos imediatos de futuro, que incluíam uma viagem à África, à fé que deposita em seus colegas de trabalho.
Essa reversão de expectativas é o que o filme de Guédiguian tem de mais interessante. E de mais forte. Quando pensamos que a trama vai se encaminhar para o ramerrão, para a choradeira, à esta altura meio inócua, dos efeitos da globalização sobre a crise dos empregos e a debilitação dos direitos sociais conquistados ao longo do século 20, ele simplesmente nos puxa o tapete. E nos encaminha para uma dimensão que não estávamos preparados para assistir – a discussão a fundo da questão ética. O que pode justificar um crime como o roubo? Será que um antigo militante de esquerda, crítico da ação policial, pode se valer da própria polícia na defesa do seu patrimônio? Não será, como o próprio Michel se pergunta em determinado momento, um insuportável “aburguesamento” de quem no passado lutou contra o sistema?
São perguntas que todas as pessoas com certa consciência social já se fizeram um dia. Em As Neves do Kilimandjaro elas retornam de maneira abrupta, incisiva e cheias de complexidade. Aqui, o cinema político não se limita a fazer denúncias, mas esmiúça, sem piedade, as contradições internas presentes no próprio pensamento da esquerda.
Nem por isso – é bom que se diga – se torna um filme de tese. Um desses chatíssimos exemplares de ideias preconcebidas, cujos personagens são criados apenas para servir de veículo a uma demonstração exemplar. Pelo contrário, Michel, Marie-Claire e outros tipos que convivem com o casal são personagens críveis, cheios de vida, emocionantes em sua contraditória humanidade. Sempre há de se escolher um lado, ao contrário do que prega o cínico relativismo contemporâneo. Mas essa escolha não se dá sem sofrimento e contradições. Cavar um espaço possível da solidariedade nessa maré de individualismo é o desafio proposto por As Neves do Kilimandjaro.
Luiz Zanin (Estadão)
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