sexta-feira, 9 de abril de 2021

PND - O NOVO CONTEXTO GEOPOLÍTICO

O NOVO CONTEXTO GEOPOLÍTICO

É NATURAL QUE EM PAÍSES de grandes populações e grandes territórios, seus respectivos povos não percebam objetivamente a grave centralidade que é a importância da forma como esses países estão inseridos e são condicionados pelo mundo. É muito comum no meio do povo dos EUA a crença de que Buenos Aires é a capital do Brasil, por exemplo. Mas isso é um grande engano. Por isso, é preciso ajudar o nosso povo a entender que um país não se desenvolve de forma isolada, ele sempre buscará fazê-lo inserido num contexto geopolítico, e para ser bem-sucedido deve conseguir se posicionar adequadamente nele.

Mas não basta uma nação se posicionar e se organizar da forma certa para se desenvolver. Ela tem que ser capaz de impedir que potências estrangeiras destruam essa organização e sabotem esse desenvolvimento. Porque é isso o que todas tentarão, de modo mais ou menos audacioso de acordo com seu nível de poder e interesse, o tempo todo. Pensar qualquer coisa diferente disso é de uma ingenuidade inaceitável, e não se sustenta à luz da história brasileira e mundial, antiga e recente.

Todos os países têm como interesse legítimo ampliar seu poder, sua riqueza, sua segurança e seus mercados e diminuir suas vulnerabilidades. Quando um país não age de acordo com esses interesses é porque está sendo governado por prepostos de potências estrangeiras.

No entanto, cada contexto internacional encerra suas contradições e conflitos de interesses, e é nesses conflitos que surgem as possibilidades para um país de tradição pacífica e economia limitada como o nosso. Foi aproveitando a necessidade de aliados na Segunda Guerra que Vargas arrancou dos EUA capital, tecnologia e aceitação para desenvolver nossa siderurgia, e foi aproveitando a Guerra Fria que o regime militar garantiu, por mais de uma década, algum espaço para nosso projeto industrial.

Sim, porque nem aos EUA, nem à China, nem a nenhum país industrializado interessa o desenvolvimento de nossa indústria e tecnologia. Só conseguiremos fazer isso com um projeto nacional, muita vontade política, investimento próprio, diplomacia hábil e soberana, força militar e um razoável aparato de contrainteligência para impedir a sabotagem estrangeira.

Nossa invejável produção agrícola e mineral, as dimensões de nosso território e a tradição de nossa política externa, orientada pela busca da solução pacífica dos conflitos e respeito à soberania de todos os países, ainda nos dão algumas vantagens na construção de acordos internacionais que podem compensar em parte nossa momentânea falta de poder militar, tecnológico, industrial e de serviço de inteligência. E esses acordos devem ser buscados para viabilizar nosso projeto nacional de desenvolvimento, assim como este deve ser pensado dentro das possibilidades e dos riscos oferecidos pelo cenário internacional. Vou então aqui oferecer minhas impressões sobre esse cenário atual e alguns elementos para sua avaliação.

A FALÊNCIA DA PROPOSTA NEOLIBERAL

Nos anos 1990 venderam como novidade um processo que começou com as caravanas nômades em tempos imemoriais: a “globalização”. A chamada Terceira Revolução Industrial trouxe uma transformação profunda no sistema produtivo do capitalismo mundial com o surgimento da eletrônica, gerando avanços tecnológicos que se aceleram cada vez mais com a robotização e a inteligência artificial. Aproveitando esses avanços que aceleraram as comunicações e os transportes, aumentaram imensamente os volumes de comércio e o trânsito de capitais, os mercados financeiros empurraram a propaganda de que a globalização seria o vento da modernidade e do progresso, e que para usufruir de seus benefícios era necessário retirar as barreiras primitivas levantadas pelos Estados Nacionais e abrir de forma indiscriminada os mercados periféricos aos produtos manufaturados e à especulação financeira. Muitos deram um nome e uma máscara acadêmica a esse discurso bem remunerado: era o neoliberalismo.

Mas nunca as condições reais de empreender, produzir ou buscar trabalho estiveram globalizadas. A única coisa que realmente está globalizada é a informação em tempo real, e essa informação está predominantemente direcionada à disseminação e imposição de um padrão de aspiração de consumo dos países ricos ao mundo todo.

A primeira década do século XXI marcou a ruína da prática neoliberal de desregulamentação do mercado, com a segunda maior crise da história do capitalismo, que começa com a crise do subprime. [1] A ruína do neoliberalismo foi tão grande que hoje é reconhecida até por órgãos que ajudaram a disseminá-lo, como o FMI, [2] e o rótulo é rejeitado por neoliberais como uma manifestação de “ignorância” daquele que o usa.

A crise financeira do subprime foi a culminação de uma era de imensa integração global e informatização total dos mercados financeiros, acompanhada de selvagem desregulamentação sustentada pela ideologia de quinta categoria (vendida como ciência boa) do neoliberalismo. Foi desencadeada em julho de 2007, a partir da queda da bolsa de Nova York motivada pela explosão da bolha de concessão de empréstimos hipotecários de alto risco, e ficou simbolizada na quebra do banco Lehman Brothers.

Esse nível incrível de integração e velocidade dos mercados também mudou drasticamente o padrão de funcionamento do sistema financeiro internacional. Desde a década de 1980 mantivemos relações descuidadas com os ciclos financeiros internacionais cada vez mais velozes, que variam entre épocas de muita oferta de dinheiro com juros baixos e épocas de enxugamento e juros altos que quebram os países que dependem de financiamento externo. Como se não bastasse, essa integração e velocidade deixam empresas e países cada vez mais expostos a ataques especulativos, muitas vezes executados por garotos de vinte anos em suas estações de trabalho, tratando vidas, empregos, empresas e países como variáveis num videogame. Enfim, a matriz financeira que orientou nosso antigo projeto de desenvolvimento está definitivamente alterada.

A essência do que o neoliberalismo quer para os governos nacionais é que eles somente exerçam o papel de administrar serviços públicos, executar programas de renda mínima e garantir os interesses do capital financeiro internacional. Acima de tudo, o neoliberalismo exige que o Estado Nacional abra mão de sua capacidade de investimento direto e seu papel de coordenação da economia.

A propaganda neoliberal é disseminada por países que estão na ponta tecnológica, prometendo o paraíso para aqueles que abrirem suas fronteiras nacionais ao livre-comércio e ao trânsito de capitais especulativos, desmontarem o Estado e deixarem que ao empreendedor privado individualista caiba todo esforço de investimento e empreendimento nacional, de preferência com as menores regulações ou tributos possíveis.

Os dois principais problemas com tão delirante discurso são, primeiro, afirmar que o empreendedor privado vai aumentar sua produtividade só por competir mais ou ainda resolver enfrentar sem ajuste cambial ou alfandegário as empresas estrangeiras que estão na ponta tecnológica, que possuem crédito a juros negativos e escala maior.

O segundo, e principal, é que um país não pode se dar ao luxo de simplesmente deixar fechar todas as suas indústrias por elas não poderem produzir tão bem e barato quanto as grandes corporações dos países mais desenvolvidos. Ao contrário do discurso de propaganda dos interesses estrangeiros, o consumidor de um país nem sempre tem a ganhar com isso, porque para pagar mais barato por um tênis ele primeiro tem que ter dinheiro suficiente.

Não devemos praticar nem a abertura indiscriminada nem o fechamento indiscriminado. O que um país deve procurar é encontrar o ponto ótimo, cambial e alfandegário, no qual ele possa exportar todo excedente do que produz de forma competitiva para pagar com esses dólares a importação dos bens em que ele é mais improdutivo e as remessas de lucros que as multinacionais efetuam para suas sedes. Todo o resto, que a nação não tem recursos para importar, deve buscar produzir internamente para garantir o nível ótimo de vida daquele seu estágio de desenvolvimento, e, é claro, sempre procurando através de política industrial o aumento de produtividade nesses setores. Afinal de contas, é melhor produzir o suficiente para ter dinheiro para pagar por um tênis menos sofisticado e um pouco mais caro do que não ter dinheiro para comprar tênis algum porque o país não tem produção nacional para trocar por ele ou porque a pessoa não tem emprego ou renda. E isso se faz com câmbio responsável e políticas alfandegárias pontuais. Ou seja, é parte central de um Projeto Nacional de Desenvolvimento organizar uma política industrial e de comércio exterior.

É isso o que todo país que defenda seus interesses fez, faz e sempre fará. Discurso neoliberal só prospera em países periféricos através dos porta-vozes do interesse internacional, geralmente muito bem remunerados. Recentemente pude assistir com satisfação a discursos acalorados no Congresso norte-americano, nos quais se protestava veementemente contra a compra da Budweiser norte-americana pela Ambev brasileira, assim como ler sem surpresa sobre as restrições de importação dos EUA sobre o aço plano brasileiro, simplesmente porque era melhor e mais barato que o deles. Pude testemunhar também a perigosa e aberta guerra comercial entre os EUA e a China.

Existem muitos outros exemplos desse inabalável protecionismo norte-americano, dos quais podemos citar alguns: o Buy American Act, lei que define imposições para compras governamentais de conteúdo nacional; a Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa), agência estatal de fomento ao desenvolvimento de tecnologias militares que, de fato, abastece o mercado privado dessas tecnologias, que passam a ter uso comercial (o caso mais famoso é o da internet); a Super 301, instrumento de defesa comercial previsto no Omnibus Foreign Trade and Competitiveness Act, aprovado em 1988, em pleno Governo Reagan, arauto do neoliberalismo. Por fim, um exemplo bastante paradigmático é o Committee on Foreign Investment in the United States (CFIUS), um comitê interministerial, presidido diretamente pelo presidente norteamericano, que supervisiona e tem poder de veto sobre investimentos estrangeiros nos EUA de acordo com critérios sobre segurança nacional e soberania econômica. Como se vê, o protecionismo dos EUA não depende da coloração do partido que ocupe o poder, e sim de uma institucionalidade estatal permanente.

A defesa do livre-comércio pelos EUA ou por qualquer país desenvolvido é assim: defesa do protecionismo quando perdem produtividade, defesa do livre-comércio quando ganham produtividade. E só nas áreas em que ganham. Em 2018, Donald Trump proibiu a compra da Qualcomm, uma empresa privada norteamericana de alta tecnologia, por uma empresa chinesa. Enquanto isso, o governo brasileiro autorizou a compra da Embraer, cabeça do único setor de alta tecnologia em que o Brasil tem superávit, que é o aeroespacial. E lá era um negócio privado. Aqui, o próprio governo usou sua golden share [3] para autorizar o projeto.

Isso acontece porque, como me referi aqui, as condições de produzir não são globais, são dramaticamente locais. Na maior parte do primeiro mundo hoje, desde a crise econômica de 2008 se operam juros reais ou muito baixos ou negativos (abaixo da inflação do período). Então, enquanto o Japão hoje trabalha com juros negativos, no Brasil uma pequena empresa contrata um empréstimo a 1,65% ao mês. Quem se financia barato destrói quem se financia caro. Essa única diferença competitiva, o custo do capital, seria suficiente para esmagar em condições de livre-comércio indiscriminado toda a indústria nacional. Mas ainda há mais duas: a diferença tecnológica e a escala.

A diferença tecnológica. Não existem mais condições de competição entre retardo tecnológico e ponta. Dos anos 1990 para cá vimos a aceleração de uma mudança estrutural muito mais grave e insidiosa para nosso projeto nacional, a mudança nas velocidades dos ciclos tecnológicos na sociedade da informação, com a microeletrônica, a nanotecnologia, a inteligência artificial, e está chegando o 5G. No pós-guerra, os ciclos eram lentos e podiam ser alcançados por um país retardatário com projeto próprio em dez ou quinze anos. Hoje, simplesmente, isso não é possível. Não existem mais condições de competição entre retardo tecnológico e tecnologia de ponta. E a indústria brasileira tem hoje um retardo tecnológico muito alto.

Por fim, a escala. Quanto mais bens ou serviços são produzidos com sua capacidade instalada, menor é o que se chama de “custo marginal”, o custo total imposto pela produção de uma unidade a mais daquele produto. Ou seja, quando você usa toda a sua estrutura de bens de produção e mão de obra para produzir uma única calça, o custo dela é o da totalidade dos custos dos bens de produção imobilizados e mão de obra utilizada, mais o custo do material usado em sua confecção (vamos deixar de lado outras variáveis como transporte, para simplificar). Quanto mais calças são feitas, mais esse custo se divide por cada unidade. No limite, quanto maior a produção de um bem ou serviço com a mesma estrutura, mais o custo marginal tende somente ao valor da matéria-prima usada para produzir esse bem ou serviço a mais. E mesmo nesse custo as condições melhoram com o aumento de escala: quem compra tecido para produzir 1 milhão de calças o compra mais barato que quem compra tecido para produzir mil calças. Com um mercado interno reduzido pela desigualdade e pobreza, além de uma população menor, o Brasil não tem condições de competir abertamente em escala com uma indústria chinesa, por exemplo.

Custo de capital, tecnologia e escala: um grande desequilíbrio em qualquer uma dessas variáveis elimina as condições de competição entre duas indústrias ou serviços. Estamos em desvantagem nas três. Isso explica por que quem queria e quer a abertura indiscriminada e definitiva no Brasil não quer o aumento de produtividade ou a diminuição dos preços de nossa indústria, mas sua dizimação, que significará diminuição brutal de empregos qualificados e renda nacional, assim como alto desemprego crônico.

Explica também nossa tragédia dos anos 1980 para cá. Em 1980, cerca de um terço do PIB brasileiro era industrial. Em 2018, não chega a 11%, e despencando. E o incrível é perceber a falta que um projeto nacional faz. Nesse período tivemos o resto da ditadura, o neoliberalismo tosco de Collor, o nacionalismo bem-intencionado de Itamar Franco, o neoliberalismo ilustrado de FHC, e o mais doido de tudo: treze anos de autorreferidos governos de esquerda de Lula e Dilma.

No entanto, essas mudanças econômicas mundiais também mostram por que não podemos optar simplesmente por uma volta ao nosso velho modelo nacional-desenvolvimentista baseado em empréstimos internacionais, protecionismo generalizado e dependência da inteligência tecnológica alheia. O que propomos fazer, explicarei nos próximos capítulos.

NOVOS PADRÕES DE ESPIONAGEM E DESESTABILIZAÇÃO

A revolução da informática, com a disseminação de aplicativos de celular, sites de serviços e, principalmente, das redes sociais que permitem a coleta e o processamento gigantesco de dados, o chamado big data, criou um novo padrão de espionagem e desestabilização no mundo. Aprofundou-se a utilização da chamada “guerra híbrida”, marcada por estratégias não militares de guerra, como espionagem e manipulação de agitação política, mas agora concentradas nas redes sociais. Nesse novo contexto tecnológico surgem os ciberataques e a disseminação de conteúdos de interesse político das potências cibernéticas, incluindo as fake news.

Esse padrão pode ser visto claramente em ação nas chamadas “revoluções coloridas”, na Primavera Árabe, na eleição de Donald Trump, no Brexit, nas “jornadas de junho” e muito fortemente nas eleições de 2018 no Brasil.

O objetivo nessas ações é explorar as vulnerabilidades políticas de uma nação-alvo para alcançar o máximo possível no processo que consiste em desestabilizar sua gestão e economia, derrubar seu governo e no limite colocar em seu comando títeres fracos e acossados. Outro tipo de ação de espionagem hoje é a executada por hackers, que atuam roubando segredos industriais, comerciais e governamentais e causando danos em sistemas de informação a partir de suas estações de trabalho seja nos serviços de inteligência das grandes potências ou como terceirizados de grandes corporações, como aconteceu nas usinas nucleares do Irã ou mesmo no Brasil, com a infiltração na Petrobras, na Embraer e no próprio governo federal.

Não podemos ser ingênuos em acreditar que esforços de desenvolvimento ou de modificar fundamentos da ordem mundial não vão provocar ações desestabilizadoras. Os documentos revelados em 2013 por Edward Snowden e em 2016 pelo site Wikileaks, de Julian Assange, especialmente no que tange à espionagem da Petrobras, mais recentemente, ou, mais atrás, no caso do Projeto Sivam, são uma mostra concreta do tipo de recursos usados hoje na política e comércio internacionais. Temos que levar em consideração esse novo cenário na construção de instrumentos suficientes de contrainteligência que permitam ao Brasil proteger seu governo, indústria e sociedade dessas forças desestabilizadoras. [4]

Alguns, inclusive no atual governo brasileiro, parecem comemorar essa situação dramática por achar que esse poderio de desestabilização está sendo controlado pelos EUA. Mas estes mesmos que hoje comemoram, em breve podem estar em pânico com um mundo de dados sob domínio do 5G chinês.

A Huawei, empresa chinesa desenvolvedora do 5G, prevê que em pouco tempo seu advento (em virtude do aumento exponencial de velocidade de transmissão de dados na rede) tornará possível robôs comandados a distância, executando trabalhos pesados ou perigosos, e mesmo boa parte de nossas tarefas domésticas, com a conexão de todos os eletrodomésticos à internet, além de centros de processamento de dados gigantescos alimentados por uma quantidade inimaginável de dados pessoais, biológicos e ambientais, coletados 24 horas por dia. Será que é preciso dizer o tamanho do poder que o eventual uso inescrupuloso disso terá para manipular corações e mentes ao redor do mundo? Ou mencionar o risco de sabotagem de toda a estrutura de máquinas e robôs de uma sociedade totalmente conectada?

Esse é o verdadeiro motivo da luta entre EUA e China pelo controle da plataforma 5G no mundo. É por isso que Trump vetou a compra da americana Qualcomm pela chinesa Broadcom. Não se trata de uma mera guerra comercial, mas da guerra por soberania nacional e controle dos dados mundiais.

O BRASIL E A AMÉRICA LATINA

A integração latino-americana não é um “discurso bolivariano”, ela é para nós um imperativo econômico e estratégico previsto na Constituição. Em seu artigo quarto, parágrafo único, ela diz: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

Nossa região hoje se encontra, toda ela, regredindo no pouco de industrialização que conseguiu para retornar à condição exclusiva de fornecedora de matérias-primas, única que interessa aos EUA, China e Europa. Espremidos pelo jogo econômico bruto desses gigantes, todos hostis ao surgimento de novos focos de concorrência ou poder político e econômico, a América Latina e o Caribe precisam se integrar para aproveitar ao máximo as vantagens comparativas de suas economias e a proximidade geográfica, além da convergência de interesses na criação de um bloco que fortaleça a região na defesa de sua soberania.

Para isso, a América Latina precisa tanto enfrentar suas oligarquias locais, avessas à integração por conta das suas alianças históricas com os EUA, quanto superar as desconfianças mútuas entre suas nações. O Brasil, por exemplo, tinha, até o meio da década de 1990, uma imagem de país explorador, imperialista e desrespeitoso com seus vizinhos. A partir de iniciativas como a liderança na criação do Mercosul, a imagem brasileira progressivamente começou a mudar. Tive a honra de ajudar na consolidação dessa iniciativa preliminar de integração sul-americana quando ministro da Fazenda de Itamar Franco, antecipando a vigência da tarifa externa comum do bloco que já estava acordada no Tratado de Ouro Preto (que concluiu a criação do Mercosul), assinado por mim, para entrar em vigor em janeiro do ano seguinte.

Com esse tratado, em dezembro de 1994, os países do Mercosul passaram a não mais cobrar tarifa no comércio intrarregional. Na direção oposta, o atual governo ameaça de guerra a Venezuela, uma nação irmã e vizinha, situação inédita de tensão e quebra de confiança entre as nações latino-americanas. Essa bravata infame, feita para agradar os interesses de propaganda dos EUA, além de arriscar a vida de brasileiros e a integridade do território nacional, lança sobre o Brasil um nível de desconfiança no continente que jamais tivemos antes. Não podemos permitir que a tradição diplomática pacífica criada pelo barão do Rio Branco seja jogada no lixo com tamanha vileza e irresponsabilidade com nosso país e os membros de nossas Forças Armadas. Isso não significa, nem de longe, a aprovação ao regime de Nicolás Maduro. É somente, neste caso, o Brasil assumir seu papel natural de mediador, nunca o de instrumento dos interesses de outras nações de fora da região.

O Mercosul nasceu da emergência em responder à investida norte-americana para a assinatura da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que, em função de nossas assimetrias competitivas, teria esmagado qualquer possibilidade de o Brasil sobreviver como país industrial.

Infelizmente, o Mercosul ainda não realizou sua promessa original e continua lutando contra os esforços internacionais por sua inviabilização. Esses esforços atualmente têm contado com a colaboração do Governo Bolsonaro, sempre diligente em defender o interesse nacional dos EUA.

Creio ainda que devemos apoiar iniciativas em curso para a melhoria da infraestrutura regional de transportes e gasodutos sulamericanos, tais como a construção do Corredor Bioceânico, da Estrada do Pacífico e do Anel Energético Sul-americano. São projetos de interesse evidente para o Brasil.

O BRASIL E OS EUA

Nossa vocação diplomática é para a amizade pan-americana, para a cooperação e a boa relação com nosso poderoso vizinho. Cooperação, entretanto, não exige subordinação, e essa postura não significa que temos que antagonizar os norte-americanos: trata-se simplesmente de construir uma relação bilateral que afirme nossos interesses, independência e soberania.

Nossa política externa em relação aos EUA tem que levar em consideração o histórico de intervenções que eles patrocinaram no Brasil e na América Latina nos últimos cem anos, não podendo ser ingênuos. O governo de Michel Temer não reagiu às negociações do Governo Macri para permitir a instalação de uma base norte-americana na tríplice fronteira, permitiu o uso da Base de Alcântara pelos EUA e realizou com esse país exercícios militares conjuntos em plena Amazônia, abrindo o território nacional. Isso é um gravíssimo precedente, contrário a todas as nossas tradições diplomáticas e que eleva as desconfianças e a tensão de toda a região.

Mas o Governo Bolsonaro, nos poucos meses que antecederam a versão final deste livro, levou a subordinação brasileira aos interesses norte-americanos a um patamar inédito de humilhação internacional. O presidente brasileiro que grita USA e bate continência para a bandeira dos EUA entregou, sem qualquer contrapartida, a Base de Alcântara a esse país e, com ela, a soberania sobre parte do território nacional. Da mesma forma, está expandindo fortemente as importações norte-americanas de derivados (enquanto um terço de nossa capacidade de refino está paralisado), autorizou uma importação imensa de etanol subsidiado dos EUA, constrangendo ainda mais o setor sucroalcooleiro brasileiro, que já está em agonia, concedeu uma cota de importação de 750 mil toneladas de trigo norte-americano subsidiado que tem potencial de destruir a já incipiente produção de trigo brasileiro, e prometeu renunciar ao status de país “em desenvolvimento” do Brasil na OMC (Organização Mundial do Comércio), em troca de uma promessa de apoio dos EUA à entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Tudo isso, vale repetir, sem nenhuma contrapartida, destruindo empregos no Brasil e financiando com nossos poucos tostões empregos nos EUA. Ou seja, trocou algo concreto, que nos permite realizar políticas de compras governamentais internas e um prazo de dez anos para nos adaptar a acordos feitos dentro da organização, por uma promessa de status simbólico que em nada favorece nossa luta por desenvolvimento. Só para se ter ideia do tamanho dessa aberração, a China, o maior país emergente do mundo sob o ponto de vista industrial, não abriu mão desse status.

Se isso não fosse terrivelmente grave, seria possível brincar que Bolsonaro é semelhante a Trump. Trump busca proteger os interesses dos EUA, Bolsonaro também.

Em 1964, um sorridente embaixador brasileiro representando um governo golpista que era títere dos EUA disse a famosa frase: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. Acho que nem mesmo uma criança de dez anos acredita nisso. O que é bom para os EUA é bom para os EUA. O que é bom para o Brasil é bom para o Brasil.

Às vezes essas coisas são boas juntas, às vezes não. Um governo brasileiro realmente patriota é aquele que negocia as primeiras e se recusa a alinhar-se às segundas.

O BRICS

O grupo formalizado entre as economias emergentes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul [5] é a mais extraordinária tentativa dos últimos vinte anos de mudar o panorama unipolar da geopolítica mundial depois do fim da União Soviética. Ele é nossa melhor esperança de construção de um mundo multipolar que supere o desenho regulatório das instituições criadas pelo acordo de Breton Woods, no fim da Segunda Guerra, e ajude a criar uma ordem mundial assentada na paz, na não violência e na autonomia dos povos.

O Brasil pode se beneficiar de acordos especiais entre os membros desse bloco para viabilizar e proteger sua reindustrialização, mesmo diante das diferenças significativas de interesses e regimes políticos entre eles. No Brics podemos buscar ter um ambiente para negociar um regime de preferências comerciais industriais para um mercado de 3 bilhões de pessoas, transferências tecnológicas sensíveis (foguetes e satélites, por exemplo), além de uma estrutura de financiamento que não tenha que se submeter às políticas ruinosas do FMI.

O Banco do Brics – fundado em Fortaleza, em 2014 – é uma agência multilateral de financiamento mundial alternativa ao Banco Mundial e ao FMI, instrumentos geopolíticos do mundo unipolar.

Pela primeira vez desde Breton Woods teremos potencialmente uma fonte de financiamento de projetos de desenvolvimento que não está obrigada a seguir o receituário neoliberal. Essa iniciativa, como todas as que interessam à soberania nacional, foi sabotada pelo Governo Temer e está sendo enterrada pelo atual governo. Um governo legitimamente comprometido com o interesse nacional precisa resgatar essas iniciativas e usá-las para promover nosso desenvolvimento.

O BRASIL NO MUNDO

O resumo do que acredito diante desse panorama é que o Brasil deve se mover no contexto geopolítico no sentido de qualificar suas relações internacionais, defendendo dois grupos de valores. 

Um: resgatar, modernizado, o ideário da melhor tradição do Itamaraty que herdamos do barão do Rio Branco, mas já está em nossa prática desde Pedro II: solução pacífica dos conflitos, não intervenção em assuntos domésticos, respeito à autodeterminação dos povos e por uma ordem internacional assentada no direito e não na violência. Devemos nos guiar, bilateral ou multilateralmente, pela busca de um regime de preferências comerciais que nos permita ganhar escala para nosso esforço de reindustrialização, um regime de transferências tecnológicas que nos ajude a superar o atraso tecnológico em setores sensíveis e, por fim, necessitamos de um mecanismo de financiamento rebelde que não nos obrigue a aceitar o receituário falido imposto pela hegemonia norte-americana nas instituições de Breton Woods: Banco Interamericano, FMI e Banco Mundial.

A diplomacia brasileira não pode ser conduzida por fanatismos ideológicos como no atual governo, muito menos por alinhamentos espúrios, mas sim respeitando a autonomia dos povos e atuando de forma a proteger os interesses comerciais brasileiros. O compromisso manifestado por Bolsonaro com a mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, só para ficar num exemplo, não só compromete as exportações brasileiras de frango e vários produtos para o mundo árabe como nos coloca no centro de um conflito que não é nosso, trazendo o Brasil para a rota do terrorismo internacional.

A integração latino-americana e o Brics continuam a ser as melhores oportunidades de parcerias estratégicas para o país, graças a algumas características complementares entre as economias dos blocos. A aliança estratégica vem do abandono da condição de subordinado. Evidentemente, devemos tomar cuidados soberanos com as aspirações imperialistas de todos os parceiros, não só dos EUA. Não estamos procurando trocar de imperialismo, mas nos livrar dele. E não poderemos fazer isso sem o desenvolvimento de uma adequada estrutura de contrainteligência brasileira operada por patriotas e preparada para o mundo contemporâneo.

Ao Brasil não interessa entrar de cabeça em nenhum dos dois grandes jogos imperialistas de nosso tempo, o norte-americano e o

chinês. Assim como Rio Branco fez entre Inglaterra e EUA, Getúlio Vargas fez entre os EUA e a Alemanha e Ernesto Geisel fez entre os EUA e a União Soviética, o que cabe a nós, volto a dizer, é defender os interesses do Brasil em meio a esses conflitos, para criar o espaço em que nosso país será capaz de recriar sua capacidade tecnológica e industrial e se reposicionar no concerto das nações.

A nós só interessa uma via própria.

No entanto, é urgente a articulação de um esforço internacional para enfrentar alguns problemas da modernidade: regular o uso de novas tecnologias para espionagem e desestabilização e enfrentar o fluxo internacional de capital sujo (paraísos fiscais e ataques especulativos), esforço sem o qual a estabilidade econômica e política de países periféricos e em desenvolvimento não será mais possível.

As informações sobre o que aconteceu nesse contexto tanto no plebiscito do Brexit quanto nas últimas eleições presidenciais nos EUA não nos permitem ser ingênuos a ponto de acreditar que elas não estão acontecendo também nos assuntos brasileiros (as tratativas de entrega do pré-sal e da Embraer são crimes inomináveis contra o Brasil).

1 Termo em inglês que designa crédito de alto risco de inadimplência, e, portanto, cobra juros altos.

2 “O estranho dia em que o FMI criticou o neoliberalismo.” BBC Brasil, jun. 2016. Disponível em:

http://www.bbc.com/portuguese/geral-36668582

3 Golden share é o nome que se dá a uma parcela especial de ações de uma empresa que, apesar de minoritária, garante poderes especiais de veto ou decisão ao poder público, que fica em posse delas. Ela geralmente é criada quando o Estado vende o controle acionário de empresas que têm interesse público sensível, como a indústria de defesa.

4 BALZA, Guilherme. “‘Brasil é o grande alvo dos EUA’, diz jornalista que obteve documentos de Snowden.” UOL, set. 2013. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimasnoticias/2013/09/04/brasil-e-o-grande-alvo-dos-eua-dizjornalista-que-obteve-documentos-de-snowden.htm

5 “S” de South Africa.

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