"No mundo quântico reina a deusa "descontinuidade". A energia varia em saltos: entre dois níveis energéticos sucessivos não há nada, estritamente nada, nenhum outro nível de energia. Os "números quânticos" das partículas (que são características dessas partículas, assim como o peso de nosso corpo, a cor de nossos olhos etc. são características de nosso corpo) têm valores precisos, discretos, e entre dois valores sucessivos desses números quânticos não há nada, estritamente nada, nenhum outro número possível. Esta descontinuidade de que falamos é pura e dura, e nada tem em comum com o significado dessa palavra na linguagem ordinária (como, por exemplo, a bifurcação de um caminho). Como imaginar tal descontinuidade? Tentemos imaginar uma "escada quântica" cujos degraus não estão de modo algum ligados entre si, e tentemos imaginar-nos subindo tal escada. Isto é evidentemente impossível; nossa imaginação habitual preenche instintivamente o intervalo entre os degraus. Tentemos outra imagem: um pássaro que salta de um galho a outro de uma árvore sem passar por nenhum ponto intermediário: é como se o pássaro se materializasse subitamente em qualquer galho. É evidente que nossa imaginação habitual se paralisa ante tal possibilidade, mesmo que a matemática possa tratar esse tipo de situação com rigor.
Nesse "Vale da Estupefação",* muitas outras surpresas espreitam o viajante, aguçando seu imaginário e forçando-o a descobrir em si mesmo um grau insuspeito do imaginário que faz tudo retornar à ordem e lugar apropriados. Em seu caminho, o viajante encontra uma dessas partículas quânticas que lhe aparece como onda e partícula ao mesmo tempo. "Contradição!, ilusão!", exclama ele. "É como se me dissessem que sou e não sou ao mesmo tempo". Mas subitamente sua face se ilumina, pois enfim ele compreende ter sido seu próprio olhar que viu uma onda e uma partícula ao mesmo tempo, por um recorte conforme à sua própria natureza. Esse habitante do Vale da Estupefação é, na verdade, muito mais complexo que uma onda ou uma partícula.
*Extraído da Linguagem dos Pássaros, a epopéia de Farid ud-Din Attar, é o nome de um dos sete vales que devem ser transpostos pelo viajante que busca a verdade. Aliás, é com esta passagem de Attar que Nicolescu abre o primeiro capítulo de seu livro Nous, le particule et le monde. (N.T.)
Mais confiante, ele continua sua jornada. Então pára e não quer mais aceitar o que vê, pois vê com seus próprios olhos a famosa não-separatividade quântica, da qual lhe falaram com tanta freqüência nas obras de divulgação publicadas em seu próprio mundo. Até este momento, ele estava pronto a aceitar tudo: que os habitantes desse mundo quântico se movem em velocidades vertiginosas, incomparavelmente maiores que a de nossos foguetes; que o vazio que o cerca está repleto de formas evanescentes que aparecem e desaparecem perpetuamente, numa sinfonia de formas de inigualável beleza; que a energia oculta nesse mundo quântico é imensa, sem proporção alguma com as energias que se manifestam no próprio mundo do viajante. Porém, essa "não-separatividade" o deixa furioso. Ver dois habitantes desse Vale da Estupefação - um numa galáxia, outro noutra - reagir simultaneamente, como um todo, ultrapassa em muito sua capacidade de aceitar o desconhecido. Como pode nosso viajante, que conhece bem a teoria da relatividade e sabe que nenhum sinal pode ultrapassar a velocidade da luz, conceber que essas duas partículas possam reagir simultaneamente quando nenhum sinal conhecido pode ligá-las entre si? "Magia, mística, mistificação!", exclama ele, decidido a sair desse mundo quântico, pois quer, a qualquer preço, preservar sua razão. Nesse exato momento, vê surgir diante de si um outro viajante de seu próprio mundo, um compatriota, que começa a conversar com ele. É verdade que há algo de perturbador em sua face: ora lembra vagamente a de um pensador do século XVI, ora assemelha-se de súbito à de um físico do século XX, e há inclusive momentos em que a face do outro viajante se assemelha perfeitamente à sua própria. Todavia, sua palavra é serena, calma, tranqüilizadora, racional.
"Nada há de estranho aqui, meu amigo," diz o segundo viajante. "Estou aqui há muito tempo e tive a oportunidade de convencer-me disso. Agora é antes nosso próprio mundo que me parece estranho, incompreensível, e quando retornarmos a ele teremos de fazer o esforço necessário para compreendê-lo. Tomemos essa famosa 'não-separatividade' que tanto te perturba. Um exemplo poderia fazer que compreendas por que nada há de estranho ou mágico nela. Imagina-te de novo em teu próprio mundo tão familiar, de três dimensões espaciais. Agora imagina uma folha de papel (de duas dimensões), povoada por todo tipo de habitantes, cujos órgãos dos sentidos lhes permitem perceber com precisão o que se passa em duas dimensões, mas exclusivamente em duas dimensões. Tomemos agora um círculo e deixemos que ele penetre suavemente a folha de papel, num ângulo perpendicular a essa folha. Os habitantes desse mundo bidimensional verão primeiro a súbita aparição de um ponto. Pensarão tratar-se de um novo fenômeno, e que seria conveniente estudá-lo com todos os meios de sua ciência. Em seguida, verão o ponto separar-se em dois, que aos poucos se afastam um do outro. Farão todo tipo de experiências e inventarão teorias para explicar perfeitamente o que se passa.
As complicações começarão quando um desses físicos de duas dimensões - aliás, um dos mais brilhantes de sua época - mostrar sem ambigüidade alguma que o movimento dos dois pontos indica a existência de correlações incompreensíveis: os dois pontos reagem como um conjunto solidário, sem que nenhum sinal possa ligá-los entre si, pois, segundo a teoria há muito formulada por um de seus cientistas, os físicos sabiam que nenhum sinal pode ultrapassar certa velocidade limite. Os físicos desse mundo bidimensional tinham acabado de descobrir a 'não-separatividade'. O círculo continua seu movimento: os dois pontos, após atingir a distância máxima (o diâmetro do círculo), começariam a aproximar-se até se juntarem num só ponto, que em seguida desapareceria subitamente do mundo da folha de papel sem deixar qualquer vestígio: o círculo teria apenas atravessado o papel. Enquanto isso, polêmicas assolariam o mundo de duas dimensões, não apenas na comunidade dos físicos, mas também entre os filósofos e teólogos. De tempos em tempos o grande público assistiria a seus debates televisados ou leria alguns de seus incontáveis compêndios, sem nada compreender do que estaria ocorrendo. Até hoje a não-separatividade continuaria a ser considerada um grande mistério, ainda que uma poderosa associação 'de-pensar-conforme-nossos-próprios-sentidos' tentasse fazer que eles acreditassem não haver mistério algum, dizendo: é necessário ler as equações matemáticas, ver que 'isso de fato ocorre' e não tentar 'compreender' mais do que permitem as equações.
"No entanto, para nós a situação é muito simples e racional: trata-se apenas de um círculo que atravessa uma folha de papel."
A face do viajante torna a iluminar-se. Ele compreende que seus próprios hábitos de pensamento o impedem de perceber a nova realidade.
Ele continuou sua jornada por longo tempo e descobriu muitas outras maravilhas. Após sua viagem (seria demasiado descrevê-la aqui em detalhe) ele retornou a seu mundo e escreveu um livro de grande erudição: Da natureza do Espaço-Tempo, que teve extraordinária repercussão entre seus compatriotas; não apenas entre cientistas e filósofos, mas também em toda a população. A prova disso é que agora muitos se empenham em empreender a viagem ao Vale da Estupefação, com a secreta esperança de com isso poderem enfim compreender seu próprio mundo, tornado, nesse meio tempo, caótico, anárquico, violento, louco."
PS: Coloquei essa imagem só para dizer que esse conceito já foi ultrapassado a muito tempo.
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