quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Ciência, Sentido & Evolução II

Não me contive. Tenho que colocar o prefácio da edição francesa do livro do título do post. Como já havia colocado o prefácio da edição americana escrito por Joscelyn Godwin, antes de guardar o livro, reli o que Antoine Faivre escreveu e me senti obrigado a colocá-lo aqui. Um complementa o outro na explicação da narativa que se segue no livro. Com já havia dito em algum lugar por aqui, esse blog é para você e para que eu guarde em um lugar especial, informações que me levaram a ser quem sou na atualidade. Um repositório de informações que minha mente insiste em guardar. E talvez para tentar conseguir que algum incauto se aventure na leitura desse livro. Incauto porque, uma vez adentrado nessa senda, e compreendido o que ela faz com o, primeiramente, curioso, nunca mais será possível voltar a trás e dizer para si mesmo que não tem o conhecimento. E que esse conhecimento nunca é o bastante. Até verificar que, paradoxalmente, esse conhecimento não se encontra em livros. Daí, estará a um passo de entrar no silêncio.

Prefácio a edição francesa

A relação entre a Natureza e o Espírito é talvez a questão mais fundamental da metafísica. Certamente é possível esquivar-se dela afirmando que só existe uma única ordem de realidade: seja a Natureza, reduzida à matéria ou a uma forma de energia; seja (seguindo o exemplo de uma corrente que se diz representante da "Tradição") o Espírito, fora do qual tudo, inclusive a Natureza em sua totalidade, não passaria de uma ilusão. O panteísmo, que não deixa a Deus lugar algum fora da Natureza, seria então uma variante desse monismo de duas faces. Pode-se também estabelecer um corte entre Espírito e Natureza, uma solução radical de sua continuidade, de onde provêm os diversos tipos de dualismo: seja o deísmo, com seu tranqüilo Deus otiosus, seja as figuras trágicas desenvolvidas pelas gnoses de tipo maniqueísta, prontas a lançar sobre a Natureza um anátema irrevogável.

Por outro lado, é possível conceber essa relação entre Natureza e Espírito como algo de uma complexidade rica e paradoxal. Essa abordagem não impede que um dos dois termos seja absorvido pelo outro, como resultado de um processo dialético, por exemplo: a Natureza pode ser absorvida por um espírito em busca de auto-realização. Contudo, não somos obrigados a sucumbir a essa tentativa de conceber o Ser, mesmo que absoluto, como uma espécie de antropófago. Então um caminho singularmente fecundo se abre, o caminho sempre trilhado pelo Ocidente quando o interesse pela Natureza como realidade e não uma ilusão, pela Natureza como sujeito, é acompanhado pelo questionamento do que haveria fora dela, fora do que pode ser apreendido pela observação e experimentação científicas. A tradição judaico-cristã certamente não trazia em seu germe o desdém por essas possibilidades; no entanto, a reiterada tentativa de reprimir a Natureza - o aspecto feminino, identificado confusamente à Sophía decantada por Jacob Boehme -, de reduzi-la e humilhá-la, é uma das mais interessantes e desconcertantes de sua história, sensível sobretudo nas igrejas institucionalizadas; pois embora no interior delas tenham florescido outras correntes - como na Idade Média, por exemplo, as Escolas de Chartres e de Oxford -, foram rapidamente esquecidas. Assim, é muitas vezes à margem das igrejas, ainda que freqüentemente ligados espiritualmente a elas, que são encontrados os homens mais inspirados, cuja relativa independência e secularidade lhes conferia certa margem de liberdade. É entre esses homens que são encontradas as mais inspiradas "Tábuas vivas ou naturais das relações que unem Deus, o Homem e o Universo", para ecoar o título do admirável livro de Louis Claude de Saint-Martin (Tableau Naturel des Raports qui existent entre Dieu, 1'Homme et 1'Univers, 1782, Lyons).

Jacob Boehme é um desses. Sem dúvida esse mestre de Saint-Martin, de Franz von Baader e de muitos outros é o maior de todos eles. Seus escritos são os de um visionário perpetuamente aberto ao reino mítico judaico-cristão, cuja inspiração faz jorrar tormentas e tempestades, lava vulcânica e um conjunto de sentidos e cores suaves ordenadas como as do arco-íris. Aceitar hipoteticamente, reconhecer em tal discurso uma dimensão profética comparável à de Ezequiel, arriscar consentir que a imaginação criadora de Jacob Boehme poderia muito bem permanecer irredutível aos caprichos de uma subjetividade fechada em si mesma, não constituiria necessariamente um ato de fé, mas revelaria uma aposta metodológica que certamente valeria o risco. É essa aposta que Basarab Nicolescu nos convida a fazer, e parece-me que ela pode ser aceita ao menos por três razões.

Em primeiro lugar, se não há mais dúvida de que a imaginação, tomada agora no mais amplo sentido do termo, exerce uma função orientadora na escolha da pesquisa, tendo inclusive influência na natureza das próprias descobertas, talvez ainda não se tenha ponderado o bastante sobre a fecundidade potencial das estruturas com vocação para a universalidade, como as encontradas em certos visionários. Cada uma dessas estruturas, afirmadas por seu autor como absoluta, parece relegar as anteriores à condição de curiosidades ultrapassadas; porém, cada uma delas mereceria sem dúvida ser reavaliada de tempos em tempos pelo pesquisador que se permite ir em busca de esquemas unificadores, que, como um órganon, poderiam ajudá-lo a lançar suas redes nas águas de sua representação do real. Entre os pensadores ocidentais que elaboraram tais estruturas figuram Raymond Lulle, Hoëné Wronski, Raymond Abelio e Jacob Boehme; mas este último foi sem dúvida o único a forjar sua chave na incandescência visionária do mítico. Ele empregou uma estrutura simbólica cuja arquitetura barroca, longe de abalar a coerência interna de seu discurso, lhe dá substância e o encarna em esquemas figurativos e concretos.

Talvez nada se tenha a perder por postular a existência de uma natureza comum, uma conatureza, entre a mente humana e o Universo, e em seguida tomar uma linha de pensamento hipotético-dedutiva, cujas implicações e dimensões Basarab Nicolescu explora aqui. Essa natureza comum significa que os dois termos, mente e Universo, estariam associados numa relação de analogia, de tal modo que a mente humana seria por vezes capaz de interiorizar - faculdade cuja noção foi desenvolvida no Corpus Hermeticum alexandrino do século III - e em seguida projetar, sob a forma de imagens e símbolos, as próprias estruturas que, para citar o verso do Fausto de Goethe, "sustentam o Universo em sua coesão mais íntima" (Was die Welt im Innersten zusammenhklt).

Assim, Raymond Abellio, surpreso com a estreita analogia revelada por uma comparação entre os sessenta e quatro hexagramas do I Ching e os elementos do código genético, pôde chamar a atenção para a possibilidade dessa conatureza.

Ora, parece-me - e essa seria a segunda razão para aceitar a aposta sugerida por Basarab Nicolescu - que dentre os visionários cuja imaginação se apresenta sobretudo como "criadora", isto é, apta a recriar e, de certo modo, reproduzir as configurações arquetípicas, os que vão mais longe e de cujas obras se depreende uma impressão de autenticidade, são aqueles que tomam por fundamento, por base, por suporte de suas meditações, como trampolim e ferramenta heurística, o mítico. O mítico é, aqui, história experimentada em imagens, um cenário organizado como um tríptico: primeiro cosmogonia (ou teogonia) e antropogonia, depois cosmologia (ou cosmosofia), por fim escatologia. Em Jacob Boehme, a hermenêutica dessa história desenvolve-se sempre a partir da revelação judaico-cristã, e leva o nome de teosofia, que também se aplica à cabala judaica do Zohar.

O que ela nos pode oferecer? Nada menos que a possibilidade de reconstituir nosso caduceu. Se o mítico, assim compreendido, volta a ser levado a sério, graças àqueles, pouco numerosos, que escapam ao domínio dos reducionismos, e desde que o homem já não se sente em casa numa natureza que tende a tornar-se radicalmente "outra", surge, ao mesmo tempo, o questionamento sobre o sentido da ciência e de sua finalidade. É por isso que se sente uma urgente necessidade de uma Filosofia da Natureza, no sentido em que lhe atribuíam os pensadores do romantismo alemão, tais como Franz von Baader, o Boehmius redivivus. Uma Naturphilosophie não restrita por uma teologia, e muito menos por uma ideologia, mas aberta ao ontológico e apta a acolher o produto de uma transdisciplinaridade fecunda. Uma imaginação criadora como a de Jacob Boehme, lançando suas raízes - como a árvore carregada de flores e frutos que extrai do solo sua fecundidade - no terreno do mítico, estabeleceria um duplo laço, à semelhança do caduceu de Hermes, com uma ciência cuja especificidade não mais impediria o cientista de ser também um filósofo.

Há, por fim, uma terceira razão, ligada às duas primeiras, que diz respeito à própria escolha de Jacob Boehme pelo autor do presente livro. Até este momento, no século XX, o caráter embrionário de uma Naturphilosophie, que ainda não tomou corpo, apresenta-se sobretudo sob a forma de comparações ou aproximações entre um real descrito pela ciência e imagens tomadas do simbolismo de diversas tradições religiosas. Nada há nisso que seja contrário às orientações sugeridas acima; contudo essas aproximações, como a do Tao à física, por mais atraentes que possam ser, resultam essencialmente estéticas e, por falta de fundamento ontológico, não servem por si mesmas como prolegômenos de uma Filosofia da Natureza. Se é verdade, como insiste Basarab Nicolescu, que os graus de realidade "corresponde" aos do Imaginário, as comparações até aqui oferecidas a nós convidam-nos a considerarmos apenas os primeiros graus ou ordens de realidade a serem percorridos. Enfim, verifica-se que a grande maioria dessas comparações tomam suas imagens de tradições do Extremo-Oriente, como se nosso solo ocidental, ainda tão mal explorado sob esse enfoque, não estivesse pronto a revelar sua beleza, como se não contivesse jazidas teosóficas, alquímicas e herméticas a serem exploradas, com riquezas sem dúvida mais acessíveis que as exóticas pérolas do Oriente. São essas jazidas que devem orientar nossa busca, e, também por isso, saudamos o surgimento do livro de Basarab Nicolescu como um importante acontecimento.

ANTOINE FAIVRE

Nenhum comentário:

Postar um comentário