segunda-feira, 18 de junho de 2012

Mircea Eliade





O que nos revelam todos esses mitos e esses símbolos, todos esses ritos e essas técnicas místicas, essas lendas e essas crenças que implicam, com maior ou menor clareza, a coincidentia oppositorum, reunião dos contrários, a totalização dos fragmentos? Antes de tudo, uma profunda insatisfação do homem com a sua situação atual, com aquilo que se chama condição humana. O homem sente-se dilacerado e separado. Nem sempre lhe é fácil tomar consciência perfeita da natureza dessa operação, pois às vezes ele se sente separado de "alguma coisa" poderosa, outra coisa que não ele; outras vezes sente-se separado de um "estado" indefinível, atemporal, do qual não guarda lembrança precisa, mas do qual se lembra no mais profundo de seu ser: um estado primordial de que usufruía antes do tempo, antes da História.

Essa preparação constituiu-se como uma ruptura, nele e no Mundo. Foi uma "queda", não necessariamente no sentido judaico-cristão do termo, todavia uma queda, já que traduzida por uma catástrofe fatal para o gênero humano e, ao mesmo tempo, por uma mudança ontológica na estrutura do Mundo. De certo ponto de vista, pode-se dizer que numerosas crenças que implicam a coincidentia oppositorum traem a nostalgia de um Paraíso perdido, a nostalgia de um estado paradoxal no qual os contrários coexistem sem confrontar-se e onde as multiplicidades compõem os aspectos de uma misteriosa Unidade.

Afinal de contas, foi o desejo de recuperar essa Unidade perdida que obrigou o homem a conceber os opostos como aspectos complementares de uma realidade única. É a partir de tais experiências existenciais, desencadeadas pela necessidade de transcender os contrários, que se articularam as primeiras especulações teológicas e filosóficas. Antes de se tornarem conceitos filosóficos por excelência, o Um, a Unidade, a Totalidade constituíam nostalgias que se revelavam nos mitos e nas crenças e se enalteciam nos ritos e nas técnicas místicas.

No nível do pensamento pré-sistemático, o mistério da totalidade traduz o esforço do homem para ter acesso a uma perspectiva na qual os contrários se anulem, o Espírito do Mal se revele incitador do Bem e os Demônios apareçam como o aspecto noturno dos Deuses. O fato de esses temas e esses motivos arcaicos sobreviverem ainda no folclore e surgirem continuamente nos mundos oníricos e imaginários prova que o mistério da totalidade faz parte integrante do drama humano. Ele volta com múltiplos aspectos e em todos os níveis da vida cultural, tanto na teologia mística e na filosofia quanto nas mitologias e nos folclores universais; tanto nos sonhos e nas fantasias dos modernos quanto nas criações artísticas.

Não foi por acaso que Goethe procurou, durante toda a vida, o verdadeiro lugar de Mefistófeles, a perspectiva na qual o Demônio que negava a Vida se mostrasse, paradoxalmente, seu mais precioso e incansável colaborador. Também não foi por acaso que Balzac, criador do romance realista moderno, retomou, em seu mais belo romance fantástico, um mito que obsedava a humanidade há vários milênios.
Goethe e Balzac acreditavam na unidade da literatura europeia e consideravam suas obras como pertencentes a essa literatura. Ficariam ainda mais orgulhosos se tivessem pressentido que a origem dessa literatura europeia está além da Grécia e do Mediterrâneo, além do Oriente Próximo antigo e da Ásia; que os mitos reatualizados em Fausto e Serafita nos chegam de muito longe no espaço e no tempo; que eles nos chegam da pré-história.

Mircea Eliade. Mefistófeles e o andrógino; trad. Ivone Castilho Benedetti.

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