segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Ciência, Sentido & Evolução



O texto abaixo é o prefácio da primeira edição americana do livro "Ciência, Sentido & Evolução" de Basarab Nicolescu, físico moderno que se dispôs a revelar os pontos em comum entre o pensamento de Jacob Boehme e a física moderna. Preferi colocar esse prefácio, e não excertos do livro, porque é mais conciso na explicação do que se propõe o livro.

Para quem não conhece, Jacob Boehme foi um místico alemão do século XVI/XVII que teve várias experiências místicas muito jovem e que, após alguns anos, resolveu divulgá-las. 

Esse livro é, vamos dizer assim, um tanto "técnico" ou "específico". Portanto, não indicado para a maioria das pessoas, pois é complexo e, basicamente, de estudos e não leitura recreativa.  Mas não me furto de sugerir a leitura, pois certamente a pessoa tenderá a ler a obra de Jacob Boehme que são de leitura bem mais complexa. Esse livro de Basarab é, com certeza, um prenunciador, para quem não conhece o místico, das idéias desse.

Prefácio

Já que este livro trata da união dos opostos e da reconciliação dos contrários, é provável que atraia o interesse de dois tipos de leitores. De um lado, aqueles que suspeitam que a ciência moderna está à beira de um abismo de descobertas tão formidáveis quanto a Revolução Copernicana. A estes dirigimos nosso Prefácio.

De outro, aqueles já familiarizados com Jacob Boehme ou com o esoterismo ocidental, que sentem que seus estudos filosóficos não podem permanecer alheios às questões científicas dos dias de hoje. O Prefácio de Antoine Faivre falará a estes.

Que base comum poderia servir a um diálogo entre Basarab Nicolescu, um físico moderno, e Jacob Boehme, um visionário renascentista? Para a maioria das pessoas, ciência é fato, imaginação é ficção, e ponto final.

Todavia, esta cisão, que como uma fenda começou a se abrir no século de Boehme e pode começar a fechar-se no nosso, é o sintoma de uma perigosa desarmonia em nossos mundos interior e exterior. Muitas décadas atrás houve um acalorado debate, iniciado por C. P (e mais tarde Lord) Snow, cientista britânico e também famoso romancista, a respeito do que ele chamou "Duas Culturas". Snow advertiu que as comunidades científicas e humanistas estavam afastando-se cada vez mais, ao ponto de tornar os membros de uma "cultura" incapazes não
só de entender, mas até mesmo de avaliar a linguagem e os interesses da outra, chegando mesmo a desprezá-los.

Os cientistas se emaranharam num mundo de tecnologia e pensamento quantitativo, para o qual o mundo qualitativo das artes e das letras, da filosofia e da religião não passava de um agradável adorno. De outro lado, os humanistas contentavam-se em serem analfabetos na matemática e nas ciências, seguros da superioridade de seus propósitos elevados diante de trabalhos sujos como a engenharia. Snow não deixou a seu público nenhuma dúvida quanto ao perigo potencial de tal cisão.

Se, desde os anos 60 houve alguma melhora, foi provavelmente graças aos cientistas, e em especial aos físicos, muitos dos quais foram levados, pelas descobertas deste século, a tornarem-se "metafísicos". Há entre os cientistas uma certa hierarquia, na medida em que os princípios fundamentais de uma ciência servem de material de estudo à outra. Engenheiros e outros técnicos não precisam questionar ou demonstrar os princípios oferecidos a eles pelas ciências teóricas, como a biologia, a química e a física. De modo geral, os biólogos apóiam-se em leis da química, enquanto os químicos se fiam nos princípios da física. Todavia, os modelos da estrutura atômica, tão úteis aos químicos, são ficções para os físicos contemporâneos. E, indo mais além, seria possível afirmar que os princípios em que se apóia o físico são estudados pelo metafísico? Em certos círculos, podemos ser perdoados por tais palavras, uma vez que nos níveis mais altos e especulativos, a física atual investiga o que está além (meta) do mundo físico, e trata - com que surpresa ante a própria audácia! - das mesmas questões do ser e do não-ser que outrora estavam reservadas aos filósofos.
Os humanistas podem opor-se à idéia de uma hierarquia paralela extraída de suas próprias disciplinas, a menos que lembrem que a Teologia foi tradicionalmente considerada a rainha das artes liberais, que eram baseadas antes na investigação humana que na Revelação divina. Porém, que disciplina é essa que estuda os princípios da Teologia? É uma questão delicada, para a qual há várias respostas possíveis. A primeira, e a que menos despertaria interesse nos dias de hoje, é a negação da possibilidade de haver qualquer disciplina acima das "revelações" de Escrituras como a Torá, o Corão e o Novo Testamento. Este é o ponto de vista exotérico. Em segundo lugar, e mais positivamente, há a metafísica, o estudo dos princípios de existência e não-existência, inclusive a de Deus. Este ponto de vista não está limitado pelos dogmas de religião alguma, uma vez que seus princípios, se verdadeiros, devem ser universais. A metafísica é um estudo esotérico, na medida em que não se atém às formas exteriores, mas ao lado interior da religião. Basarab Nicolescu refere-se a um desenvolvimento particular dela, associado ao nome de Renê Guénon, sob o nome de "Tradição". Em terceiro lugar, há a teosofia, que pode ser definida genericamente como o estudo experiencial das coisas divinas.

A Teosofia, em sua investigação dos poderes por detrás e no interior do Universo, que alguns chamam Deus ou deuses, é tomada, não sem razão, com desconfiança: a história está repleta de excêntricos e fanáticos que reivindicaram tal intimidade. No entanto, de maneira muito ocasional, surge um teósofo cujas asserções pedem uma séria atenção da parte daqueles que estão em busca de Sabedoria. Jacob Boehme é um desses. Suas proposições apóiam-se tanto na sua inatacável integridade pessoal, como na fecundidade espiritual de suas descobertas teosóficas. Se Basarab Nicolescu está correto, há então uma terceira garantia: a aplicabilidade do sistema de Boehme às questões com que se depara a ciência moderna, na verdade, a humanidade moderna.

O leitor encontrará neste livro um sumário admiravelmente lúcido de algumas descobertas de Boehme, acrescido de fontes primárias provenientes dos textos do próprio teósofo. E se a questão é fecundidade, este livro é um dos mais ricos frutos que cresceram da árvore boehmiana. Colocando a questão da maneira mais simples possível, sua tese é a de que Boehme, através de alguma faculdade de visão supra-sensorial, foi capaz de contemplar o princípio que está por detrás da criação e da evolução do cosmos. Se isso for de algum modo verdadeiro, tal conhecimento deve despertar definitivamente o interesse da ciência contemporânea. Além do mais, Boehme não se limitou a explicar como o cosmos veio à existência - uma questão ainda não resolvida pela física, mas com a qual esta ao menos não se sente incomodada - mas revela também como e por que evoluiu desde então. Para discutir isso, foi forçado a abordar as qualidades últimas do bem e do mal em suas mais profundas raízes na Natureza divina. Basarab Nicolescu sugere que é chegado o tempo de a ciência deixar de abster-se de tais temas e considerações, como se fossem menos "reais" que as ondas e partículas às quais os físicos reduziram nosso mundo.

Os primeiros princípios de Boehme são as três forças metafísicas que estão por detrás da existência do Universo. Elas começam não com Deus, que é o primeiro Ser, mas com o Sem-fundo (ungrund) do Não-ser (ou o Além-ser), em relação ao qual mesmo o Criador e seu cosmos são como um nada, embora, paradoxalmente, dê origem a ambos. Aqui Boehme eleva ao mais alto limite o princípio hermético da polaridade como geradora da existência, e também desce à maior profundidade da questão relativa àquilo que experimentamos como "mal". A segunda série de princípios de Boehme constitui-se de sete forças que promovem o desenvolvimento do cosmos e de suas testemunhas criadoras: a mente e a alma humanas, que revelam a tragédia e a promessa subjacente à evolução cósmica e humana.

Stephen Hawking conclui seu Uma breve História do Tempo (1988), obra merecidamente popular, com uma enigmática reflexão sobre a existência ou não-existência de Deus, numa dramática demonstração de como em nossos dias a física lança tais questões. Infelizmente, o diálogo entre Hawking e seus leitores não poderia ir além disso, pois foi expresso ou forjado numa linguagem teológica e não metafísica e muito menos teosófica. Hawking escreveu para pessoas que, se tivessem alguma crença religiosa, provavelmente seria num nível exotérico. Por isso, a questão sobre o que é Deus e se ele "existe" ou não jamais poderia ser tratada com a necessária sutileza.

Enquanto o livro de Hawking começa com uma exposição da física e da astronomia e termina numa questão teosófica, este livro começa com uma exposição de Boehme, o teósofo, e termina num questionamento da ciência não menos penetrante que o desafio que Hawking oferece aos teístas. No entanto, talvez a abordagem deste livro seja mais frutífera, uma vez que está fundamentada nos princípios do esoterismo. A própria física foi compelida a tornar-se "esotérica", isto é, a ir além das imagens de realidade do século XIX, que ainda são aceitáveis para a maioria da humanidade. Essa compulsão adveio do que poderíamos chamar justificadamente visões e revelações de Max Planck, Albert Einstein, Neils Bohr, Werner Heisenberg e outros homens dotados de um temperamento claramente metafísico. Por outro lado, a religião declinou de ouvir os teósofos como Plotino, Mestre Eckhart e Boehme, e com isso caiu numa estagnação exotérica. Apenas no seio de uma estrutura duplamente esotérica estas duas culturas poderão reconciliar-se.

É comovente testemunhar este encontro de um físico sofisticado e cosmopolita com um homem do extremo oposto da era moderna: simples, sem escolaridade e não viajado, exceto nos caminhos interiores. Especialmente impressionante é a humildade de Nicolescu diante das revelações do sapateiro. É quase inacreditável que a obra de Boehme esteja destinada a romper o impasse imaginal e moral da ciência moderna. No entanto, nas páginas que se seguem, ocorre o inconcebível!

JOSCELYN GODWIN

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