sexta-feira, 5 de junho de 2020

PND - ANTES DE MAIS NADA


ANTES DE MAIS NADA...

A REVISÃO GERAL DESTE LIVRO ocorreu antes de qualquer notícia sobre o novo coronavírus. Mas não seria possível lançá-lo agora sem acrescentar ao menos algumas palavras sobre essa que se apresenta como a maior crise econômica desde a crise de 1929 e sanitária desde a gripe espanhola.

A pandemia não muda a história brasileira que descrevo aqui, não elimina a necessidade de promovermos as reformas e mudanças que proponho, mas certamente acrescentará a necessidade de se propor medidas inéditas e de encarar uma nova ordem mundial que ainda não sabemos qual será.

Pretendo considerá-las em futuras edições desta obra.

No entanto, ao mesmo tempo, a pandemia materializou alguns dos piores temores que abordei neste livro e que tornaram a necessidade de mudanças profundas ainda mais imediatas.

Nos últimos dias de março de 2020, quando escrevo estas palavras confinado em Fortaleza, ainda é cedo para estimar como vamos sair desse drama político, econômico e, principalmente, sanitário. Mas como quer que saiamos, acredito que o Brasil e o mundo nunca mais serão os mesmos.

Muito me marcaram as palavras do Papa Francisco para uma praça de São Pedro deserta: “Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”.

Quando fomos atingidos pela pandemia, o neoliberalismo já havia deixado o mundo agônico. Com o Ocidente estagnado desde 2008, suas nações já davam sinais de esgotamento do discurso único de corte em programas sociais, privatizações, desregulamentações e vantagens fiscais para as empresas. No Brasil, o neoliberalismo, acentuado desde o fim do Governo Dilma, deixou a economia em coma. Desde o Governo Temer, já são quatro anos de políticas como teto de gastos, reforma trabalhista, reforma da Previdência e privatizações, e a economia do nosso país não reage.

É essa economia em coma, desindustrializada, que não produz mais sequer respiradores para sua população, que hoje é atingida por essa enorme tragédia.

Não estamos vivendo numa economia de guerra: numa guerra, mobilizamos toda a economia para um esforço brutal de aumento de produção. Neste momento, estamos observando uma desmobilização inédita de nossa capacidade de produção. De repente, vemos o que é o mercado deixado à própria lógica e como o Estado deve intervir necessariamente para garantir não só o melhor para o bem-estar da população, mas para a economia como um todo, ainda mais em momentos de crise que exigem coordenação central da sociedade.

Esse truísmo, que cairá concreta e tragicamente sobre nossa cabeça, deixará nu o rei neoliberal, seu consenso será desafiado e anos de discurso único serão desmentidos pelos fatos.

O neoliberalismo nos trouxe até aqui. Mas não nos tirará daqui.

E como podemos ver agora, de repente o mundo inteiro recorre, novamente, ao keynesianismo.

A Europa pede um novo Plano Marshall.

Os EUA pedem um novo New Deal.

É claro que nós, no Brasil, temos que pedir um novo plano de recuperação como o de Vargas, em 1930.

O que essa crise deixa claro é que o Estado terá que liderar os esforços de empresas e indivíduos para que a sociedade não colapse. Isso é verdade tanto no enfrentamento inicial à pandemia, quanto no enfrentamento à crise que se seguirá a ela.

Neste momento, é terrivelmente falso afirmar que “primeiro a gente cuida da vida das pessoas, depois da economia”, pois se a economia se desintegrar, a saúde e a vida das pessoas se desintegrarão junto. Também é terrivelmente falso, e perverso, afirmar que a gente “tem que cuidar da economia primeiro, senão vai ser pior para a vida dos pobres” porque se a saúde pública se desintegrar, a economia se desintegrará junto.

Agora, as medidas necessárias a serem tomadas são simultâneas no campo da saúde pública e da economia. Não só para salvar a maior quantidade de vidas humanas, mas também para garantir a menor desorganização de nossa economia.

A única opção moralmente responsável nesse cenário de incerteza é nos basearmos no melhor que a ciência tem a oferecer para tomar nossas decisões. E segundo ela, precisamos radicalizar a quarentena e o isolamento social, com testagem maciça.

Paralelamente, somente a oferta monetária para garantir a liquidez, com poderosos pacotes fiscais para financiar a renda das pessoas e das empresas, pode salvar nossa economia e, portanto, nosso povo.

A rapidez de todas essas medidas é vital.

O consenso em torno dessas pesadas políticas fiscais anticíclicas se formou rapidamente entre todos os economistas, mesmo os conservadores. É o esforço que está sendo feito e liderado no mundo todo pelos governos centrais.

Mas no Brasil o governo se encontra sob o comando de um personagem inqualificável, que aposta no caos econômico e social por inconfessáveis interesses políticos.

O resultado disso se torna imprevisível.

A estrutura política, que hoje se articula ao redor do Congresso Nacional e dos governadores, assumiu a frente da resolução dos graves problemas que o Brasil enfrenta. É essa estrutura, principalmente, que deverá proteger o país na crise e implementar as profundas transformações que o Brasil precisará para sair dela.

Nesse momento, não resta opção: o Estado brasileiro terá que aumentar seu endividamento, e é isso o que estão fazendo todas as economias desenvolvidas do mundo.

Porque o equilíbrio fiscal não é uma vaca sagrada, mas ele é desejável, uma vez que dinheiro nós podemos criar do nada, mas riqueza real, não. E um país que mantém sua saúde fiscal é um país que controla a distribuição da riqueza real produzida.

Sem um pacote gigante para os cidadãos e as empresas sobreviverem a essa situação inédita, assistiremos a uma destruição sem precedentes da já debilitada economia brasileira.

Haverá o tempo de cobrarmos as responsabilidades pelo que virá.

Mas enquanto escrevo estas palavras, esse momento ainda não chegou. Ainda é tempo de pressionar para que nos unamos na defesa da vida de nosso povo e da sobrevivência de nossas empresas.

Um livro é uma mensagem para a história, não para o presente.

E eu gostaria de deixar aqui uma mensagem de esperança.

A longo prazo, minha esperança é que essa pandemia ajude a maioria da humanidade a descobrir que já estávamos vivendo numa grande tragédia mais profunda: a da cultura do consumismo irracional misturada com o neoliberalismo criador da superdesigualdade.

Nas últimas décadas, transitamos de um padrão de busca da felicidade no ambiente subjetivo, espiritual, como a busca da justiça social ou da fruição artística, para a busca da felicidade cada vez mais concentrada no ambiente do consumo.

Para mim, isso explica grande parte do drama contemporâneo.

Minha geração foi uma geração de insurgentes, que buscava a felicidade em bens espirituais, no domínio dos valores. No valor do sagrado também, mas igualmente no valor do prazer, do belo, da justiça, da compaixão. Acreditávamos que nossa felicidade seria encontrada na paixão, no romance, no amor, na música, queríamos o contato com o transcendente, com o saber, queríamos a revolução e um mundo melhor.

As novas gerações cresceram sob o imenso estresse do excesso de informações que vêm pelas redes sociais, pela mídia e pelo cinema, impregnadas de estímulos de consumo e propaganda.

São massacradas, dia e noite, com imagens e símbolos que tentam seduzi-las para abandonar o mundo dos valores, em busca do mundo das coisas. Assim, nossas crianças e nossos jovens são empurrados para entrar numa espiral de consumo para a qual não têm recursos, e vão se tornando infelizes e desenvolvendo a crença de que são fracassados.

Na minha opinião, a raiz mais profunda da violência em nossa sociedade é o contraste entre a miséria e a opulência, vinculado à sexcitações das demandas de consumo. Mais ainda, às terríveis frustrações de se buscar a felicidade na posse de coisas, porque coisas não são fins, mas meios para a felicidade. Sempre haverá novos padrões de consumo e produtos a acessar para tornar infeliz aquele que os deseja e não os possui.

Não podemos continuar excitando as demandas de consumo numa juventude indefesa, ao mesmo tempo que tiramos dela qualquer perspectiva de renda.

É neste rumo suicida, muitas vezes pior no segundo país mais desigual do mundo, que nossa civilização estava quando o coronavírus nos atingiu.

Essa enorme tragédia nos dará, no entanto, a oportunidade de refletir sobre nosso futuro e nossa forma de vida.

Há soluções para sair dessa crise como houve solução para sair da crise de 1929.

Para a crise do consumismo, o retorno da sociedade a uma cultura dos valores, como abordarei mais à frente.

Para a crise sanitária inédita da pandemia, podemos olhar para os modelos bem-sucedidos de coordenação estatal na China e na Alemanha.

Para a crise econômica, podemos olhar para o que nós mesmos fizemos em 1929 e que tornou o Brasil o primeiro país do mundo a sair da crise na Era Vargas: desenvolvimentismo e políticas anticíclicas. Não é à toa que o presidente norte-americano Franklin Roosevelt reconheceu o Brasil, em 1936, como um dos criadores do New Deal.

Getúlio venceu a crise de 1929, nós podemos vencer a crise de 2020.

Mas para sairmos do buraco inédito onde estamos, nosso país terá que construir um novo diálogo e um novo consenso, que supere as feridas do golpe de 2016 e a radicalização e polarização ideológica que se acentua desde 2013.

Temos nessa terrível tragédia também uma oportunidade para redescobrirmos nossas potencialidades e nossa natureza, nossa solidariedade, nosso senso de comunidade, nossa adaptabilidade, criatividade e resiliência a crises. Só o diálogo e a ação conjugada dos cidadãos comuns com o Estado e a iniciativa privada podem superar tanto a pandemia quanto a longa crise econômica que hoje entra em seu mais dramático capítulo.

Ofereço este livro como uma contribuição para esse diálogo e para a formação desse novo consenso. Que Deus nos abençoe e ilumine neste momento do qual, como disse o Papa Francisco, nos salvaremos unidos ou pereceremos divididos.

Ciro Gomes

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